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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

PROSA DE FICÇÃO BRASILEIRA SOBRE A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL

Carlos Eduardo Fernandes Netto1
Resumo: Este trabalho chama a atenção para algumas obras de ficção brasileiras que trataram da Segunda Guerra Mundial. Os autores estudados são José Geraldo Vieira (1897-1977), João Alphonsus (1901-1944) e Boris Schnaiderman (1917). Nas suas obras, observamos a peculiaridade com que a atitude discursiva ficcional pode desvelar aspectos ocultos da realidade.
Palavras-chave: José Geraldo Vieira, João Alphonsus, Boris Schnaiderman, discurso ficcional.
Abstract: This paper points out some Brazilian works of fiction that deal with the 2nd World War. The writers studied are José Geraldo Vieira (1897-1977), João Alphonsus (1901-1944) and Boris Schnaiderman (1917). In their works, we notice the peculiar ways in which the discourse attitude specific to fiction can unveil hidden aspects of reality.
Keywords: José Geraldo Vieira, João Alphonsus, Boris Schnaiderman, fiction discourse.

Meus olhos são pequenos para ver
o transporte de caixas de comida,
de roupas, de remédios, de bandagens
para um porto da Itália onde se morre.

(Carlos Drummond de Andrade, “Visão 1944”)

[...] as guerras são o erro da conquista do chão.
(José Geraldo Vieira, Carta a minha filha em prantos)

1. Introdução
O propósito deste trabalho é desenvolver, embora superficialmente, observações sobre um setor da criação ficcional brasileira que talvez não venha sendo tratado pela produção acadêmica com a freqüência a que faria jus, considerando-se a densidade de sentidos e o empenho na composição. Referimo-nos a trabalhos cujo tema é a Segunda Guerra Mundial, tema desenvolvido na poesia, como em A Rosa do Povo, de Carlos Drummond de Andrade, mas também em obras de ficção merecedoras de análise e interpretação.
Os autores escolhidos, José Geraldo Vieira (1897-1977), João Alphonsus (1901-1944) e Boris Schnaiderman (1917), lançam aos acontecimentos mundiais do período 1939 a 1945 olhares que revelam o âmago da calamidade, abordando-a de maneira mais penetrante do que a apresentada pelos noticiários, limitados ao informe de números, decisões oficiais e estratégias. A observação dos fatos como catástrofe de dimensão planetária, dado o caráter universal do sofrimento, exerce, na ficção desses escritores, o papel de despertar a atenção para os absurdos a que os seres humanos são atirados e nos quais o próprio sentido de humanidade se desfaz. Nas obras que mencionaremos, esse sentido encontra espaço de resistência contra uma das múltiplas facetas do processo de reificação, a saber, o entorpecimento causado pela banalização da violência.

