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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

ESCRITAS DA VIOLÊNCIA NO EU, DE AUGUSTO DOS ANJOS

Maria Olívia Garcia R. Arruda1
Resumo: Este trabalho apresenta a conclusão de uma leitura da camada mais profunda do Eu, de Augusto dos Anjos, e ao mesmo tempo o estudo da relação intertextual entre o discurso dessa obra e a de Rui Barbosa, Ruínas de um Governo, pontuando no que ambas apresentam em comum: a denúncia dos acontecimentos envolvendo a violência das torturas e assassinatos cometidos por representantes do Exército Brasileiro, como repressão infligida aos marujos sublevados e anistiados da Revolta da Chibata, logo após o início do governo de Hermes da Fonseca, em fins de 1910. Devido a um processo de ocultamento e de silenciamento da verdade, Augusto dos Anjos teve sua imagem um tanto distorcida, o que o comprovam alguns biógrafos e amigos do poeta, e ficou relegado a um segundo plano em nossa literatura, embora seja o grande autor da elegia lírico-dramática de nossa civilização.
Palavras-chave: Augusto dos Anjos, Rui Barbosa, Revolta da Chibata, Hermes da Fonseca, violência.
Abstract: This paper presents the conclusion of a reading of the layer deeper than I, of Augusto dos Anjos, while studying the intertextual relationship between the discourse of this work and Rui Barbosa, Ruins of a government, pointing out that both have in common: a denunciation of the events surrounding the violence of torture and murder, committed by representatives of the Brazilian Army, as the repression inflicted damn crew insurgent amnesty and the swish of uprising, soon after the start of the government of Hermes da Fonseca, at the end of 1910 . Due to a process of concealing and silencing the truth, Augusto dos Anjos has had his image somewhat distorted, which is shown some biographers and friends of the poet, and was relegated to the background in our literature, although the author's great tragic-lyrical elegy for our civilization.
Keywords: Augusto dos Anjos, Rui Barbosa, Revolta da Chibata, Hermes da Fonseca, violence.

1. Introdução
A poesia, muitas vezes, não só é a linguagem da crise e da opressão, mas é a própria crise refletida na ótica sensível do poeta. Nesses momentos as alegorias e metáforas podem conter em seu âmago as palavras de denúncias que não devem ou não podem ser ditas, sob pena de censura ou de aniquilação total da voz que contradiz a versão oficial dos fatos.
Dentre as formas de “produção de efeito-ilusão-Brasil” mais utilizadas neste país na ocorrência de lutas sociais e guerras culturais, conforme Hardman (2004, p. 67-68), estão: “o modo monumental, o elegíaco e o delével.” Nesta última, encontram-se “as intervenções violentas de indivíduos, grupos e/ou políticas públicas no sentido do silenciamento completo de vozes ou línguas diferentes do monolingüismo do Estado e de seus porta-vozes.” Aqui entram também os procedimentos sutis – ou nem sempre – utilizados para o apagamento desses fatos e nomes que não convêm, segundo a classe dominante, ficar na memória coletiva.
Extinção de florestas, massacre dos indígenas, dos marginalizados, abuso cometido pelos senhores de escravos, enfim, acontecimentos que passaram para a História oficial como necessários à colonização, ao progresso, ao bem-estar comunitário, ou à manutenção da República merecem ser reavaliados “a contrapelo”, para que outras versões sejam igualmente conhecidas.
Pretendemos mostrar, neste trabalho, como o Eu e outras poesias, de Augusto dos Anjos, se inscreve nessa linha de escrita da violência, pois o poeta a denuncia nos atos bárbaros contra os indígenas do norte e nordeste, em nome da colonização, na exploração dos escravos da zona açucareira da Paraíba e, particularmente, nas torturas infligidas, mesmo após a anistia, aos marujos que encabeçaram a Revolta da Chibata, no Rio de Janeiro, em 1910, trazendo, nas entrelinhas, sentidos diferentes daqueles divulgados pela versão oficial dos fatos.

