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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

JORNALISMO BUSCA HUMANIZAÇÃO NA LITERATURA

Cyntia Belgini Andretta 1
Resumo: Ao pretender alcançar a mímesis social por meio do então chamado jornalismo-literário, é inevitável que os resultados de tais buscas tenham alcançado esse tema da violência, tão presente no mundo material. Para entender o funcionamento literário nesses textos e a importância da escolha do tema, ou melhor, de uma boa pauta, analisamos três textos dessa corrente de jornalistas-escritores: Hiroshima, de John Hersey; A sangue frio, de Truman Capote; e Olga de Fernando Morais.
Palavras-chave: Jornalismo-literário, romance-reportagem, pautas
Abstract: When you want to achieve the social mimesis through so-called literary journalism, it is inevitable that the results of such searches have reached this issue of violence, as present in the material world. To understand the operation in literary texts and the importance of the choice of theme, or rather, a good staff, we analyze three texts that stream of journalists, writers: Hiroshima by John Hersey; The cold blood, of Truman Capote, and Olga of Fernando Morais.
Keywords: Literary journalism, novel-story, staves

1. Introdução
O jornalismo tomou para si a função de retratar a sociedade em sua realidade, assim como alguns literatos. Esse realismo engajado da profissão do jornalista, diferentemente da literatura, é inerente às suas características e, portanto, romper com esse conceito representaria algo mais complicado, como o apagamento de sua “razão de ser”, além de abalar a credibilidade jornalística e o status de ser denominado formador de opinião.
A essa responsabilidade com a narrativa do real, ou verossimilhante, despontaram jornalistas que, engajados com as questões sociais, se atentaram para assuntos (ou pautas) de interesse geral que refletiam a violência urbana ou coletiva. Tais jornalistas aparecem com maior força a partir da década de 1960 e se diferenciavam porque, além de chamarem a atenção do mundo às guerras, por exemplo, queriam se tornar escritores. Almejavam, na verdade, usar os elementos da literatura para atrair os leitores aos seus textos e temas. Inspirados em Balzac, Hemingway, Dickens, Gógol e Dostoievski, no exterior, e, mais tarde, Euclides da Cunha, Machado de Assis e João do Rio, no Brasil, um grupo de jornalistas advindos da “statusfera das reportagens especiais”2 (Wolfe, 2005, p. 19) encontra nos livros e na literatura uma forma de dar vazão à literariedade (literaturnost) de suas narrativas do real.
Ao pretender alcançar a mímesis social por meio do então chamado jornalismo-literário, é inevitável que os resultados de tais buscas tenham alcançado esse tema da violência, tão presente no mundo material. Para entender o funcionamento literário nesses textos e a importância da escolha do tema, ou melhor, de uma boa pauta, analisamos três textos dessa corrente de jornalistas-escritores: Hiroshima, de John Hersey; A sangue frio, de Truman Capote; e Olga de Fernando Morais.
Não só por ideologia cultural, artística ou política, esses jornalistas viam na literatura a forma perfeita de ganharem prestígio como escritores. E as revistas, além de alguns outros veículos de comunicação, que patrocinavam tudo isso viam nessa nova forma de escrever o ingrediente ideal para conquista de novos leitores e, portanto, de mais consumidores, conforme ditam as regras do mercado capitalista. Algum tempo depois, esses jornalistas-literários encontraram o investimento dos seus projetos e a adequação à linguagem literária na edição de livros que se tornaram (alguns) best-sellers. Coincidente com o interesse do público-leitor ou não, o fato é que os temas de parte considerável dessas obras têm na violência seu eixo central.