2. José Geraldo Vieira
Na obra de José Geraldo Vieira, a Segunda Guerra Mundial está presente nos romances A Quadragésima Porta (1943), A Túnica e os Dados (1947), O Albatroz (1952) e Terreno Baldio (1961), além de ser o fator que deu origem à Carta a Minha Filha em Prantos (1946). Tomando como exemplo o romance O Albatroz lembremos a verdade humana revelada no sofrimento da personagem central, Virgínia, cuja altivez a transpõe a uma dimensão mítica, ao longo da seqüência de perdas do marido, do filho e do neto, combatente da Força Expedicionária Brasileira. A inquietação axiológica e a empatia com a dor constituem a seiva da efervescência metropolitana e internacional dos livros de José Geraldo Vieira. A receptividade do narrador acolhe o próximo e o distante em um plano que abole fronteiras.
Em certa passagem de sua obra, José Geraldo Vieira declara que, para ele, a literatura equivale a serviço à humanidade. Trata-se da Carta a Minha Filha em Prantos, que, em sua primeira versão, realmente foi escrita para ser enviada pelo correio, de Marília, interior de São Paulo, para o Rio de Janeiro. Em dezembro de 1943, tendo já programado a volta ao Rio para o casamento da filha Rosa, o escritor recebeu dois telegramas e um telefonema da esposa, que lhe pedia o retorno imediato, devido ao desespero da jovem, cujo noivo, um aviador, acabara de ser convocado para a guerra. Como a viagem para casa já estava programada para dali a três dias, ficou combinado, por telefone, que o pai escreveria à filha. Enviada no mesmo dia, a carta provavelmente seria lida na véspera da chegada de seu Autor.
A versão elaborada para a publicação em livro, ocorrida em 1946, é esclarecedora sobre a atitude de José Geraldo Vieira perante o mundo, a vida e o fazer literário.
Com que então, S... vai para a guerra!...? Mas, minha filha, que é que tu pensavas, quando há um ano te dei o Nihil obstat para esse casamento? E que era que pensavas quando lias aqueles livros que eu te separava da minha estante? Pensavas que aquela gente tinha sofrido só em literatura? E que literatura não é vida? Para mim, doravante, não será mais exercício estético, nem narcisismo, nem analogia com a vida, e sim, SERVIR. (Vieira, 1964, p. 122-123)
A bem dizer, a literatura, para José Geraldo Vieira, sempre foi mais do que um correlato da vida. Era precisamente sua formação literária e cultural que lhe fornecia os meios de se relacionar com o mundo. A erudição constituía a segunda natureza de quem, sensível ao caráter instável e trágico inerente à condição humana, percebia a realidade como entrecruzamento de tempos, espaços, mitos e história. Sua visão do real era – para usarmos um termo de sua predileção – ecumênica. Isso equivale a afirmar que todo sentimento de abstenção frente aos dramas vividos no planeta merece reprovação. Por isso, as palavras de consolação dirigidas à filha se sustentam na lembrança de uma causa maior: a defesa da humanidade.
[...] Pois então, sentada comodamente numa poltrona, vendo no Paramount News, no Jornal do Dia, nas Atualidades do Mundo, aqueles irmãos ecumênicos de S... com capacetes, correias, grossos que nem esquimós, correndo para os aviões de caça e de bombardeio, lutando na Mancha, investindo sobre Colônia e Bremen, julgavas então que o teu noivo, os aviões dele, esta terra, nós, tudo isto aqui era e tinha que ser uma exceção? Uma imitação teórica apenas, sem compromissos, sem que militássemos também nós? Qual a razão para um privilégio injusto, um abstencionismo egoísta, apartados por que motivo do drama difuso da humanidade? (Vieira, 1964, p. 123-124)
A verdade do sentimento do mundo constitui a seiva do estilo altissonante e hiperbólico, cuja grandiosidade tem raízes na intensidade da emoção, como se pode observar nas últimas linhas da Carta:
[...] Junta o teu pranto e a tua voz, filha do meu coração, ao coro lancinante de aflição e saudade, mas confiante e augusto, de todas as noivas, esposas, mães e filhas de aviadores, nesta hora do mundo, como igual nunca houve. [...]
Já não te casarás no dia 28. Choras? Soluças? Tapas o rosto no ombro de tua mãe? [...] Tira esse rosto daí, ergue-o, assim, com lágrimas e tudo. [...] Tuas lágrimas encherão conchas, mas as lágrimas do mundo encheriam o vão do oceano se esvaziado ficasse para lhes dar lugar. (Vieira, 1964, p. 128)

