AMBIVALÊNCIAS FORMAIS EM MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE, DE LUIZ ALBERTO MENDES, E DIÁRIO DE UM DETENTO: O LIVRO, DE JOCENIRMaria Rita Sigaud Soares Palmeira1
Resumo: O texto analisa dois livros que fazem parte da chamada “nova literatura carcerária”, cuja eclosão se deu no início desta década. A partir da análise de Diário de um detento, o livro, de Jocenir, e de Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes, discute-se o modo como essa literatura se constrói em função de uma ambivalência, que se revela para além da narrativa propriamente, por meio da adesão aos valores do cárcere e aos valores do mundo exterior.
Palavras-chave: prisão, Luiz Alberto Mendes, Jocenir.
Abstract: This text analyses two books that belong to the so called “new prison literature”, which came out during the first years of this decade. Taking as a guideline the books Diário de um detento, o livro, by Jocenir, and Memórias de um sobrevivente, by Luiz Alberto Mendes, it discusses how this literature is built over an ambivalence which is revealed, beyond the narrative itself, by means of an adherence to both the values of prison and the external world.
Keywords: Prison, Luiz Alberto Mendes, Jocenir.
1. Introdução
Em 2001, Luiz Alberto Mendes publicou seu primeiro livro, Memórias de um sobrevivente, pela prestigiosa editora Companhia das Letras. Naquele mesmo ano, Jocenir lançou seu Diário de um detento: o livro, pela Labortexto Editorial. Os dois autores inscreviam-se naquilo que se poderia chamar de um movimento mais amplo de encarcerados publicarem livros em que se dedicavam, mas não apenas, à narrativa de suas vidas. Para dar conta de sua experiência na prisão, esses homens costumavam adequar o formato do livro, tanto visual quanto narrativamente, a determinadas necessidades que pareciam corresponder ao modo de sociabilidade do cárcere.
Memórias de um sobrevivente, em suas quase 500 páginas, narra o que viria a ser a primeira parte das memórias de Mendes: ele as continuaria em Às cegas, também publicado pela Companhia das Letras, em 2005. De sua lavra, um ano antes, em 2004, havia saído Tesão e Prazer: memórias eróticas de um prisioneiro, pela Geração Editorial. Desde 2002, Luiz Alberto Mendes assina uma coluna na revista Trip.
Seu livro de 2001 é um volume de memórias de boa parte de sua vida, desde a tenra infância, no início dos anos 60, até meados da década de 70, já preso. Nele, conta a afetuosa relação com a mãe, o violento e ambíguo trato com o pai, o início da vida criminosa ainda garoto, as passagens pelo Recolhimento Provisório de Menores, os assaltos, as relações amorosas, as idas-e-vindas nas delegacias, convivendo com a tortura, com a corrupção de policiais, com a crueldade dos próprios presos. Condenado a quase 100 anos de prisão, vai do desespero ao se ver “enterrado” tão jovem (tinha 19 anos) ao alento da descoberta dos livros, da escrita, como ele gosta de frisar.
Jocenir, quando publicou seu Diário de um detento: o livro, já tinha seu nome associado ao rap homônimo, do qual é co-autor, que alçou o grupo de rap Racionais MCs ao que, com alguma licença, se poderia chamar de estrelato fora do “gueto” (o CD Sobrevivendo no inferno vendeu mais de 500 mil cópias). O livro Diário de um detento traz a história de Jocenir do momento em que é preso até sua libertação. Pouco se sabe de sua vida além desse intervalo doloroso na prisão.
As narrativas do cárcere, mais conhecidas no Brasil por sua vertente política, na qual se inscrevem, entre muitas outras, as Memórias do cárcere de Graciliano Ramos, sofrem numa verdadeira profusão de livros publicados na última década uma transformação considerável. Se antes, ainda tomando como exemplo Graciliano, a narrativa da experiência da prisão era a experiência de um autor, agora, com os “presos comuns”, o que, em parte, parece estar em jogo é tornar-se autor. Há, portanto, um desejo de inserção na vida “exterior”, além dos muros da prisão, que os escritores nessa condição encarcerados, justamente por sua condição prévia, não precisavam expressar, porque já tinham seu espaço social reconhecido.
Por outro lado, expostos às piores condições e à não rara violência dos agentes do Estado, os novos autores do cárcere tentam negar o que chamam de “sistema”, a mesma sociedade da qual esperam legitimação por meio da publicação de seus livros.
