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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

ALBERTO RANGEL: LEITURAS E ESCRITAS DA GUERRA E DA MEMÓRIA – VISÕES DA GUERRA EM ÁGUAS REVESSAS

Fabiana Bigaton Tonin1
Resumo: O trabalho apresentado analisa algumas referências que o escritor pernambucano Alberto Rangel (1871-1945) tece sobre a guerra em seus volumes de memórias, ainda inéditos, intitulados Águas Revessas. Por meio de seus escritos memorialísticos, Rangel reconstrói sua vivência em viés literário, narrativas entremeadas por reflexões e citações, bem como testemunha in loco as duas Grandes Guerras.
Palavras-chave: memórias, literatura brasileira, história e crítica.
Abstract: The presented paper examines some references that Alberto Rangel (1871-1945), a brazilian author born in Pernambuco, wrote about the war in his volumes of memoirs entitled Águas Revessas, yet unpublished. Through his memorial writings, Rangel rebuilds his life in literary bias, narratives intertwined by reflections and quotations, and witness both World Wars in loco.
Keywords: memoirs, Brazilian literature, history and criticism.

É notável que a crítica literária brasileira apresente, hoje, trabalhos impressionantes. Estudos dos mais diversos e valiosos podem ser encontrados e comprovam a qualidade que os críticos e pesquisadores alcançaram. Mesmo assim, quando a competência parece inquestionável e a qualidade, insuperável, descobrem-se lacunas, ausências. Autores e obras que simplesmente foram relegados a um esquecimento cruel, a uma quase não-existência, tudo em nome de um cânone controverso que se impõe. É nesse contexto que encontramos a obra de Alberto Rangel, a qual pode propiciar um encontro fortuito, mas, certamente, surpreendente e enriquecedor.
Enquanto pesquisadora, destaco essa “descoberta”. Ao estudar os originais de seus cinco volumes de memórias – as Águas Revessas –, pode-se perceber a riqueza de um escritor esquecido, completamente “sepultado” tanto pelo cânone que o excluiu, como pela crítica especializada, que pouco o cita. Nos últimos anos, algumas tentativas de trazer à tona sua obra têm sido feitas, mas de maneira parcial e, por vezes, tais “resgates” permanecem restritos a esta ou aquela instituição2, de modo que a obra do escritor pernambucano continua desconhecida, apagada.
Assim, raras são as iniciativas como a de Philomena Filgueiras3, estudiosa que trouxe à tona, em seu trabalho minucioso de estudo filológico e estabelecimento de texto de Quando o Brasil amanhecia, a força dos textos de Rangel, aqui ainda na vertente histórica (talvez possamos dizer, de crônica), à moda de grandes autores que fizeram da escrita da história material vívido dos rumos de suas nações, bem como suporte para a narrativa literária e para a busca da palavra bela, do tom poético.
Pelos poucos que ousaram falar sobre sua obra, o que se pode ler, comumente, é que a escrita de Rangel não é simples, mas muito rebuscada. Para um autor que escrevia na virada do século XIX, e entrava no século em que a velocidade e a fragmentação e a se tornariam regra também para fazeres literários, Rangel estava na contracorrente. Não o encontraremos junto aos romances ditos inovadores, nem às poesias repletas de oralidade, provocadoras na ruptura com a linguagem formal. Não estará ele no movimento das Vanguardas, embora confirme sempre, no decorrer de seus livros, a indefectível influência européia – em especial, da cultura francesa, como bem se poderia prever para um homem de sólida formação intelectual em sua época. Apontado por alguns como “parnasiano” ou “simbolista”, o fato é que Rangel pertencia àqueles que não abandonariam tão cedo a minúcia da escolha da palavra - por vezes, em seu texto explodirão os termos preciosistas, estranhíssimos aos novos ventos carregados das novas estéticas artísticas do século XX – mas também as imagens fortes como as presentes em Inferno Verde (1908), livro de maior sucesso do autor. Sua pintura do homem e do cenário amazônico trazem um pulsar intenso, o qual permita, talvez, relacioná-lo à postura de crítica social, exame do homem e do meio – com tons de reminiscência naturalista, mas também de nuanças regionalistas, como a literatura feita nos final do século XIX e mesmo aparentada aos romances posteriores do Modernismo brasileiro. Tome-se como exemplo o trecho do conto “Obstinação”:
O apuiseiro é um polvo vegetal. Enrola-se ao indivíduo sacrificado, estendendo sobre ele milhares de tentáculos. O polvo de Gilliat dispunha de oito braços e quatrocentas ventosas; os do apuiseiro não se enumeram. Cada célula microscópica, na estrutura de seu tecido, se amolda numa boca sedenta. É a luta sem um murmúrio. Começa pela adaptação ao galho atacado de fio lenhoso, vindo não se sabe de onde. Depois, esse filete entumesce e, avolumado, se põe, por sua vez, a proliferar em outros. Por fim, a trama engrossa e avança, constrangente, para malhetar a presa, a que se substitui completamente. Como um sudário, o apuiseiro envolve um cadáver; o cadáver apodrece, o sudário reverdesce imortal.