Hiroshima, por exemplo, toma como ponto de partida a violência da II Guerra Mundial, que foi capaz de gerar uma bomba atômica. Tal episódio está incrustado na memória coletiva como um dos momentos mais tristes da história. Hersey reconheceu que esse tema era preciso ser retratado na sociedade americana (cujos representantes políticos foram os responsáveis por lançar a bomba à cidade japonesa). Ele acreditou na pauta e escreveu um livro-reportagem sobre o episódio, contando o fato ocorrido pela perspectiva de seis personagens sobreviventes à bomba (chamados pelos japoneses de hibakushas). As narrativas entrecortadas e os detalhes das descrições dos cenários, dos personagens, do momento exato da explosão, a reconstrução das falas, enfim, o enredo da obra de Hersey estão evidentemente chamando a atenção das pessoas, como produto de massa que foi a reportagem3, à violência que aquilo gerou. Alguns trechos da obra indicam que há uma preocupação que pode ser despertada também no leitor de que a bomba de Hiroshima, bem como os episódios das Guerras Mundiais, devem servir de lição para que a história não se repita.
Também A sangue frio, um romance de não-ficção de Capote4, parte de uma pauta em que violência humana, levada a limites extremos, é ressaltada: o assassinato sem motivo aparente de uma família inteira no interior do Kansas (Estados Unidos). Capote leu, em 17 de novembro de 1959, uma pequena nota no jornal The New York Times, a qual informava que a família Clutter havia sido assassinada cruelmente com tiros de espingarda após terem sido amarrados e amordaçados em sua casa no interior do estado de Kansas. A notícia do jornal só trazia essas informações, que entre as tantas outras notícias de violência urbana poderia passar despercebida pelo repórter, que há tempos ambicionava um best-seller literário. Com o tema, Capote busca a reconstrução passo a passo, como nos romances policiais, dos antecedentes do crime, do que teria levado os assassinos a cometerem tal infortúnio para a família Clutter e até o enforcamento dos culpados por decisão de lei. No livro, construído mais literariamente do que jornalisticamente, ao contrário do de Hersey, o tema da violência é salientado do começo ao fim do enredo, inclusive com a discussão da pena da morte para os assassinos, que ultrapassa o campo literário e pertence a um dos problemas sociais reais presentes até hoje, 42 anos após a primeira edição da obra A sangue frio.
Por fim, tomamos o exemplo de Olga, escrito por Fernando Morais, que constitui um gênero diferente dos demais livros aqui citados: uma biografia. O processo de representação do real também é perseguido por tal gênero, que, a rigor, se concentra em um personagem específico e contextualiza sua vida, seus amigos, inimigos, grupos que freqüentava, enfim, tudo o que possa servir de material para mapear a vida de um determinado biografado. No caso do livro de Morais, a violência trazida pelos nazistas para a sociedade teve um papel essencial na composição da biografia de Olga Benario Prestes, uma judia comunista que foi casada com Luís Carlos Prestes e deportada do Brasil para os campos de concentração da Alemanha de Hitler. Lá, teve uma filha na prisão e depois foi morta em uma câmara de gás. Mais uma vez, a literatura resgata o tema da violência para, como arte, denunciar um processo social e histórico. E o jornalismo, responsável como é para retratar a sociedade, empresta a arte literária para evidenciar sua denúncia.
Na apresentação do seminário, portanto, o contexto de tais obras, suas marcas literárias e a função que a arte literária emprestou a tais jornalistas para representar fatos violentos da vida real serão retomados e ampliados para debate do jornalismo-literário e da literatura engajada contra episódios históricos lamentáveis.

2. Contexto
Houve um tempo, pelos idos da década de 1960-1970, em que uma geração inteira de pessoas de vários lugares do mundo se deliciavam com o jornalismo. Eram relatos de correspondentes de guerra, revistas com histórias de vida, de pessoas comuns, reportagens investigativas, livros-reportagens sobre histórias de crime. Tratava-se de escritos que traziam estilo autoral e muita, muita propriedade de comunicação verdadeiramente poderosa. Os livros eram best-sellers, as revistas esgotavam mesmo com grandes tiragens, os jornalistas eram respeitados e admirados pelo modo de escrever. Para citar alguns exemplos, temos que Truman Capote foi imortalizado ao escrever A sangue frio, uma história detetivesca real, o livro é até hoje considerado um best-seller nos Estados Unidos e no mundo. John Hersey vinte anos antes de Capote já encantou com seu modo de escrever e também ficou imortalizado com a publicação da reportagem Hiroshima que tomou a edição inteira da revista The New Yorker e esgotou os 31 milhões de exemplares rapidamente, com a história de seis sobreviventes à bomba atômica. Fernando Morais conquistou fama e é pago para escrever livros-reportagens, unindo o jornalismo e a literatura.