Dessa particularidade inicial, tem-se que a literatura do cárcere atual parece se fundar sob o signo da ambivalência. Suas narrativas mostram, por um lado, o reconhecimento em sua normatividade do “mundo” dos homens “livres” (aí compreendido o seu código de conduta, como também a forma burguesa do romance), o reconhecimento da particularidade do indivíduo, por outro, precisam zelar pela fidelidade ao estar atrás-das-grades, o que implica rígidas condutas, a conferência de um estatuto bastante diferenciado à palavra e o elogio ao coletivo.
Essa dupla adesão aos códigos externo e interno à cadeia, articulada à necessidade de legitimação por parte de, em acepção mais ampla, “um sistema” que, como presos, desprezam por ser responsável por seu encarceramento, rende uma resolução formal e narrativa ambivalente e própria.
Neste pequeno texto, procurarei mostrar em linhas gerais como essas questões aparecem nos dois livros que me proponho a aqui analisar: Diário de um detento e Memórias de um sobrevivente. Primeiramente, trato de cada um dos livros em separado, para, depois, apontar algumas comparações que, acredito, sejam possíveis.
2. Diário de um detento: o livro, de Jocenir
Como Diário de um detento não é um livro muito conhecido e também porque de sua estruturação dependem as observações que farei a seguir, tomo a liberdade de, brevemente, expor sua configuração:
O livro de Jocenir é composto não só pelos capítulos propriamente, ou seja, a “matéria narrativa” assim reconhecida, mas também por outras pequenas seções, cuja presença, se não destoa do que se entende como livro de memórias ou um romance autobiográfico, era intrigante pelo que podia revelar. O livro se estrutura da seguinte maneira:
Há uma seção de agradecimentos, seguida por uma pequena apresentação de autoria de Drauzio Varella.
Passado o sumário, uma dedicatória – aos cinco filhos, à cunhada e, em especial, à “companheira”. Todos são nomeados e o serão novamente no último capítulo do livro.
Os capítulos de maneira geral obedecem à cronologia dos fatos narrados: a prisão e a passagem por cadeias públicas e penitenciárias. Alguns deles são digressivos para que possa narrar um episódio específico, nada que comprometa a compreensão, que se pretende exata, de como os fatos se deram. A preocupação com o “ser fiel” ao que houve também se faz notar ao longo do livro e é aspecto importante para sua construção.
As epígrafes que abrem alguns dos capítulos são excertos da letra do rap “Diário de um detento” e têm como tema o que de algum modo será tratado no capítulo seguinte, como se a letra da música reunisse os vários episódios por que Jocenir passou na prisão: uma espécie de mote à espera de glosa. O que me parece especialmente curioso aqui é que a história contada no rap de Mano Brown e Jocenir é uma extensa narrativa da véspera, do dia e do dia seguinte ao Massacre do Carandiru, em outubro de 1992. Não é a história de Jocenir, que nem sequer estava preso à época do Massacre (não tem, portanto, apelo autobiográfico claro), mas a de muitos presidiários. Portanto, ao anteceder o relato de cada capítulo de sua história prisional – ou, como ele prefere chamar, de “seu inferno”2 – com um trecho da letra da canção que não fala propriamente da sua vida, Jocenir compartilha o seu inferno, ou seja, a sua dolorosa passagem pelo sistema prisional paulista, com o de tantos outros “companheiros”.
Entre os capítulos “Um visitante chamado Mano Brown” e “Periferia, futebol e televisão”, aparece fac-similada uma carta de Erick, um antigo companheiro de cela. A carta vem curiosamente depois de menção feita a ela no capítulo sobre Mano Brown, em que se lê: “Um ano após o encontro com Mano Brown, recebi uma carta de Erick dizendo que meus versos tinham se transformado em música, um rap, e que era um sucesso, tocava nas rádios a todo momento, tinham até gravado um videoclipe da música no Carandiru” (Jocenir, 2001, p. 101). Nesse sentido, a publicação da carta atestaria a veracidade de seu sucesso.
No fim do livro, há uma seção chamada “Um salve aos manos”, em que Jocenir, fazendo questão de nomear 11 companheiros, agradece a eles e invoca Deus para guiá-los. O livro termina com a transcrição da letra de “Diário de um detento”.
