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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

‘RAP’ NACIONAL: ESTABILIZAÇÃO DO DISCURSO DA VIOLÊNCIA OU CONSTRUÇÃO DE UMA NOVA IDENTIDADE?

Ana Silvia Andreu da Fonseca1
Resumo: Este artigo analisa alguns aspectos da produção poético-cultural do rap nacional que se relacionam à questão da violência – social, econômica, urbana, discursiva – e de temas que a ela se ligam, como identidade e representação. Faz-se, para tanto, uso de elementos da poética aristotélica, sobretudo do mito do “herói”, como modo de filiar o rap, ao menos em partes, ao gênero trágico.
Palavras-chave: Rap nacional, violência, identidade, representação, tragédia contemporânea.
Abstract: This paper analyses some aspects of Brazilian rap's poetic and cultural production. They are related to the matter of social, economic, urban and discoursive violence, but also to correlated topics, like identity and representation. This work will use elements of the aristotelic poetry, mainly the myth of the “hero”, with the intention to include Brazilian rap in the genre of tragedy.
Keywords: Brazilian rap, violence, identity, representation, contemporary tragedy.

1. Introdução
O projeto de doutorado intitulado O ‘rap’ nacional e sua possível aplicação ao ensino de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, de minha autoria, trabalha com, dentre outros, o discurso de nosso rap sobre a violência. Embora haja a proposta de ligação desse discurso com temas caros à língua e literatura, especificamente no tocante ao ensino de tais disciplinas em escolas públicas, este trabalho está restrito à análise da produção poético-cultural do rap nacional no que tange a questão da violência (social, econômica, urbana, discursiva) e de temas que a ela se ligam (como identidade e representação). Para tanto, faz-se uso do mito do “herói” – ou “guerreiro”, como nomeiam os rappers –, aquele que enfrenta toda sorte de adversidades e violências, segundo a poética aristotélica, como modo de filiar o rap, enquanto produção artístico-cultural, ao menos em partes, ao gênero trágico.
Com as análises que se seguem pretendo, portanto, identificar elementos do gênero trágico no discurso do rap brasileiro e, conseqüentemente, exibir uma certa ordem canônica em seu discurso. Isso se configuraria, em primeira instância, em uma tentativa de deslocamento ideológico. Pois, a exemplo de Maher (2007, p. 256), que mostrou que nossas línguas indígenas são tão ricas e complexas do ponto de vista sistêmico e discursivo como as demais, e não “gírias”, aumentando assim o seu prestígio, mostrarei aqui que o rap, tão caracterizado por diferenças sócio-discursivas, lingüísticas, mantém uma estrutura poética por vezes tão rica e complexa como as canônicas.

