NOTAS DERRADEIRAS. A HISTÓRIA DE SUÍTE FRANCESACristiana Vieira Cancellier de Olivo 1
Resumo: O presente projeto de pesquisa vem propor um estudo sobre a obra da escritora ucraniana Irène Némirovsky, a partir dos fundamentos da Teoria do Testemunho e da Teoria e História da Memória. Némirovsky escreveu não apenas romances. Seus textos formam uma espécie de autobiografia romanceada que traz um importante testemunho do seu tempo e da sua condição, contado através de suas personagens.
Palavras-chave: Testemunho, literatura, memória, Némirovsky, história, catástrofe.
Résumé: Sous le nom de «Irène Némirovsky, Mémoire de l’étranger», ce projet de recherche propose une étude de l’oeuvre de la femme écrivain ukrainienne, en partant des bases des théories du témoignage et de l’histoire de la mémoire. Némirovsky n’a guère écrit que des romans. Ses textes forment un genre d’autobiographie romancée -racontée moyennant ses personnages- qui apporte un témoignage important, et de son temps et de sa condition.
Mots clés: Témoignage, littérature, mémoire, Némirovsky, histoire, catastrophe.
Este trabalho apresenta algumas reflexões sobre a obra da escritora ucraniana Irène Némirovsky, a partir de seu texto derradeiro, “Suíte Francesa”, escrito durante a II Guerra Mundial, pouco antes de sua captura pela polícia de Hitler e sua execução, um mês depois, em Auschwitz. Enquanto escrevia, já refugiada em Issy-l’Évêque, Irène era a um tempo vítima do regime de exceção e parte de cada personagem que criava, todos vivendo o mesmo momento. Não escreveu para passar o tempo, como sugeriu ao seu editor em uma carta, tampouco para revelar em todas as nuances o período da Guerra, mas também e sobretudo para dizer do horror da intolerância, da fragilidade da condição humana e do efêmero da vida.
Némirovsky deixou não apenas romances. Seus textos formam uma espécie de autobiografia romanceada que traz um importante testemunho do seu tempo e da sua condição, contado através das personagens às quais deu vida.
A discussão aqui proposta está na base de minha pesquisa de doutorado, um trabalho apoiado nos estudos sobre Memória e Testemunho. As teorias que circundam tais fundamentos nos colocam, não raro, num jogo labiríntico no qual a separação entre texto, biografia do autor e base contextual (o meio, a sociedade, a história) nem sempre é evidente, gerando um certo incômodo e atirando críticas nem sempre favoráveis dos estudiosos de literatura.
No entanto acredito que isso é uma escolha. E não uma escolha sofrida ou tensa, como pode parecer, resultado de uma possível identificação com a dor e o sofrimento. Não raro trazemos à luz relatos da violência urbana, da barbárie e, principalmente, da intolerância. Tampouco esta escolha está calcada no gozo na dor do outro. Nossos trabalhos não são uma jouissance no sofrimento expresso pelos textos que estudamos. O texto é o centro, não se perde, não o perdemos de vista, pois o que se faz não é uma interpretação da obra pela vida, nem uma explicação da vida pela obra, à moda de Sainte Beuve2 – tão criticado por Proust – que, entre outras comparações, tentava explicar as Flores do Mal, e sua conseqüente interdição, pela vida devassa de Charles Baudelaire.
É difícil, na verdade, manter uma distância da biografia do autor. No nosso caso, o caso de quem escolhe trabalhar com testemunho e memória, a história da vida do autor e a história que ele “conta” estão obrigatoriamente inseridas no texto a ser analisado. Mais, foram decisivas na escolha. Ao trabalhar com testemunho não é possível deslocar o espaço e o tempo no qual ele está contido. É algo que aconteceu, uma realidade. O texto é, portanto, uma realidade. Mas o relato testemunhal está ligado, também, à dificuldade, à impossibilidade, muita vez, de dizer, de recriar uma realidade. É tentativa. Para Lacan, por exemplo, o que chamamos de real é o mundo simbólico no qual vivemos. O real nunca é alcançado, é onde não podemos chegar, a parte do sonho que fica esquecida, o que não se toca. A literatura seria então subversiva, pois que teria o poder de revelar esse real pelo exercício próprio da escritura, quando o texto se impõe e guia a mão de quem o escreve.