2. O “Eu” e o “Poeta da Morte”
Mais conveniente fora construir uma imagem do “Poeta da Morte”, doente e tuberculoso (o que Augusto nunca foi), para ocultar a grande lucidez do seu livro que chegou como uma carniça lançada no centro dos salões da elite da Belle Époque carioca, que ainda se deliciava com a poesia parnasiana muitas vezes feita de encomenda para os que apadrinhavam os poetas dos salões.
Foi magro meu desventurado amigo, de magreza esquálida – faces reentrantes, olhos fundos, olhos fundos, olheiras violáceas e testa descalvada. A boca fazia a catadura crescer de sofrimento, por contraste do olhar doente de tristura e nos lábios uma crispação de demônio torturado. Nos momentos de investigações suas vistas transmudavam-se rápido, crescendo, interrogando, teimando. (Soares, 2004, p. 60)
Na busca de compreender os sentidos da camada mais profunda do texto, foi que encontramos fragmentos de Ruínas de um governo, de Rui Barbosa, nos versos do Eu, às vezes com as mesmas palavras, outras com sinônimos, mas sempre com o mesmo sentido das expressões utilizadas por Rui.
Bastaria, para encontrar essa intertextualidade com o discurso de Rui que denuncia as arbitrariedades ocorridas por ocasião da Revolta da Chibata, em 1910, no Rio de Janeiro, um cotejo com trechos de Moacir Costa Lopes, ou com os depoimentos do próprio João Cândido a Edmar Morel e a Hélio Silva, que seria possível perceber as marcas desses discursos implícitas nos versos de Augusto.
Os textos de Rui são particularmente importantes por apresentar metáforas muito próximas às utilizadas pelo poeta do Eu: a metáfora da carniça, do lixo e da podridão, para representar um mundo em decadência e decomposição, no qual estaria germinando a nova humanidade, os “homens do futuro” que, conforme a utopia romântica, seriam melhores e mais evoluídos, portanto aptos a construir um mundo mais humano e justo, baseado nos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. O poeta invoca, no início desse poema lírico-dramático (que seria a forma de expressão do nosso trágico moderno, conforme Hardman), a figura de Ésquilo, pois irá, como ele, cantar a dor da tragédia dos vencidos, a dor daqueles que vieram e continuam a vir a este mundo para desempenhar o papel da vítima sacrificial, do “bode expiatório”, como fala René Girard, a fim de assegurar por um tempo a vida relativamente pacífica de uma comunidade, até a necessidade de ser substituído por uma nova vítima, que repetirá o mesmo percurso até a morte.
É na correspondência de Augusto dos Anjos que encontramos referências aos discursos proferidos na Campanha Civilista à Presidência da República, merecedoras de elogios por parte do “poeta da morte”. Mas poeta da morte de inocentes, de fatos presenciados por ele no primeiro ano de sua chegada ao Rio de Janeiro, vindo praticamente expulso da Paraíba, como ele também registra em sua obra por mais de uma vez. E é essa intertextualidade que pretendemos mostrar aqui.
Augusto rasga as cortinas do palco onde se encenava o processo de “civilização e progresso” e arranca as máscaras de seus protagonistas. “O Egito é um presente do Nilo” – frase comum na época. Em Uma noite no Cairo, Augusto faz alusão aos conchavos políticos que aconteciam na calada da noite e que culminaram na eleição forjada de Hermes da Fonseca à Presidência da República, resultado das concessões feitas por Nilo Peçanha. “Cairo” era metáfora muito utilizada pela imprensa na época, para indicar a sede do governo federal no Rio de Janeiro, porque a política, ali, era uma mercadoria de compra e venda. O palácio do governo era o lugar dos mercadores.
E “os mastins negros” iam “ladrando à lua”. E era “em derredor duma ampla mesa preta/ - última nota do conúbio infando “ que os negócios do país eram resolvidos. Em torno dela, viam-se “dez jogadores de roleta / fumando, discutindo, conversando”. Foi no governo Hermes da Fonseca, portanto, que esse hábito do governo paralelo que se perpetua em nossa república tomou forma como poder clandestinamente constituído.