2. O rap nacional enquanto produção literária e cultural
Os álbuns de rap nacional seguem em sua maioria uma estrutura típica:
1) Uma introdução, onde é lançado o leitmotiv de que o grupo ou MC tratará ao longo do álbum, o estilo musical, a filiação lexical, e onde é por vezes apresentado um tipo de lead, que no jornalismo concentra as informações básicas relativas a o que, quem, onde, quando, como.
2) As músicas que compõem o álbum e eventualmente algumas vinhetas entre elas, que na maioria dão um tom de realidade ao conjunto da obra – por exemplo, sons de ruas, de tiros, de sirenes, de crianças brincando ou chorando, de chuva, de conversas muitas vezes ao telefone, de rádio ligado etc. As vinhetas contribuem para dar coesão ao tom de narrativa por vezes pretendido entre uma música e outra. De algum modo as canções e vinhetas reafirmam ou dão continuidade ao leitmotiv colocado na introdução.
3) O salve final, composto geralmente por agradecimentos e homenagens a “trutas e quebradas”, Deus, Jesus, santos e orixás, parentes ou “irmãos” mortos ou presos, eventualmente também recados para inimigos ou uma música que funcione como uma espécie de coda do álbum inteiro.
Vejamos quatro exemplos de introduções.
1) “Bem-vindos” de Ferréz2 – faixa 1 do álbum Determinação, São Paulo, 2003.
Bem-vindos ao fundo do mundo / Zona onda Sul / Capão Redondo / SP [som de tiro]
2) “Quebrando as algemas” de Dexter3 – faixa 1 do álbum Preso sim, exilado não, São Paulo, 2005.
2005, Dexter 1º ato, tomando de assalto o seu tempo, a sua mente, a sua atenção / Sem chance, irmão, chegou a hora / De pé e na fé guerreiro, sem se rastejar ou pagar simpatia / A opressão e a ociosidade é o veneno que eles pagam no dia-a-dia / Maior covardia, eu não me entrego / E você, faria o mesmo? / O barato é louco, sangue bom, mas a guerra não está perdida / O preço é alto e muitas vezes custa até a vida, oh / É quente, mas, aí, quebra as algemas e vamos em frente / Revolução parceiro, sem glamour, sem luxúria e até mesmo sem dinheiro / Um por amor e o outro por acreditar que o dia de amanhã será o dia D / O dia da vitória / Ao meu Deus, muita glória / À minha família, o muito obrigado / E aos meus amigos, felicidade / Estamos juntos, irmão, eu, Dexter, "Preso Sim, Exilado Não" / Paz, saúde, liberdade e ação!!!
3) “Sou mais você” dos Racionais MCs – faixa 1 do CD 1 do álbum Nada como um dia após o outro dia / Chora agora (CD1) / Ri depois (CD2) , São Paulo, 2002.
[Voz de locutor de rádio] Bença, mãe / Estamos iniciando nossas transmissões / Essa é a sua Rádio Êxodos / Hey, hey / vamo’ acordar /vamo’ acordar /porque o sol não espera / demorô / vamo’ acordar / o tempo não cansa / ontem à noite você pediu / você pediu / uma oportunidade, mais uma chance / como Deus é bom, num é não, nego? / olha aí, mais um dia todo seu / que céu azul louco, heim? / vamo’ acordar / vamo’ acordar / agora vem com a sua cara / sou mais você nessa guerra / a preguiça é inimiga da vitória / o fraco não tem espaço e o covarde morre sem tentar / não vou te enganar, o bagulho ta doido, ninguém confia em ninguém / nem em você / e os inimigos vêm de graça / é a selva de pedra / eles matam os humildes demais / você é do tamanho do seu sonho / faz o certo / faz a sua / vamo’ acordar / vamo’ acordar / cabeça erguida, olhar sincero / tá com medo de quê? / nunca foi fácil / junte seus pedaços e desce pra arena / mas lembre-se: aconteça o que aconteça, nada como um dia após o outro dia.