O abieiro teria vida por pouco. Adivinhava-se um esforço de desespero no mísero enleado, decidido a romper o laço da distrição, mas o manietador parecia fazer-se mais forte, travando com todas as fibras constritivas o desgraçado organismo, que o arrocho paulatino e inaudito ia estrangulando. E isso irremediavelmente. Com um facão, poder-se-ia despedaçar os tentáculos e arrancá-los. Bastaria, porém, deixar um pequeno pedaço de filamento capiláceo colado à árvore, para que, em renovos, o carrasco reacometesse a vítima, que não se salvaria. O pólipo é um polipeiro. Vivem gerações num só corpo, numa só parte, numa só esquírola. Tudo é vida por menor que seja o bloco. Não há reduzi-la a um indivíduo. É a solidariedade do infinitamente pequeno, essencial, elementar, inseparável, na república dos embriões sinérgicos. O que fica basta sempre à revivescência, reproduz-se fácil, na precipitação latente e irrefreável de procriar sempre. (...)
Representava, na verdade, esse duelo vegetal, espetáculo perfeitamente humano. Roberto, o potentado, era um apuiseiro social (Rangel, 1927, p.164-168).
Eis uma mostra da força da prosa de Rangel. Farfalhante, como aponta Augusto Meyer (1956), inquieta, repleta do gosto pelo detalhe e pela descrição minuciosa. Não é diferente com as Águas Revessas. Como se fosse possível mimetizar o movimento das águas, tanto quanto às correntes, como aos círculos concêntricos que reverberam quando caem pedras, flores e os mais diversos objetos e materiais, Alberto Rangel procura as palavras em sua forma, som, significado mais preciso e precioso para valer a força da levada de seu passado. Como assinalou Meyer, sobre esse fazer artesanal do texto literário, pode-se afirmar que é: “(...) uma das poucas demonstrações de vontade tensa e disciplina rígida em nossa literatura de frutos verdes, arrancados com falho e folha, para matar a fome” (Meyer, 1956, p. 11). Tal comentário, feito a propósito do já citado trecho de Inferno Verde, pode ser estendido às demais realizações de Rangel: seu incansável estilo não deixa brechas para palidez ou mesmices. Pode sim cansar o leitor menos afeito a tais fímbrias abundantes (e não menos importantes) em seus escritos. Uma mostra contundente disso aparece nos primeiros capítulos do volume I, quando o autor se põe a investigar o porquê do retomar e escrever as memórias, como localizá-las, delimitá-las e legitimá-las pelo contexto em que vive, bem como recuperar as origens de sua família; assim elabora quase como um estudo genealógico, propriamente dito.
Enfim, mérito ou não, a escrita de Alberto Rangel comprova a riqueza de um importante momento cultural e literário no Brasil: enquanto muitos propõem certa “homogeneização” em parâmetros fundados pelos caldos modernistas, segundo os quais existem e valem os autores canonizados e sacralizados pela então chamada “tradição”, os escritos desse pernambucano são prova que muito (e muito diferente) se fez concomitantemente. Contudo, boa parte do rico mosaico dessas primeiras décadas do século XX, com a diversidade e farfalhos de seus autores e obras, foi eclipsado em nome de uma excessiva exaltação dos chamados “modernistas”.