Esse “eu” de que fala Augusto, pode ser lido, segundo Hardman (2004, p. 76), como uma “elegia à civilização humana”. Em Gemidos de Arte, encontramos a idéia de “uma inexorável decadência da vida e do espírito”, também conforme Hardman (2004, p. 76). Observemos os versos: “Os pães – filhos legítimos dos trigos - / nutrem a geração do Ódio e da Guerra... / Os cachorros anônimos da terra /são talvez meus únicos amigos!” (Anjos, 2004, p. 261). É a ameaça do materialismo capitalista, já pressentida pelo poeta, que invertia os valores tradicionais.
E Augusto sente a dor da humanidade oprimida pelos que detinham as riquezas, tanto que lamenta: “E vem-me com um desprezo por tudo isto / uma vontade absurda de ser Cristo / para sacrificar-me pelos homens!” (Anjos, 2004, p. 262). Por haver sofrido pessoalmente a dor da perseguição, do desemprego, da luta pela sobrevivência, do desamparo e do desterro, o poeta deseja construir para todos os que com ele vêm a este mundo com a sina de reviver a vítima do sacrifício “uma região onde não cuspa língua alguma / o óleo rançoso da saliva humana!” Que seja ela um lugar “sem nódoas e sem lixos, / subtraída à hediondez de ínfimo casco, / onde a força feroz coma o carrasco / e o olho do estuprador se encha de bichos!” (Anjos, 2004, p. 262).
Enfim, encontrar um espaço em que a justiça impere, aquele “metafisicismo de Abidarma” de que fala a Sombra na abertura do “Eu”, um lugar onde “o braço do ladrão se paralise / e a mão da meretriz caia aos pedaços!” (Anjos, 2004, p. 262).
Através de alegorias e imagens simbolistas e laivos de decadentismo, com uma linguagem que mistura o vocabulário científico da época – o que lhe dá, portanto, voz de autoridade – com algo do drama barroco alemão, sua poética tem características de romantismo e um certo niilismo-anarquista, próprio daquele fim-de-século.
Ainda para Hardman (2004, p. 70), há nessa obra conotações de um protesto contra a civilização do capital e do valor útil das coisas, contra a arrogância e o complexo de superioridade do ego ocidental burguês.

3. O abusivo processo de colonização ocidental
A visão de todas as desgraças impostas pelo colonizador branco aos índios aparece em Os doentes. O índio, subjugado e levado à miscigenação por esse colonizador, agora constitui uma “raça doente”. Sem piedade alguma, “a civilização entrou na taba / em que ele estava. O gênio de Colombo / manchou de opróbrios a alma do mazombo, / cuspiu na cova do morubixaba!”
O nativo, então, “adstrito à étnica escória, / recebeu, tendo o horror no rosto impresso, / esse achincalhamento do progresso / que o anulava na crítica da História!” Então o poeta, “de repente, acordando na desgraça, / viu toda a podridão de sua raça... / na tumba de Iracema!” E sentia sobre ele toda a maldade, “desde o desbravamento da floresta / à ultrajante invenção do telefone.” Em nome da colonização e depois do progresso e da civilização, os estrangeiros aqui vieram, cometeram o horrendo genocídio, usurparam as terras dos nativos, impuseram-lhes a própria cultura sem o menor respeito à deles, destruíram a natureza e, com o avanço tecnológico, esses desmandos não teriam mais fim.
“Contra a pretensão do “Homo Sapiens”, ele nos presenteia com o seu “Homo infimus”, afirma Hardman (2006, p. 8) a respeito do Eu, considerando Augusto dos Anjos um dos mais importantes poetas de nossa modernidade.
Augusto, ciente do que seria o confronto entre duas culturas completamente distintas como a dos nativos e a dos “civilizados”, que também significou o contraste entre regiões afastadas das metrópoles que concentravam todo o movimento de expressão cultural, exprime o sentimento de desterro da própria terra, de ser inferior na “crônica do mundo”. Estariam aqueles descendentes dos indígenas fadados a carregar por gerações o preconceito de “raça inferior”, portanto o que o futuro lhes reservaria era um povo que “tombaria agonizante / na luta da espingarda contra a flecha”. Seria sempre a luta da tecnologia mais desenvolvida contra os menos preparados, como foi o caso da perda do primitivo engenho de açúcar para os que haviam já introduzido o engenho a vapor.
