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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

AS REPRESENTAÇÕES DA VIOLÊNCIA EM PARQUE INDUSTRIAL, DE PATRÍCIA GALVÃO

Larissa Satico Ribeiro Higa 1
Resumo: Este trabalho pretende discutir as representações da violência no romance proletário Parque Industrial (1933), de Patrícia Galvão. Para tal leitura, será utilizado o livro Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão (2005), que permite traçar paralelos entre a vida e a obra ficcional da autora. O artigo é dividido em três tópicos que remetem às principais violências que Pagu sofreu: a repressão policial, a opressão ao gênero feminino e as agressões cometidas pelo Partido Comunista Brasileiro.
Palavras-chave: Patrícia Galvão, autobiografia, violência, feminismo, Partido Comunista Brasileiro.
Abstract: This paper intends to discuss the representations of violence in Patrícia Galvão´s Parque Industrial (1933). Thus, one will use the book Paixão Pagu – a autobiografia precoce de Patrícia Galvão (2005), which allow us to compare the real life with the fiction of this great author. The review is divided in three topics, representing the major kinds of violence in Pagu’s life: police repression, gender oppression and the Brazilian Communist Party’s violence.
Keywords: Patrícia Galvão, autobiography, violence, feminism, Brazilian Communist Party.

1. Introdução
Patrícia Galvão, mais conhecida como Pagu, foi militante feminista e comunista, consciente de que a escrita poderia servir a um ideal, surgindo ou se dirigindo a um propósito sócio-político específico. Nesse contexto se situam suas duas principais obras literárias: Parque Industrial, escrita em 1933 sob o pseudônimo de Mara Lobo e que consiste em panfleto propaganda do Partido Comunista Brasileiro (PCB), e A Famosa Revista (1945), ferrenha crítica à stalinização do PCB, escrita com Geraldo Ferraz.
Além desses dois livros, foi publicado recentemente em 2005 pela editora Agir um texto de cunho memoralístico que Pagu finalizou no cárcere em 1940 e endereçou a seu então companheiro Geraldo Ferraz. Neste texto, percebe-se uma mulher que em meio à realidade fragmentária da Modernidade procurou incessantemente valores perenes para dar sentido à vida. A autora traça em suas memórias os primeiros momentos de devoção militante que culminaram na escrita de Parque Industrial até o que seria a maior decepção de sua vida: o conhecimento da política stalinizada do Partido, ao qual havia se doado por anos, física e moralmente de maneira extremada. O objetivo do texto confessional reside na ânsia que a autora tem de se revelar totalmente ao companheiro, sendo suas intenções nem autobiográficas propriamente ditas nem publicitárias.
Se esse livro, intitulado Paixão-Pagu – uma autobiografia precoce de Patrícia Galvão explica seus porquês em sua própria narrativa, ele também se mostra revelador ao apresentar traços marcantes da concepção literária que moveu a escritora. Por isso, um movimento de leitura que se apresenta interessante é a análise de Parque Industrial não somente do ponto de vista da importância histórica do novo gênero que inaugurou - “o romance proletário” – mas a partir das significações que muitas das passagens do romance de 33 tiveram para a vida real de Patrícia. Vida esta marcada por violências físicas e políticas.
Nesse sentido, se com a publicação de Paixão Pagu “reconhecemos pela primeira vez quantos episódios do romance saíram diretamente da vida de Patrícia” (Jackson, 2005, p. 21), o presente trabalho pretende apresentar algumas passagens de Parque Industrial em que há traços autobiográficos. Serão focalizadas as violências que a própria autora sofrera: a repressão policial, a opressão relativa à condição social da mulher e as violências exercidas constantemente pelo Partido Comunista.