Há, inevitavelmente, uma adesão nessa escolha. Uma adesão, no entanto, que tenta evitar o relato claustrofóbico, a banalização das questões traumáticas, a vitimização. Não se pretende ir à exaustão dos detalhes sobre a violência sofrida, por exemplo, nos campos de concentração, como Didi-Huberman o fez em Images Malgré Tout3. O que se quer é mostrar o que foi essa experiência e como os textos por nós escolhidos reclamam uma leitura que, muito longe de ter uma carga panfletária quer, antes, marcar e registrar o que não pode ser apagado nem esquecido. E isso está tanto na experiência vivida quanto nos textos.
A experiência de Irène Némirovsky, que nasceu em Kiev, no ano de 1903, quando os pogroms assolavam a Rússia e promoviam a emigração de quase dois milhões de judeus para outros países, pode ter como marca inicial uma ruptura. A mãe dirigia-se a ela em francês, a língua da moda no início do século XX, deixando que a língua materna, o russo, fosse transferida pela escola. Os Némirovsky fugiram do Estado que se estava transformando na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em 1918, partindo primeiro em direção ao norte, onde ficaram alguns meses na Finlândia e depois na Suécia, até se estabelecerem definitivamente em Paris no ano seguinte. Irène nunca retornou ao país de origem, tampouco obteve a nacionalidade francesa. Ainda que tenha alcançado notoriedade e reconhecimento como escritora na França – seu primeiro livro, David Golder foi imediatamente adaptado para o teatro e para o cinema – e que toda sua obra tenha sido escrita em francês, nunca deixou de ser uma estrangeira no país que elegeu para viver.
Essa será a marca da obra de Némirovsky. Ela não tinha um lugar, era de um lugar que estava distante, inacessível, não pertencia a uma língua (o francês, como a França, foi uma adoção). Então criou um lugar e o fez pela escritura. A sua obra é um testemunho do êxodo no período das perseguições e dos massacres, da vida no exílio, mas também uma autobiografia às avessas, uma leitura a contrapelo da própria vida, como se ela estivesse também se criando ao criar seus personagens.
Irène publicou ao todo treze romances, além de crônicas e ensaios para jornais e revistas da época. Postumamente foi publicado Suíte Francesa, manuscrito descoberto por suas filhas e editado pela Denoël em 2004, quando recebeu o prêmio Renaudot de Literatura. Ela tinha apenas terminado essas páginas quando, em 13 de julho de 1942, foi presa e deportada, primeiro para o campo de Pithiviers e posteriormente para Auschwitz-Birkenau, onde foi assassinada um mês depois.
Tanto os pogroms quanto o período entre as duas grandes guerras e, sobretudo, a ascensão de Hitler ao poder, que ao mesmo tempo preparam a Segunda Guerra e difundem na Europa a nova ordem da intolerância, são retratados nos romances da autora, representativos da literatura dos anos 30 e 40 do século XX. Sua vida e sua experiência misturam-se à vida das personagens que cria para dizer da sua condição, de judia e estrangeira, e da perseguição aos judeus, que culminaria com o Holocausto.
A autora jamais escreveu um relato no qual contasse como ela, Irène, viveu, por exemplo, a ameaça do massacre e as sucessivas fugas. No entanto Ada, personagem de Les Chiens et Les Loups,
que tinha oito anos, jamais os tinha visto, mas, como se sabe que existe a morte, ela sabia que havia dois perigos que não ameaçavam o resto da humanidade, mas que estavam dirigidos especialmente contra os habitantes desta cidade, deste bairro; ambos podiam cair sobre ela a qualquer momento, mas eles também poderiam poupá-la: esta margem de incerteza era suficiente para tranqüilizá-la. Esses perigos eram o pogrom e o cólera (Némirovsky, 1940, p. 59). Nesse romance de 1938, Némirovsky conta a história de Ada e Harry. Ambos migram para a França, em momentos e condições diversas, nos primeiros anos do século XX, fugindo justamente da Revolução Bolchevique. Estão em Paris, mas ignoram o paradeiro um do outro. O encontro se faz quando Harry vê numa vitrine de galeria um quadro que representa o enterro de um homem judeu num vilarejo ucraniano. Apenas os dois, ele e Ada, nascidos no mesmo vilarejo que era dividido em três partes, poderiam compreender o que a pintura representava. O que Irène retrata na forma de romance é não somente uma parte de sua própria história, mas uma busca de referência, uma tentativa de retorno a essas referências, uma identidade.