Interessa-nos, pensando nessa obra inédita, analisar como Rangel propõe-se a construir suas memórias. As “águas” de Rangel remetem a uma intensa tradição de (re)construção de fatos vividos e testemunhados através dos diversos recursos da escrita e do hibridismo dos gêneros da ficção e das memórias: a recomposição das histórias de sua vida e de seu mundo, sob o olhar do protagonista, às vezes centro, às vezes parte de um todo recuperado e reelaborado. Na obra em foco, as memórias, longe de ser gênero homogêneo, trazem em si a miscelânea entre escrita literária, relato histórico e tons de ensaio e até mesmo crônica4.
Nessa ampla e “esquecida” obra, vislumbra-se a riqueza do repertório do contista, biógrafo, historiador, a erudição que inunda seus escritos e, descobrimos, além da ficção e das obras de cunho histórico, a força de seus escritos memorialísticos: trata-se da força, do painel multicolorido de personalidades, fatos, acontecimentos - em especial, os literários, que compõem os volumes inéditos das Águas Revessas. A proposta apresentada e seus frutos (os quais, porém, ainda pedem cuidados, acertos e aprimoramentos) são um primeiro momento de recuperação dessa obra memorialística de Alberto Rangel, através do estabelecimento do texto definitivo para publicação dos dois primeiros volumes. Os originais – apresentados em duas versões, sendo que tomamos para este estudo e edição a segunda versão, conforme vontade do autor – encontram-se depositados no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro e já houve um primeiro movimento de reorganização por Francisco Foot Hardman, em projeto do CNPq (1992-1994)5.
Neste artigo, pretendemos analisar brevemente a escrita das memórias que partem, no capítulo 1 do primeiro volume (Primeiros Escritos), destacando-se uma importante escolha de Rangel: abrir suas memórias não necessariamente do final da vida (os volumes de Águas Revessas se encerram em 1942 e os escritos compreender até o ano de 1900, em que o autor pede baixa do serviço militar), mas sim retomando os longos períodos em que esteve na Europa, nos quais presenciou as duas Guerras Mundiais – em especial, a Primeira Grande Guerra.
Na abertura desta obra, ao analisar as motivações que o levam a registrar sua vida, Rangel reflete sobre a natureza das guerras (no caso das memórias, a escrita do autor está mais próximo da II Guerra Mundial) e seus eventos importantes, tristes, cruéis. Rangel elabora, assim, uma tocante reflexão sobre a humanidade e sua existência por vezes, sórdida, mesquinha. Cabe destacar também que o olhar do autor faz-se surpreendente quando, em uma espécie de diário, elabora suas notas no ano de 1914, compondo a obra Quinzenas de Campo e Guerra. Nesse belo livro, vê-se o testemunho de Rangel, que se apresenta já no subtítulo da obra como “(...) um estranho em Cuissy sobre o Loire, Loiret, França”. Esta última obra compõe-se dos apontamentos datados de 1º de agosto de 1914 até 16 de dezembro do mesmo ano.
Voltemos, pois, às observações de “testemunha ocular” que se elaboram no jogo entre uma postura contemplativa, madura, do homem que já passou e vivenciou horrores e os toma como ponto de partida para pensar sua humanidade e a de seus contemporâneos – bem como para a tessitura de suas memórias em Águas Revessas. Assim, vemos o autor transformado na personagem que se verá no intenso cenário paradoxal da “civilização” e dos “desmandos e atrocidades” (em especial, paragens européias em que viu a guerra desenrolar-se).
Vejamos como Rangel expõe tais idéias. No incipit do primeiro volume, dedicado à análise da validade desse fazer memorialístico, o autor abre os escritos a partir das cenas terríveis, marcantes, tornadas inexoráveis. Inicialmente, põe-se como brasileiro transportado a paragens mais que estrangeiras, estranhas:
Variado foi o ambiente em que experimentamos os rigores de todos os climas. Bafejou-nos a brisa mareira da laguna pernambucana e do golfo guanabarino. Para os lados da serra do Caverá, respirou-se o ar salubre e áspero do pampa. Tiritou-se de frio nas noruegas de Minas e São Paulo. À brenha equatorial em fogo contrastar-nos-ia mais tarde o rio escandinavo gelado. Extenuados de febre e solidão no barranco amazônico, perseguiu-nos o estertor entrecortado e aspirado do coral dos guaribas. Ruminou-se a paz do expatriado, no varandim da casa italiana, lançada para as cintilações da Riviera di Ponente, cortada de oliveiras, palmeiras e laranjeiras, alinhadas na faixa de cera e lápis-lazúli de suas curvas nostálgicas. Entre as sombras e reflexos do lagoeiro veneziano, pasmou-se para a linha viril e soturna do Colleoni e estrangulou-se, no mau cheiro da maresia, o mistério da gôndola funerária...