2. A repressão policial
Durante toda a trajetória de sua militância comunista, Patrícia Galvão se envolveu em vários atos e manifestações anti-capitalistas e, por diversas vezes, sofreu a represália policial característica dos governos autoritários. Assim, Pagu acabou conhecida como a primeira mulher brasileira presa por motivos políticos. Esse encarceramento decorreu da participação na greve dos trabalhadores da Construção Civil em Santos, e a violência que ela e seus companheiros sofreram na ocasião ficou marcada nas memórias, sendo assim narrada em Paixão Pagu:
Ocupei-me demais com o companheiro, vítima de espancamento brutal em minha presença. A revolta e a reação contra essa atitude da polícia impediram-me de pensar em minha situação. Aos meus protestos, respondeu com brutalidade o delegado de plantão Sales Pacheco, o que foi esbofeteado por mim nesse momento de indignação. Contra mim, não houve reação física (Galvão, 2005, p. 84).
O enfrentamento policial e a crítica à repressão também são marcas de Parque Industrial. A violência vem exposta principalmente nas cenas em que há manifestações grevistas, como no capítulo Habitação Coletiva, em que “As espadas dos cavalarianos gargalham nas costas e nas cabeças dos trabalhadores irados” (Galvão, 2006, p. 87). Assim, a polícia é retratada como representante do aparelho estatal burguês e assassina os trabalhadores organizados tal como havia exterminado anteriormente a revolucionária Rosa Luxemburgo.
Além dos embates físicos diretos, outro aspecto da repressão a que Pagu faz alusão em ambos escritos é a questão da deportação e do desterro. De acordo com Pinheiro (1991), a prática do desterro (o deslocamento de cidadãos “subversivos” ou “perigosos” para colônias longínquas) foi iniciada no Brasil com a repressão à Revolta da Vacina (1904). Ao longo do tempo o desterro foi se legitimando e no governo de Arthur Bernardes (1923-1926) a punição já não era exercida no país apenas em Estado de Sítio. Além do desterro para os brasileiros, também a prática da deportação se intensificou no governo Vargas, uma vez que os trabalhadores estrangeiros foram responsabilizados pela introdução no Brasil das idéias progressistas que incendiaram o cenário político da primeira metade do século XX.
Tais práticas foram observadas de perto por Pagu e podem ser constatadas quando a autora relata em Paixão Pagu a repressão ocorrida após um comício do Comando Vermelho: “Soube então que os companheiros presos não estavam na imigração, mas espalhados em diversas delegacias, esperando ser deportados, como já tinham sido outros, para Montevidéu.” (Galvão, 2005, p. 92). Já em Parque Industrial, esse tipo de represália policial é retratado tanto quando Otávia é exilada para a colônia de Dois Rios, quanto quando Rosinha Lituânia, após ser delatada por Pepe, é mandada de volta à Europa. O ápice da violência policial em Parque Industrial reside, no entanto, no assassinato do militante negro Alexandre:
Um atropelo de recuo. Uma garota trágica desaba em vertigens histéricas. O pelotão divide e cerca lentamente a massa inquieta. Mas os investigadores policiais invisíveis penetram na multidão e se aproximam do gigante negro que se incita à luta, do coreto central, a camisa sem mangas. Ao seu lado, um proletário que tem no peito cicatrizes de chibata, detém a bandeira vermelha.
- Soldados, não atirem contra seus irmãos! Voltem as armas contra os oficiais
Detonaram cinco vezes. Correm e gritam. O gigante cai ao lado da bandeira ereta.
O corpo enorme está deitado. Levanta-se mal para gritar rolando a escada.
Grita alguma coisa que ninguém ouve mas que todos entendem. Que é preciso continuar a luta. Caia quem cair, morra quem morrer (Galvão, 2006, p. 114).
A passagem nos remete à participação de Pagu na manifestação em tributo a Sacco e Vanzetti2, em que é morto seu admirável amigo e militante partidário Herculano. As semelhanças entre a cena fictícia e a real se dão também pela existência em ambas do pedido aos policiais para não investirem contra os trabalhadores – em Parque Industrial: “- Soldados, não atirem sobre seus irmãos! Voltem as armas contra os oficiais!” (Galvão, 2006, p. 114) e em Paixão Pagu: “Foi Maria quem falou aos soldados, tão magnificamente, que os militares recusaram-se a agir contra os trabalhadores” (Galvão, 2005, p. 89) – e da presença dos filhos de Herculano e Alexandre. A morte de Herculano, “o responsável pela pronta adesão [de Pagu] ao partido” (Freire, 2008, p. 82), foi cena marcante e é narrada na Autobiografia:
Mal tinha começado, quando se ouviram os primeiros tiros. Não podendo ou temendo romper a autodefesa para impedir o discurso, a polícia atirava na multidão, para que ela se dispersasse. Victor, um dos elementos da autodefesa, foi atingido. Vi que cambaleava, ferido. Depois, nada mais se entendeu. Alguns policiais estavam vestidos como operários. Eu não mais distinguia os indivíduos da polícia, a não ser pelas armas disparando.
O investigador que nos teria atingido caiu sob o peso de Herculano. Ficou ali, largado. Hoje, empregado honorário da polícia, ainda carrega o braço inútil e o ombro retorcido.
Senti depois a mão de Herculano me arrastar violentamente. Depois o colosso negro tombando: levara um tiro nas costas. Pouca gente, então, na praça. O último policial sumindo na esquina. Herculano com a cabeça em meus joelhos. Depois, sentou-se, olhou-me dizendo: ‘Agora está começando a doer um pouquinho...’. Depois, as suas últimas palavras: ‘Continue o comício! Continue o comício!’ Andou até o automóvel, não havia mais Herculano. E continuamos o Comício (Galvão, 2005, p.88-89).
Além de ter perdido o estimado companheiro, Pagu foi presa e reprimida verbalmente pelo próprio PCB que, considerando suas atitudes individualistas e pequeno-burguesas, a fez assinar um documento contra sua própria imagem, em que se declarava “uma agitadora individual, sensacionalista e inexperiente”. Essa seria “a primeira decepção de Pagu com o Partido Comunista” (Freire, 2008, p. 96).