4) “Intro” de Sabotage4 – faixa 1 do CD Rap é compromisso, São Paulo, 2002.
[A] Nossa, mano, que bicho feio, heim? / [B] Hey, do bode, vai vendo, o tempo ta feio, heim, mora? / [A] Fim do milênio, olha aí, pode acreditar, irmão, só vai sobreviver escolhido, mano, é.. / [B] Muita arma, muita droga, pouco dinheiro e pouco perdão / [A] É, é desse jeito memo / mas a nossa luta continua / aqui é Sabotage / rap nacional é nóis / [C] Viva Sabotage, o raciocínio, o raciocínio... / [D] Ih... registrou, já era / aí, favela, é bela mas é fera / nóis faz parte dela / tem que aprender a viver por aqui senão já era / ...[?]... / Ih... registrou já era / repressão é a prova mais concreta que o sistema nos oprime / nossos irmão pro crime / vida de cão / eles querem o domínio / [C] Raciocínio, raciocínio / [D] Mas vai falhar / faiá! / [E] A vida não é só de desvantagem / humilde malandragem, esse é o som do Sabotage / a vida não é só de desvantagem / humilde malandragem, esse é o som do Sabotage / a vida não é só de desvantagem / humilde malandragem, rap é o som, rap é o som, rap é o som / a vida não é só de desvantagem / humilde malandragem, esse é o som...5
Nessas vinhetas introdutórias já temos um leitmotiv em comum: a situação adversa a ser descrita ao longo dos álbuns em questão. Essa situação adversa, que em si já é um elemento trágico, é definida pelo lugar (bairro periférico e violento, ou favela, de um centro urbano brasileiro), pelo tempo (atual, ou seja, primeira década do séc. XXI, terceiro milênio), pelo homem (que já esboça caracteres do herói trágico: alguém que luta, que é um guerreiro, soldado, gladiador, um “escolhido”) e pelo modo como a situação se apresenta, ou seja, em forma de guerra ou luta (em vários sentidos, mas sobretudo no sentido de luta pela sobrevivência). Tais introduções infundem certo terror e certa piedade, o que é também uma característica do gênero trágico. Além disso, há nas três últimas introduções, um elemento de esperança, de fé (“de pé e na fé, guerreiro”, “ao meu Deus, muita glória”, “amanhã será o dia D, o dia da vitória”, “olha como Deus é bom”, “a vida não é só de desvantagem”).
Assim, dois elementos paradoxais, quase formando uma antítese, apresentam-se lado a lado nesse leitmotiv em comum: a violência e a esperança – a violência que se vive diariamente nos centros urbanos brasileiros e a esperança de construir uma realidade melhor. É essa esperança, essa fé, que faz o “herói” levantar e lutar, enfrentando desse modo a situação adversa que lhe é colocada.
Não é sem motivos que o rap nacional fala muito sobre a violência e diversas de suas manifestações. Pois, ao falar do “homem comum”, brasileiro e periférico, fala-se inevitavelmente em violência – urbana, social, econômica e discursiva. Urbana, pelas péssimas condições de, por exemplo, segurança, moradia e transporte. Social, pela situação precária em que muitas vezes se encontram a educação e a saúde públicas, pela justiça falha, pela falta de garantias de se exercer, de fato, a cidadania. Econômica, pela falta de perspectivas profissionais, financeiras e, por conseqüência, de consumo e de ascensão socioeconômica. E discursiva pelo fato de esse homem comum pertencer a uma maioria que é tratada como minoria, por lhe ser dado um lugar discursivo praticamente desprovido de poder, ou seja, desprovido de voz.

