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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

REPRESENTAÇÃO DA ÁUSTRIA CATÓLICO-NACIONAL-SOCIALISTA NA AUTOBIOGRAFIA DE THOMAS BERNHARD

Patricia Miranda Dávalos1
Resumo: Em seu primeiro escrito autobiográfico, o austríaco Thomas Bernhard procura mostrar a seu público a razão pela qual ele se tornou o escritor provocador e outsider que foi. Este texto pretende analisar como tal imagem é construída no livro, o que é feito por meio de um conceito específico de vítima, com o qual o autor se identifica.
Palavras-chave: Thomas Bernhard, autobiografia, Áustria.
Abstract: In his first autobiographical writing the Austrian author Thomas Bernhard attempts to show his public the reason why he became the provocative writer and outsider that he was. This paper intends to analyse how this image is built in the book, what is made through a specific concept of victim – which he identifies with.
Keywords: Thomas Bernhard, autobiography, Austria.

A Causa – Uma Indicação é o título do primeiro de cinco volumes autobiográficos do austríaco Thomas Bernhard, e narra sua infância num internato em Salzburg ao fim da Segunda Guerra. Na primeira parte do livro, intitulada “Grünkranz”, nome do diretor da Escola Nacional-Socialista para Meninos, narra sua estadia nessa instituição entre 43 e 44, enquanto na segunda parte, “Tio Franz”, nome do padre novo diretor, continua a narrar sua permanência no mesmo internato, transformado em instituição católica no pós-guerra. Este texto procura analisar a imagem que o autor apresenta de si em sua autobiografia a fim de justificar ao seu público a imagem de outsider que construíra, sua condição de marginalizado a beira de sua sociedade, da qual deseja marcar uma clara oposição.
O livro que abre este ciclo autobiográfico foi publicado em 1975, período em que Bernhard já gozava de fama entre o público e a crítica, e já havia consolidado sua reputação de provocador, crítico implacável da Áustria e austríacos. A resposta à questão do porquê da necessidade da escritura autobiográfica de Bernhard – na época com 44 anos, idade insuficiente para estabelecer um balanço de sua vida – vem ligada à resposta a outra questão, implícita já no título da obra: em seu texto o autor se propõe a narrar a causa do quê? Em entrevista, este afirmara que sua literatura ficaria mais ou menos “no ar” se não dissesse claramente de onde vinha tudo aquilo2 – e com razão reconhece a necessidade de justificativas, pois o público ficava continuamente perplexo diante de um indivíduo tão polêmico, que por suas críticas constantes ao país e seus contemporâneos conviveu a vida inteira com ameaças e processos e que, além disso, impressionava por seus personagens pessimistas e suicidas, de modo que sempre teve de defender-se em entrevistas da acusação de ser um negativista (“ein negativer Mensch”, por exemplo, em Fleischmann, 1991, p. 25). Contudo, a explicação da causa de ser o que foi, ou seja, um provocador, é ela mesma uma provocação: tudo provém de Salzburg, cidade na qual freqüentou o internato, no que diz ter passado a pior época de sua vida – “tudo o que trago dentro de mim (e em mim) provém dela, de tal modo que eu e a cidade temos uma relação eterna, indissolúvel, ainda que horrorosa” (p. 155)3. A relação é caracterizada como horrorosa, pois a imagem de Salzburg também é, como já indica a epígrafe do texto: uma notícia de jornal datada de maio de 1975, ou seja, ano da publicação da autobiografia, segundo a qual a cidade detém o recorde austríaco de suicídios.