3. João Alphonsus
Ainda quanto ao posicionamento narrativo frente às questões histórico-políticas que assolavam a humanidade durante a primeira metade do decênio de 1940, destaca-se um conto de João Alphonsus, “O guerreiro”, publicado em 1943, no livro Eis a noite! . Aqui, o narrador acompanha o ponto de vista da personagem principal, Evaristo, que tenta, angustiadamente, convencer os freqüentadores de um botequim em sua pequena cidade de que a guerra era algo muito mais grave do que podiam indicar os informes radiofônicos sobre estratégias militares. Percebe-se, nesse texto, a oposição de um discurso humanista e universalizante a certa mentalidade própria dos “estrategistas de balcão” provincianos e alheia ao verdadeiro sentido da guerra, pois, ao nosso contexto afastado das regiões em que ocorriam as matanças, as repercussões da catástrofe européia chegavam, por meio das transmissões de rádio, sob aparência de um espetáculo sem vítimas de carne e osso. Isso provocava a indignação do protagonista, que chegava a desejar o lançamento de bombas sobre o botequim cujos freqüentadores insensíveis discutiam estratégias. Segundo o pensamento da personagem, só assim, no instante da morte, de sua própria inclusive, os indivíduos alheios à verdade terrível da guerra se dariam conta do absurdo em que o mundo estava submerso.
O título do conto, “O guerreiro”, remete ao delírio por que passa Evaristo após se arremessar de cabeça contra a estufa de pastéis do bar, de onde parte, ladeira acima, com sangue a escorrer pelo rosto, até cair desacordado em frente à igreja. A cena burlesca da personagem tresloucada que se fere propositadamente a fim de parecer um soldado em combate dá lugar a uma seqüência de horrores que só locais de guerra podem apresentar: aldeias em chamas, explosões, ruídos ensurdecedores, pedaços de corpos espalhados, tudo levando à conclusão de que o heroísmo e a ilusão de personalidade são inúteis, pois “o que manda agora é a ordem de sobreviver”. Curiosamente, o cenário que mais corresponde ao real se encontra no delírio do protagonista, permanecendo a cidadezinha brasileira, “ponto minúsculo num país imenso”, identificada como paisagem de sonho. Mesmo durante a batalha a que foi transportado pelo delírio, o “guerreiro” busca demonstrar que, havendo guerra, não existiria lugar seguro no mundo. Na tentativa de desentorpecer o sentimento de um camarada que acredita ser a guerra “provação geral”, necessária para “renovar a humanidade em sangue”, Evaristo, durante um bombardeio aéreo, afirma que podiam ser da filha do soldado os pedaços do corpo e do vestido de uma criança que o outro não tentou salvar das chamas que ardiam na casa da menina. À convicção do companheiro de que a guerra não chegará aonde está a filha, o combatente, lúcido em seu pesadelo, retruca:
─ Aí é que você se engana! O mundo está ficando muito pequeno. A guerra pode ter chegado lá, egoísta. A miséria da guerra!
─ Não! gritou o outro lívido. Mandá-la-ei para longe, para mais longe!
─ Engano sempre, berrou Evaristo. Já não haverá lugar no mundo...
─ Mandá-la-ei para um planeta qualquer!
─ Mas os aviões chegarão até nos planetas, covarde! (Alphonsus, 1976, p. 205)
O guerreiro é retirado de seu mergulho na realidade da guerra ao ser sacudido por um dos moradores de sua cidade. Julgando que quem o fazia era o soldado furioso, abre os olhos e vê “a paisagem tranqüila de luar tênue”. Diante dele, “um grupo de homens, velhos, mulheres, alguns meninos”:
[...] Olhou-os a princípio com infinita piedade, um olhar de absoluta solidariedade. Mas foi percebendo que nada estava destruído, que as casinhas modestas se enfileiravam com a mesma incompreensão irônica, ainda que meio estúpida e assustada, que aparecia em todos os semblantes.
─ Puxa, Evaristo. Como é que você pode gritar assim? Que susto!
─ Justamente! Justamente, seus... cretinos! disse ele chocado pelo contraste absurdo, e ainda e sempre irritado. [Por hábito, Evaristo lançava aos circunstantes o insulto de “cavalos”. As reticências, nesta passagem, sugerem que ele se lembra, compadecido, dos cavalos que se arrastavam sem patas e que lhe foram apontados, em seu delírio, pelo companheiro covarde.] Talvez algum dia vocês compreendam o que é a guerra! (Alphonsus, 1976, p. 206)
Em 2 de julho de 1944, dez dias após o falecimento de João Alphonsus, os 5075 integrantes do 1º escalão da Força Expedicionária Brasileira (FEB) embarcaram para a Itália e chegaram a Nápoles em 16 de julho. Já em fevereiro de 1942, ano anterior à publicação do livro Eis a noite! , a guerra atingia o Brasil pelos aspectos que a distinguem da maneira mais direta, destruição e morte, quando submarinos alemães começaram a afundar navios brasileiros. Durante 7 meses, ataques a 19 embarcações mataram cerca de 750 pessoas. Em agosto, eclodiram manifestações de rua que exigiam do governo a declaração de guerra às potências do Eixo.
Havia, na ocasião, o propósito governamental de tornar o país reconhecido como potência regional. Embora, com o fornecimento de matérias-primas e a instalação de bases aéreas e navais a serviço do esforço de guerra dos Estados Unidos, o Brasil mantivesse, durante o conflito, a situação de “quase colônia”, somente a entrada em combate poderia gerar, posteriormente, imagem de maior respeito ao país, segundo a ótica dos governantes brasileiros.