A seguir, o testemunho do (sobre) viver em terras tomadas por guerras, surpreender pelo olhar crítico, atento, do homem ciente dos horrores e tragédias irremediáveis:
Vivemos no Paris de duas guerras, quando a cidade se encolhia e angustiava na treva, atravessada sinistramente dos taubes de Guilherme, das granadas da Bertha, dos aviões de Goering e das tropas de von Stuelpnagel. Seis vezes atravessamos o Atlântico, a onda negra riscada pela esteira do corsário inimigo, o pavilhão britânico e brasileiro tremidos na dobra da vaga perigosa e escura, onde a tromba do espadarte germânico, torpedeiro e submarino, farejava a vítima flutuante e medrosa, representada pelo cargueiro neutro ou pelo vapor de passageiros, turistas ou gente de negócio.
[...] Daí teria que momentaneamente fugir, em 1940, incorporado às colunas de retirantes, precipitados no rebanho de destroço, de pânico e de miséria humana. Entre as veigas sorridentes que o estio amadurava e realçara, na caligem do hórrido meteoro artificial, causada pelos incêndios dos reservatórios de petróleo, a horda de Arminius6 ameaçava o mundo.
Imergido num Mississipi de populações medrosas e tropas desmoralizadas, transvasadas para baixo do Loire, debalde procurei a aba de um teto, mesmo que fosse pelo decurso da noite, no paiol de feno... Nos umbrais da porta dos sobrados, das granjas e casais de rendeiros e campônios, para impedir a caridade da mais simples acolhida, o francês siderado soçobrava, enforcado no seu pé-de-meia bem guarnecido, tudo negando aos que lhe raspavam os muros insensíveis!
O autor de Rêveries d'un promeneur solitaire, repugnado assinalava: "On dit qu'en Hollande le peuple se fait payer pour vous dire l'heure et pour vous montrer le chemin; ce doit être un bien méprisable peuple que celui qui trafique ainsi des plus simples devoirs de l'humanité." 7 Que pensaria ele do povo de que certos caseiros mais abusivos vendiam o copo d'água aos fugitivos nos horrores da guerra, atropelados à sua porta? Desassociado aos seus instintos, o homem transgredia a todas as leis divinas e humanas. No topo de uma civilização de refino e quintessência, rachava-se-lhe o verniz secular. A terra inçava-se das colunas de vândalos e dos ladrões de estrada do tempo de Luís, o Gordo, acoquinhados na passagem e nos muros torreados de Montlery8. Há na Chartreuse de Parme, uma vivandeira francesa, que diz aos heróis de romance: "-Et dire que ce sont des Français, qui m'ont pillée, battue, abymée."9 Se dessem uma voz à terra de Joana D’Arc, prostrada nesse drama de derrota e expiação, ela se exalaria na vergonha e queixa das mesmas agressões...
Nesses momentos compreendi tudo quanto se deveria considerar, quando lia nos portais de chácaras francesas: "Sonnez s.v.p. Chien méchant"10. Os sentimentos com que o homem se endurece, conciliando a urbanidade e a defesa própria, tornam-no cuidadoso de prevenir das dentadas do mastim de guarda, tirando o chapéu ao próximo. O polido redobra-se inospitaleiro, o proprietário no pilharengo, o escrupuloso no relaxo...
Horas abençoadas e felizes de França, dentro das quais, durante tão longos anos me foi dado viver, subitamente evaporadas no calvário de uma boa dúzia de povos escravizados; tempos de paz, ceifados nos transes do inexprimível sofrimento para justo castigo da terra livre e de antiga bravura, mas que um egoísmo feroz diminuíra de toda a capacidade de sacrifício, apodrecendo-a para as resistências da honra e da vitória, a ponto de merecer para si o ferrete de alexandrino que Racine, em Athalie, pôs na boca de Joad: "Peuple lâchs, en effet, et né pour l'esclavage"11.
Pausânias, general lacedemônio12, vencia combates à força de chicotes e bastões. Não sei se Hitler, assim armado, não teria destroçado os franceses, que se apresentaram à batalha com o espírito e o moral de previamente vencidos!