O que, afinal, encanta nesses relatos? Esse modo de escrever ainda existe hoje? Ou ainda é possível hoje? O público teria mudado? O que é esse modo de escrever? Se é tão interessante e comunicativamente poderoso, porque não é sempre usado? Quais os perigos desse comunicativamente poderoso para os jornalistas?
O segredo e as respostas para a maioria das perguntas acima já foram descobertos há algum tempo, principalmente por um movimento liderado por Tom Wolfe, que em 1963 lança o livro Radical chique e o novo jornalismo nos Estados Unidos, mudando a conotação do nome new journalism, que antes significava um jeito falacioso de escrever matérias, para a humanização da escrita. De que modo? Com a literatura.
Esse movimento poderia ter sido uma vanguarda de um novo estilo de escrever histórias jornalísticas, mas foi cada vez mais sendo deixado de lado e substituído pelo jornalismo mais seco, mais técnico. As razões são convincentes para não se fazer o tempo todo um texto literário: a) é preciso ter mais espaço, b) mais tempo de apuração, escrita e reescrita e, principalmente, c) mais investimento em razão dos dois argumentos anteriormente citados, porque é preciso custear viagens, mais entrevistas, mais pesquisa, enfim, mais dinheiro. Além disso, as pessoas atualmente estão à velocidade da web, tudo é muito rápido, os compromissos são inúmeros e os jornais sabem disso. Não pode ser mais do que quatro linhas uma nota em portais de Internet (e é o que funciona), não pode passar cinco minutos uma reportagem em TV ou rádio. A maior parte das notícias é feita em ½ página. Se sobrar uma página inteira é porque alguma matéria “caiu” e o jornalista vai “encher lingüiça” para completá-la com um texto que não teve tempo para ser apurado ou ao menos revisado, reescrito. O tempo corre na contramão da literatura.
Em contrapartida, os livros-reportagens parecem ser o lócus perfeito para o jornalismo literário. Ao propor um livro-reportagem geralmente se propõe também um financiamento do projeto que garanta um período mais longo para pesquisa, entrevista, apuração, escrita, maturação e reescrita, além de um espaço quase “à escolha” do escritor. Apesar de os livros-reportagens (ou também chamados de romances de não-ficção, nomenclatura que Truman Capote deu ao seu livro) terem se avolumado no mercado editorial no período do new journalism, atualmente ainda têm espaço, basta ver as listas de mais vendidos. Por conta desse interesse sempre constante por histórias da vida real, houve a necessidade de criarem uma categoria para esses “tops” de livros, a categoria: livros de não-ficção, que embora sejam listas repletas de livros de auto-ajuda, também divide território com as biografias, os cases que já foram notícia, enfim, os livros-reportagens. As listas dos mais vendidos indicam que ainda há espaço para tais livros, que ainda há público e, até quando houver a curiosidade humana pela vida do outro isso vai continuar existindo. Ainda sobre essas listas é sempre bom lembrar que elas também são muito vulneráveis ao poder, sobre elas Luis Nassif diz:
A seção ‘Mais Vendidos’ é uma instituição da Veja. Criada nos anos 70, se tornou [sic] o principal referencial de vendas de livros no país. Aparecendo na lista, aumentam as encomendas do livro e as livrarias passam a colocá-lo em lugar de destaque em vitrines e estantes. Há um ganho efetivo – intelectual e financeiro – em aparecer na relação5.