3. O trágico contemporâneo
Grande parte da produção poética do rap, ao se referir aos párias, aos excluídos, aos marginalizados, faz alusão ao homem comum e ao seu enfrentamento de um destino adverso, aqui nos moldes da tragédia aristotélica. Se, na Poética (Aristóteles, 1999), o filósofo explicita que a adversidade pode vir representada por qualquer poder de instância maior ao qual o herói está subjugado – seja pelos deuses, pela lei, pelo destino, pela sociedade –, tem-se por pressuposto que, se o herói existe enquanto criação poética, dramática, o é por representar algo de verdadeiramente humano, algo comum a todos os homens. Estamos, pois, no nível da representação. No rap, a violência encontrou seu lugar e seu momento de representação por excelência. Olhar para o discurso do rap é, de algum modo, olhar para o discurso da violência.
Cabem aqui algumas observações. Embora as cidades que compõem as regiões metropolitanas, por exemplo, de São Paulo, Campinas, Santos e Rio de Janeiro de hoje não sejam a polys grega do séc. IV a.C., e nem o “herói” do rap produzido em suas periferias a personificação exata do “caráter” descrito na Poética de Aristóteles (1999), os seis elementos constituintes da tragédia encontram-se, de algum modo, presentes em ambos contextos – mito (fábula), caracteres (qualidades do herói), falas, idéias, espetáculo e melodia (canto). E tanto a questão da tragédia não está restrita a um só tempo e a um só espaço que diversos teóricos têm observado sua releitura em vários outros momentos, de Shakespeare (séc. XVI) a Camus (séc. XX), por vezes inclusive fora de contexto dramático – é o caso, por exemplo, de Franco Moretti (“O grande eclipse: a forma trágica como desconsagração da soberania”, in Signos e estilos da modernidade, 2007), de Raymond Williams (Tragédia moderna, 2002) e da coletânea organizada por Ettore Finazzi-Agrò, Roberto Vecchi e Maria Betânia Amoroso (Travessias do pós-trágico, 2006).
O rap nacional estaria então estabilizando o discurso da violência? Por um lado sim, mas só por um lado. Pois, paradoxalmente, é ao falar da violência que o rap tenta promover alguma catarse e, por conseqüência, a possibilidade, senão de construir, ao menos de revelar uma nova identidade daqueles, e para aqueles, que nunca tiveram voz – o que é, per se, uma das causas da violência. A revelação dessa identidade se dá, acima de tudo, por uma nova posição discursiva: a do herói, muitas vezes chamado de “guerreiro” nas letras. Afinal, somente um herói para enfrentar a trágica situação adversa em que nossa sociedade se transformou, sobretudo para aqueles que estão abaixo das classes médias e que, quando têm algum tipo de voz ou poder, muitas vezes o é por empunhar uma arma. Augusto César Sandino, líder da Frente de Libertação Nacional, da Nicarágua, já dizia: “Se você não gozar de todos os seus direitos, tome-os à força”. E, felizmente ou infelizmente, é isso o que tem ocorrido aqui, agora.
O rap, enquanto contraparte poético-musical do movimento hip-hop, é um fenômeno sobretudo de jovens e para jovens, principalmente daqueles, e para aqueles, que habitam as periferias dos grandes centros urbanos6. Embora, num primeiro momento, as letras desse tipo de música pareçam fazer certa apologia da violência e da criminalidade, num segundo momento percebe-se que os sujeitos que constituem o universo do rap ou com ele se identificam estão preocupados com uma proposição ética, moral. Vislumbram-se, no máximo, justificativas para a entrada de um jovem no mundo do crime, mas, de modo algum, o ethos do “preto tipo A” deixa de ser afirmado como modo de “sobreviver no inferno”7, como modo de enfrentar uma situação trágica.
Quando falo em “tragédia”, refiro-me a dois sentidos usuais do termo: 1) obra, em verso, de caráter dramático, grandioso e funesto, com personagens heróicas, que é capaz de infundir terror e piedade; e 2) figurativamente, desgraça, infortúnio. Enquanto o primeiro sentido teve na Poética de Aristóteles sua primeira grande fundamentação, o segundo passou a nomear toda sorte de acontecimentos que causam lástima ou horror. Enquanto o primeiro é matéria de Literatura, Dramaturgia e Filosofia, o segundo sentido é tema da vida comum, de pessoas comuns. Mais ainda, se, enquanto gênero, para alguns teóricos (por exemplo, Steiner, 1961), a tragédia estaria morta devido ao uso comum, vulgar, do termo, para outros, os dois sentidos acabam por se reforçar e por revelar a desordem da realidade capitalista em que vivemos (por exemplo, Williams, 2002). De algum modo, porém, todos concordam: o caráter trágico de certos acontecimentos não só não deixou de existir como por vezes tem sido intensificado ao longo da história.
Para Williams (2002), especificamente, é ao tratar eventos do homem comum como “trágicos” que vemos o poder revolucionário do que na origem era apenas um gênero. Moretti (2007) segue a mesma linha, ao apresentar a forma trágica como desconsagração da soberania inglesa nas épocas de Elisabeth I e Jaime I (séculos XVI e XVII). Para ele, “a tarefa histórica que a forma trágica acabou cumprindo foi, exatamente, a destruição do paradigma fundamental da cultura dominante” (Moretti, 2007, p. 59-60). E é exatamente esse o papel que o rap tem feito ou tentado fazer: criar um campo de forças em que a violência (urbana, social, econômica, discursiva) seja revelada e, quiçá, desconsagrada. E o faz, como estamos vendo, através de aspectos formais comuns à tragédia.