A vida fechava-se-me na maior calamidade da História: o Ocidente sob a pata pesada do cimbro e do teutão, recidivos numa outra página de Tácito13! Quando Nietzsche escrevia: "Eu sou um cataclismo", exprimia assim todo o destino inumano da sua gente bárbara e guerreira. Curti momentos amargos, com os meus olhos vi e com a minha mulher e os meus filhos sofri do seu jugo. Trazia o prusso, continuado do huno, a fome e a crueldade nos seus armões e mochilas, semeando as terras opulentas e mais felizes do que mereciam, dos horrores do roubo, da fome, do frio, da denúncia, da corrupção, da traição, do sangue e da explosão.
As catástrofes tremendas, a que pessoalmente assisti, no decurso de minha longa existência, foram das rosas da abolição dos escravos, no Brasil, aos terríveis espinhos da ocupação da França pelas hostes do nazismo. Tendo já bastante vivido, não suponho que maiores e mais impressionantes me seja dado assistir no resto de meus dias.
Embora longa, a citação desse trecho é fundamental para que se entenda o impacto causado pela guerra e seu espírito contraditório à civilização e ao tão proclamado “desenvolvimento”. Percebe-se a preocupação do autor enquanto alguém atento à grandeza da tragédia e às perdas irremediáveis que as grandes guerras trarão para a humanidade, ferida, humilhada, pisoteada. Importante notar que, frente a tão terríveis episódios, o narrador coloca-se como alguém que não pode mais ser surpreendido, nada mais pode impressionar no decurso de sua vida frente ao desenrolar de tão sangrentos e vexatórios acontecimentos. Ora, é fundamental analisar essa escolha de Rangel na abertura de suas memórias: longe do tom laudatório, da exaltação da existência, encontramos um narrador um quê cansado, tomado pela tristeza e por certo pessimismo – cuja existência, ainda que seja particularizada pelos escritos autobiográficos, é apenas mais uma frente a tamanhas tragédias históricas.
Contudo, ao percorrer suas memórias, se é fato que encontraremos, por vezes, essa nuança mais melancólica, triste, também veremos um narrador saudoso por sua infância e juventude – tendo em vista que são esses períodos os focados e privilegiados em seus escritos. Cabem, ainda, nessa análise, alguma nota sobre a construção histórico-literária elaborada por Rangel.
As memórias constituem algumas das últimas obras escritas pelo autor. O enquadramento feito pelos cinco volumes de Águas Revessas propõe o recorte e a seleção, o foco, mas, muitas vezes, Rangel ainda tinge suas lembranças de forte perspectiva historiográfica “tradicional”, à medida que parece crer numa escrita de sua história como um retrato fiel de todos os grandes e pequenos detalhes possíveis de abarcar pela força da memória – ainda que aceite o exercício de reconstrução, a reelaboração.
Ora, o reencontro de Rangel com o passado se traduz na impossibilidade, mas também na tentativa e nas escolhas – como faz um historiador em seu ofício – o que o autor bem soube, pois, como já se apontou, trabalhou intensamente com pesquisas, arquivos e “escritas de história”. É preciso também notar que as memórias são elaboradas em finos tecidos e criam camadas, grosso modo, organizadas em dois patamares fundamentais: temos a memória do indivíduo, ou seja, os escritos do estritamente subjetivo, e a memória imbuída da consciência do coletivo. Não raro essas duas estão mescladas, por vezes, totalmente, imiscuídas. Em Rangel, tal mescla permeia todo fazer da obra, pois se entrelaçam a vida íntima e os fatos do cotidiano mais pessoal, ao mosaico da história política, literária e cultural do país no final do século XIX.
Rangel admite, em alguns momentos, que está recriando os fatos, reinterpretando o material apresentado por sua memória. Assim, ainda que timidamente, o autor tem alguma consciência do que Seligmann (2003, p. 64) denominou como “a força criadora da tradução do passado”:
Pode-se falar em uma ética da representação do passado que implica a nossa dívida com os mortos. Mas é evidente que não existe a possibilidade de uma tradução total do passado; esse era justamente o credo central do historicismo e do positivismo. Para Benjamin, a apropriação integral do passado só seria possível após uma redenção política e messiânica da História – Borges, enquanto tradutor e nos seus ocasionais textos sobre tradução, defendeu uma “infidelidade ‘criadora e feliz’”. Ele estava consciente de que não existe tradução sem o trabalho da imaginação.