Ao ditar as regras, as listas realmente ajudam a inflar as listas e isso acaba dando mais espaço para os livros-reportagens (também porque os jornalistas buscam auto-promoção a partir dessas listas que estão facilmente aos seus alcances).
De um modo ou de outro, esses livros são aceitos pelo público e alguns deles chamam a atenção pelo trabalho com a linguagem. Destaco na dissertação “A relação entre jornalismo e literatura em três romances-reportagens” as obras anteriormente citadas: Hiroshima, A sangue frio e Olga. Apesar de essas três obras pertencerem a períodos históricos distintos, 1946, 1965 e 1984 respectivamente, e de serem classificadas em gêneros diferentes, reportagem, romance e biografia, também respectivamente, elas correspondem a um sucesso efetivo de público com histórias, períodos e gêneros diferentes. O que os une, então? Justamente o encantamento trazido pelo tal do jornalismo literário. Afinal, o que seria isso?
Grosso modo, fala-se que jornalismo literário é o relato baseado no real, no fato jornalístico, com as apurações e entrevistas próprias das técnicas dos periodistas, mas com o capricho da linguagem dos escritores, com a arte dos literatos. Portanto, por se tratar de arte, não existe, a rigor, um receituário puro e simples de “como escrever, com a linguagem dos escritores, os textos jornalísticos”. Ironias à parte esse modo diferente de se fazer jornalismo prevê, em sua essência, uma espécie de cópia dos clássicos da literatura (a exemplo dos artistas Renascentistas), mas com o pano de fundo de histórias, personagens, cenários e situações reais, ou seja, um fato jornalístico. Sem ainda entrar no mérito de se esse tipo de escrita é mais literário (considerando que literatura não é só ficção) do que jornalístico, propomos aqui um breve passeio por algumas justificativas à rubrica “literário” desse “novo” gênero, considerando que não são receituários com modelos de como deve se escrever um livro-reportagem.
Começando pelo livro de John Hersey, Norman Sims (1995), em uma compilação de jornalistas literários, faz uma introdução utilizando justamente o marco histórico que foi Hiroshima nesse “novo” gênero: a literatura no jornalismo:
Although the A-bomb attack that began his book was a spectacular news event, even John Hersey’s Hiroshima (1946) chronicled ordinary lives in the moments and weeks following the explosion. Professor Tom Connery of the University of Sr. Thomas remarked recently that literary journalism delivers “this felt sense of the quality of life at a particular time and place”, and that it addresses a question cultural historians pose: “how did it feel to live and act in a particular period of human history?” (Sims, 1995, p. 4)
O recorte como é feito em Hiroshima nos leva a pensar primeiramente na pauta (jornalística) como busca por personagens da vida real, por histórias de vidas de pessoas comuns, sem nenhum atributo de super-herói, e que por um motivo ou outro sobreviveram à explosão da bomba. Tendo em vista que mais de 140.000 pessoas morreram até o final do ano de 1945 por decorrências de complicações de saúde por conta da explosão e das radiações da bomba atômica, esses sobreviventes reais, de um fato real, encontraram na literatura de Hersey, um modo de se tornarem imortais. Aliás, foi o próprio autor que encontrou nessas pessoas comuns um grande motivo para entrarem para a literatura. Assim, o texto de Hersey, não tem mais o imediatismo e a notícia quente daquele dia, daquele momento, tornou-se, desse modo, uma obra literária no sentido de perdurar no tempo. Muito parecido com a crônica, de um particular momento que marcou a história do mundo e marcou também a história da literatura que ganhava o que foi nomeado o livro de John Hersey: livro-reportagem.