Essa estrutura parecia apontar para algumas particularidades do livro de Jocenir e em maior ou menor grau dos volumes que compõem o que se costuma chamar de “literatura carcerária”: havia ali uma conformação generosa, visível no amplo espaço dedicado aos que o ajudaram na edição, aos que o esperaram pacientemente enquanto esteve preso e aos que esperam pacientemente presos. Parecia haver na maneira como organizava o livro uma elaboração estética dos valores prisionais, que supõem o companheirismo, a lealdade, a solidariedade, a humildade.
Vista por outro ângulo, essa conformação não poderia estar só, uma vez que o livro como objeto não é dos mais familiares aos presos – não entra, por exemplo, na ampla rede de trocas que alicerça a economia dos presídios, como cigarros, produtos de higiene pessoal, rádios, tvs, roupas, facas, drogas etc.
O livro de Jocenir estava sendo publicado por uma editora, que ao fazê-lo chancelava-o junto aos seus prováveis leitores; recebia de um médico, que é autor de um grande best-seller sobre a prisão, um pequeno texto à guisa de prefácio recomendando a sua leitura. Para quem? Certamente, não para os detentos, para os quais os livros praticamente não chegam, para os quais, salvo raras exceções, o livro nem sequer é, como sugeri acima, um objeto familiar. O mais provável é que a publicação do livro e sua recomendação de leitura se dirigissem para aqueles que estão distantes do universo carcerário, o que, empregando expressão do próprio Jocenir, vou chamar de “mundo dos homens livres”.
Sem negar nenhum dos universos – tanto aquele a que pertenceu enquanto esteve preso, quanto aquele a que deseja pertencer e do qual espera legitimação pela escrita –, equilibra-se em um volume que é ambivalente na sua forma material, como também em sua forma narrativa.
O primeiro aspecto a partir do qual é possível perceber sua ambivalência diz respeito a uma movimentação do narrador que oscila entre a singularidade de sua experiência (quando diz, por exemplo: “este é meu inferno, doloroso e meu”) e a necessidade – um imperativo moral – de ampliá-la para a de um grupo (como quando escreve “Meu e de milhares de companheiros que tentam sobreviver trancafiados” – Jocenir, 2001, p. 17), coletivizando-a, sem anular as particularidades de cada sofrimento, de cada trajetória.
Paralelamente, e eis o segundo aspecto, que não deixa de ser desdobramento do primeiro, há um movimento igualmente duplo de adesão aos códigos bem marcados de conduta do ambiente prisional e aos códigos de conduta entendidos como os do além-grades.3 Aderindo às normas de fora da prisão, Jocenir singulariza-se dentro da prisão, mas também fora dela, uma vez que reconhece as “leis” que regem a sociedade e as toma para si, considerando-as legítimas e legitimadoras do seu discurso e da sua trajetória. Quando se aproxima das regras da prisão, legitima o discurso e a trajetória dos companheiros, bem como o seu na qualidade de “detento”.
Essa dupla aderência aparece inclusive na escolha vocabular, que vai de “espúrio” a “mano”, bem como na construção sintática, que pode tanto remeter às estruturas orais, como a subordinações mais elaboradas, próprias do registro culto da língua.
Essa oscilação aparece também na eleição daquele para quem parece ser escrito o livro: em alguns momentos, Jocenir sugere voltar seu discurso para seus antigos companheiros de prisão, mas em outros, mais imediatamente identificáveis, parece escrever para quem jamais esteve em um presídio ou em uma cadeia pública, daí a constante presença das partículas explicativas: “O funcionário nos arrumaria os litros, mas exigiria um pau, isto é, uma taxa” (Jocenir, 2001, p. 120); “O mais agitado era Mineiro. Pálido, andava de um lado para o outro, dizia não querer justificativas, era da opinião de que deveriam subir o gás do Márcio, ou seja, matá-lo” (Jocenir, 2001, p. 133).
A coexistência desse movimento duplo do discurso que ora adere à perspectiva externa, ora à interna aponta para uma questão talvez anterior, qual seja, a própria escolha do livro como meio privilegiado de expressão. Parece-me que a adoção do livro não significa aceitar suas limitações, seu estatuto previamente dado e que não corresponde aos valores prisionais, necessariamente partilhados, o que se percebe na própria estruturação das partes que o compõem. Quero sugerir que o livro assume em Diário de um detento um formato próprio, que, por sua vez, é revelador de um “conjunto de traços” que faz com que esse narrador, sem perder sua especificidade óbvia, pertença a um grupo. Ao escolher o livro, Jocenir o faz de modo a não recusar sua condição dolorosa de encarcerado, o que significa inserir-se em uma coletividade e tomar para si muitos de seus valores.
