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Literatura e Autoritarismo
Dossiê “Escritas da Violência”
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê  

LINGUAGEM E MORTE EM UM CONTO DE CAIO FERNANDO ABREU

Valéria de Freitas Pereira1
Resumo: Este trabalho pretende fazer um estudo do conto “Morte segunda”, de Caio Fernando Abreu, publicado no livro Inventário do irremediável, primeira obra do autor, lançada em 1970 pela Editora Movimento. Nossa referência teórica se pauta por reflexões de Walter Benjamin e objetiva propor hipóteses interpretativas a respeito de algumas opções formais adotadas por Abreu ao tratar da categoria morte. As referências à violência, à opressão, a linguagem polissêmica, numa interpretação alegórica, permitem a associação do conto ao contexto de repressão social e política da época de sua produção.
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu, Inventário do irremediável, repressão, morte.
Abstract: This work is a study about the short story “Morte segunda”, by Caio Fernando Abreu, included in the book Inventário do irremediável, the first one by this writer, published in 1970 by Editora Movimento. We take Walter Benjamin as our main theoretical reference in order to purpose interpretative hypotheses regarding some formal options followed by Abreu when he works on the category death. The references to violence, oppression, the polyssemic language, in an allegorical interpretation, allow to associate the story to the context of social and political repression at the time it was written.
Keywords: Caio Fernando Abreu, Inventário do irremediável, repression, death.