4. Boris Schnaiderman
Entre os combatentes que embarcaram em 2 de julho de 1944, estava o sargento Boris Schnaiderman, nascido na Ucrânia e naturalizado brasileiro. Schnaiderman fez tudo para ser convocado. Em entrevista concedida a Antonio Pedro Tota, a César Campinani Maximiano e a Adriano Marangoni, ele relembra os momentos anteriores e os posteriores à convocação:
Houve todo aquele movimento dos estudantes de pedir a guerra, quebra-quebra de lojas de alemães, italianos e japoneses. Confronto horrível. Previa-se claramente que iríamos para a guerra, principalmente com o afundamento de navios e todas aquelas coisas. Agora, eu tive uma grande surpresa com o ambiente que encontrei no quartel, porque eu estava iludido com todo aquele movimento, ou seja, os estudantes pedindo guerra nas avenidas. Porém, aquilo não alcançou o povo, o povo simples. A maioria da população brasileira, que apoiava Getúlio Vargas, achava que não tínhamos nada com a briga, acreditava que isso era obra do Osvaldo Aranha. O grande inimigo era o Osvaldo, considerado americanófilo, e não o alemão. A minha experiência era a de que, entre o povo simples, havia isso: um grande sentimento antiamericano. Então, depois que fui convocado e embarquei, tive uma evidência ainda maior disso. Nós, os que tínhamos convicção de ir à guerra, éramos bem poucos, porque, daqueles estudantes que foram às ruas pedir pela guerra, poucos embarcaram, muito poucos. [...] Foram muitos candidatos, mas poucos foram à guerra. (apud Tota; Maximiano; Marangoni, 2005, p. 331-332)
Da participação de Boris Schnaiderman na Força Expedicionária Brasileira originou-se o romance Guerra em Surdina, de 1964. O alter ego do Autor, o protagonista João Afonso (às vezes também narrador, em mudanças expressivas de foco narrativo), constata e experimenta a apatia e o embrutecimento causados pelo cenário de destruição, morte e fome. De volta ao Brasil, nem o estudante João Afonso, ex-sargento de artilharia, nem os ex-pracinhas, homens do povo, entendem o tratamento de heróis com que são recebidos e aclamados. Desde o início do livro, é também apontada a diferença entre a visão do estudante, que desejara a luta, e a dos homens que se julgavam vendidos aos Estados Unidos pelo governo brasileiro. Porém, enquanto esses homens simples, sem saber por que nem para que, lançavam-se a atos de bravura, João Afonso aproximava-se do ceticismo geral, mergulhando, assim, na incerteza e na falta de perspectiva do “mar humano de sentimentos e recordações, de saudades abafadas e conversas tristes” (Schnaiderman, 2004, p. 39). Já no navio cinzento que transportava o primeiro contingente de expedicionários, a personagem principal sente o abalo de suas convicções. O conflito interior revela-se, por exemplo, na seguinte passagem, em que discursos relacionados a experiências diferentes se entrechocam no pensamento do protagonista e narrador:
A modorra tenta tomar conta dos meus membros, mas eu sou superior à modorra. Os demais podem entregar-se, eu não. Sou superior a estas contingências. “Sangue, suor e lágrimas”, dizia o jornal imbecil. E também: “Viva o Estado Nacional”. Estou num mundo louco. Por que eu quero ir para a guerra? Eu devia era ficar lá atrás, que nem os rapazinhos de Copacabana, meus colegas da Faculdade, que a estas horas se espreguiçam na areia da praia. Não, não, o que passou, passou. “Fomos vendidos por dólares.” Por que não digo o mesmo? Por que teimei em falar aos meus companheiros sobre o nazismo e a necessidade desta luta? Eles possuem uma lógica inflexível: uns e outros se equivalem, americano e alemão são a mesma coisa, cada um quer tirar as suas vantagens, e o Brasil que se dane, mandando os seus filhos para a guerra, sem ter nada a ver com a história. (Schnaiderman, 2004, p. 43-44)
Permanece insolúvel, para a personagem João Afonso, a sensação de que as barreiras ideológicas são intransponíveis. Os valores e as aspirações do protagonista não se fundem aos anseios dos demais. Enquanto a entrada em combate era aguardada, ele escreve em seu diário:
A um canto do acampamento, afixa-se diariamente um noticiário muito sucinto dos principais acontecimentos, que passam o mais das vezes quase despercebidos. Fiquei comovido com a notícia da libertação de Paris, comentei-a com Alípio e poucos mais. Constatei, porém, que a repercussão foi muito pequena entre a tropa. (Schnaiderman, 2004, p. 98)
É de importância fundamental na composição do texto de Boris Schnaiderman a presença do discurso do outro. Por meio desse recurso dialógico, instaura-se o confronto de que provém a tensão semântica da escrita ficcional do Autor. O discurso indireto livre torna presente a voz do outro, dando concreção estética ao impasse:
Para minha surpresa, uma notícia que me deixara mais ou menos indiferente fez sensação entre os soldados: Osvaldo Aranha demitira-se do cargo de ministro das Relações Exteriores. Agora sim, dizia-se, a coisa vai melhorar. O velho vai chamar a gente de volta. Quem nos mandou para cá foi o homem dos americanos, que nos vendeu por uma garrafa de uísque. Agora sim, a guerra vai acabar para nós. Não é à toa que a gente está no estrangeiro faz tanto tempo, e nada de entrar no fogo. Não vê que nem nos ensinaram a atirar direito, todo esse tempo? O velho ficou nos poupando, não deixou que nos pusessem na frigideira de uma vez. Agora, o jeito é tratar de arrumar o saco, que a coisa não demora. Já deve ter navio brasileiro esperando a gente num porto por aí. (Schnaiderman, 2004, p. 98-99)
Na técnica narrativa empregada, o discurso do outro não se anula nem mesmo quando o autor do diário retoma a palavra, pois não basta, segundo ele pode perceber, descartar a visão divergente e incompreensível:
[...] A lenda de um ditador bonzinho, o pai do seu povo, que só deixou enviar os homens para a guerra porque o ministro malvado, vendido aos americanos, obrigara-o a isto, deixa-me profundamente irritado. Mas, sobretudo, estou diante de algo que não compreendo. Não se trata apenas de aceitar ou recusar. Assim como o homem do povo não penetra no meu mundo, historicamente exato, creio eu, onde o ditador aparece com suas características próprias e a ditadura com todo o seu cortejo de infâmias, não posso ter qualquer acesso ao mundo mitológico dos meus patrícios. E a conclusão a que chego é que eu, Alípio e os demais rapazes da mesma condição social, estamos submergidos num mar humano que nos domina e contra o qual é inútil qualquer resistência. O que me resta fazer, sem dúvida, é deixar-me levar pela maré, como fazem Alípio e outros companheiros. (Schnaiderman, 2004, p. 99)
O confronto não ocorre apenas em relação à lógica dos compatriotas, mas também em face do ponto de vista dos soldados americanos. No acampamento estabelecido junto à cidadezinha de Vada, dá-se a troca de experiências e impressões:
Hoje de manhã, fiquei conversando com alguns americanos. Fazem-nos muitas perguntas sobre o Brasil, revelando uma ignorância absurda sobre o assunto. Quando ouviram que viemos de país em regime fascista e que será inevitável uma transformação política em nossa terra, pois é um absurdo lutar pela democracia no estrangeiro e continuar com um regime fascista em casa, responderam mais ou menos assim:
─ Então, o que é que vocês pretendem fazer, depois de voltar para casa? Sair às ruas com bandeiras, gritando: “Abaixo a ditadura” e dando tiros em quem continuar pensando que a ditadura não é tão ruim assim? Tudo bobagem. O homem só tem uma vida para viver e uma pele para defender. Democracia, liberdade, voto secreto, tudo isso é muito bom e bonito, mas não compensa uma vida humana que se perde, nem os anos de mocidade gastos na lama e na sujeira.
É freqüente perguntarem-nos: “Vocês são todos voluntários?”. E, quando se responde negativamente, dizem uns aos outros: “Está vendo? Não são todos trouxas, não”.
Este cinismo dos soldados velhos me desagrada profundamente, mas pude percebê-los em militares de outras nacionalidades também. (Schnaiderman, 2004, p. 96)
Note-se o recurso narrativo de apresentar acontecimentos e reflexões por meio de registros em diário. Tal expediente de composição busca tornar a voz narrativa contemporânea aos fatos. No romance Guerra em surdina, as mudanças de foco não acontecem apenas na passagem da primeira para a terceira pessoa, em momentos em que a narração não é feita por João Afonso, mas também na alternância de perspectivas do mesmo narrador. Assim, o tempo da enunciação que abrange a óptica representada no diário permite enxergar as considerações da voz narrativa, situadas em momentos diferentes, como etapas de um processo inconcluso, configurado esteticamente pela consciência artística ficcional.
Após o retorno, o protagonista volta a se ressentir do afastamento em relação ao povo, que ele ainda não consegue compreender satisfatoriamente. Tem a sensação de que foi inútil o mergulho de mais de um ano no “mar humano”.
[...] Na guerra, eu dormi sobre o mesmo chão com os meus companheiros das mais diversas procedências. Mas agora, há novamente barreiras entre nós. Mantenho contato com Alípio, com Omar e com uns poucos mais. Os outros foram se afastando naturalmente. Então, não adiantou o mergulho de um ano e tanto no mar humano? As pequenas ocupações, a Faculdade, a vida em família, tudo parece cobrir-me novamente com uma crosta e isolar-me do resto. E eu não reajo. Parece que tem de ser assim mesmo. As minhas roupas de paisano, as gravatas coloridas que tive tanto prazer de rever sobre o peito, o teatro que tornei a freqüentar (tão difícil acompanhar o enredo!), as pequenas que me telefonam e com quem tornei a sair, meu Deus, meu Deus, será possível que tudo se processe com tamanha rapidez? Há companheiros meus passando fome, sofrendo doença, completamente abandonados depois das caxiadas do regresso. E eu continuo afastado, isolado, arrastando sem nobreza a vida. (Schnaiderman, 2004, p. 243)