Mas ao fazê-lo, singulariza-se dentro desse grupo, não só por escrever, mas por reivindicar, ao ter seu livro publicado, essa singularização. Está-se diante, portanto, de um livro cuja estrutura, exigida pela tensão presente da vida no cárcere e pelo igualmente tenso desejo de ultrapassar a condição de “preso que escreve”, configura-se como peculiar.
3. Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes
O livro de Luiz Alberto Mendes é, sem dúvida, o mais bem acabado entre os que compõem essa nova cena da literatura prisional. Não por acaso foi adiante na carreira de escritor (como já mencionei, tem mais dois livros publicados, mantém coluna em revista de boa circulação), não por acaso a rara crítica que se dedica ao assunto lhe reserva um espaço diferenciado4. Para além do fôlego de escrita, as suas Memórias de um sobrevivente diferenciam-se dos outros livros como o de Jocenir também em sua conformação, ainda que esteja presente a dupla adesão aos códigos externo e interno à cadeia.
Não aparecem reprodução de cartas, nem fotos, tampouco disponibiliza espaço para declarações dos “aliados”. Há, sim, uma dedicatória aos filhos, o que não constitui particularidade de uma escrita do cárcere, embora também faça parte dela, assim como há duas pequenas epígrafes – uma de Brecht, outra de Sartre – e um epílogo, além da narrativa propriamente dita.
A não adesão de Luiz Alberto Mendes à transformação do livro em espaço compartilhado pelos companheiros de prisão poderia ser vista como seu desejo de tornar-se um autor, para o quê mobiliza tudo aquilo que reconhece como próprio de um romance e como próprio de um autor de romances.
Sem, no entanto, poder escapar à prisão, sua prosa é aderente a dois registros distintos, que não se coadunam em nova organização espacial do livro, materialmente falando, até porque, a julgar pelo que conta, tornou-se leitor voraz, capaz de reconhecer – e por que não? – aderir à disposição previamente dada. Mas, se o faz, não deixa de evidenciar que essa escolha é capaz de revelar ambigüidades.
Observemos o modo como constrói a narrativa de um episódio: ao contar um caso envolvendo outro preso, o “Carlão”, Mendes revela saber quem seria a sua vítima (“Sabia quem ele iria pegar”, Mendes, 2001, p. 439), mas, por uma adesão ao código do cárcere, não o diz – como a sinalizar que há coisas que não devem “sair da cadeia” (traço bastante presente nas narrativas das prisões recentes de modo geral). Explica, em seguida, a sua pressa em se retirar do lugar onde haveria a confusão provocada por Carlão, revelando ao leitor externo por que não seria bom testemunhar aquela cena. Nesse ponto, mostra como havia introjetado a lógica prisional, embora não a naturalize no momento em que escreve a cena, já que acredita que precisa justificar sua atitude ao leitor que não compartilha os mesmos códigos.
No “Epílogo” de Memórias de um sobrevivente, escrito pouco antes de sua publicação, sugere que não haja de sua parte uma tentativa de conferir a seu livro um caráter exemplar, que comporte mensagens ou grandes explicações. Trata-se de traço particular de sua narrativa, se pensada à luz do conjunto da “literatura carcerária”, e contribui para singularizá-lo. Diz ele: “Sou de opinião que os fatos, a vida, falam por si mesmos e não carecem de explicações, e sim, tão-somente de narração acurada. As conclusões e ilações, sem dúvida, são pessoais” (Mendes, 2001, p. 471). Aqui, parece alinhavar o seu texto à epígrafe sartreana: “Não importa o que o mundo fez de você, importa o que você faz com o que o mundo fez de você”.
Mendes dirige-se a um público que seja capaz de inseri-lo de vez, capaz de alçá-lo à categoria de escritor. Ele depende desse reconhecimento, como deixa claro, ainda no “Epílogo” ao referir-se a Fernando Bonassi, escritor responsável por sua “descoberta” e pela apresentação do livro: “Para ele, eu já sou escritor. Eu ainda espero a publicação deste livro para me considerar como tal” (Mendes, 2001, p. 474).