E agora, ao invés de se ver uma “prisca tribo” ou uma “indiana tropa”, apenas é possível visualizar, com espanto, “a caveira abandonada / de uma raça esmagada pela Europa!”
Em fins de 1910, no Rio de Janeiro, logo que Hermes da Fonseca assume a presidência numa vitória forjada, pois o povo votara maciçamente em Rui Barbosa, candidato civilista, ocorre a Revolta da Chibata. Os marinheiros amotinados atiravam em direção à cidade do Rio de Janeiro e Augusto, recém-chegado àquela capital, ficou bastante impressionado com os fatos, pois teve até que pedir abrigo em casa de conhecidos, em outro bairro, porque ele e Ester moravam em uma pensão bem em frente ao local onde ocorria o tiroteio.

4. Uma República prostituída
Rui Barbosa, em Ruínas de um Governo, diz a respeito dos conchavos políticos daquele ano: “Com a alma vendida ao diabo neste pacto ostensivo de prevaricação, essa magistratura de compadres elegeu a sua criatura, o seu parceiro na contenda, o seu associado sob o patrocínio maquiavélico e mefistofélico do caudilho Pinheiro Machado” (Barbosa, 1931, p. 17; grifos nossos). Vende-se a “alma ao diabo” em cerimônia de “negra eucaristia”, e esta se faz presente em Os doentes, de Augusto dos Anjos, cujos versos nos remetem a uma intertextualidade entre esses dois discursos.
Nesse poema, encontramos um trecho que estabelece uma conexão com o trecho de Rui – “a alma vendida ao diabo”, que surge, nos versos augustianos, como “aquilo era uma negra eucaristia”, ritual em que se oferece a alma ao demônio. Ou então era a “grei dos ébrios da urbe” que “festejava seu sábado de infâmias”. Era a “estática fatal das paixões cegas” que “puxava aquele povo de demônios / para a promiscuidade das adegas” (Anjos, 2004, p. 320). Era comum, naquela época, revistas como Careta e Fon-Fon! estamparem charges em que a alegoria da “meretriz” ou da “prostituta” representavam a República ou a Política e os vocábulos “prostituição” e “prevaricação” eram utilizados por “corrupção”, ou como diz também Augusto: o “conúbio infando” (Uma noite no Cairo).
Em vários poemas aparecem esses termos como metáforas dessas ligações em troca de dinheiro ou benefício, como em As cismas do destino: “Prostituição ou outro qualquer nome, / Por tua causa, embora o homem te aceite, / É que as mulheres ruins ficam sem leite /E os meninos sem pai morrem de fome!” (Anjos, 2004, p. 217).
No dia 12 de maio de 1909, foi lançada a candidatura do Marechal Hermes da Fonseca à presidência da República, mas no dia 14 ele assinou a renúncia à sua candidatura, fazendo, assim, um jogo político para se eleger posteriormente. Esse fato circulou na imprensa como “a mentira de maio”, à qual Rui Barbosa faz alusão, como a geradora de uma “família inumerável de parasitas” (Anjos, 2004, p. 21). O eco em Augusto está em trechos como “Aquela humanidade parasita / como um bicho inferior, berrava, aflita [...]” (Anjos, 2004, p. 216).
A MENTIRA MÃE

A mentira é infinitamente multípara. Os seus germes, uma vez postos em contato com um meio favorável, multiplicam-se aos milhões, como esses micróbios invisíveis, que nos envenenam a água e o ar, o pão e o sangue. (Barbosa, 1931, p. 17-18; grifos nossos).
A PROLE DA MENTIRA DE MAIO

A mentira de maio gerou essa família inumerável de parasitas, cuja história traçamos de antemão na campanha de 1910. (Barbosa, 1931, p. 21).
No Eu há o poema Mater originalis (Anjos, 2004, p. 227), que nos permite várias interpretações, desde a mais simples, que seria a base da teoria monista, em que tudo provém origem na “mônada primordial”. Porém, num mergulho mais profundo nesse discurso, é possível – no percurso de leitura do trágico que seguimos e que aqui não é possível abordar – encontrar um sentido que corresponda à “mãe original da mentira”, “Mãe original das outras formas”, uma vez que, dessa “mentira de maio” tantas outras falácias surgiram disfarçadas de verdade nos governos de Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca.
