O NARRADOR DE EM CÂMARA LENTA, DE RENATO TAPAJÓSJayme Alberto da Costa Pinto Jr.1
Resumo: Este estudo propõe uma leitura do romance Em Câmara Lenta, escrito por Renato Tapajós em 1977, que sublinhe aspectos formais da construção do texto, em especial no tocante ao narrador, em busca de possíveis articulações entre a forma adotada pelo autor e o momento sócio-político por que passava o país na época em que transcorrem as ações do livro (entre 1968 e 1973). A partir, então, desse cotejo entre texto e contexto, procuraremos apontar caminhos que permitam enxergar na obra de Tapajós qualidades literárias que justificariam destacar Em Câmara Lenta no espectro amplo dos chamados romances engajados – produzidos na esteira da Revolução de 1964 e ao longo das duas décadas que se seguiram, e que tematizaram, seguindo opções estéticas diversas, as condições repressivas e de exceção política que marcaram o período. Este trabalho não pretende esgotar as possiblidades de análise que levem a uma análise positiva de Em Câmara Lenta em termos literários; assim, a possível contribuição feita aqui será a de um primeiro passo nessa direção.
Palavras-chave: autoritarismo, tortura, narrador, narrativa.
Abstract: This paper seeks to analyze the novel Em Câmara Lenta, written by Renato Tapajós in 1977, focusing on formal aspects of the text. More specifically, our interest lies in how the narrator is constructed and presented by the author, with the ultimate aim of establishing links between the form Tapajós elected and the social-political moment the country was going through at the time, as circunscribed in the book (between 1968 and 1973). As we look at the text vis-à-vis the context, we will try to reveal literary qualities that would allow Em Câmara Lenta to stand out in the wide spectrum of the so-called “engaged” novels – written in the wake of the 1964 Revolution and throughout the two decades that followed, and that resorted to various aesthetic options to depict the repressive conditions which characterized that period. The “road to literary value” which we expect Em Câmara Lenta to cover cannot be limited to this single paper; the contribution presented here, if any, is therefore to be seen as a first step in that direction.
Keywords: authoritarianism, torture, narrator, narrative.
1. Introdução – a obra
O período da história brasileira que remonta à virada da década de 1970 foi marcado por um clima de exceção, em que experiências de repressão autoritária, violência e censura faziam parte da vida cotidiana do cidadão comum. Uma análise conseqüente da literatura produzida na época não deveria, idealmente, ignorar esse pano de fundo. A leitura aqui proposta, portanto, busca articulações entre temas eleitos por escritores da época e os pontos de vista a partir dos quais são elaborados. Nesse sentido, o pensador alemão Theodor Adorno destaca um aspecto característico da escrita de nossos tempos: a forma de narrar está necessariamente ligada a condições históricas, que não mais se acomodam aos meios tradicionais de representação.
No caso em pauta, o livro Em Câmara Lenta, de Renato Tapajós, definido pelo autor como "uma reflexão sobre os acontecimentos políticos que marcaram o país entre 1968 e 1973", ou seja, justamente a época em que a truculência do regime dominante marcou de maneira mais profunda aqueles que a ele se opuseram, observam-se em várias categorias do discurso – notadamente para este estudo, a construção do narrador – tentativas de incluir elementos perturbadores, seja na quebra da linearidade lógico-temporal, seja na flexibilização da distância entre subjetividade e objeto, num movimento que revela um sujeito que, a exemplo do contexto em que está imerso, se constitui de forma fragmentária. A violação da linearidade temporal somada à oscilação proposital do foco narrativo provoca estranheza no leitor, que é envolvido por um estado em que, assim como ocorre com a protagonista vitimada pela tortura, as referências constitutivas são estilhaçadas.