Essa identidade construída pelo texto, a necessidade de fazer, sempre, a viagem de volta a partir do que escreve, como num jogo no qual as peças estão espalhadas e é preciso recuperá-las para começar a jogar, é o ponto central da tese. Tal recuperação se mostra pela força de testemunho que tem o texto de Irène. Eventos cotidianos, histórias da infância, facilmente reconhecidos na correspondência da autora ou em registros históricos, estão misturados, sugeridos ou escondidos numa gaveta da casa-cenário por ela criada.
Em Suíte Francesa o relato histórico domina a narrativa, ainda que o texto assuma uma forma romanceada, sobretudo na segunda parte. No primeiro de seus dois capítulos, Tempestade em Junho, ela descreve o momento da ocupação nazista na França, a divisão do país em dois lados e a fuga em massa da população tentando chegar à França não-ocupada. Em Dolce, o segundo capítulo, a autora mostra o dia-a-dia daqueles que não conseguiram fugir e passaram a conviver com os alemães, com o diferente, o diverso, o alter. Todo o seu texto vai na direção de tentar compreender de onde vem esse sentimento de aversão pelo outro, um outro que, finalmente, é antes de tudo um igual, um homem.
Ela não cita especificamente o caso das famílias judias. Em momento algum faz essa distinção. Mas suas palavras estão atravessadas pelo sentimento do estrangeiro, do estranho, o que ela nunca deixaria de ser. Das pequenas narrativas individuais ela faz explodir o questionamento mais amplo: o que somos? Tudo isso misturado. A angústia do casal Michaud, deixado para trás pelo patrão que precisava de dois lugares no carro para levar sua amante com suas malas e seu cachorrinho, o ódio cego e o orgulho ferido de Benoît Sabarie, que dispara contra um oficial alemão dentro de sua casa, o amor sufocado de Lucile por Bruno, comandante alemão, ela cujo marido estava prisioneiro. Tudo parte do mesmo sentimento, do mesmo olhar, de um só medo. Irène multiplica-se para tentar captar o essencial, o humano, em cada um de seus personagens.
Nas notas preliminares do projeto desse romance, Irène coloca o mesmo Jean-Marie, personagem criado, ao lado de personagens reais da Guerra, Philippe Henriot e Pierre Laval, respectivamente o deputado da Gironde, propagandista do regime de Vichy, e Laval, o presidente desse governo, para uma reflexão, quase um manifesto, sobre o momento limite no qual a Europa estava mergulhada. Esta passagem ilustra sensivelmente o que era o processo criativo em Némirovsky: uma mescla. O real e o imaginário misturados. Assim como as lembranças e as expectativas, ela e suas personagens.