E é ainda a falsidade da política na República que faz desta “uma mulher de luto” que canta a canção promíscua da mentira, pois “O Estado, a Associação, os Municípios/ eram mortos. / De todo aquele mundo / restava um mecanismo moribundo / e uma teleologia sem princípios.” Que Associação seria esta? O pai do poeta já publicara artigos defendendo as idéias marxistas, seria à Associação dos Operários que ele se referia? E ali, “na natureza, uma mulher de luto / cantava, espiando as árvores sem fruto, / a canção prostituta do ludíbrio!” (Anjos, 2004, p. 223). Seria a República ou a política essa mulher enlutada?
Tal qual a figura do velho do Restelo, o Monólogo de uma Sombra revela a “desarrumação dos intestinos” que “assombra”, e exorta: “Vede-a! Os vermes assassinos / dentro daquela massa que o húmus come, / numa glutoneria hedionda, brincam, / como as cadelas que as dentuças trincam / no espaço fisiológico da fome” (Anjos, 2004, p. 197). E esses versos nos remetem ao trecho de Rui:
Que agoirávamos nós da situação criada em 22 de maio?
A morte das instituições representativas. A desorganização dos serviços civis. A anarquia militar. A onipotência da força. O regime de prevaricação. A abolição da justiça. A extinção da autonomia dos Estados. O governo do sangue e do azinhavre. A elefantíase do caráter e da honra (Barbosa, 1931, p. 22; grifos nossos).
O Eu nos faz lembrar das palavras de Rui em versos como “Asa de corvos carniceiros, asa / de mau agouro [...]” (Anjos, 2004, p. 250). Ou então é o Hércules que se esforça e tomba para sempre “estrangulado pelas rodas brutas / do mecanismo que tiver mais força”, nessa batalha que não tem fim e, pelos séculos afora, “há de travar-se essa batalha vã / do dia de hoje contra o de amanhã,/ igual a luta dos cristãos e mouros!” (Anjos, 2004, p. 292). E aqui o poeta é bastante pessimista, concluindo que neste mundo não há como deixar de existir o opressor e o oprimido, pela própria dualidade em que ele se baseia.
Essa história dos vencidos é “a elegia panteísta do Universo, / na podridão do sangue humano imerso, /prostituído, talvez, em suas bases...” A “elefantíase” do caráter, de que fala Rui, está presente no Eu, em “a hedionda elefantíase dos dedos”, daqueles que esbulhavam o patrimônio público. “A cor do sangue é a cor que me impressiona / e que mais neste mundo me persegue!” (Anjos, 2004, p. 213) – diz o poeta em As cismas do destino. E o dinheiro que o escravo ganha ao trabalhar para os brancos “é o dinheiro coberto de azinhavre.” Na falta da justiça, que havia sido abolida, como alerta Rui, a figura da Sombra que fala na introdução do Eu traz consigo, para julgar os carrascos, a “justiça de Abidarma”.
É impossível comprovar com a necessária profundidade a intertextualidade existente entre o Eu e Ruínas de um governo, porém selecionamos alguns fatos relatados a respeito de 1° de janeiro de 1911, de Moacir Costa Lopes, em O almirante negro, Revolta da Chibata – A vingança, para comprovar a presença de fragmentos nos poemas augustianos que nos remetem a esse discurso.
MASMORRA Nº 3, DO BATALHÃO NAVAL – DOMINGO, 1 DE JANEIRO DE 1911

Na quarta-feira, o comandante Marques da Rocha ordenara suspender o fornecimento de água aos prisioneiros. Nem mais sejam servidas as sobras do pão dormido, nada, deixe-os à míngua, até que o negro João Cândido morra.
O carceireiro, sargento Rufino, a cada seis horas, num ritual de morte, chega ao portão, com sua lanterna e um balde. Dos gemidos constantes escapam gritos, olhos aflitos que lhe dirigem um olhar de súplica, mãos estendem-se na sua direção.