Essa pauta que mais parece um roteiro de um livro, com personagens, cenários, ações, diálogos, histórias que se encontram, é um dos elementos primordiais para entender essa rubrica: “literário”, já mencionada. Além disso, o tempo utilizado por esses jornalistas em nada se assemelha ao fazer jornalístico do dia-a-dia, com a pressão e, às vezes, o desespero do dead-line para entregar a matéria. Esses jornalistas contaram com o tempo necessário de que dispõem os escritores. Aliás, essa dicotomia entre jornalistas e escritores quase desaparecem nesse sentido, a não ser pelo fato de que estamos justificando a entrada de um e de outro em áreas que não as suas próprias (o jornalista na literatura e os escritores no jornalismo). No caso de Hiroshima, o autor teve um tempo de cinco meses para preparar a reportagem (tempo considerado grande para os padrões de confecção de reportagem no jornalismo) e depois mais 39 anos para terminar sua versão final do livro comercializado atualmente. Um tempo digno dos escritores.
Em relação ao texto propriamente dito, pode-se dizer que a estrutura dessa obra é estilisticamente recortada pela história dos seis personagens escolhidos e que cada um possui um ângulo pelo qual viram e passaram pelo episódio da bomba atômica (a chamada little boy). Algumas vezes, na história específica de um deles, as outras histórias se convergem, como é o caso do trecho a seguir, em que os personagens: sr. Tanimoto, padre Kleinsorge e a sra. Nakamura encontram-se na vida e no livro, mas logo a história de cada um deles volta a ser independente, como um colcha de retalhos:
Depois da tormenta, o sr. Tanimoto retomou o transporte de feridos, e o padre Kleinsorge pediu ao estudante de teologia que [discurso indireto] cruzasse o Kyo [rio] e fosse até o Noviciado Jesuítico de Nagatsuka, a uns cinco quilômetros do centro de Hiroshima, buscar ajuda para o padre Schiffer e o superior La Salle. O estudante embarcou na chalana [Mr. Tanimoto’s boat p. 39] e se afastou. O padre Kleinsorge perguntou à sra. Nakamura se gostaria de ir para Nagatsuka com os jesuístas. Ela respondeu que [discurso indireto], como tinha alguma bagagem e os filhos estavam doentes – as crianças ainda vomitavam de quando em quando, assim como a mãe –, temia que não pudesse ir. O sacerdote argumentou [He said he thought the fathers from the noviciate p. 39] que seus colegas do Noviciado poderiam retornar no dia seguinte com o carinho de mão para levá-la.
Mais tarde, quando se deteve por um instante em terra firme, o sr. Tanimoto, de cuja energia e iniciativa muitos dependiam, ouviu alguns infelizes implorando por comida. Consultou o padre Kleinsorge, e os dois decidiram ir buscar arroz nos abrigos da Associação do Bairro e da missão (p. 46).
Assim, como quem conta mesmo uma história, o narrador/autor interfere em alguns trechos seja por meio da linguagem, seja por meio de uma construção livre de autor (mesmo sendo ele jornalista). Desse modo, percebe-se alguns trechos em que o autor coloca uma série de gerúndios para causar a idéia de movimento (“limpando, engessando, e enfaixando mecanicamente”, p. 32), ou mesmo insere uma figura de linguagem (“o cheiro da morte era tão intenso”, p. 53), ou utiliza expressões do tipo “pensava”, como narrador onisciente6 (“o sr. Tanimoto tratou de retirá-los dali e, enquanto o fazia, experimentou tamanho horror em perturbar os mortos – impedindo-os, pensou, de soltar as amarras e empreender a sua última viagem”, p. 43).
O mesmo trabalho com a linguagem e com o texto acontecem com o livro de Truman Capote, A sangue frio. Ao ler uma notícia de jornal, o autor vê naquele fato um romance, uma oportunidade para entrar no rol da fama dos escritores. Ele desejava mais abertamente essa aproximação com a literatura. O jornalismo foi pano de fundo para o escritor em dois pontos somente: ele ganhava a vida trabalhando em um periódico, a história que ele conta é real (não só baseada em fatos reais). Do restante, toda a paciência, toda a apuração e toda pesquisa foram fundamentalmente planejadas para a produção de um romance.