Querem nos fazer crer que estamos numa era comunitária, em que o indivíduo deve morrer para que a sociedade viva, e não queremos ver que é a sociedade que morre para que os tiranos vivam. Essa era que se crê “comunitária” é mais individualista que a do Renascimento ou do que os tempos dos grandes feudos. Tudo se passa como se houvesse uma quantia de liberdade e de poder no mundo partilhada ora entre milhões, ora entre um só e milhões.[...] Não me importo de morrer, mas, como francês e dado a raciocinar, pretendo compreender por que eu morro, e eu, Jean-Marie Michaud, morro por Philippe Henriot e Pierre Laval e por outros senhores, como um frango que é degolado para ser servido à mesa desses traidores. E insisto que o frango vale mais do que aqueles que o comerão4 (Némirovsky, 2006, p. 480). No entanto, quando se faz uma leitura um pouco mais atenta, logo fica evidente que Suíte Francesa vai bem além do relato histórico. Camuflados sob nomes de família como Péricand, Michaud, Corte, Langelet, Sabarie, Angellier, estão homens e mulheres apresentados nas suas mais íntimas características, expostos todos a um momento limite, o limite da guerra, da ocupação pelo outro, do despojamento compulsório. “É o espetáculo mais apaixonante e mais terrível; o mais terrível porque é o mais verdadeiro: ninguém pode se gabar de conhecer o mar sem tê-lo visto tanto na tempestade como na bonança. Só quem observou homens e mulheres em tempos como este pode conhecê-los. Só nessas ocasiões a pessoa conhece a si mesmo” (p. 470).
Irène vai traçando personalidades marcantes para, a partir de uma crítica da sociedade francesa, fazer o que se poderia chamar um estudo do humano. Ela mesma vivia, enquanto escrevia, as mesmas crises, os mesmos medos, a mesma insegurança. Ainda que percebesse a ameaça iminente quando escreve a seu editor “Como pode imaginar, a vida aqui é muito triste, e se não houvesse o trabalho... Esse próprio trabalho torna-se penoso quando não se tem segurança sobre o dia seguinte” (p. 504) ou ainda “Suponho que serão obras póstumas, mas isso faz passar o tempo” (p. 23) e quando inventaria não apenas os bens que serviriam ao sustento das duas filhas mas também tudo do que elas poderiam precisar em caso de fuga, Irène talvez não tivesse a exata dimensão do horror. Seu texto fala dos bombardeios, do êxodo, do desespero, das capturas, mas deixa entrever alguma esperança como a dos amantes que, antes de se identificarem como franceses e alemães, como inimigos, se reconhecem como homens e mulheres capazes de amar, de acreditar no futuro, num futuro. “E daí? Alemão ou francês, amigo ou inimigo, é antes de tudo um homem, e eu sou uma mulher. Ele é delicado comigo, meigo, cheio de atenções. (...) Para mim basta isso. (...) Já complicaram bastante nossa existência com as guerras e todo esse terremoto. Entre um homem e uma mulher nada disso tem importância” (p. 364), dizia a costureira à Lucile ao perceber o olhar espantado desta que fixava o cinturão de um soldado alemão deixado sobra a cama. O destino reservado aos judeus e outras etnias nos campos de extermínio escapava completamente à Irène.
Embora ainda ignorasse o horror dos campos de concentração e todas as atrocidades das quais o ser humano é capaz, Irène observava em detalhes tudo o que acontecia ao seu redor. Pensava no que teria de fato valor, se havia algum bem material que merecesse o esforço de ser carregado durante a fuga de um bombardeio, como o que Charles Langelet tentava salvar.