Em Câmara Lenta foi escrito por Renato Tapajós em 1977, em boa parte durante o confinamento do autor no presídio paulistano do Carandiru. A obra descreve episódios fictícios da guerrilha urbana e faz cruzar de maneira não linear os destinos de meia dúzia de revolucionários empenhados na luta armada. Cenas de tortura de extrema violência injetam um alto grau de perturbação no leitor, que não pode se valer de recursos analíticos convencionais para dar conta de uma narrativa em que a lógica temporal foi rompida e vários dos personagens não são nomeados. Frases longas, ausência de parágrafos na função de delimitadores do fluxo narrativo e utilização de pronomes pessoais – ele, eles, ela, elas – para se referir aos personagens mobilizam a atenção do leitor, que é convocado a intervir como co-autor para preencher as indeterminações de uma realidade que é retratada da forma processual e conflitiva com que se apresenta, e que se dá a conhecer sempre de maneira inconclusa, fragmentária, pela falta. Esse aspecto inescapável das perdas - que, no caso aqui tratado, está sublinhado por um ambiente de violência física extrema - gera uma forma privilegiada de conhecimento: o estado melancólico, lugar em que o indivíduo é, enfim, levado a refletir sobre o que lhe foi tirado. Assim é que o homem moderno, do qual o narrador de Tapajós pode ser tomado como exemplo, não consegue dominar a experiência de modo universal, posição que o diferencia drasticamente do chamado sujeito clássico, definido entre outras coisas por sua capacidade de trilhar uma trajetória totalizante e transcendente.
2. Introdução – o contexto
Para efeitos da análise da atuação do estado na época de publicação de Em Câmara Lenta (1977), é preciso verificar de que forma a ideologia autoritária que ganha corpo na primeira metade do século, notadamente no período entre guerras, se transfere para a época do regime militar (1964-1985). Essa fase se estendeu mais longamente do que o Estado Novo e, apesar de ocorrer em um novo contexto – Guerra Fria, combate ao comunismo –, recorreu a práticas autoritárias já implementadas na década de 30. Marcam esse período o uso mais extremado da violência e da tortura, tendo como alvo os inimigos do regime militar, os atos institucionais que suspenderam direitos e liberdades civis, e a forte censura. Apesar de algumas práticas típicas do Estado Novo ecoarem aqui, há, paradoxalmente, aparente normalidade institucional: o congresso funcionou na maior parte do tempo, havia mais de um partido político em atuação, e verificou-se até uma alternância de presidentes militares.
A aparência da normalidade pode sugerir uma pauta ideológica que visava buscar lastro, entre setores da sociedade civil, para a legitimação das ações de exceção. Nesse sentido, a violência retratada no Em Câmara Lenta por parte do estado acaba por se revelar justificada (pelo estado, naturalmente). Não se tratava de algo circunstancial, para atender uma demanda imediata de repressão a adversários, mas, antes, de um programa para a construção do país. É interessante notar que, apesar de programática, a tortura não parecia se embasar em lógica ou mesmo em alicerces ideológicos muito estáveis, como revelam depoimentos de vítimas e algozes, à qual a população brasileira teve acesso a partir de 1985. O ex-preso político e ex-deputado baiano Emiliano José, relata no livro “Galeria F – Lembranças do Mar Cinzento”, que a única ideologia professada por seu torturador – capitão Homero César Machado, chefe da equipe de interrogatório da Operação Bandeirante (o grifo nas patentes é nosso) – era a do poder: “Estou aqui como funcionário do Estado. Farei tudo o que for necessário para retirar de vocês as informações de que o Estado necessita”, gritava o capitão, segundo os registros. “Vocês, pela importância que têm, terão de me dar informações. E por isso têm de ser torturados. Se vocês fossem do governo, estaria a serviço de vocês (grifo nosso)”, continua o militar, de modo quase surreal.
Há que se acrescentar, ainda, um dado referente à intensidade dos atos de violência, em geral muita alta, e o modo, quase sem sobressaltos, com que a tortura se inseriu no cotidiano da população da época. Renato Janine Ribeiro chamou a atenção para esse fato em um texto chamado “A Dor e a Injustiça”. Segundo Ribeiro, a sociedade brasileira passou por dois traumas importantes em sua fase de formação: o primeiro deles advém da violência experimentada durante os séculos de colonização a que o país foi submetido (entre Descobrimento e Independência); o segundo trauma está associado à escravidão no período imperial. Por conta disso, sob a perspectiva de Ribeiro, nossa formação social se deu como resultado de experiências marcadas por submissão, agressão e, principalmente, absoluta inexistência de senso de coletividade. A dor impingida não chegou a ser superada e segue fazendo-se presente, o que levaria a sociedade a tornar toleráveis níveis inteleráveis de violência, movimento que parece imune a tentativas de mudança.