4. A identidade do herói da vida comum
Veremos agora um rap do tipo light8 para observarmos, mesmo que de modo breve, como se constitui poeticamente o enfrentamento de uma situação adversa pelo homem comum e que lhe dá caracteres heróicos.
“From hell do céu” de Black Alien – última faixa (12) do álbum Babylon by Gus, 2004, O ano do macaco, Niterói (RJ), 2004.
Me parece agora que eles perderam o controle
Nessa corrida de ratos, sei muito bem quem tá na pole
Se agride ou agrada
O seu lugar no grid de largada não muda nada
Sobrevoe num vôo o zôo onde você sobrevive
Observe a ordem natural das coisas em declive
Inclusive eu tive lá, e não te vi lá
Frente a frente, lado a lado
Tête-à-tête, com os mestres das marionetes
Vê se assimila
Quem orquestra, quem adestra e quem tem a chave-mestra
Quem dilata sua pupila, quem nos aniquila
From hell do céu
Quebrar barreiras, comunicação na torre de babel
Interferência na freqüência
Acordar primeiro pra realizar o sonho é a ciência

Eu disparo e paro no infinito
Reabasteço, sigo em frente, é bonito
Viajo pelo espaço e o que eu vejo eu deixo escrito
E só Jah Jah pode me dar um veredicto

Uns desistem, outros ficam, alguns desistem e ficam
Só espaço físico ocupam e indicam
A tragicomédia de quem não tem da própria existência as rédeas
Cérebros de férias, vários vagabundos festejando o fim do mundo
Enquanto isso, o cidadão comum se sente ridículo
Não encontra paz no versículo, batendo de porta em porta
Debaixo do braço um currículo, família inteira no cubículo
Depende do Ecad, depende do Green Card
Acorda cedo e dorme tarde, completando o círculo vicioso, perigoso
Que nem garimpar na reserva dos Cinta-larga
Black Alien canta a vida amarga através do Rap e do Ragga
Contra todas as pragas
Sem medo de quem, que nem um cão, morde a mão que afaga

Eu disparo e paro no infinito
Reabasteço, sigo em frente, é bonito
Viajo pelo espaço e o que eu vejo eu deixo escrito
E só Jah Jah pode me dar um veredicto

[E só Jah Jah Jah... e só, e só... acode, acode, acode...]