Charles ajoelhou de novo ao lado do caixote cheio até a metade e acariciou, através da palha e dos papéis de seda, suas porcelanas, suas xícaras de Nanquim, seu centro de mesa de Wedgwood, seus vasos de Sèvres. Destes, só se separaria morto. Mas seu coração sangrava: não poderia levar uma mesinha de toalete, uma Saxe, uma peça de museu, com seu tremo ornado de rosas, que havia em seu quarto. Isso ia ser jogado às traças! (p. 75) Este homem fútil e totalmente desprovido de qualquer sentimento de afeto, atenção ou solidariedade, capaz mesmo de enganar durante a fuga um jovem casal para roubar-lhes a gasolina – rara – do carro, só amava seus objetos. Os objetos como os que Hanna Arendt (1983) enquadrou numa das três atividades humanas fundamentais dentro da vita activa, a saber, o trabalho, a obra e a ação. Os objetos são parte da obra, coisas capazes de dar uma impressão momentânea de eternidade. “L’oeuvre est l’activité qui correspond à la non-naturalité de l’existence humaine (...) fournit un monde «artificiel» d’objets, nettement différent de tout milieu naturel“(Arendt, 1983, p. 41). Langelet que, páginas depois será atropelado e morto por uma bailarina tão fútil e insensata quanto ele próprio, é a caricatura do homem totalmente apegado aos bens da matéria, ao que se pode tocar, ao que é possível imprimir valor, à beleza estética. Irène carrega nas tintas ao revelar o pensamento desta personagem enquanto analisa a si mesma e o mundo do qual, apesar de tudo, é parte:
Não era feito para este mundo que, dessa carniça, nasceria como verme que sai de um túmulo. Mundo brutal, feroz, onde seria preciso se defender contra as dentadas. Olhou para suas belas mãos que nunca tinham trabalhado, mas apenas acariciado estátuas, peças de prataria antiga, encadernações e, às vezes, um móvel elisabetano. Ele, Charles Langelet, com seus requintes, escrúpulos, e até mesmo essa arrogância que reconhecia ter, e que formava o fundo de seu caráter, o que faria no meio daquela malta demente? Seria roubado, espoliado, assassinado como um pobre cão abandonado aos lobos (p. 76). Em algum momento esta descrição o aproxima de outra personagem, o escritor Gabriel Corte que “Odiava a guerra, que ameaçava bem mais que sua vida ou seu bem-estar: ela destruía a cada instante o universo da ficção, o único em que se sentia feliz, como o som de uma trombeta desafinada e terrível que fazia desabarem as frágeis muralhas de cristal erguidas com tanto trabalho entre ele e o mundo exterior” (p. 50). Corte, no entanto, após dias de fuga, de fome, de total desespero, durante os quais vai bater às portas dos hotéis de luxo que sempre freqüentou em busca de abrigo ou de um pedaço de pão, passa por uma espécie de rito iniciático e começa a ver a vida de outra maneira. Preserva sua maneira de ser, intolerante e autoritária, mas percebe que nunca mais será o mesmo depois de ter vivido o que viveu. Assim que tenta deixar Paris, logo após o aviso da invasão iminente das tropas alemãs, passa por um hotel e recusa o quarto. Um pouco por medo – a janela dava para um reservatório de combustível – um pouco por pura arrogância, segue em fuga no seu automóvel, olhando para todos os outros que, como ele, fugiam sem saber muito bem por que e para onde. Lembra desse instante quando já está protegido no Grand Hotel, ao norte de Paris, e olha os manuscritos que por pouco não se perderam durante a confusão. Teria dado a vida por eles e agora sabia que a vida ali valia pouco, quase nada. Só então pôde perceber o seu valor.
Nessa fuga “Havia refugiados demais. Havia rostos demais, cansados, lívidos, suando, crianças demais, chorando, bocas demais, trêmulas e perguntando: “Não sabe onde podemos encontrar um quarto? Uma cama?”, “Poderia nos indicar um restaurante, senhora?” Isso desencoraja a caridade. Aquela multidão miserável nada mais tinha de humano; parecia um rebanho em debandada; uma singular uniformidade estendia-se sobre eles” (p. 90).
Todos passavam a ser iguais, o humano se revelava. Pouco importava o colchão forrado em seda cuidadosamente atado ao teto do carro, ou o belo nécessaire cheio de cremes e perfumes. Todos se pareciam na tragédia, como o que a Sra. Péricand mais temia quando os empregados espreitavam a sala, em busca das notícias anunciadas pelo rádio. Ela, que tinha um filho padre, acreditava na recompensa do céu e fazia o bem para ter, de certa forma, a garantia de um lugar no Paraíso. “Pela porta entreaberta a sra. Péricand adivinhou a presença dos outros empregados: a arrumadeira Madeleine, arrastada pela inquietação, avançou até a soleira da porta, e a sra. Péricand achou que essa infração aos costumes era um mau presságio. Sabia que, durante um naufrágio, todas as classes se encontram no passadiço” (p. 38). Seu filho foi assassinado a pontapés por um grupo de jovens os quais estava encarregado de deixar a salvo, o que, aos seus olhos, fizera dele um santo. No entanto, durante a fuga esquece mesmo do sogro inválido, que fica para trás e morre dias depois. No momento limite “A caridade cristã, a mansuetude dos séculos de civilização caíam dela como ornamentos inúteis, revelando sua alma árida e nua. Estavam sozinhos num mundo hostil, os filhos e ela. Tinha de alimentar e abrigar seus filhotes. O resto não contava mais” (p. 93).