Por esse motivo, por lançar mão mais da literatura do que do jornalismo, recebe críticas por ter supostamente criado algumas falas, alguns trechos, enfim, lançado mão da ficção Para de defender dessas acusações e reforçar a idéia de que ele estava inaugurando um novo gênero literário, o romance de não-ficção, o autor dizia que tinha um poder de memória muito grande, conseguia guardar 95% dos diálogos que ouvia com precisão, assim dispensava o uso do gravador para não enfraquecer as entrevistas.
Re-creating events is now a journalistic convention, sometimes practiced very honorably, sometimes less so. Dialogue remains sticky for all: how can any witness remember exactly what was said years, months, or even days before? The questions and concerns surrounding the technique will not be soon resolved, but it is undisputable that Capote, with his novelist’s ear, heard what his caracters could have said and transcribed it more faithfully than any journalist before or since. (Kerrane; Yagoda, 1997, p. 161).
A questão da criação e da ficção ficam ainda mais evidentes no livro de Capote, mas ela também está sujeita em qualquer texto do qual se utiliza a linguagem. Até nos diálogos comuns é difícil diferenciar, muitas vezes, a ficção da realidade. Segundo Fernando Resende:
Em um movimento que não mais implica a idéia de oposição, alétheia inisiste em se negar em léthe e, nas dobras da realidade, também não mais enquanto opostos, a verdade marca a ficção, mas também nela se apaga. É esse o movimento dialético que acompanha qualquer discurso intermediado pela palavra ambígua e, mais ainda, aquele cujo objetivo é representar o possível de uma realidade (Resende, 2002, p. 57).
Há na obra de Capote uma espécie de imitação dos textos clássicos da ficção, principalmente os que narram histórias de crime, de detetives, ou seja, novelas que fazem sucesso com o público. Nesse sentido, a criação do suspense necessário parece justificar o lado literário da ficção/criação no caso desse romance. Trata-se, portanto, de de ficcionalização do fato, entendendo, nesse caso, ficção, como processo criativo, não como mentira ou único definidor do conceito de literatura.
Essa obra oferece mais elementos para ser analisados do ponto de vista literário. Aqui também foi disposto um tempo de seis anos para terminar a obra e um levantamento extenso de elementos que compusessem o romance pretendido: os assassinos, o crime aparentemente sem solução, o detetive, os coadjuvantes da história, os suspeitos, uma cidadezinha distante, pacata, de interior como cenário do crime e o desfecho desses personagens pediram do autor dedicação para costurar a história.
Mais do que a linguagem, também fortemente presente no livro, A sangue frio chama a atenção por sua estrutura macro, por prender a atenção por ser um romance. A história é da família Clutter que foi assassinada brutalmente sem nenhum motivo aparente em Holcomb, interior do Kansas. O detetive Dewey descobre, depois de alguns acontecimentos no enredo, que os assassinos foram Perry e Dick. O motivo do assassinato? Foram iludidos por colegas da prisão em que estavam de que encontrariam dinheiro na casa dos Clutter. Ao serem soltos da cadeia, foram em busca da mina de ouro, mas não encontraram nada. De qualquer modo, foram vistos pelas vítimas e não quiseram deixar testemunhas. Foi o próprio colega de prisão que os denunciou e o caso teria sido solucionado. Isso se o autor não almejasse algo além para seu livro. Desse modo, preso os assassinos, o narrador conta a história desses dois personagens, seus aspectos psicológicos, a espera pelo julgamento até a sentença de morte por enforcamento e enfim a execução dos assassinos.