Em Gemidos de arte encontramos versos como: “Essa alegria imaterializada,/ Que por vezes me absorve, é o óbolo obscuro,/ É o pedaço já podre de pão duro/ Que o miserável recebeu na estrada!”. O sofrimento da vítima inocente é sempre semelhante, em todas as eras da humanidade. Voltando ao texto de Lopes:
[...] Evitam sentar-se para fugir da lama de cal, embora a poeira branca lhes penetre por baixo das calças e nos braços, com alguns ferimentos, e o que já foi respirado lhes afeta os pulmões. [...]
Tenho febre, Pau de Lira. E tosse cada vez mais, iniciando uma tuberculose, as pernas fraquejam, forram o chão de um pequeno espaço com a blusa de um dos mortos, sentam-se, intercalando-se [...]
No dia 26 de dezembro de 1910, conforme Moacir Lopes, também não abriram as masmorras - pois nem a noite de Natal os tornara mais humanos – porque Marques da Rocha levara consigo as chaves e fora festejar na cidade. E assim narra Lopes:
MASMORRA N° 3 DO BATALHÃO NAVAL – 2ª FEIRA, 26/12/1910

João Alves [...] recostado à parede do calabouço, de onde não pára de minar água, roça com suas unhas empretecidas as partes do corpo com rachaduras na pele que já começam a sangrar, como sangrou todo o corpo com rachaduras na pele que já começam a sangrar, como sangrou todo o corpo de Josias, desde que o carcereiro jogou pela grade da porta mais dois baldes de água com porções de cal, que escorreram pelo seu corpo [...] (Lopes, 2000, 159).
Em As cismas do destino há um diálogo com essa água branca de cal, que é “áscua”, ou seja, provoca queimaduras, “estriada”, cheia de sulcos, devido à mistura de cal, que servia para a “assepsia” do ambiente, mas queimava vivos os prisioneiros, que acabavam imolados em sacrifício: “A diáfana água alvíssima e a hórrida áscua / que da ígnea flama bruta, estriada, espirra; / a formação molecular da mirra, / o cordeiro simbólico da Páscoa [...]” (Anjos, 2004, p. 219).
Os presos coçavam as feridas com as unhas sujas, o que lhes provocava o descolamento maior das peles e um sangramento doloroso, que lhes dava o aspecto de morféticos. Em Monólogo de uma Sombra, o “eu”-lírico diz: “Aí vem sujo, a coças chagas plebéias, / trazendo no deserto das idéias / o desespero endêmico do inferno, / com a cara hirta, tatuada de fuligens [...]” Conforme nossas pesquisas e análises, a Sombra introduz aqui a figura de Nilo Peçanha – e há todo um percurso para se chegar a ele, no poema, mas impossível de ser abordado agora -, responsável pela vitória fraudulenta de Hermes, que “coça as chagas plebéias”, expressão que nos levou ao texto semelhante de Rui, narrando o desespero dos marujos na masmorras, queimados pela cal, coçando-se com as unhas infectadas e chegando ao auge da dor.
O trecho que mais nos chamou a atenção quanto à relação intertextual com o de Rui Barbosa foi esta estrofe de Monólogo de uma Sombra: “A asa negra das moscas o horroriza; / e autopsiando a amaríssima existência / encontra um cancro assíduo na consciência / e três manchas de sangue na camisa!”
Eis o que diz Rui Barbosa: “O painel das três sangueiras que nos custaram esses assassínios oficiais teve por moldura o estado de sítio, extorquido ao congresso nacional, sob uma atmosfera de terror [...]” É que, após esses terríveis acontecimentos na falsa anistia que o governo concedera aos marujos e que acabara sendo o extermínio de boa parte deles, o marechal declarou estado de sítio e houve intervenção no governo do Rio de Janeiro e de outros estados. A intenção era de colocar um partidário seu no governo daquele estado.
Então o Diário Oficial da União, de 13 de janeiro de 1911, estampou, com a data do dia 3 do mesmo mês, o decreto n° 8.499ª, autorizando, assim, com uma resolução de janeiro, um ato ocorrido em dezembro. “Quando a ditadura sai da violência, é para mergulhar no dolo”, afirma Rui Barbosa.