Enquanto o mundo muda pela música
Preparo poesia de aço na minha siderúrgica
Um hábito noturno inspirado em Saturno
E seus anéis em torno, não há retorno
Eu sempre estive aqui, no verbo cru que nem sashimi
A verdade virá à tona pelo parto, infarto no miocárdio
Revolução não será televisionada nem virá pelo rádio
Metal inox, instrumental e mental na jukebox
Golpe baixo, perde ponto, é que nem no boxe
Prepare a esquiva, informação real pro povo à deriva
Na terra da terra improdutiva/prometida
Dentre os aspectos formais da letra, destacam-se: 1) as rimas, que ocorrem tanto externa (“me parece agora que eles perderam o controle / nessa corrida de ratos, sei muito bem quem ta na pole”) quanto internamente (“eu disparo e paro no infinito”), e tanto em termos fonéticos (“sobrevive” / “declive”) quanto de tonicidade (“ridículo” / “cubículo”), o que contribui para o ritmo, a musicalidade; 2) a aliteração (“agride” / “grid” / “agrada”); 3) a repetição, de modo a reforçar o sentido (“lado a lado / frente a frente / “téte a téte”); e 4) os campos semânticos em relação de sinergia – fonética e de sentido (“música”/“rádio”/“instrumental”/“jukebox” com “aço”/“siderúrgica”/“metal inox”).
O leitmotiv caracteriza-se pela antítese “céu e inferno”, representada por “hell / céu”, já a partir do título, e também “vagabundos / cidadão comum”, “morde / afaga”, “uns desistem / outros ficam”, “acorda cedo / dorme tarde”, “não há retorno / eu sempre estive aqui”, “parto (nascimento) / infarto (morte)”. A violência e a esperança, antítese já observada nas introduções, fazem-se presentes também aqui: a violência pela realidade vivida pelo cidadão comum; e a esperança pela poesia, pela música, que, segundo o autor, muda o mundo (“enquanto o mundo muda pela música, preparo poesia de aço na minha siderúrgica”). De acordo com Candido (1995), “uma sociedade justa pressupõe o respeito dos direitos humanos, e a fruição da arte e da literatura em todas as modalidades e em todos os níveis é um direito inalienável” – no caso, essa fruição se dá pela música negra (rap, ragga) e pela poesia (dura, de “aço”).
Em termos de lead jornalístico, há na letra todos os seus elementos constitutivos. Onde: “o zôo onde você sobrevive”, “a terra improdutiva”. Quem: “o cidadão comum” (o herói), os “cérebros em férias” e “os mestres das marionetes”. Quando: agora, pois os verbos estão no Presente (o rap fala sempre de algo presente, da situação atual; em outro caso, assinala uma data, como em Diário de um detento, Racionais MCs). O que: “a vida amarga”. Como: “viajo pelo espaço e o que eu vejo eu deixo escrito”, “preparo poesia de aço na minha siderúrgica” pois “o mundo muda pela música”.
Com relação à forma trágica, há: 1) a tematização do homem comum (Williams, 2002) e da situação adversa (“enquanto isso o cidadão comum se sente ridículo / não encontra paz no versículo / batendo de porta em porta / debaixo do braço o currículo / família inteira no cubículo...” / “que nem garimpar na reserva dos Cinta-larga” – dupla violência, já que não só esses indígenas são considerados perigosos, sobretudo quando “sumiram” com expedicionários do Projeto Rondon na primeira metade do século passado, mas também porque estabelecer garimpos em reservas indígenas é uma violência à terra e ao homem que nela vive); 2) o enfrentamento “correto”, “heróico” dessa situação (“acordar primeiro para realizar o sonho é a ciência”); 3) o mito (“hell” / “céu” / “Torre de Babel” / “Jah” / “fim do mundo” / “versículo” / “Saturno” / “terra prometida”); e 4) a tentativa de desconsagração da cultura dominante (“vê se assimila / quem orquestra, quem adestra e quem tem a chave-mestra / quem dilata sua pupila / quem nos aniquila” – dupla desconsagração, dos poderosos de dentro e de fora da favela).
A luta, até neste rap “light”, faz-se presente: “golpe baixo perde ponto, é que nem no boxe”. O “herói” aqui representado, ao mesmo tempo em que expõe que as identidades estão em crise, pela própria violência estabelecida nos diversos âmbitos da sociedade, esforça-se no sentido de construir, para ele e para seus iguais, uma identidade – isso tanto em termos de “cidadão comum” como do próprio “eu” lírico. Essa construção se dá exatamente pela via da representação poética – afinal, as identidades adquirem sentido por meio da linguagem e dos sistemas simbólicos pelos quais são representadas (Woodward, 2006; Hall, 2006).

5. Conclusão sobre a filiação do rap ao gênero trágico
Heróis ou homens comuns, aqueles que cantam rap, ouvem rap, dançam o break e fazem intervenções urbanas com seus grafites vivem em meio às contradições das grandes conurbações e das diferenças sócio-raciais. Representam, à sua maneira, os contornos previamente trágicos da própria história do Brasil: o legado da escravidão, do semi-analfabetismo, da subordinação a algum tipo de metrópole, da má distribuição de renda e da verticalização das relações de poder.
Os elementos constituintes do gênero trágico encontram-se representados, em termos figurativos, no próprio modus operandi da realidade brasileira e, em termos poéticos, nas letras de rap nacional que primam por revelar essa mesma realidade, como pudemos brevemente observar. Segundo Hardman (2004, p. 76), “o trágico moderno entre nós lê-se no modo lírico-dramático da elegia, tendo [...] por cenário as fronteiras sem marco9 e por enredo as guerras – simbólicas ou materiais, visíveis ou ocultas”.
É essa a denúncia poeticamente construída: a histórica verticalização das relações de poder no Brasil criou, por um lado, uma espécie de soberania, de privilegiados, e, por outro, um tipo de voz excluída, de “condenados”. O rap nacional, por meio de elementos da tragédia, tem se constituído como a voz dos excluídos contra a soberania dos privilegiados. Seu discurso revela uma identidade emergente daqueles que, historicamente, até agora tiveram muito pouco poder em nossa sociedade. A alternativa é vantajosa para todos, principalmente se considerarmos a outra opção que os “excluídos” têm de se rebelar... Basta lembrar a declaração, já em liberdade, de Jocenir, sobrevivente do massacre do Carandiru de 1992, sobre seu livro Diário de um detento, que serviu de base ao rap homônimo dos Racionais MCs: “se através desse livro eu conseguir alguma estabilidade financeira, passarei o resto dos meus dias usando a caneta”10. Tragédia por tragédia, melhor ficarmos no campo poético da representação.