3. A opressão de gênero
Se o período de embate com a polícia consistiu principalmente nos anos em que militou ativamente no Partido, Pagu sofreu, por toda vida, a opressão social relativa ao gênero feminino. O combate ao machismo sempre foi, portanto, bandeira de sua militância. Assim, sendo comunista, Pagu deu para o feminismo um recorte classista, fazendo o crítico Risério (1987, p. 20) afirmar que: “Pagu quer vincular as reivindicações feministas a uma postura transformadora mais global. Que eu saiba, é a primeira vez, entre nós, que uma mulher critica o feminismo em nome do materialismo histórico...”. Nesse sentido a critica às feministas burguesas aparece em Parque Industrial no capítulo “Paredes Isolantes”, em que Pagu se posiciona contra as sufragistas que reivindicam direito de voto às mulheres alfabetizadas.
No entanto, a forma mais sutil de machismo por ela delatada em Parque Industrial é a hierarquização e a divisão sexual do trabalho nas fábricas, já que segundo Daniel (1994, p. 99), “nearly all the loom and finishing workers at the factory are women, while the supervisors and the mechanics are men” – o que permitia que muitas mulheres fossem humilhadas e abusadas sexualmente por seus supervisores: “Acabam de me despedir da Fábrica, sem uma explicação, sem um motivo. Porque me recusei a ir ao quarto do chefe.” (Galvão, 2006, p. 105). Essa passagem, que ilustra no romance proletário um acontecimento com a personagem Matilde, é uma realidade daquela época que Pagu conhecia muito bem, uma vez que durante seu processo de proletarização, exigido pelo PCB, compôs as fileiras de produção de algumas fábricas.
No romance proletário, o abuso sexual não se dá, porém, apenas na esfera do ambiente fabril, mas também fora dele, já que os burgueses de automóvel vão para o Brás para seduzir as moças da classe trabalhadora e com elas manterem relações sexuais. Nesse processo, Pagu deixa evidente sua proclamação contra a coisificação da mulher. Opõe-se, assim, à condição na qual ela própria mostra ter estado, pois durante toda a autobiografia relata ter sido abordada com investidas sexuais masculinas. Tal fato leva seu amigo Cirilo a lhe afirmar: “Quando você passa na rua, todos os homens te desejam. Você nunca despertará um sentimento puro”. (Galvão, 2006, p. 59).
Na obra ficcional, a violência contra a mulher chega a níveis mais extremos de barbárie, havendo investidas físicas contra as mulheres, sejam elas de espancamento (quando Florino agride costumeiramente a mãe de Corina) ou de estupro, cujo ato é apresentado no livro duas vezes: no momento em que Alfredo tira a virgindade de sua noiva Eleonora e quando, no capítulo Paredes Isolantes, um burguês se gaba para o outro da violência cometida:
- Pois olhe, eu tive uma aventurinha essa semana. Umas garotas que nós acompanhamos, sábado de tarde. Lembra? A diaba não queria saber. Nem automóvel, nem dinheiro. De noite chamei o Zezé e fomos assaltar a casa aí na rua do Arouche. Ela mora com a dona do atelier. As duas sozinhas... Foi um susto dos diabos. Pensaram que era gatuno. Também o Zezé fez uma cena de faroeste, revólver, lenço preto... Eu agarrei a pequena na cama... Virgenzinha em folha... (Galvão, 2006, p. 74)
Uma outra questão feminista discutida nas duas obras é o aborto. Em Paixão Pagu, a autora explicita ter passado por essa situação por duas vezes, primeiro quando estava grávida de Olympio Guilherme (um homem casado que a abandonara) e o segundo, involuntário, do filho que teria com Oswald. O primeiro aborto contém enorme carga dramática: “O ladrilho pegajoso nos lábios. O que fazer de tanto sangue? Todo o corpo se deformando. Se desfazendo na angústia. O sangue ostensivo entre os dedos, cabelos, olhos, os coágulos monstruosos entupindo tudo. Como livrar a vida dessa noite?” (Galvão, 2005, p. 55). O segundo, a perturbadora presença de um bebê já formado: “Quando consegui sair do rio, já noite, todo o mal estava feito. Ainda a caminhada até em casa, as dores, a roupa molhada. Fui para a maternidade. Todos os brinquedos que já havia comprado. O cadaverzinho.” (Galvão, 2005, p. 61).
As experiências de Pagu parecem convergir para a criação do aborto da personagem Corina, na mais chocante cena do romance de 33:
Lá no fundo das pernas um buraco se avoluma descomunalmente. Se rasga, negro. Aumenta. Como uma goela. Para vomitar de repente uma coisa viva, vermelha.
A enfermeira recua. A parteira recua. O médico permanece. Um levantamento de sobrancelhas denuncia a surpresa. Examina a massa ensangüentada que grita sujando a colcha. Dois braços magros reclamam a criança
- Não deixe ver!
- É um monstro, sem pele e está vivo.
- Esta mulher está podre.
Corina reclama o filho constantemente. Tem os olhos vedados, o chorinho do monstro perto dela... (Galvão, 2006, p. 64-65)
O filho de Corina nasce “vivo”, mas sem pele, fato que leva a mãe a ser acusada de assassinato e à prisão. A questão da culpa também está presente claramente em Paixão Pagu, quando Patrícia afirma:“ um dia matei a criancinha” (Galvão, 2005, p. 61).
Tem-se, por fim, como mostra da condição social a que as mulheres têm de se submeter em nossa sociedade, a questão da prostituição. No romance, a vida levada por Corina e os momentos em que a personagem vaga pela cidade de estômago vazio explicitam a violência que muitas mulheres sofrem em nosso país de capitalismo periférico. Em Paixão Pagu a questão da prostituição vivenciada pela autora é mais complexa e entra no âmbito das violências impostas pelo PCB. Nesse sentido, antes de abordarmos mais a fundo essa questão, é válida a explicação geral da conturbada relação da militante com o Partido Comunista Brasileiro.