Interessante data essa, em que Augusto fala da morte do pai: “Madrugada Treze de Janeiro. / rezo, sonhando, o ofício da agonia. / Meu Pai nessa hora junto a mim morria / sem um gemido, assim como um cordeiro!” Pode ser a morte do pai do poeta, mas também é a madrugada em que mais uma farsa fora encenada e o Pai – com maiúscula – que aqui aparece pode ser a figura do Rei do antigo sistema monárquico. E morrer “como um cordeiro” é ser vítima sacrificial!
Quanto ao navio Satélite, com um carregamento humano avaliado em “setecentas almas”, entre homens, mulheres, velhos e crianças, “lixo” tirado no processo de “higienização” da cidade, para Rui esse contingente de pessoas foi “favorecer a prostituição e estrumar de cadáveres o solo do Pará e do Amazonas. Foram servir de”esterco” para aquelas terras. E o que dizer destes versos em que Augusto fala que, “no ato da entrega / do mato verde, a terra resfolega /estrumada, feliz, cheia de adubos”?
Em Poema negro, dedicado a Santos Neto, embora em Alexei Bueno esteja datado: “Paraíba, 1906”, há um trecho que lembra muito essa passagem narrada acima. Com a febre, ele sente aproximar-se o momento da morte: “Meu coração, como um cristal, se quebre; /O termômetro negue minha febre, /Torne -se gelo o sangue que me abrasa, / E eu me converta na cegonha triste/ Que das ruínas duma casa assiste/ Ao desmoronamento de outra casa!” (Anjos, 2004, p. 286). Era o poeta assistindo à agonia do outro, igualmente vítima, ao mesmo tempo em que neles ecoam as vozes de todos os oprimidos da Terra.
Os prisioneiros, devido às condições terríveis e anti-higiênicas das masmorras, sem poder respirar, com o pó da cal penetrando em seus pulmões, escarravam sangue, como mostram os depoimentos de João Cândido. Talvez venha desses versos de Augusto a “lenda” da sua tuberculose. “Cair doente e passar a vida inteira / Com a boca junto de uma escarradeira, /Pintando o chão de coágulos sanguíneos!” (Anjos, 2004, p. 238). Lembro, mais uma vez, que Augusto, conforme o laudo médico dado na ocasião de seu falecimento, nunca foi tuberculoso.
Em As cismas do destino, ele mostra a tosse que se tornara onipresente, já se difundira entre todos, mas não era uma tosse comum, era como o ruído de uma rocha redonda, arremessada no auge da explosão (que poderia ser a revolta), pelos atiradores de funda - e aqui há novamente a referência da batalha entre os persas e os atenienses, na vitória destes em Maratona: E o cuspo que essa hereditária tosse / Golfava, à guisa de ácido resíduo, /Não era o cuspo só de um indivíduo/ Minado pela tísica precoce. / Não! Não era o meu cuspo, com certeza / Era a expectoração pútrida e crassa / Dos brônquios pulmonares de uma raça /Que violou as leis da Natureza! /[...] E a saliva daqueles infelizes / Inchava, em minha boca, de tal arte, / Que eu, para não cuspir por toda a parte, / Ia engolindo, aos poucos, a hemoptísis!” (Anjos, 2004, p. 213; grifos nossos).
No navio Satellite, no mesmo dia 1 de janeiro, houve um fuzilamento de vários prisioneiros, devido a uma tentativa de fuga ocorrida na véspera. Estavam na entrada de Recife e aproveitaram os fogos de artifício festejando o ano-novo para disparar os fuzis, assim o barulho seria abafado. Vinte corpos assassinados por setenta fuzileiros navais.
É ainda Poema Negro que estabelece uma ponte com a imagem da morte – “faminta e atra mulher”, que sai a “1 de janeiro”, para “assassinar o mundo inteiro”. A morte é a “carnívora assanhada”, “serpente má de língua envenenada / que tudo que acha no caminho, come...” Essa “morte/serpente” lembra as mortes na Ilha das Cobras, e o “mundo inteiro não lhe mata a fome!”