Referências bibliográficas

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CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. São Paulo: Duas Cidades, 1995.
FINAZZI-AGRÓ, Ettore; VECCHI, Roberto; AMOROSO, Maria B. (orgs.). Travessias do pós-trágico: os dilemas de uma leitura do Brasil. Vol. 1. São Paulo: Unimarco, 2006.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. T. T. Silva e G. L. Louro. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HARDMAN, Francisco F. Homo Infimus: a literatura dos pontos extremos. In: FINAZZI-AGRÓ, E.; VECCHI, R. (orgs.). Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil. São Paulo: Unimarco, 2004.
MAHER, Tereza J. M. A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilingüismo. In: KLEIMAN, A.; CAVALCANTI, M. (orgs.). Lingüística aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, 2007.
MORETTI, Franco. O grande eclipse: a forma trágica como desconsagração da soberania. In: _____. Signos e estilos da modernidade: ensaios sobre a sociologia das formas literárias. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
STEINER, George. A morte da tragédia. Trad. I. Kopelman. São Paulo: Perspectiva, 2006.
WILLIAMS, Raymond. Tragédia moderna. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Trad. T. T. Silva. Petrópolis: Vozes, 2000.


1 Doutoranda em Lingüística Aplicada pelo Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Bolsista do CNPq. Email: anasilvi@hotmail.com.
2 Mais conhecido como escritor, por ser autor de Capão pecado (2000) e Manual prático do ódio (2003), dentre outros, e organizador da coletânea Literatura marginal: talentos da escrita periférica (2005), além de ter criado fama com a polêmica de um texto ficcional, publicado na Folha de S. Paulo em 08 out. 2007, baseado no assalto sofrido pelo apresentador Luciano Huck, Ferréz é também rapper.
3 Ex-detento do presídio de segurança máxima de Presidente Bernardes (SP).
4 Artista já falecido.
5 Os textos das quatro introduções foram transcritos por mim.
6 Lembremos que cerca de 80% dos jovens brasileiros vivem nos centros urbanos (IBGE, 2005) e que, segundo o relatório “Situação da População Mundial 2003”, da ONU, metade da população global tem menos de 25 anos. “A maioria dos jovens (87%) vive em países em desenvolvimento repletos de desigualdades sociais (...) Entre os miseráveis, a maior parte não convive com os pais, seja por causa de conflitos armados, doenças, desastres ambientais ou migração”. Disponível em: http://www.aol.com.br/materias/agenciaestado. Acesso em: 08 out. 2003.
7 Referência ao título do CD Sobrevivendo no inferno (1997), dos Racionais MCs – maiores ícones do movimento no Brasil.
8 Lights, aqui, são as letras de rap que não tratam diretamente de criminalidade e que, portanto, podem ter seu conteúdo estendido a membros de outras classes socio-econômico-intelectuais, não apenas a quem tem baixa instrução e vive na favela, à beira da miséria. Entretanto, são letras que não deixam de relatar a violência à qual o cidadão comum está submetido, mantendo o caráter de denúncia em cores trágicas, como é típico do movimento hip-hop.
9 E aqui, corroborando a idéia de Hardman, eu perguntaria: onde termina o centro e começa a periferia?
10 Disponível em: http://www.revistaforum.com.br/Revista/2/inferno.htm. Acesso em: 08 out. 2003.

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