Este trabalho pretende fazer um estudo do conto “Morte segunda”, de Caio Fernando Abreu, publicado no livro Inventário do irremediável, primeira obra do autor, lançada em 1970 pela Editora Movimento.
Narrado em primeira pessoa, o conto se passa durante a noite e o narrador-personagem está insone. Embora se localize inicialmente em meio aos sons tipicamente noturnos e posteriormente em meio aos primeiros barulhos das pessoas na rua pela manhã, a narrativa não é linearmente composta.
Os momentos vivenciados pelo narrador-personagem trazem imagens de memória involuntária2 e ele tenta, a partir de tais imagens, elaborar a própria experiência. Entre as reminiscências que atormentam seus pensamentos, aparece a figura de Clarice, a quem o narrador era ligado afetivamente. Ele lamenta a ausência dessa mulher e, mais do que isso, a tristeza que a envolvera: “Clarice. Por que você não ri mais? Por que o tempo te encobriu as cirandas? Onde ficou o encontro das mãos na roda de entardecer?” (Abreu, 1970, p. 30).
Clarice está distante e, ao que parece, o narrador-personagem vê sua imagem num porta-retrato: “Passei de leve os dedos em torno da moldura, circundando o limite do rosto de Clarice. O toque de vidro feria os meus dedos, mas eu prosseguia além da moldura, do vidro, rompendo com o tempo, com a distância – num tempo outro colhi tuas lágrimas” (Abreu, 1970, p. 31).
Nesse trecho o deslocamento pronominal da terceira pessoa (rosto de Clarice) para a segunda (tuas lágrimas) sugere um atendimento à demanda emergente de o narrador expressar sua subjetividade.
A linguagem fragmentada, composta pelo uso reiterado de palavras como “medo”, “pavor”, “angústia”, “desamparo”, “pânico”, “desespero”, “lágrimas”, permite-nos aliar esse vocabulário a um sujeito extremamente fragilizado, precário, descrente da proteção divina, condicionado a uma vida de opressão e sufocamento. O opressor não é nomeado ou revelado, e isso torna o texto ainda mais angustiante.
Para o pensador Walter Benjamin, que prioriza o fragmento, as possibilidades da linguagem, a polissemia que mantém o debate em aberto, ao realizarmos um estudo das cifras do texto, do que ficou implícito em seus meandros, aumentamos potencialmente as chances de atingir a profundidade do conteúdo, pois em vez de o recebermos como critério de verdade, estamos promovendo o rompimento com a automação da leitura e abrindo espaço, de modo arendtiano, para a capacidade de reflexão e julgamento.
Jeanne Marie Gagnebin, comentadora de Benjamin, em seu ensaio “Alegoria, morte, modernidade”, retoma a contraposição da temporalidade e da historicidade da linguagem alegórica ao ideal de eternidade da linguagem simbólica. Ela recupera o lugar da alegoria no cristianismo não como interpretação, mas como essencial para a história da salvação. Lutero teria se rebelado contra as hierarquias eclesial e dogmática, desejando alcançar a partir da Bíblia, e sem a intermediação do sacerdote, um sentido literal e seguro para a vida do espírito, algo que a alegoria não pode oferecer. Isso ressoaria no Renascimento e mesmo na crítica moderna.
A pensadora analisa a reabilitação que Walter Benjamin faz do valor do tempo e da história, explicando que ele não recusa o símbolo, e sim “sua redução à simples relação entre aparência e essência” (Gagnebin, 2004, p. 35). Quanto à sua arbitrariedade, tão criticada, Benjamin a valoriza por ser uma espécie de abandono da arte como ideal de um mundo belo e harmônico.
A articulação tensa, no período Barroco, entre o teocentrismo medieval e a prioridade da razão no Renascimento, refletida especialmente na violência das guerras religiosas, impossibilita que a arte aspire a formas de reconciliação. Evidencia-se a precariedade humana diante do eterno, espaço intervalar que Benjamin julga privilegiado para a linguagem alegórica. Nas palavras de Gagnebin:
Enquanto o símbolo aponta para a eternidade da beleza, a alegoria ressalta a impossibilidade de um sentido eterno e a necessidade de perseverar na temporalidade e na historicidade para construir significações transitórias. Enquanto o símbolo, como seu nome indica, tende à unidade do ser e da palavra, a alegoria insiste na sua não-identidade essencial, porque a linguagem sempre diz outra coisa (allo-agorien)3 que aquilo que visava, porque ela nasce e renasce somente dessa fuga perpétua de um sentido último (Gagnebin, 2004, p. 38).
Sendo assim, a alegoria não permite síntese, pois as várias interpretações possíveis geram impasses e antagonismos. O conceito de conhecimento para Benjamin está sempre em construção. Sob essa ótica, como nos explica Gagnebin, a alegoria só seria arbitrária para uma concepção de conhecimento que previsse transparência e definição imediatas, aquela que se adequaria mais à linguagem do símbolo. Para Benjamin, o fim da história de um sujeito se resume a seu próprio cadáver. Seria essa a única determinação possível, a única síntese aceitável. Diz ele: “Do ponto de vista da morte, a vida é o processo da produção do cadáver” (Benjamin, 1984, p. 241).
No conto em análise, não fica inteiramente definido se Clarice está morta ou não, mas o narrador-personagem descreve como essa mulher construía a imagem de sua própria morte, a primeira morte, ou seja, a separação entre corpo e alma: “Um dia, quando eu morrer, vou entrando devagar no mar, deixando a água subir de leve, até me conter inteira o verde das ondas quebrando contra o meu não-ser” (Abreu, 1970, p. 31).
O texto apresenta uma epígrafe transcrita do Apocalipse: “Aquele que vencer não sofrerá a danação da segunda morte” (Abreu, 1970, p. 29). E a primeira frase é assim elaborada: “Hoje morri pela segunda vez” (Abreu, 1970, p. 29).
Podemos pensar, a partir da epígrafe e da frase inicial, que, se o narrador-personagem recebeu a danação da segunda morte, é porque ele foi vencido. E a partir de sua falha ele constrói sua danação, sua segunda morte, ou seja, a separação entre sua alma e Deus.
Ele diz não conseguir se lembrar de quando sofreu a primeira morte e não está em paz. Bem distante disso, sente a morte como a violência de um “galope de cavalo em espanto machucando meus olhos” (Abreu, 1970, p. 29).
A temporalidade descontínua também é um elemento que nos leva ao caráter alegórico do texto. O sujeito é precário, não tem expectativa de que essa constituição lacunar se complete de alguma maneira. Não há esperança em um horizonte pleno de sentido. O tempo do conto varia entre o passado vivido e o presente intolerável que o narrador-personagem enfrenta. No passado, ele registra a convivência com Clarice, os gestos contidos e discretos dessa mulher em oposição à violência dos gestos feitos por ele. No presente ele narra os elementos percebidos no doloroso passar das horas noturnas que envolvem sua insônia. Mas o ato de morrer, a construção da morte, acontece nos dois tempos. Apesar de o texto ter início com o pretérito perfeito “Hoje morri pela segunda vez”, a descrição dessa mesma segunda morte também se faz lenta, como podemos ver em: “O entorpecimento dos membros ultrapassa a carne, meu centro vai cerrando as pálpebras” (Abreu, 1970, p. 30). Ou ainda em: “Já não sinto mais os pés, meus joelhos pálidos se entrechocam, minhas mãos aprisionam movimentos – liberto do corpo, em que esfera me perderei?” (Abreu, 1970, p. 31).
No ensaio “O narrador – Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, Benjamin lembra as reflexões de Paul Valéry em relação aos artistas que antigamente tentavam imitar a paciência da natureza ao criar os mínimos detalhes das iluminuras, dos entalhes, e cita suas conclusões: “dir-se-ia que o enfraquecimento nos espíritos da idéia de eternidade coincide com a aversão ao trabalho prolongado” (Valéry apud Benjamin, 1996, p. 207).
O crítico frankfurtiano considera que, como a idéia de eternidade sempre esteve muito ligada à morte, esse enfraquecimento também pressupõe a mudança na própria categoria morte. Em sua análise, vem ocorrendo o esmaecimento da idéia de morte. Para ele, a sociedade burguesa evita o espetáculo da morte, que de pública passa a ser privada. Se na Idade Média, consoante também os estudos de Phillipe Ariès, o leito de morte era aberto a visitação, hoje os mortos esperam o sepultamento em espaços cada vez mais depurados. Benjamin concebe que no momento da morte a sabedoria se torna transmissível. Ele acredita que na hora da morte qualquer pessoa tem uma autoridade que é a origem da narrativa, porque é a história natural que está ali. É a inscrição da narrativa na história natural.
Examinando o conto a partir desse ponto de vista, podemos aventar a hipótese de que o narrador-personagem vai na contramão da modernidade, negando-se a rejeitar a idéia da morte. Além de admiti-la, ele a elege como opção para superar a dificuldade de elaboração da experiência. A perda que não pode ser reposta é convertida em uma chance de resistência e de superação do sofrimento desse sujeito, numa revisão da posição que tradicionalmente a morte ocupa em nossa sociedade.
Em vez de chegar sem aviso, aqui a morte é esperada, imaginada e processualmente construída. Mas essa aceitação não é vista como um humilde acolhimento, como soia acontecer no mundo medieval, e sim como uma transgressão aos valores impostos pelo sistema autoritário. Acreditamos poder considerar que, como pensava Benjamin, se “do ponto de vista da morte, a vida é o processo da produção do cadáver”, construir a própria morte é adotar o ponto de vista dessa mesma morte, deslocamento este que gera estranhamento e desorientação.
Esse estranhamento envolve ainda outros aspectos do conto, que chama a atenção também por decompor imagens familiares e cotidianas em imagens que causam espanto no leitor, numa espécie de desconstrução do estado normativo das coisas. Há, por exemplo, frestas de luz metaforizadas em “teimosia de coisa oprimida” que adentra o ambiente escuro do conto; prosopopéias instigantes que fazem os cães gritarem em vez de uivar; lençóis comparados a “chumbo quente sobre a carne nua”, a gravidez equiparada a um “câncer devorando as entranhas”, a um “desespero das fêmeas”. São notáveis ainda inúmeras frases e expressões que suspendem a normalidade das situações como: “medo verde, de grandes olhos desvairados e voz de cadela no cio; medo de movimentos incontidos”, “investigava sua alegria, num temor repleto”, “despedaçando a vida dos cães calados”.
As referências à fragilidade humana, à opressão, à violência extrema, configuradas por uma linguagem polissêmica, numa interpretação alegórica, permitem uma proximidade do conto com o contexto político da época de sua produção, quando muita vez a força repressiva do Estado era letal. Acreditamos que as imagens construídas a partir da inversão da ordem das coisas tal como estamos acostumados a vê-las podem ser associadas a uma posição de enfrentamento ao silêncio e à submissão previstos pelo autoritarismo.
Os deslocamentos pronominais sem prévio aviso ou sinais gráficos comuns aos diálogos, a ausência de parágrafos, o uso recorrente de figuras de linguagem que arquitetam imagens violentas, assim como a opção por uma construção processual da própria morte feita pelo narrador-personagem, no caso, a oposição firmada por um sujeito que, na ambigüidade do gesto agônico e redentor, depende dessa construção da própria morte para resistir a ela, podem ser vistos como pontos de tensão interna, recursos formais que exprimem, de algum modo, a desorganização do sujeito e as incertezas advindas de um momento social farto de conturbações.