A sua trajetória absolutamente peculiar deve ser, segundo seu desejo, entendida assim: é a partir dessa singularidade que ele se transforma em escritor. Apresentando-se como leitor de Dostoiévski, Henry James e Hegel, é como exceção que deseja ser visto. Por isso, provavelmente, seu livro não tenha fotografias dos companheiros, não tenha glossário, não seja dedicado aos aliados, mas contenha referências ao mundo letrado. Enquanto para André du Rap ou Jocenir, o livro precisa ser devidamente apropriado para dar conta de suas histórias, para que seja de fato um meio de expressão, Mendes, que, segundo conta, passou anos debruçado em livros, a ponto de ser conhecido pelos presos como “Professor”, sugere não precisar disso para manejá-lo – trata-se de um objeto que já lhe é próximo.
4. Conclusão
Jocenir preocupa-se em produzir uma escrita que seja leal aos valores aprendidos na prisão, de modo a não falsear a experiência, a não deixar cair no esquecimento as brutalidades sofridas por ele e pelos companheiros, mas também para memorar as suas histórias. Nesse sentido, incorpora a identidade recebida (a de presidiário), mas não a deixa reduzir-se ao estigma: valoriza a sua experiência, a dos outros, confere aos que com ele compartilharam o cárcere nome e dignidade, conforma seu livro de modo a exaltar essa subversão identitária.
Ao mesmo tempo, ao fazê-lo, cria uma identidade autoral que lhe é única – é ele quem assina o livro, foi ele quem compôs a letra –, o que pode significar a legitimação de seu discurso e, em última instância, uma possibilidade de (re)inserção social. Mas a ambigüidade está dada: pois se precisa ser fiel à experiência e, como ele próprio diz, “um homem nunca é o mesmo depois da cadeia”, a marca permanece, não pode se furtar a escrever sobre isso, e do modo como o etos e os valores prisionais exigem, sob risco de ser deslegitimado pelos antigos companheiros.
Em sua adesão crispada a códigos de conduta distintos, a partir de um uso dobrado da linguagem, a prosa de Jocenir quer provar a sua autenticidade, porque seu autor se sente exposto à incredulidade. Essa dimensão parece resgatar o relato de Primo Levi da “cena sempre repetida [em nossos sonhos] da narração que os outros não escutam” (Levi, 1988, p. 60)5. A suposição de que não o escutem aparece, já de início, pela condição a ele atribuída de marginal. Em um segundo momento, porque narra os horrores decorrentes de ter recebido o título de marginal: brutalidade policial, covardia dos carcereiros, condições desumanas. De tão assustadoras, as narrativas poderiam soar inverídicas, sobretudo se assinadas por quem já assinou infrações. Sob esse duplo risco, Jocenir conforma sua narrativa à busca da credibilidade, seja pela nomeação (presente nos agradecimentos, no “salve aos manos”), seja pela fotografia, seja pela carta fac-similada, seja pela apresentação feita por um médico respeitável e conhecido.
Nesse sentido, é leal aos preceitos da vida no cárcere, porque não falseia a propalada verdade, não descumpre com a palavra e mantém intacta a sua honra. Como o é também ao mundo dos homens livres, quando confere ao papel, à escrita, à prova, a autenticidade da experiência.
Luiz Alberto Mendes faz o elogio da ilustração quando narra o momento de sua transformação pelos livros. Se se reconhece transformado pela experiência da leitura, sabe que nem por isso deixa de trazer a dolorosa vivência do cárcere, resultado da falência dos ditames esclarecidos. Assim, admite-se um conjunto de fragmentos de duas experiências aparentemente opostas e consegue trazer essa dualidade para sua escrita.
Resulta daí uma sofisticação narrativa própria. A começar pela construção de um personagem que prescinde de autocomplacência quando afirma, por exemplo, que “aos dez anos já era um ladrãozinho bastante bem-sucedido e oportunista” (Mendes, 2001, p. 31), formulação impensável em qualquer dos outros livros da literatura prisional. Assim como na frase que abre o livro: “Dona Eida, minha mãe, dizia que até os seis anos eu era um santo. Meu pai, seu Luiz, dizia que eu era um débil mental” (Mendes, 2001, p. 13).