O anseio de compreender os ex-companheiros aflige o estudante João Afonso. Mas os conflitos entre visões de mundo revelam-se insolúveis, por se enraizarem em condições intocadas pela vitória na guerra. Há uma outra guerra, preexistente à de que participaram, em solo italiano, esses homens de origens sociais diferentes. Guerra que se trava “em surdina”, mesmo em períodos de paz ─ “paz em surdina”, conforme propõe o título do último capítulo do romance: “E a paz? Também em surdina?”. Essas perguntas levam a pensar sobre o que se chama habitualmente de paz, enquanto persistem barreiras que impedem a compreensão recíproca.
Outro dia, tive um exemplo flagrante da distância que tornou a separar-nos. O ditador fora deposto, e, de manhã, quando saí à rua, vi tanques, caminhões com soldados, metralhadoras assestadas, canhões. Fiquei perambulando de propósito pela cidade. Os jornais exultavam, os meus colegas da Faculdade queriam soltar foguetes, mas eu vi os homens do povo sombrios, sem um gesto, sem uma palavra. Passavam pelos canhões, pelas metralhadoras, arredavam-se, mas tudo em silêncio.
O que sabemos nós dos seus mitos e esperanças, da sua sabedoria coletiva e da sua ignorância em relação ao nosso mundo? Como é possível vivermos tão próximos e tão separados? (Schnaiderman, 2004, p. 246)
Encerra o livro a pergunta reveladora do caráter inconcluso da busca de conhecimento proposta como desafio, não tanto ao destinatário gramatical, mas ao leitor inserido em uma sociedade cujas estruturas se fundam na desigualdade: “Patrício, com quem convivi um ano e pico, e que continuo a desconhecer, quem és afinal?” (Schnaiderman, 2004, p. 246).
Como o estudo das questões literárias está necessariamente vinculado à observação das peculiaridades discursivas, é plausível indagar sobre a opção autoral pelo gênero ficção, no lugar do depoimento direto, e avaliar a força expressiva resultante dessa escolha. Mas não é possível tratar satisfatoriamente de pontos estilísticos e estéticos sem levar em consideração o contexto amplo da comunicação verbal. A intencionalidade constitutiva do discurso associa-se, de modo intrínseco, à adoção de determinado gênero, não só em se tratando de gêneros literários, científicos e ideológicos, qualificados de secundários por Bakhtin, mas também dos tipos do diálogo oral, que o mesmo Autor define como gêneros primários (Bakhtin, 1997, p. 285). Conta-se, ao se elaborar um enunciado, com uma atitude responsiva ativa por parte de quem recebe a significação do discurso (Bakhtin, 1997, p. 290-291). Assim, o movimento ininterrupto da comunicação verbal se alimenta da compreensão responsiva, que “nada mais é senão a fase inicial e preparatória para uma resposta (seja qual for a forma de sua realização)” (Bakhtin, 1997, p. 291). Quem fala ou escreve espera concordância, adesão, objeção, execução, ou alguma outra forma de resposta, mais do que a simples reprodução de seu pensamento no espírito do outro. Disso se infere que a variedade dos gêneros discursivos pressupõe a variedade de propósitos do falante ou escritor. Segundo Bakhtin, o próprio locutor responde, de certo modo, a enunciados anteriores, que emanam dele mesmo ou do outro, e aos quais o enunciado atual se relaciona, fundamentando-se neles ou polemizando com eles. Por isso, quem fala ou escreve os supõe conhecidos do ouvinte ou leitor. A propósito, lembremos uma frase de Bakhtin, em que se concentra o espírito de sua investigação e explicação da linguagem como atividade essencialmente dialógica: “Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados” (Bakhtin, 1997, p. 291).
Ao adotar a atitude discursiva própria da ficção, não a do depoimento, Boris Schnaiderman responde a práticas enunciativas que não lhe permitiriam transcender o âmbito da experiência pessoal. Simultaneamente, demanda compreensão de aspectos humanos não diluídos na cena pública nem obliterados por visões consolidadas em determinados grupos.
Temos mencionado a atenção que o protagonista narrador dispensa ao próprio discurso, quando confronta suas convicções com as dos companheiros de outra condição social. Esse voltar-se do discurso sobre si mesmo, de modo a revelar a existência de um substrato ideológico plural, é fator distintivo do gênero literário romance, que se nutre do plurilingüismo social para atingir sua realização estética peculiar. Bakhtin declara: “Para o gênero romanesco, não é a imagem do homem em si que é característica, mas justamente a imagem de sua linguagem” (Bakhtin, 1993, p. 137; grifo do autor).
Como essa imagem, para se realizar esteticamente, deve se unir à imagem do sujeito que fala (Bakhtin, 1993, p.137), os recursos de individualização exercem papel relevante na composição ficcional. No livro de Schnaiderman, os quadros descritivos de personagens tornam concretos os sujeitos cujo modo de ser e de pensar o narrador, sempre atento, anseia compreender.