Essa estrutura de texto detetivesco, a análise psicológica dos personagens, o mistério criado até encontrar os assassinos e depois até a execução destes, deram ao livro um interesse grande por parte dos leitores. A linguagem é suave, como de quem conta história literária, não com a pressa dos jornalistas. Os pormenores das ações, as descrições dos detalhes dos cenários, tudo contribui para as formações de imagens que ajudam o leitor na fruição da obra. Sem adentrar, contudo, na teoria da recepção, o sucesso do livro de Capote parece, sem dúvida, vir do interesse dos leitores pelas pautas de crime, pelas imitações dos clássicos de detetive, pelos heróis e vilões criados e que, nesse caso, representavam pessoas da vida real, personagens de carne e osso, que não só existiram como eram pessoas comuns, como narra Capote. Para Fernando Resende, essa obra marca o lançamento do jornalismo literário para o mundo, dado sua importância:
Algumas publicações como A sangue frio (1966), de Truman Capote, e Os exércitos da noite (1968), de Norman Mailer, marcam o lançamento do jornalismo literário para o mundo. Para John Hollowell, este novo modo de narrar também pode ser chamado de literatura do fato, enquanto para Frederick Karl nonfiction novel parece ser o tema mais adequado. Na opinião deste, o Novo Jornalismo não é mais do que “ficção tirada do fato, apresentado com as técnicas de um romance”. Já Michael Johnson, em The New Journalism, refere-se ao termo quase que exclusivamente seguindo o título de seu próprio trabalho, e considera os jornalistas/escritores dessa nova técnica “os artistas da não-ficção” (Karl, 2002, p. 20).
Já no Brasil, um dos jornalistas que mais marcou o jornalismo literário por aqui foi Fernando Morais, que descobriu e mais utilizou essa técnica de escrever para fins comerciais e profissionais. Além das obras A ilha e Assis Chaeaubriand, Olga (1984) teve uma ótima recepção do público (não da crítica) e há alguns poucos anos a obra foi introduzida na arte cinematográfica.
Foram dois anos de investigação e arquivamento dos documentos encontrados para fundamentar todas as frases. Por essa preocupação de ser criticado pela ficcionalização do fato, Morais lança mão de muitos dados históricos na biografia, mas utiliza poucos diálogos, pouca reconstrução dos fatos por meio de criação literária. A biografia de Olga Benário Prestes marca muito profundamente uma época histórica, em que o Brasil estava inserido no cenário mundial por meio dos regimes autoritários e das pessoas de esquerda que lutavam pela liberdade.
De qualquer modo, mesmo sem muitas construções diferentes da linguagem, aliás, com um estilo bastante conciso e seco, a pauta escolhida por Morais conta a história de uma comunista alemã judia, que veio para o Brasil com a missão de ser guarda-costas de Luis Carlos Prestes, torna-se sua companheira e tem uma filha com ele, mas ainda no período de gestação foi presa e enviada pelo governo de Getúlio Vargas aos campos de concentração na Alemanha, onde morreu em câmaras de gás logo após parir a filha e a ter entregado aos cuidados da avó paterna longe das atrocidades de Hitler.
Essa biografia está repleta de momentos marcantes e emotivos vividos pela personagem principal, como a despedida da filha, as torturas pelas quais a própria Olga ou os seus amigos passaram após terem sido presos por serem comunistas e planejarem uma tomada de poder no Brasil e o seu envolvimento com Prestes. Mas o recorte e a angulação não é mais pelos caminhos literários do que pelos caminhos históricos de narrativa de algo que aconteceu e deixa sua marca.

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1 Mestre em Teoria e História Literária – Unicamp
2 Principalmente nas décadas de 1960, com o movimento do Novo Jornalismo iniciado nos Estados Unidos, mas com representantes até os dias de hoje em vários locais do mundo (Wolfe, 2005).
3 Tal reportagem tomou a edição inteira da revista The New Yorker de 30 de outubro de 1945.
4 Capote foi consagrado pelos jornalistas do movimento do Novo Jornalismo como um marco para o jornalismo-literário ao produzir um romance de não-ficção.
5 Disponível em: http://luis.nassif.googlepages.com/osmaisvendidos.
6 Esse tipo de interferência no jornalismo é uma questão bastante complicada, mas não é nossa proposta tal tipo de discussão neste trabalho.

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