4. A violência do Partido Comunista Brasileiro
De acordo com os relatos feitos em Paixão Pagu, Patrícia Galvão, apesar de ter morado no Brás por 16 anos, só teve sua atenção voltada à causa dos trabalhadores quando, aos 20, viajou para a Argentina e teve contato com as idéias marxistas. Depois de muito estudar, Pagu sentiu a necessidade da militância orgânica e encontrou no Partido um importante meio para tal. Porém, já na década de 30 a linha política geral do PCB era a de Stálin e, se num primeiro momento a autora fez tudo o que pôde para ser aceita na Organização, uma vez que estava “iludida” com ela, num momento posterior irá criticar severamente a política stalinista.
O primeiro foco de tensão entre Pagu e o Partido foi a origem pequeno-burguesa da militante. Na época, o PCB era regido pela tática stalinista de “classe contra classe”, que havia ganhado o VI Congresso da Internacional Comunista e que exigia a proletarização dos militantes intelectuais, não podendo estes possuir nenhuma ligação com a burguesia, por ela representar vínculo político com a direita reacionária (Pinheiro, 1991). Nesse contexto, a direção do PCB exigiu que Pagu se proletarizasse e vetou que durante a militância escrevesse para os jornais “Agência Brasileira” e “Diário da Noite”. A Organização alegava: “Nada de jornal, nada de trabalho intelectual. Se quiser trabalhar pelo Partido, terá de assumir sua proletarização” (Galvão, 2005, p. 96).
Para provar a sinceridade da militância aos olhos da direção partidária, Patrícia foi procurar trabalho numa agência, em que os futuros patrões iam escolher o “melhor escravo” (Galvão, 2005, p. 96), ocasião em que Pagu relata “Apesar de todo meu querer, senti-me terrivelmente humilhada...” (Galvão, 2005, p. 96). Finalmente, conseguiu um posto na indústria metalúrgica, onde ficou por três dias, o suficiente para agradar a Direção e ser convocada para a Conferência Nacional do mesmo. Nesse evento, a humilhação é explicitada novamente, pois ao invés de poder assistir à Conferência, Pagu foi designada para o posto de sentinela: “Eu me sentia humilhada pelo meu abatimento físico e fazia esforços medonhos para não deixar transparecer o meu cansaço” (Galvão, 2005, p. 102).
Além dessa desconfiança que a direção do Partido tinha das origens sociais de Pagu, a militante sofreu também quando a Organização desconfiou da conduta política de Oswald de Andrade e determinou, no final de 1931 o afastamento de seu então companheiro. A violência da separação forçada é intensificada quando Pagu tem de se separar também de seu filho Rudá, o que é assim narrado em Paixão Pagu:
Exigiam minha separação definitiva de Oswald. Isto significava deixar meu filho. A Organização determinava a proletarização de todos os membros. Eu não era ainda membro do Partido Comunista. O preço disso era o meu sacrifício de mãe. Ainda havia condições mais acentuadas. Oswald era considerado elemento suspeito por suas ligações com certos burgueses, e eu teria que prescindir de toda e qualquer comunicação com ele e, portanto, resignar-me à falta de notícias de meu filho (Galvão, 2005, p. 95).
Interessante notar que em Parque Industrial, o mesmo ocorre com a personagem Otávia, que rompe com o companheiro Alfredo, acusado de ser burguês trotskista infiltrado na Organização dos trabalhadores. De acordo com Jackson (1987, p. 288), “Alfredo Rocha, o único personagem masculino é descrito no romance a partir de Oswald de Andrade e talvez a única visão ficcional desse importante escritor modernista”. As acusações tecidas a esse personagem e o posterior término de relacionamento com Otávia são assim narrados:
Otávia está gelada. Os acusadores apontam fatos inflexíveis. Desvios. Personalismos. Erros. Todos a fitam diante das provas concretizadas. É verdade. Alfredo se deixara arrastar pela vanguarda da burguesia que se dissimula sob o nome de “oposição de esquerda” nas organizações proletárias. É um trotskista. Pactua e complota com traidores mais cínicos da Revolução social”
-Todos os camaradas sabem que ele é o meu companheiro. Mas se é um traidor, eu o deixarei (Galvão, 2006, p. 112).
Mesmo depois do afastamento da família e do adoecimento em decorrência dos exigidos trabalhos braçais, Pagu “nunca [foi] reconhecida como uma verdadeira comunista” (Freire, 2008, p. 74). Prova disso foi que em 1932, com a política de depuração e expulsão dos burgueses de dentro do PCB, Pagu foi afastada. Nesse momento, resolve militar intelectualmente à margem e escreve Parque Industrial. Apesar de ter condenado a obra literária, o PCB voltou a convocar Pagu para ingressar no serviço secreto do Comitê Fantasma, um organismo da Internacional Comunista no Brasil. É durante esse estágio que se intensifica sua desilusão com a Organização. Fazendo um trabalho que não podia ser divulgado e mantendo contato com o Partido apenas através de um mediador, CM11, Pagu é exposta à maior barbárie cometida por sua direção: o pedido de sua prostituição. Para conseguir informações secretas, CM11 insinua que Pagu mantenha relações sexuais com o detentor das mesmas: “- Você não parece inteligente...- e, depois um silêncio. Na cama, ele dirá tudo e você terá o que quiser!” (Galvão, 2005, p. 126).
Apesar de apresentar inicial resistência, Pagu acabou se convencendo mais uma vez de que as causas do Partido estavam acima de qualquer coisa, e sucumbiu aos apelos da direção. A situação agonizante é assim narrada em Paixão Pagu:
Eu tinha consciência sim de que estava me prostituindo e parecia-me que não era obrigada a isso. Uma palavra só e tudo terminaria ali. Mas eu me deixava levar sem coragem para reagir. Qualquer coisa me imobilizava e sentia que me deixava arrastar pela impotência. Gritava mentalmente contra minha inutilidade e minha falta de resistência. Ridicularizei intimamente o que queria fazer passar por fatalidade. Eu me deixava arrastar estupidamente e continuei (Galvão, 2005, p. 113).
Após essa máxima violência da direção do PCB, Patrícia ainda não conseguiu se desligar da Organização, pois a prendia a idéia de que a luta comunista estava começando no Brasil e que sua ajuda seria necessária nesse processo. Pagu pediu, no entanto, desligamento do Comitê Fantasma e sua incorporação a uma célula de trabalho. O pedido foi então recusado, pois CM11 julgou que Patrícia estava doente e precisava de uma viagem para descansar. Durante essa viagem, visitou a China e a União Soviética, entre outros lugares, e teve tempo de pensar mais claramente sobre sua militância e perceber as contradições que envolviam o funcionamento do Partido. O último parágrafo de Paixão Pagu é sintomático das críticas que Pagu tecerá contra Stálin num momento posterior. Enquanto está na Rússia, presencia uma manifestação stalinista e comenta ironicamente, ao reconhecê-lo: “lá adiante, na tribuna, no seio da juventude em desfile, o líder supremo da Revolução. Stálin, o nosso guia. O nosso chefe” (Galvão, 2005 p. 150).