Afastando-se, em parte, dos valores do cárcere, em que a honra de um preso é o que ostenta de mais importante, nós podemos vê-lo, a depender da situação, como medroso, covarde, fraco, deslumbrado, mas também como alguém cuja redenção foi possível pelos livros, como quem sinaliza “fui tudo aquilo, não nego, não o sou mais, embora não possa me livrar dessa herança”.
A ambivalência que é possível perceber em Memórias de um sobrevivente é, certamente, como ele próprio admite, fruto da sua dupla experiência na vida criminosa, encarcerada (por um lado), e na vida letrada (por outro). Nesse sentido, aproxima-se de Jocenir. Mas na construção de um personagem que ultrapassa, sem exatamente negar, o que o ambiente prisional reconhece como legítimo, até porque escolhe narrar também a sua vida anterior à prisão, afasta seu texto do de outros autores egressos do cárcere.
Assim, parece-me que na conformação ambivalente dada por Jocenir e Luiz Alberto Mendes a seus livros e no modo como ela contribui para a transformação de cada um deles em autor reside uma dimensão importante para a análise das obras dessa nova literatura carcerária.
Referências Bibliográficas ANDRÉ DU RAP. Sobrevivente André du Rap (do Massacre do Carandiru) . (coord. editorial Bruno Zeni). São Paulo: Labortexto Editorial, 2002 GAGNEBIN, Jeanne-Marie. Lembrar escrever esquecer. São Paulo: Ed. 34, 2006. HOSSNE, Andrea Saad. Autores na prisão, presidiários autores. Anotações preliminares à análise de Memórias de um sobrevivente. Literatura e sociedade, São Paulo, Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada/ FFLCH/ USP, nº 8, 2005 JOCENIR. Diário de um detento: o livro. São Paulo: Labortexto Editorial, 2001. LEVI, Primo. É isto um homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988. MARQUES, Luciana Araújo. De dentro: escritos da periferia e da prisão. (Monografia de conclusão de curso). São Paulo: Faculdade Cásper Líbero, 2003. MENDES, Luiz Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. _____. Às cegas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. _____. Tesão e prazer: memórias eróticas de um prisioneiro. São Paulo: Geração Editorial, 2004. RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 2002. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Novos escritos dos cárceres: uma análise de caso. Luiz Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente. Estudos de literatura brasileira contemporânea (“Literatura e testemunho”), nº 27, Brasília, jan./jun. 2006, pp. 35-57. TAUFER, Adauto Locatelli. Do factual ao ficcional: memória, história, ficção e autobiografia nas Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 2007. 1 Doutoranda em Literatura Brasileira (FFLCH/USP) e professora da FACAMP (Faculdades de Campinas). E-mail: mariarita@usp.br.
2 A imagem do “inferno” aparece nos outros livros dessa chamada “literatura dos cárceres”, principalmente no de André du Rap (não por acaso, sobrevivente do Massacre – ver Capítulo 2), e faz lembrar os escritos de Primo Levi sobre o campo de extermínio (ver, por exemplo, É isto um homem?).
3 Um esclarecimento talvez seja necessário: quando estabeleço essa distinção entre códigos de conduta dos presos e dos homens livres, eu o faço em função do que mostram os próprios relatos prisionais: na cadeia, o modo pelo qual os detentos pautam seu comportamento é fruto de uma rígida normatização elaborada pelos próprios presos e que não corresponde exatamente ao que se supõe dos homens do além-grades. Isso deve ficar mais claro adiante.
4 Ver, especialmente, de Márcio Seligmann-Silva, “Novos escritos dos cárceres: uma análise de caso. Luiz Alberto Mendes, Memórias de um sobrevivente”; e, de Andrea Saad Hossne, “Autores na prisão, presidiários autores. Anotações preliminares à análise de Memórias de um sobrevivente”; bem como dissertação de Adauto Locatelli Taufer, Do factual ao ficcional: memória, história, ficção e autobiografia nas Memórias de um sobrevivente, de Luiz Alberto Mendes (UFRGS); e a monografia de Luciana Araújo Marques, De dentro: escritos da periferia e da prisão (Faculdade Cásper Líbero).
5 No livro Lembrar escrever esquecer, Jeanne-Marie Gagnebin analisa em alguns de seus ensaios a repetição e a importância dessa cena (ver, por exemplo, “Memória, história, testemunho” ou “Verdade e memória do passado”).
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