Tal epígrafe estabelece – de modo provocador – uma continuidade entre a época narrada e o presente do narrador: o garoto Bernhard de treze anos, bem como seus colegas de internato, oprimidos pelas instituições nacional-socialistas, só pensavam em suicídio. Se trinta anos depois, em 1975, as taxas continuam altas, é porque tais instituições continuam inalteradas, o que seria uma indicação da causa de outros dois fatos: a começar, do estado de ânimo negativo e depressivo que o adulto Bernhard continua, semelhante à criança, a sentir quando chega a Salzburg, de fato ou em pensamento – a criança oprimida transformou-se no adulto provocador, mas que continua a sentir-se oprimido. A outra causa derivada da continuidade na sociedade austríaca é uma causa hipotética, pois se trata da causa de uma ameaça a assolar o país, apresentada na forma de uma advertência: “Da noite para o dia o nacional-socialismo pode tornar a assumir o controle, substituindo o catolicismo, a cidade tem todos os pré-requisitos para tanto (...)” (p.187)4. Se, na concepção do autor, as instituições que originaram o nazismo e o sustentaram continuam, a diferença entre o Estado totalitário e o democrático é inexistente! Cabe ainda a observação de que se há o alerta de uma substituição do catolicismo pelo nacional-socialismo, isso se dá de modo provocador, já que o par de adjetivos perpassa toda sua obra como caracterizador da essência austríaca, segundo ele, duplamente negativa, pois vê uma equivalência entre ambos como formas opressoras contra o espírito e a liberdade.
Essa sociedade e suas instituições, duplamente opressoras, pois qualificadas constantemente como “católico-nacional-socialistas”, produziriam suas vítimas e ao longo da autobiografia o autor apresenta mais detidamente três tipos, os quais poderiam ser classificados da seguinte forma: os estudantes, a população civil durante a guerra e os excluídos da sociedade.
O livro inicia-se com uma descrição da cidade possuidora de uma beleza natural e arquitetônica que misturadas a um clima pré-alpino5 perturbador, bem como a instituições opressoras, torna seus habitantes vítimas desse conjunto terrível. E mais do que habitantes (Einwohner) ou pessoas (Menschen), o autor fala nesse ponto em estudantes e aprendizes (Lernende und Studierende). Foi na condição de estudante que Bernhard deixou sua família em Traunstein na Alemanha para estudar em Salzburg na Áustria, atendendo ao desejo do avô, o qual julgava que ali o neto teria uma educação melhor. Mas o que o garoto encontra é a já citada atmosfera perturbadora, a tornar os estudantes de tais escolas e internatos vítimas atormentadas por idéias suicidas diante da opressão de um sistema educacional rígido, baseado em duros castigos corporais – muitos estudantes chegando de fato a cometer o suicídio, o próprio Bernhard relata ter tentado enforcar-se no segundo dia ali.
O internato, a Escola Nacional-Socialista para Meninos, é descrito como palco de uma luta pela sobrevivência, onde os fortes, ou menos fracos, subjugam os fracos. O local ainda é dominado pelo terrível diretor Grünkranz, apresentado em termos do nazista clichê, sempre em seu uniforme e botas da SA, punindo violentamente e inesperadamente, um sádico, pervertido e cruel. No pós-guerra, na segunda parte do livro, os estudantes continuam como vítimas, mas agora a opressão não é mais nacional-socialista, e sim católica, pois a Escola Nacional-Socialista para Meninos é transformada no Johanneum católico, e no lugar do oficial Grünkranz, está um padre, empregado do novo diretor “tio Franz”, mas descrito como tão terrível, sádico e reprimido quanto o ex-diretor nazista, de modo que o cotidiano rigoroso e as punições continuam. O autor vai além, dizendo que a única mudança perceptível é a troca da imagem de Hitler por um crucifixo, como resume de modo exemplar na seguinte frase: “e a diferença para mim, de início, estava apenas na troca do retrato de Hitler pela cruz católica (...)” (p. 180)6 – Bernhard desenvolve uma longa comparação entre o internato nazista e o católico, procurando mostrar como tudo continua igual, mas com outras denominações: ao invés de cantarem hinos nazistas acompanhados pelo piano, cantam hinos católicos acompanhados pelo harmônio; não se levantam às seis horas para ouvir as notícias do QG do Führer, mas para receber a sagrada Comunhão; não dizem mais Heil Hitler! antes das refeições, dizem, em postura idêntica, Louvado seja Deus e bom apetite! , etc (cf. p. 176 e 184, no original: 88s.). Uma vez que em A Causa a escola funciona como símbolo da sociedade – mudando-a, muda-se o país, segundo o autor –, fica implícita a continuidade entre sociedade totalitária e democrática, disso viriam as advertências anteriormente mencionadas com relação à volta do nacional-socialismo.