5. Conclusão
A publicação do livro Paixão Pagu - a autobiografia precoce de Patrícia Galvão deu novo fôlego aos estudos literários sobre essa escritora brasileira. Além de fornecer mais subsídios para resignificar a imagem da musa modernista e militante aguerrida, a autobiografia oferece dados históricos e pessoais que permitem a releitura das obras ficcionais de Pagu, o que reforça a idéia de que para a artista vida e obra eram inseparáveis.
Desse modo, pudemos constatar algumas passagens da vida de Pagu presentes em Parque Industrial. Tais momentos, marcados pela violência, são decorrentes do que Teresa Freire chama de primeira companheira de Pagu: a solidão, no sentido de que a autora foi incompreendida pelos diversos seguimentos sociais de que fez parte. Como militante comunista, sofreu abusos das forças conservadoras estatais. Como feminista, foi recusada e sofreu agressões do Partido Comunista Brasileiro. Essas constatações nos reiteram a idéia de que Pagu era uma mulher à frente de seu tempo tanto política quanto artisticamente e que, por isso, sofreu as conseqüências de sua ousadia.
Novos estudos sobre Pagu, como o da própria Freire, estão sendo feitos sob a perspectiva que nos traz a autobiografia, e é preciso que esse caminho continue sendo traçado. É necessário concretizar Pagu em nossa memória histórico-literária não só para fazer justiça a sua importância, mas para que nos inspiremos, nós mesmos, em sua coragem.