5. O real, o fictício e o imaginário
A indagação sobre os efeitos da adoção do discurso ficcional remete à constatação de “que o fictício tem uma dimensão pragmática própria, distinta da pragmática dos outros discursos”, conforme observação de Luiz Costa Lima (2006, p. 283). Seguindo caminho aberto por Wolfgang Iser, Costa Lima assinala que esse teórico opôs à dicotomia usual “realidade/ficção” a tríade “real-fictício-imaginário”. Pelo “ato de fingir”, que não se esgota na descrição da realidade, o imaginário adquire certa configuração, “pela qual a realidade repetida se transforma em signo e o imaginário em efeito” (Iser apud Lima, 2006, p. 282). O fictício realiza, assim, uma dupla transgressão: a do princípio da realidade, já que seu propósito não é esgotar-se na apresentação desta, e a do imaginário, a cujo caráter difuso e casual confere determinação e, conseqüentemente, aparência de realidade. Operando nesse duplo movimento, a ficção, conforme sua pragmática específica, “exige de seu receptor a capacidade de romper com os automatismos que presidem as interações cotidianas e, simultaneamente, o fluxo difuso da fantasia” (Lima, 2006, p. 284).
Costa Lima adverte que o efeito da seleção e da retirada de elementos de seus sistemas habituais não se confunde com o “estranhamento” assinalado por Viktor Chklovski, embora a seleção (um dos três modos de operação do fictício: seleção, combinação e auto-indicação, segundo Iser) por certo afete os “campos de referência” do mundo sociocultural, descongelando seus componentes e tornando-os perceptíveis por si. O crítico russo, no entanto, não se indagava sobre o papel central desempenhado pelo agenciamento do imaginário na desautomatização da capacidade perceptiva.
Merece ser transcrita, devido à precisão analítica e interpretativa, a demonstração que Luiz Costa Lima faz da transgressão do caráter usual do imaginário:
[...] Considere-se o exemplo do Jüdisches Denkmal, o monumento com que o governo da cidade de Berlim reverencia as vítimas do Holocausto. A solução encontrada, para que não assumisse um caráter compensatório, consistiu em fazê-lo absolutamente não figurativo. É formado por séries de blocos cinza, dispostos assimetricamente e de tamanho desigual. A assimetria se intensifica por inexistirem trilhas precisas a atravessar, o que facilitaria a constituição posterior de passeios turísticos entre suas aléias. Nenhuma palavra, nenhuma figuração, nem sequer a mais discreta, exceto o próprio nome do monumento. Dele se subtrai qualquer sinal do horror, pois toda retórica da expiação mutilaria o pavoroso que sucedeu. O horror se condensa nos blocos-tumba. Sua própria multiplicação indicia que a reverência não é prestada a alguém, mas aos milhões de sacrificados. Cabe ao imaginário dos visitantes ─ fui um deles quando ainda não estava inaugurado ─ converter em objeto significativo o que guarda muito pouco da vivência concentracionária. A extrema seleção efetivada impede que as lágrimas enterneçam e entorpeçam a percepção ficcional. (Lima, 2006, p. 285-286)
Lembrando que o exemplo não podia estar em uma obra publicada em 1991 (O fictício e o imaginário, de Iser), Luiz Costa Lima assinala que, justamente por isso, se torna mais flagrante a força da seguinte formulação: “O elemento escolhido move-se em uma posição perspectivística, que possibilita uma avaliação do que está presente no texto pelo que dele se ausenta” (Iser apud Lima, 2006, p. 286). Atualizando a transgressão do imaginário proposta pelo ato de fingir, o receptor potencializa essa ausência, correspondente ao conceito de vazio, já presente no primeiro texto de Iser que se tornou conhecido, “A estrutura apelativa do texto”, de 1970.
Uma segunda formulação, no entanto, é parcialmente refutada: “[o ato de seleção] tem o caráter de um acontecimento, que, portanto, não é referenciável e que, daí, se manifesta pela ausência de regras” (Iser apud Lima, 2006, p.286). Das três afirmações coordenadas por esse enunciado, Costa Lima concorda com duas: a de que a seleção tem o caráter de acontecimento e a de que ela não segue regras. Já quanto à seleção não ser referenciável, o Autor objeta:
[...] Para se evitar a diminuição de sua fecundidade [a saber: da interpretação de Iser], é fundamental entender que o ato de seleção trabalha, ao mesmo tempo, contra a referencialidade automática, assim como oferece uma referência... seletiva. (Lima, 2006, p.287)
E exemplifica a referência seletiva retomando o Denkmal berlinense, que não remete a um mundo alternativo, mas ao real da realidade deste mundo: a crueldade, maior miséria humana.