Idelber Avelar propõe no livro “Alegorias da Derrota” um possível encaminhamento para entendermos esse paradoxo, levando em conta as relações entre história e literatura. Avelar escreve sobre a ficção pós-ditatorial na América Latina, uma produção que, segundo o autor, exibe marcas de uma tentativa de superação de perdas (que pode ser remetido ao trabalho de luto e à melancolia conforme os termos usados por Freud) que jamais chega a ser bem-sucedida, mesmo na ficção mais elaborada, donde conclui que existe uma problematização da capacidade de representar a experiência por meio da linguagem.
Da mesma, forma, agora no âmbito social, a adoção, por parte das elites, de valores que se prestam à manutenção estratégica de políticas educacionais e culturais que reafirmam a desigualdade de condições de acesso ao conhecimento e validam um sistema hierárquico em que a exclusão é a norma. Simon Schwartzman, em “Bases do Autoritarismo Brasileiro”, indica que a violência e a política autoritária experimentam aqui um movimento de continuidade, situação que facilitou, ao longo do século XX, o cercemento de liberdades tanto em épocas de exceção declarada (Estado Novo e Ditadura Militar), como naquelas tidas como democráticas. Daí resulta que certa parcela da elite se paute, até hoje, por ideologias e comportamentos autoritários. Da mesma forma, o livro “Brasil: Nunca Mais”, faz do tema tortura o fio condutor que liga a herança colonial e escravista e a repressão oficial do país no século XX, e sugere uma linha de continuidade de violência que ajuda a compreender a complexidade do horizonte de interlocução de algumas obras literárias, em especial, aqui, o caso de Em Câmara Lenta.
Em busca, então, de concretizar a proposta feita acima, este trabalho procurará mapear, ao longo do romance de Tapajós, opções narrativas que apontem para antagonismos e tensões extra-texto e possibilitem delinear uma situação histórica potencialmente problemática, segundo termos propostos por pensadores da Escola de Frankfurt, como Walter Benjamin e Theodor Adorno, quais sejam: a história é imanente à obra de arte.
3. O narrador de Em Câmara Lenta
A abordagem procurará trazer à tona um possível imbricamento entre violência e forma, partindo do pressuposto de que a violência, aqui entendida como conjuntos de ações repressoras, perpetradas pelo estado hegemônico com o objetivo de abafar dissonâncias e calar vozes discordantes, leva o artista a buscar outros modos de expressão – literárias, no caso – que não os associados aos modelos canônicos. O embate – político, sócio-econômico – teria como base, também, a necessidade de a linguagem comunicar fatos que, de outra forma, permaneceriam sufocados.
Adotando como base, portanto, um tipo de garimpagem do texto literário que revele aspectos potencialmente críticos de uma realidade opressora, e que tais aspectos devem necessariamente se traduzir em recursos construtivos que se articulem com a pobreza da experiência e com as lacunas e indeterminações da realidade externa, resulta que, em termos de tempo narrativo, esse tipo de literatura socialmente consciente deveria se caracterizar pela falta de sintonia temporal entre história e discurso. No Em Câmara Lenta, a violação da linearidade temporal somada à oscilação proposital do foco narrativo provoca justamente estranheza no leitor.
O aporte teórico que se somará a alguns escritos dos pensadores já citados na tentativa de elaborar algumas considerações sobre o narrador contemporâneo, além de identificar marcas de uma possível ligação entre forma e contexto vem, principalmente, de duas fontes: os textos Entre fronteiras e cercado de armadilhas, de Regina Dalcastagnè; e O tempo na narrativa, de Benedito Nunes.