No final do romance a França continua sob a Ocupação e os franceses são obrigados a abrir suas casas para receber os alemães. Essa mélange vai servir para mostrar a banalidade do conflito, o absurdo da Guerra. Do contato entre esses homens que estavam marcados como inimigos emerge o ódio, o desprezo, o medo. E com eles o amor, a admiração, a estupefação diante de um outro tão diferente e tão igual. Com a notícia de que os alemães devem seguir para a Rússia, alguns habitantes enxergam naqueles homens não os oficiais que os subjugaram e sim o homem que poderia existir dentro de cada um deles.
Será que no íntimo de seus corações desejavam a morte de todos? Será que entre eles alguns sentiriam pena? Sentiriam saudades? Não dos alemães, dos conquistadores (...) mas será que sentiriam saudades daqueles Paul, Siegfried, Oswald que tinham vivido por três meses debaixo de seus tetos, que lhes haviam mostrado fotos de suas mulheres e mães, que haviam bebido com eles mais de uma garrafa de vinho? (p. 463) Irène Némirovsky não viu o fim da Guerra, nunca saberia se houve um fim. Conheceu, no entanto, o seu lado mais sombrio, mais temido, mais horroroso. Viu a cara da intolerância e talvez, nesse momento, tenha pensado que os oficiais que a levaram para o comboio e depois para o Campo poderiam ser um Paul, um Siegfried, um Oswald. Talvez tenha imaginado que existissem homens sob aquelas fardas, como aqueles que ela criou. Agora tomavam forma longe de suas páginas e assumiam uma feição mais dura e implacável. Sabia talvez que não seria poupada, mas suas linhas estavam impressas em letras minúsculas que uma de suas filhas, décadas mais tarde, pôde transcrever. Entre sua obra havia deixado um testemunho e uma homenagem. O testemunho dos primeiros anos de um dos períodos mais tristes, mais vergonhosos, mais absurdos, pelo qual passou a humanidade. Uma homenagem a todos os homens que, como ela, pagaram a intolerância com a vida.
Bibliografia AGAMBEN, Giorgio. Ce qui reste d’Auschwitz. Paris: Payot & Rivages, 1999. _____. L’État d’Exception. Paris: Seuil, 2003. _____. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002. ARENDT, Hanna. Condition de l’homme moderne. Paris: Calmann-Lévy, 1983. COQUIO, Catherine. L’Histoire Trouée. Paris: L’Harmatan, 2004. DELBO, Charlotte. Aucun de nous ne reviendra. Paris: Éd. de Minuit, 1970. DIDI-HUBERMAN, Georges. Images malgré tout. Paris: Minuit, 2003. LÉVINAS, Emmanuel. De l’Existence à l’Existant. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1993. _____. Humanismo do outro homem. Petrópolis: Vozes, 1993. NÉMIROVSKY, Irène. Les Chiens et Les Loups. Paris: Albin Michel, 1940. _____. Le Vin de Solitude. Paris : Albin Michel, 1938. _____. Suíte Francesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 1 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Teoria e História Literária do IEL-Unicamp, sob a orientação do Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva. Bolsista FAPESP.
2 Charles Augustin Sainte-Beuve (1804-1869). Importante crítico literário francês cujo método tornou-se o principal alvo do escritor Marcel Proust em seu texto Le contre Sainte-Beuve.
3 Neste caso o autor o faz com propriedade, já que trata da análise de fotos tomadas no campo de Auschwitz-Birkenau, durante a execução de homens e mulheres judias pelo Sonderkommando. A obra está citada nas referências bibliográficas ao final deste trabalho.
4 Daqui por diante citarei apenas o número da página, pois que todas as citações desta obra pertencem ao mesmo volume.
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