A segunda categoria das vítimas apresentadas, na qual os estudantes novamente se incluem, é a da população civil vítima dos bombardeios e da miséria da guerra – população, como o autor enfatiza, constituída de velhos, mulheres e crianças arrasados pela guerra e pela fome. O quadro é comovente e nada tem de irônico, até destoando do esperado pelo público desse provocador. Os exemplos do tom solidário e de episódios tocantes são vários, restrinjo-me a citar o caso da professora de inglês do autor, vinda de Hannover para Salzburg, fugindo dos ataques aéreos. Se na Alemanha perdera tudo, em Salzburg, onde esperava ficar a salvo, “não apenas perdia tudo de novo, como era morta também” (p. 144)7.
Como vítimas da guerra são incluídos ainda os soldados mortos, mutilados, prisioneiros dos campos russos. No pós-guerra a desolação continua, e se não há mais as bombas, há os soldados americanos e seus “excessos sexuais” (p. 178, no original: 90), além da miséria e fome que persistem.
O terceiro tipo de vítimas são os excluídos da sociedade por suas ditas fraquezas. Para exemplificar isso, o autor detém-se em dois indivíduos conhecidos no pós-guerra: o colega de ginásio aleijado, filho de um arquiteto e o professor de Geografia Pittioni. O primeiro, tornado vítima por suas limitações físicas, o segundo por ser “baixinho e careca, feioso da cabeça aos pés” (p. 208)8, e por isso, alvo da zombaria de todos. Ambas seriam pessoas excelentes, mas excluídas por suas fraquezas físicas, feitas vítimas da sociedade, a qual parece precisar delas, de modo que as produz, encontra um “assim chamado defeito mental ou físico” (p. 209, no original: “einen sogenannten Geistes- oder Körperdefekt”, p. 135) e em razão disso transforma indivíduos em vítimas. A caracterização desses excluídos revela a desconfiança do autor frente às massas e aos agrupamentos em geral, na forma de comunidades ou instituições – mesmo num grupo pequeno como a família, Bernhard identifica tal tendência de sobrevivência por meio da eleição de um membro mais fraco transformado em vítima, logo, em fonte de escárnio e divertimento dos considerados saudáveis ou normais.
O que mais espanta no modo como o autor apresenta esses três tipos de vítimas é o vocabulário usado, o qual se aproxima do utilizado na descrição das experiências ligadas ao Holocausto: já de início emprega sempre dois termos combinados, vítima (Opfer) e aniquilação (Vernichtung), ambos usualmente ligados ao relato das experiências dos campos. No caso do internato, dominado pelo nazista sádico, o retrato é o de um cárcere, no qual os alunos seriam prisioneiros: o autor fala da lotação e condições adversas – 35 garotos abandonados num quarto sujo e fedorento, lutando para sobreviver, onde só se admite obediência e silêncio. A época é dominada por dois medos: primeiro o medo de tudo e de todos, pois não se confia em ninguém, os fortes aniquilando os fracos, depois o medo de Grünkranz, surgindo e punindo de forma arbitrária – a vida inteira o autor continua a sonhar com ex-diretor!
Os relatos de sobreviventes dos campos usualmente coincidem em descrições da arbitrariedade da violência9 empregada pelos guardas como forma de manifestação de poder, das condições difíceis da sobrevivência, da dificuldade em levar-se uma vida normal após os campos; assim ao público de Bernhard, ainda que não fossem especialistas no assunto, é fácil identificar as alusões. Para exemplificar o afirmado, proponho a comparação de trechos da obra do austríaco com trechos de depoimentos de sobreviventes dos campos apresentados no livro de Todorov Em face do extremo.
Aos sobreviventes do Holocausto ficava sempre a dúvida se, fora dos campos, poderiam algum dia ter uma via normal, se seriam felizes novamente. Mas a brutalidade desta experiência produziu em grande parte deles danos irreparáveis: nas palavras de Todorov, “(...) os sobreviventes dos campos se tornaram, na sua grande maioria, pessoas depressivas e sofredoras. A proporção de suicidas é anormalmente alta entre eles, como a de doenças mentais ou físicas” (1994, p. 288). Bernhard em sua descrição dos “sobreviventes” do internato se expressa em termos semelhantes:
(...) o jovem saído ou fugido de uma tal instituição ou internato (...), seja ele quem for e independente do que venha a se tornar, nada mais será do que alguém humilhado até a morte, uma natureza desesperançada, e portanto uma natureza irremediavelmente perdida para o resto da vida, para o resto de uma existência sempre aniquilada (vernichtet) por sua passagem por um tal cárcere educacional na condição de prisioneiro, viva ela ainda quantas décadas for, como ou onde viver (p. 132)10.