Dalcastagnè define um tipo de narrador que acena promissor para o tipo de estudo descrito neste trabalho: o narrador suspeito. Ocorre que em narrativas modernas o narrador muitas vezes é o próprio protagonista. Nesse caso, como confiar nesse indivíduo precário, hesitante, cheio de dúvidas, o exato oposto do narrador realista que estava em ação no nascimento do romance e que comandava as ações e nos guiava, a nós leitores, em meio à trama? Trata-se de um narrador cuja consciência está embotada seja por pressões pessoais e ou sociais incontornáveis, seja porque tem sua própria agenda a cumprir ou, ainda, como no caso de Em Câmara Lenta, seja porque foi expropriado de toda e qualquer vontade de seguir adiante, e agora mantém a duras penas o foco no imediato, ancorado numa fidelidade à namorada assassinada. “Ele”, como é chamado narrador de Tapajós chega a um ponto que nem sequer pretende dar a impressão de neutralidade: está envolvido até o pescoço com a matéria narrada. Sua meta, claro, é nos envolver também, fazer com que terminemos por aderir ao seu ponto de vista – ponto de vista digno, merecedor de adesão, ele quer nos fazer crer. “O gesto foi interrompido”, declara o narrador de Tapajos, e “o tempo acabou”. O gesto, naturalmente, pode ser entendido como a esperança que os jovens tinham na força da revolução, força que jamais conseguiram transmitir àqueles que tentavam cooptar – para usar um jargão caro ao movimento estudantil – em especial outros estudantes e membros da classe operária; a descrição dos atos de panfletagem realizados em porta de fábrica por jovens cujo discurso soava entre o incompreensível e o aterrorizante para aqueles trabalhadores é ilustrativo dessa falta de sintonia entre intenção e prática, e é transmisitada de modo critalino pelo próprio narrador, como na cena em que os militantes vão até a casa do líder operário e a diferença entre os dois mundos grita mais que as rajadas de metralhadora lá na rua: de um lado, pós-adolescente cheios de sonhos e prontos para, em sua inocência, “organizar” a luta armada; de outro, um trabalhador, igualmente jovem, é importante frisar, e tão preocupado em conrfrontar o patrão quanto em sustentar a mulher e quatro filhos:
Ele se inclinou oara frente em direção ao operário e começou a expor seu ponto de vista. Fez considerações sobre a situação política no país, sobre a escalada repressiva da ditadura, tomando como exemplo a própria intervenção policial nas fábricas (…) Disse de como eram importantes quadros experimentados na luta, principalmente de origem operária e da necessida de se montar uma sólida retaguarda (…) preparada para a guerrilha urbana. O operário ouviu tudo, ficou em silêncio, pensando. Depois, pergtuntou: “E a greve?” (Tapajós, 1977, p. 127-128) Nesse sentido, além de abordar de forma incomum os acontecimentos políticos que marcaram o país na época, Tapajós revela uma tendência algo visionária, prenunciando ainda no calor da hora os dilemas que os movimentos de esquerda viriam a enfrentar no período pós-ditadura:
Seu aspecto fundamental [de Em Câmara Lenta] é a discussão em torno da guerrilha urbana que eclodiu nesse período, em torno da militância política dentro das condições dadas na época (…) É, sobretudo, uma discussão em torno da contradição que se colocou para os militantes, em determinado momento, entre o compromisso moral e as opções políticas que se delineavam. (Tapajóis, 1977, p. x) Tapajós cumpre, assim, o compromisso que dele o leitor contemporâneo (aqui tomado como o leitor que busca no texto, antes, a problematização de impasses, e menos uma experiência de reconciliação – seja com o mundo, a vida ou a mulher amada) exige, qual seja, o de explicitar suas limitações e oferecer múltiplos pontos de vista – ou pelo menos reconhecer os problemas presentes no ato da representação em uma época em que valores absolutos perderam a centralidade das discussões. Para Dalcastagnè, o autor “confessa sua incompetência, explicita sua incapacidade de expressar exatamente o que quer, seus impasses e vontades, seus deslizes” (Dalcastagnè, 2005, p. 28). O esforço, imenso, envidado no ato de narrar, somado à variedade de abordagens que contemplem e acomodem os diferentes pontos de vista requeridos pelo “contrato” entre escritor e leitor contemporâneos acaba por revelar um auto ele próprio divido, quase suplantado pelas respostas que não chegam a ser formuladas. Um narrador tradicional não teria sequer tirado o sono do autor com essa questão. Manipulando, soberano, enredo e personagens, ele apresenta a sua versão dos fatos; não há espaço para indagar se algo, ou alguém, ficou de fora, calado à força do silêncio. Talvez esteja aí uma possibilidade de explicar que, ao narrar, o escritor tenta colocar ordem no caos; injetar coerência nas coisas que o cercam; ser, enfim e de modo quase paranóico, autor do mundo.