6. Conclusão
Se retornarmos às obras dos ficcionistas mencionados neste artigo, veremos como elas exemplificam a particularidade de um discurso que, assumido como ficção, revela aspectos do real encobertos pela automatização das referências e pelo caráter informe do imaginário cotidiano. Daí, a tensão e a potência cognitivas próprias à atitude discursiva ficcional. Por meio da ficção, autores como José Geraldo Vieira, João Alphonsus e Boris Schnaiderman, partindo de enfoques diversos, revelaram aspectos do real da guerra, geralmente obliterados pelos processos de embotamento que presidem a quase totalidade das práticas sociais.

Referências

ALPHONSUS, J. Contos e novelas: Galinha cega, A pesca da baleia, Eis a noite! Rio de Janeiro: Imago, 1976.
BAKHTIN, M. O discurso no romance. In: _____. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad. Aurora Fornoni Bernardini et al. São Paulo: UNESP, 1993.
_____. Os gêneros do discurso. In: _____. Estética da criação verbal. Trad. Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997.
LIMA, L. C. História. Ficção. Literatura. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
SCHNAIDERMAN, B. Guerra em surdina. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
TOTA, A. P.; MAXIMIANO, C. C.; MARANGONI, A. A guerra em surdina de Boris Schnaiderman: uma entrevista e algumas interferências. Projeto História, São Paulo, n. 30, p. 327-342, jun. 2005.
VIEIRA, J. G. Carta a minha filha em prantos. São Paulo: Martins, 1964.


1 Pesquisador colaborador (pós-doutorando) junto ao Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), UNICAMP. Doutor em Letras: Estudos Literários, pela FCL-UNESP, Araraquara. Docente do Centro Universitário de Araras “Dr. Edmundo Ulson” (UNAR). carloseduardo@unar.edu.br

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