Na descrição da população civil, as semelhanças continuam: fome, luta pela sobrevivência, que os torna indiferentes ao sofrimento alheio, “(...) à morte audível e visível desse ou daquele semelhante” (p. 143): “Na cidade, (...) não pensavam em outra coisa que não fosse sobreviver – de que forma, era-lhes já indiferente” (p. 161)11 – essas são palavras de Bernhard, mas poderiam ser dos sobreviventes apresentados por Todorov, como é perceptível na seguinte citação, palavras de Tadeuz Borowski, ex-prisioneiro de Auschwitz: “Tínhamos nos tornado indiferentes ao sofrimento dos outros; para sobreviver, era necessário pensar apenas em si (...)” (p. 40).
E na apresentação dos excluídos, no caso, do garoto aleijado e do professor, a proximidade dos registros prossegue. Vejamos as seguintes observações do autor: “o grau de vileza que a zombaria, o escárnio, a destruição e a aniquilação (Vernichtung) dessas vítimas é tal que sem mais, uma tal vítima é morta” (p. 210), ou ainda “(...) a sociedade ou comunidade de fato experimenta nelas (vítimas) toda a sorte de crueldade e vileza, e o faz quase sempre até matá-las” (p. 211), conclui então que séculos nada mudaram nesse tocante, pelo contrário, “os métodos foram aprimorados, tornando-se ainda mais terríveis e infames” (p. 211)12.
Sem ignorar ou desmerecer o sofrimento das vítimas retratadas por Bernhard, seu estilo é provocador se pensarmos que fala dos austríacos, cristãos, e com todas as ressalvas, pertencentes ao grupo dos considerados responsáveis pelo nacional-socialismo, como se falasse das vítimas do Holocausto, estas completamente ausentes de seu texto. A omissão com relação aos crimes dos campos é no mínimo curiosa, uma vez que ele acusou constantemente, em obras e entrevistas, sua sociedade e seus contemporâneos de nazistas. É ainda mais curioso o silêncio do provocador Bernhard se compararmos sua autobiografia, por exemplo, à da austríaca Ruth Klüger. A autora nasceu em 1931, mesmo ano de Bernhard, ou seja, viveu na Áustria na mesma época em que ele, até ser mandada para um campo de concentração. Na Viena de Klüger, judeus usam estrelas em seus casacos, não podem se sentar nos trens, e aumenta a cada dia o número de estabelecimentos proibindo a entrada de judeus e cães. A Causa narra a infância do autor a partir de 1943, logo se poderia argumentar que os judeus não estavam mais lá, o que justificaria a omissão, pois o narrador se propõe a permanecer fiel à época narrada. Contra esse argumento, no entanto, opõem-se dois outros: a autobiografia do autor constitui-se de cinco volumes, num deles, Uma Criança (Ein Kind), é narrado o período anterior a 1943, no qual também não há referências ao assunto. O outro argumento seria o de que se o Holocausto está fora da percepção da criança, o mesmo não se pode dizer do adulto, e aqui vale observar que o autor não se atém a sua ressalva de apresentar o texto apenas do ponto de vista da criança: a visão do adulto está constantemente presente, estabelecendo relações entre seu presente e o tempo narrado. Sendo assim, tal silêncio é curioso, já que não parece ironia, muito menos tentativa de estabelecer uma equivalência entre as vítimas, como ocorreu no pós-guerra imediato – não há qualquer elemento no texto a sustentar tal afirmação.