Nesse “jogo de armar”, segundo imagem recorrente do livro, o leitor entra também como produtor de sentido, como quer Benjamin: o narrador que vacila precisa de um leitor que se comprometa – e isso é natural: numa época que Hobsbawn chamou de era das catástrofes, não há mais ingênuos; temos noção exata do comprometimento ideológico do discurso, qualquer discurso; desapareceu o diálogo de peito aberto, sem desconfiança, bem como a pretensão de neutralidade. Seguimos o discurso que nos convêm, e arcamos com o ônus dessa opção. Regina Dalcastagnè afirma acertadamente que o narrador contemporâneo nos convida a tomar partido para, a seguir, mostrar a nós mesmos a nossa cara. O narrador descrito por Ian Watt em Ascenção do Romance nem sequer abriria espaço para questionamentos. Como tinha acesso a tudo e a todos, enxergava o mundo “de cima”, era dono inconteste do enredo e do destino dos personagens. Seu poder residia em saber tudo. Entretanto, nos transformamos em seres desconfiados – muito por conta da literatura, sem dúvida – e já sabemos que são diversas as instâncias e as motivações entre nós e o que é narrado. A questão do ponto de vista, central para o estudo da narrativa, ganhou relevância no século XX, quando aquele que narra “desceu” para o centro do texto, evidenciando o impasse da representação, que agora está nitidamente atrelada a enquadramentos, preferências, e ideologias. Curiosamente, a virtual ausência do narrador realista no centro da trama era justamente o que emprestava “verdade” ao narrado – e por conseguinte, ao narrador. Hoje ocorre o contrário: o escritor joga luz sobre quem fala, criando para ele um local, um contexto e, principalmente prerrogativas. Como sabe que toda obra é representação e que todo ponto de vista tem o poder de distorcer o objeto, o leitor se esforça para identificar a intermediação – “sem isso, o jogo narrativo não pode começar”, segundo Dalcastagnè (2005, p. 30). E uma vez começado, também é do jogo que os pontos de vista sejam múltiplos ou, ao menos, que se reconheça que existe, afinal, o problema da representação. A narrativa contemporânea não é mais o espaço em que a idéia de verdade é inquestionável. Mudanças sociais, históricas, políticas (as catástrofes de Hobsbawm) impulsionaram o homem a duvidar, a pressentir intenções nos discursos. Para Dalcastagnè, “ao reafirmar que o contexto social gera e alimenta as diferentes formas de expressão artística, nunca é demais lembrar que esse não é um caminho de mão única (…) Por isso, é impossível entender as transformações estéticas da literatura sem ao menos uma breve mirada em torno.” (Dalcastagnè, 2005, p.30).
Ao tirar de cena o herói clássico, as situações intrincadas e os dramas que se propõem universais e que, justamente por isso, terminam por se descolar da realidade, e ao introduzir, em uma palavra, o impasse, a narrativa de Tapajós parece apontar o foco da discussão para si mesma, buscando se questionar a partir de personagens que se aproximam do narrado e assumem postos – agora, sim – privilegiados de observação porque explicitamente comprometidos com a matéria para a qual querem, também a nós, cooptar.
Como já foi dito acima, a importância do leitor também cresceu ao longo desse movimento evolutivo do narrador e do autor. Nas palavras de Dalcastagnè,
Nunca fomos tão invocados pela literatura. É à nossa consciência que se dirigem esses narradores hesitantes, essas personagens perdidas, aguardando nossa adesão emocional ou ao menos estética. (Dalcastagnè, 2005, p. 30) As questões levantadas até aqui sobre os movimentos do narrador têm ligação direta com a maneira como Tapajós controla a passagem do tempo ao longo da ação. Benedito Nunes, em "O Tempo na Narrativa" destaca a importância de dois "tempos" que se interligam na obra literária de caráter narrativo, quais sejam, o tempo da história e o tempo do discurso narrativo - ou enredo. A história pode aqui ser entendida como um mero suporte dos acontecimentos, que são relacionados em ordem cronológica, emprestando ao conjunto um mínimo de lógica temporal e permitindo, por exemplo, que ele seja reduzido a um resumo ou a uma paráfrase. Por si só, a história não basta para que exista narrativa. Faz-se necessário que os fatos descritos de maneira episódica pela história formem uma unidade que, para além dos eventos isolados, configure a narrativa como um todo significativo - tal operação se dá pelo discurso, que é composto por uma série de enunciados interligados que ordenam as seqüências narrativas e depende, enquanto expressão da obra literária, do ato de narrar, ou seja, da voz de quem conta a história.