Ao recriar o panorama do que foi o Brasil experimentado em sua infância, juventude, tempos de escola e de exército, família e amigos, bem como ao destacar seu repúdio frente às violências e atrocidades de seu tempo – como no caso das duas Grandes Guerras - Alberto Rangel, ainda que herdeiro de certas tonalidades do historicismo do século XIX, escolhe as peças de seu mosaico e investe numa reconstrução da memória, nessa “tradução” particular do passado. Observa-se o trabalho de construir o novo que se pretende uma imagem do vivido, quando o autor recupera o que alguém lhe disse, as palavras de um livro, a analogia com pinturas que só conheceu enquanto adulto, poemas lidos em sua maturidade, enfim, novas elaborações que substituem a matriz original – seja ela qual for. Experiências das mais diversas que se consolidam no literário, sobretudo, tendo em vista algumas técnicas aqui já apontadas.
Há muito ainda a se dizer de Alberto Rangel e seus escritos. Nosso projeto de mestrado, em vias de finalização, pretende ser um primeiro passo nesse sentido. Contudo, longe está de ser decisivo ou conclusivo. Sobretudo, é uma tentativa de retomar o olhar, a literatura desse “ilustre desconhecido”, trazê-lo um pouco mais à tona e convidar a outros e diversos estudos – afinal, seja como “testemunha ocular” de seu tempo ou como autor digno de nota, Rangel pertence a um fundamental momento da história brasileira e, como pudemos ver, da história ocidental, uma vez que nos forneceu algumas das mais pungentes narrativas e observações sobre as guerras e os homens.

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1 Mestranda em História e Teoria Literária/UNICAMP. E-mail: fabigaton@yahoo.com.br
2 Alguns movimentos nesse sentido foram feitas recentemente, como a reedição de Inferno Verde e o trabalho de Ana Sílvia A. da Fonseca, sobre os contos de Alberto Rangel publicados na revista O Cenáculo (dissertação de mestrado, Unicamp 2000, sob orientação de Francisco Foot Hardman).
3 Edição de 1971, prefaciada por Antonio Houaiss e publicada pelo Instituto nacional do livro (Rio de Janeiro).
4 Partimos das considerações mais gerais acerca dos gêneros; no caso da crônica, pode-se compreender a escrita da retomada histórica, bem como o texto, por vezes, mais leve, com leve humor e diretamente ligado aos fatos contemporâneos ao autor.
5 “Fantasia e passado: as memórias inéditas de Alberto Rangel (1871-1945)”. Campinas: IEL/Unicamp, Brasília: CNPq (Projeto de Pesquisa, 1992); “Memória, ficção e história em Alberto Rangel (1871-1945): um farfalhante na contracorrente do modernismo”. Campinas: IEL/Unicamp, Brasília: CNPq (Projeto de Pesquisa, 1994).
6 Armínio (16 a.C. - 21 d.C.) foi um chefe tribal germano da tribo dos Queruscos. Treinado como comandante militar romano, obteve a cidadania romana antes de regressar à Germânia para expulsar o exército romano. Conhecido como o chefe da aliança de tribos germanas que dizimou três legiões romanas.
7Dir-se que na Holanda as pessoas ‘pedem dinheiro’ para dizer a hora e mostrar o caminho; essas devem ser pessoas bem arrogantes, porque traficam o mais simples dos deveres da humanidade”, citação de Devaneios de um caminhante solitário (1776), de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filósofo, figura fundamental do Iluminismo.
8 Luís VI de França (1081 - 1137), chamado “o Gordo Luís”. Montlery: referência aos arredores de Paris.
9E dizer que são os franceses que me pilharam, bateram, arruinaram”, in A Cartuxa de Parma, de Stendhal, (1783-1842).
10 “Favor tocar a campainha (favor chamar), cão bravo”.
11Povo vil, com efeito, e nascido para a escravidão”, in Athalia, de Jean Baptiste Racine (1639-1699), dramaturgo francês.
12 Pausânias (?- 467 a. C.): príncipe, sobrinho de Leônidas, rei de Esparta; comandou o exército grego em importantes batalhas
13 Publius Cornelius Tacitus (aproximadamente 55 – 120): historiador latino.

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