Referências Bibliográficas

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DANIEL, M. L. Life in the Textile Factory: Two 1933’ Perspectives. Luso Brazilian Review. Vol. 31, No. 2, Winter, 1994, pp.97-113. University of Wisconsin Press, 1994.
FREIRE, T. Dos escombros de Pagu – um recorte biográfico de Patrícia Galvão. São Paulo: Editora Senac e Sesc Edições, 2008.
GALVÃO, P. Paixão Pagu – A Autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
_____. Parque Industrial. Rio de Janeiro: Ed. José Olímpio, 2006.
JACKSON, K. D. A fé e a ilusão: o caminha de Paixão e Pureza de Patrícia Galvão. In: GALVÃO, Patrícia. Paixão Pagu – A Autobiografia precoce de Patrícia Galvão. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
_____. Patrícia Galvão e o realismo-social brasileiro dos anos 30. In: CAMPOS, A. Pagu vida-obra. Campinas: Brasiliense, 1987.
PINHEIRO, P. S. Estratégias da Ilusão: A Revolução Mundial e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
RISERIO, A. Pagu: Vida-Obra, Obravida, Vida. In: CAMPOS, A. Pagu vida-obra. Campinas: Brasiliense, 1987.


1 Bacharel em Letras pela Universidade Estadual de Campinas. E-mail: larissahg@gmail.com
2 Niccola Sacco e Bartolomeu Vanzetti foram dois imigrantes italianos presos e condenados a morte nos EUA ao serem acusados de um crime que eles não cometeram. A culpa deles residia no fato de serem anarquistas.

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