Ao redor de João Cândido e Pau da Lira, os companheiros vão morrendo e se decompondo, e ninguém abria as masmorras. “Arranco os cadáveres das lousas / e as suas partes podres examino...” E no horror daqueles momentos, o poeta se identifica com a vítima e, como ela, reconhece “assombrado” o seu “Destino!”
Os guardas da ilha são como “a Morte, em trajes pretos e amarelos”, levantando contra o inocente “grandes cutelos / e as baionetas dos dragões antigos!” Ora, os “dragões antigos” eram os soldados montados da guarda imperial, e os uniformes amarelos eram de oficiais, até o posto de subcomandante. As masmorras da Ilha das Cobras são do tempo do império, de estilo ainda medieval, o que justificaria o adjetivo “antigos”.
Então esse “eu”, que é ao mesmo tempo o de João Cândido e Pau de Lira - os dois únicos sobreviventes daquelas masmorras – e o do poeta, em unidade, desafia a morte, desafiando a natureza, que cria esses “monstros” capazes de exterminar vidas humanas sem nenhum remorso. E clama à natureza: “Eu desafio, desta cova escura, / no histerismo danado da tortura / todos os monstros que teus peitos criam.”
As cismas do destino também trazem vários trechos que parecem abordar essa agonia da Ilha das Cobras, como o momento em que alguns, no desespero da sede, bebem a própria urina, considerando que “esterilizar”, também significa “tornar insípido”; portanto eles nem sentiam o gosto da própria urina, tamanho o desespero da sede e a perda da consciência da realidade. Mas em tudo o pó da cal se misturava, e a tudo “esterilizava”: “Nas agonias do delirium-tremens,/ Os bêbedos alvares que me olhavam,/ Com os copos cheios esterilizavam/A substância prolífica dos sêmens!” (Anjos, 2004, p. 217).

5. Conclusão
Foi seguindo a trilha do pensamento de que o “eixo delével” se desenvolve a partir dos locais mais remotos até o grande centro de poder, conforme Hardman (2004, p. 68), que os versos de Augusto ecoaram como um grito pelos oprimidos, um pedido a uma investigação maior desse discurso poético. Foi possível, então, compreender que a construção da imagem do “poeta da morte”, “magro, triste, tuberculoso” foi providencial naquele momento para calar a voz de suas denúncias, seja na sua correspondência encontrada, em sua prosa ou em seus poemas. Todos esses fatos se passaram na época em que a República, que iria finalmente se afirmar, foi esmagada por um golpe que recolocava um militar no poder.
Por isso somente o trágico poderia dar conta dessa mensagem - o clamor das vozes dos vencidos – no Eu, elegia lírico-dramática, como já apontava Hardman (2004, p. 76), que é, ao lado de Os sertões, de Euclides da Cunha, uma das mais grandiosas manifestações da alma brasileira, nos versos daquele que se definiu como um “poeta, feto malsão, criado com os sucos / de um leite mau, carnívoro asqueroso, / gerado no atavismo monstruoso / da alma desordenada dos malucos.” Poeta que cantou “a procissão dos mártires da Terra” (Anjos, 2004, p. 294), cujo preço a pagar por isso ele sabia: “outra vez serei pábulo do susto / e terei outra vez de, em mágoa imerso, / sacrificar-me por amor do Verso / no meu eterno leito de Procusto!”
Porém, apesar de toda repressão e discriminação sofridas por ele, o poeta avisa que ambicionava fazer seu canto “de tal arte e espécie [...] que o idioma em que te eu falo / possam todas as línguas decliná-lo, / possam todos os homens compreendê-lo!” (Anjos, 2004, p. 268).
É momento, portanto de reconhecer a grandiosidade da obra de Augusto e atribuir-lhe o real valor, o de um poeta que se dispunha a deixar a vida se dissolver “na aberração de um óvulo infecundo”, contanto que dele restasse “o agregado abstrato das saudades” “batendo nas perpétuas grades / do último verso” que ele fizesse neste mundo, versos quase todos de unidade às vozes das vítimas dos processos de colonização e de civilização adotados no Brasil.

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1 Doutoranda em Crítica e Teoria Literária na UNICAMP. Orientanda do prof. Dr. F.F. Hardman. E-mail: livgarcia@uol.com.br

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