Nunes também assinala que "normalmente, o tempo de uma [história] corre paralelo ao do outro [discurso]" (Nunes, 2003, p 43). O que os diferencia, fundamentalmente, é o caráter pluridimensional do tempo da história, que proporciona ao autor liberdade de ir e vir, de acelerar ou retardar a seqüência de acontecimentos, abarcando períodos que vão de minutos e horas a gerações inteiras, além, naturalmente, de também se estender em várias direções seguindo o percurso dos personagens e pautando a relação entre os eventos. O discurso, por outro lado, empresta concreção à obra e, por isso mesmo, segue a concreção (e a linearidade) da escrita. Nas palavras de Todorov (e na esteira de Benveniste), citado por Benedito Nunes, "[a história] é uma figura complexa que se encontra projetada sobre uma linha reta [do discurso]".
O texto do professor Benedito Nunes também destaca o conceito de tempo físico, ou o tempo predominante no "movimento exterior das coisas", que independe da consciência do sujeito e é passível de objetividade e mensuração, em contraposição ao tempo psicológico, "a sucessão de nossos estados internos", caracterizado essencialmente pela "descoincidência com medidas temporais objetivas". No livro de Tapajós, é nítida a utilização dos dois tipos desordenação temporal: a física, para as descrições objetivas, por exemplo, dos procedimentos dos torturadores, em que Tapajós recorre a um detalhamento que beira o relato médico-legal, ou nos trechos mais centrados nas ações de guerrilha, como enfrentamentos de rua e andanças por matas fechadas:
(…) Ao chegarem perto do rio, os quatro viram os homens da Marinha de fuzil na mão e atentos a qualquer movimento no mato. (…) Tiros indicavam o vento batendo em algum arbusto ou um pequeno animal que saltava. (Tapajós, 1977, p. 151) (…) O canto de seus lábios estava rasgado e o ferimento ia até o queixo. Eles a seguravam no chão pelos braços e pernas, um deles pisava em seu estômago e outro em seu pescoço (…) O policial apertou-lhe o estômago com o pé, enquanto outro chutou-lhe a cabeça, atingindo a têmpora (…) E a psicológica, para tentar apreender a trajetória subjetiva do militante guerrilheiro que narra a ação e questiona, de maneira sôfrega e inconclusiva, o sentido dos contecimentos que se abatem sobre ele:
(…) Agora eu sei. Sei o que aconteceu com ela e sei de outras coisas também. E estou frio, frio como uma grande pedra de gelo, imóvel e pesada. Os olhos secos, a garganta seca, o corpo todo seco como se tivessem extraído todo o sangue, toda a linfa, todos os líquidos existentes. Sei que é um momento, um minúsculo momento, um intervalo e logo tudo vai explodir em mil pedaços, em mil fragementos, em cores, em fúria e desolação. Um tempo de calma tensa, essa espécie de calma morta onde tudo aparece com uma clareza impossível e que só pode terminar no fogo, no espelho estilhaçado, no gesto reprimido vindo à tona, mas até lá. Ainda uma vez olhar a parede manchada e carregar o peso, um peso maior que todos os outros porque agora eu sei. Um peso que esmaga a tal ponto que não é possível fazer nenhum movimento, nem de desespero. (Tapajós, 1977, p 156) (…) Agora eu sei. E saber não deixa mais nada além do ódio. Do ódio cristalino, do ódio que tem a força de um exército, a vontade de destruir e destruir-me junto. Caminhar por esta rua em busca de um destino, do destino conhecido que me espera além da esquina, o destino fulgurante de uma explosão, da liberação do fogo, dessa energia represada que é a soma e a fusão de todas as energias que os outros, os mortos, não tiveram tempo de empregar. (Tapajós, 1977, p 158) Esse movimento leva a um descentramento do foco narrativo, que serve para o autor se aproximar da realidade histórica que busca criticar, ao mesmo tempo em que foge do realismo tradicional, em que o narrador é senhor das ações e pode assumir uma posição externa, de observador privilegiado, com acesso a uma visão total das ações em curso. Recorremos aqui a Adorno, que em Posição do narrador no romance contemporâneo ressalta as diferenças do texto moderno em relação à tradição:
O romance foi a forma literária específica da era burguesa. Em seu início encontra-se a experiência do mundo desencantado no Don Quixote, e a capacidade de dominar artisticamente a mera existência continuou sendo o seu elemento. O realismo era-lhe imanente; até mesmo os romances que, devido ao assunto, eram considerados ‘fantásticos’, tratavam de apresentar seu conteúdo de maneira a provocar a sugestão do real. No curso de um desenvolvimento que remonta ao século XIX, e que hoje se intensificou ao máximo, esse procedimento tornou-se questionável. Do ponto de vista do narrador, isso é uma decorrência do subjetivismo, que não tolera mais nenhuma matéria sem transformá-la, solapando assim o preceito épico da objetividade. (Adorno, 2003, p. 55) No contexto considerado por este estudo - qual seja, o dos anos 70 no Brasil, época do recrudescimento da presença militar na vida cotidiana dos brasileiros, não cabe falar de valor estético total ou absoluto, e muito menos em idealização. Sendo assim, buscaremos no pensamento de Adorno indicações para possíveis encaminhamentos de análise do texto de Tapajós que podem auxiliar na determinação, inclusive, de alguns critérios de valor não convencionais. Adorno, em “Teoria Estética”, aponta para uma outra possibilidade de abordagem de textos como o que aqui se pretende analisar. Segundo o pensador alemão, tensões internas da obra de arte se articulam de forma “significativa com tensões externas”, ou seja, com o contexto social. As questões estéticas, portanto, estariam diretamente ligadas às condições de produção. É possível, de fato, delimitar uma série de tensões internas no texto de Tapajós, que poderiam se articular com as tensões do contexto social e político do Brasil dos anos 70, em que a resistência ao regime ditatorial era sistemática e cruelmente silenciada, e em que a sociedade se encontrava intensamente afetada pela violência.
A tensão com o tempo deixa o sujeito em estado de suspensão. A narrativa fragmentada pelo constante deslocamento do foco pode ser relacionada ao estado melancólico do narrador, que se encontra impotente para repor a(s) perda(s) que sofreu e para lidar com o trauma desencadeado pela tortura - fatos que a narração revela aos poucos, à medida que as variações temporais se tornam, paradoxalmente, mais intensas, e a violência descrita ganha tintas insuportavelmente carregadas. E é justamente mergulhado nesse estado melancólico, segundo Walter Benjamin, que o indivíduo é levado a refletir sobre o que lhe foi tirado e é nesse sentido que Tapajós pode encetar uma tentativa de mapear essas perdas - sofridas na luta para construir subjetividades num mundo que não mais as acomoda - e, talvez, promover um enriquecimento da experiência pela via da reflexão.
Tensões internas articuladas de modo coerente a tensões externas, uma voz de enunciação que expõe a precariedade do sujeito mergulhado em estado melancólico, fruto de ação externa autoritária e violenta. Ao imbricar esses aspectos de modo envolvente e esteticamente provocante, Tapajós aponta para a possibilidade de representar conflitos sociais de modo enriquecedor e produtivo para a reflexão sobre a expressão em regimes autoritários. Propondo um seu jogo de tensões e interrupções, o autor consegue elaborar uma representação ao mesmo tempo ética e estética de conflitos sociais, examinados até o limite da transformação do sujeito em não-eu, do humano em cadáver – como se vê na cena final da tortura, não tratada neste artigo – e pode oferecer espaço de reflexão acerca do que se presta à emancipação e à autonomia, e do que está a serviço do sufocamento desses processos em tempos de repressão.
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