É ainda comum nos relatos de sobreviventes dos campos a queixa quanto ao esquecimento, o medo de que em liberdade ninguém queira ouvir sobre seus sofrimentos, como lemos no já citado Todorov: “Primo Levi conta que em Auschwitz ele tinha sempre o mesmo pesadelo: saído do campo, entra novamente e faz um relato de suas desgraças. Mas subitamente, percebe que nenhum dos presentes o ouve (...). Infelizmente, esse sonho tem uma grande parte de verdade” (p. 281). A queixa de Bernhard é semelhante no tom, embora o conteúdo seja outro: “(...) e quando toco no assunto ninguém sabe do que estou falando, todos, ao que parece, sem exceção, perderam a memória das muitas casas destruídas e pessoas mortas, esqueceram tudo ou não querem nem ouvir falar no assunto (...)” (p. 144-145)13. Como a citação mostra, enquanto adulto, o autor apresenta-se na autobiografia como quem aponta verdades inconvenientes, as quais seus contemporâneos querem esquecer, é ele a lembrar os mortos da guerra, mas todos esses mortos são austríacos bombardeados ou soldados. Quanto ao resto de sua família, omite-se de apresentar a perspectiva destes sobre a política de extermínio: o avô era absolutamente contra o nacional-socialismo, criticado sempre de forma abstrata, assim como o neto fez ao longo de toda sua obra, ou seja, por tirar a independência dos homens. Sabe-se que seu tio e padrasto foram soldados da Wehrmacht, mas esses fatos são apenas aludidos, permanecem meras indicações.
É preciso notar ainda que se Bernhard fala das vítimas austríacas como se falasse das dos campos, antes de tudo usa tal proximidade de registros para falar de si mesmo, pois ao apresentar três categorias de vítimas em seu livro, identifica-se com as três: ele é um dos estudantes potencialmente suicidas, é um dos civis nos abrigos anti bombas e é um dos excluídos da sociedade – chega a dizer que na época do ginásio, era o terceiro de uma aliança com o garoto aleijado e o professor de Geografia – , de modo que o autor configura-se no livro como uma espécie de vítima total.
Assumindo uma posição, aliás, bastante cômoda, de vítima, Bernhard exime-se de responder a questão que seu público, na década de setenta, numa sociedade que se define em oposição ao nacional-socialismo, provavelmente colocaria a essa geração de escritores, a qual viveu, ainda que na condição de crianças ou adolescentes, sob esse regime, a saber: tornou-se ele de certa forma culpado? Com isso não se espera que jovens de quatorze anos sejam responsabilizados pelo nacional-socialismo, contudo, a sociedade exige um posicionamento frente ao tema, e enquanto na autobiografia de Bernhard as posições do autor, bem como de sua família estão ausentes, a resposta a tal questão é tematizada nas autobiografias da maioria dos intelectuais que viveram no período14. Se a maioria não pode assumir uma culpa individual, afinal, eram adolescentes ao fim da guerra, assumem uma espécie de culpa abstrata e coletiva, partilhando de responsabilidade por pertencerem ao grupo dos considerados “criminosos”. Essa parece ser mesmo a atitude ética mais aceitável, como considera o já citado Todorov, para quem os habitantes dos países totalitários também seriam responsáveis, cúmplices, culpados por vezes não de matar, mas de “manter o silêncio, de repetir fórmulas perigosas, de levantar a mão direita sem nada dizer” (p. 164).
Nas autobiografias dos intelectuais que cresceram sob o nacional-socialismo é ainda comum haver uma distância entre o eu narrado e o eu narrador, o adulto marcando uma cisão, repreendendo o jovem que fora, como, por exemplo, o faz Christa Wolf em seu Kindheitsmuster (1976). A autora condena a jovem de quinze anos ao fim da guerra, por ter pertencido a uma associação nazista para garotas. Aparentemente Bernhard também pertencera a uma associação semelhante, a Juventude Hitlerista, fato que pode passar despercebido ao leitor, por ser apenas aludido na seguinte passagem “(...) ainda éramos obrigados a vestir o uniforme e a cantar as canções da Juventude Hitlerista aos domingos” (p. 157)15. Essas alusões parecem não afetar a auto-imagem de si como alguém desvinculado da mentalidade de sua época. Diz mesmo que, graças à educação recebida dos avós, “nunca sequer corri o risco de incorrer numa tal fraqueza de caráter e espírito” (p.184)16, ou seja, não há qualquer espaço para partilhar culpa quando se é (ou se sente) vítima tão absoluta, um excluído – o papel que resta ao adulto não é o de confessar algo, mas é o de crítico incômodo, como já mencionado. E, no entanto, cabe a ressalva de que, apesar do sentimento de vítima, a autobiografia apresenta uma história de sucesso, diferente da ficção, na qual lemos sobre loucos e suicidas, aqui o autor mostra como, em suas próprias palavras “(...) eu, sozinho e contra todos, acabei por me tornar cada vez mais forte” (p. 197)17. Assim se a vitimização o exime da responsabilidade ou da necessidade de tematizar os eventos relativos ao Holocausto, também aumenta o mérito do adulto, o qual apesar de todas as adversidades, tornou-se o escritor, e, se há problemas na sociedade, ele nada tem a ver com ela.
Essa é, aliás, a grande cisão presente na obra do autor, substituindo a distância eu-narrado/eu-narrador, presente na maioria dos textos autobiográficos, ou seja, a cisão agora é eu-vítima/mundo-católico-nacional-socialista. No início, Bernhard até utiliza um recurso comum nas autobiografias para marcar distância entre o eu atual e a criança que fora: falar de si na terceira pessoa. Mas tal expediente logo é abandonado, e há ao longo do texto o domínio do “eu”, sinalizando unidade entre o que fora e o que é18. E se por vezes faça a ressalva de pretender narrar o que o garoto de 13 anos sentira na época, não o que pensa hoje – o que poderia até amenizar suas provocações – o autor se trai a todo instante, ao constatar que o que sentia é o que o pensa de fato, ou a intuição da época mostra-se hoje uma certeza – jogo com o qual o leitor se depara ao longo de todo o texto.
Do apresentado podemos concluir que ao apresentar um conceito particular de vítimas e ao se identificar com ele, bem como ao mostrar a proximidade do eu - atual e do eu - narrado, o autor consolida sua imagem de outsider, lembrando que A Causa, primeiro volume autobiográfico, surge para integrar sua vida e a imagem que o leitor construiu do autor a partir de sua obra, bem como para justificar essa imagem de excluído da sociedade, apresentada, aliás, como a única posição aceitável, tendo em vista serem sua pátria e seus contemporâneos caracterizados de forma tão negativa e da continuidade na sociedade e suas instituições estabelecida no texto.
A fim de alcançar seu objetivo, é preciso concentrar-se apenas na própria experiência, apresentando-se como uma espécie de vítima absoluta, o que o exime da responsabilidade coletiva esperada dos austríacos e alemães pelos eventos decorrentes da Segunda Guerra, especialmente o Holocausto, o qual está excluído do texto, embora curiosamente o vocabulário adotado pareça remeter a isso, quando na verdade o autor fala de sua experiência! Tal silêncio por parte do ator não parece ironia, muito menos tentativa de estabelecer uma equivalência entre as vítimas, como ocorreu no pós-guerra imediato – pois a vítima central não é a população, mas sim o próprio Bernhard, embora por vezes pareça transformar esse sentimento de vitimização em uma experiência coletiva, já que não passou pelo internato e pela guerra sozinho. A nós, leitores, como de costume no caso de Bernhard, fica a provocação.

Referências bibliográficas

BERNHARD, Thomas. A Causa. In: _____. Origem. Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
_____. Die Ursache – Eine Andeutung. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 2006.
FLEISCHMANN, Christa. Thomas Bernhard: Eine Begegnung. Wien: Österreichische Staatsdruckerei, 1991.
HOELL, Joachim. Thomas Bernhard. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 2000. KLÜGER, Ruth. Weiter leben. München: Deutscher Taschenbuch Verlag, 1997.
TODOROV, Tzvetan. Em face do extremo, São Paulo, Papirus: 1994.


1 Mestranda em Literatura Alemã da Universidade de São Paulo. Bolsista CAPES. E-mail: patricia.davalos@zipmail.com.br
2 “Meine Literatur, die ich geschrieben hab', hängt ja mehr oder weniger in der Luft, wenn man nicht eindeutig irgendwann einmal sagt, woher kommt das alles, nicht?” (Hoell, 2000, p. 111).
3 As próximas citações de Bernhard, quando se tratarem da mesma obra, conterão apenas a indicação de página no corpo do próprio texto. O original será apresentado sempre em nota: “so ist doch alles in mir (und an mir) aus ihr, und ich und die Stadt sind eine lebenslängliche, untrennbare, wenn auch fürchterliche Beziehung“ (p. 60).
4 “Über Nacht kann, den Katholizismus ablösend, hier wieder der Nationalsozialismus in beherrschende Erscheinung treten, diese Stadt hat alle Voraussetzungen (...)” (p. 102).
5 As críticas às condições meteorológicas são apenas mencionadas de forma provocadora, o autor não se preocupa em desenvolver a alusão ou esclarecer os supostos efeitos nocivos do clima sobre os habitantes.
6 “und es hatte sich für mich zuerst nur in dem Austausch des Hitlerbildes gegen das Christuskreuz (...) unterschieden” (p. 94).
7 “nicht nur wieder alles verloren hat, sondern selbst getötet worden ist” (p. 44).
8 “dieser kleine, glatzköpfige, von unten bis oben unansehliche Mann” (p. 133).
9 “Seguia sentindo medo crescente do Grünkranz, que, onde quer que me encontrasse, chamava meu nome e me dava um safanão sem motivo nenhum: ele aparecia, chamava meu nome e me dava um safanão, como se esse fato, ou seja, o (...) aparecimento da minha pessoa, onde quer que fosse, constituísse pretexto natural para me bater” (p. 159). Não é o mesmo sentimento relatado pelos ex-prisioneiros dos campos, de que era como se sua existência, e só isso, fosse o crime pelo qual estavam sendo punidos?
10 “(...) denn auch der aus einer solchen Anstalt als Internat entlassene Mensch, und von keinem anderen spreche ich an dieser Stelle, ist für sein weiteres Leben und seine weitere immer zweifelhafte Existenz, gleich wer er ist und gleich was aus ihm wird, in jedem Falle eine zu Tode gedemütigte und zugleich hoffnungslose und dadurch hoffnungslos verlorene Natur, als Folge seines Aufenthaltes in einem solchen Erziehungskerker als Erziehungshäftling vernichtet worden, er mag Jahrzehnte weiterleben als was und wo immer“ (p. 25s.).
11 “sie dachten an nichts anderes mehr, als zu überleben, wie, war ihnen schon gleichgültig geworden” (p. 69).
12 “ich habe sehen können, bis zu welchem Grad der Niederträchtigkeit die Verspottung und Versöhnung und Vernichtung solcher Gemeinschafts- oder Gemeinschaftsopfer gehen kann,(...) indem ohne weiteres ein solches Opfer getötet wird.” (p. 137), “(...) und es wird von dieser Gesellschaft als Gemeinschaft oder umgekehrt tatsächlich alles auf dem Gebiete der Grausamkeit und Niederträchtigkeit an ihnen probiert, und fast immer so lange probiert, bis diese Opfer getötet sind.” (p. 137), “die Methoden sind verfeinert und dadurch noch fürchterlichere, infamere geworden” (p. 138).
13 “(...) und kein Mensch weiß, wovon ich rede, wenn ich davon rede, wie überhaupt alle, wie es scheint, ihr Gedächtnis verloren haben, die vielen zerstörten Häuser und getöteten Menschen von damals betreffend, alles vergessen haben oder nichts mehr davon wissen wollen (...)“ (p. 44).
14 Cf. por exemplo: Christa Wolf: Kindheitsmuster (1976), Günter de Bruyn: Zwischen Bilanz. Eine Jugend in Berlin (1990), Günter Grass: Beim Häuten der Zwiebel (2007), Joachim Fest: Ich nicht (2006), Ludwig Harig: Weh dem, der aus der Reihe tanzt (1990).
15 “(...) noch waren wir an den Sonntagen verplichtet, die HJ-Uniform anzuziehen und die HJ-Lieder zu singen” (p. 63).
16 “war ich (...) niemals auch in die Gefahr einer solchen Charakter- und Geistesschwäche gekommen” (p. 98).
17 “war ich (...) vollkommen auf mich und gegen alles gestellt, stark und stärker geworden” (p. 107s.).
18 O uso da terceira pessoa, embora escasso, aparece no texto normalmente em momentos em que o adulto quer marcar explicitamente sua não identificação com as idéias da criança, por exemplo, quando o garoto revolta-se com o avô por tê-lo posto no internato. Se na época a criança era “incapaz sobretudo de entender a atitude do avô, responsável direto por sua educação, (...) hoje sei que meu avô não teve escolha (...)” (p.131). Na passagem, a volta ao uso da primeira pessoa mostra a compreensão do adulto frente à figura do avô, seu grande mentor, daí a necessidade de preservar a imagem do mesmo.

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