Referências Bibliográficas

ABREU, Caio Fernando. Inventário do irremediável. Porto Alegre, Movimento, 1970.
ARIÈS, Philippe. História da morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1977.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: _____. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo, Brasiliense, 1996. (Obras escolhidas, v. 1)
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Alegoria, morte, modernidade. In: _____. História e narração em Walter Benjanim. São Paulo, Perspectiva, 2004.


1 Mestranda em Literatura Brasileira na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Orientador: professor doutor Jaime Ginzburg. E-mail: valeriafreitas@usp.br
2 Walter Benjamin entende que para promover o não esquecimento da barbárie e constituir do processo histórico de maneira mais justa, torna-se fundamental valorizar o papel da memória na reconstrução do passado a partir do presente. Para esse pensador, a memória voluntária, por servir à consciência, só recupera as imagens que o sujeito deseja, deixando de lembrar, propositadamente, muitos elementos constantes do tempo decorrido, como os genocídios, por exemplo. A memória involuntária, por sua vez, traz lembranças que independem da vontade, possuindo grande valor emocional, pois acontece a partir das situações afetivas. Para ele, é preciso relevar a memória involuntária, para recordarmos os que foram vencidos e esquecidos, para darmos voz aos que foram calados e mortos pelos regimes autoritários.
3Allo: ‘outro’; agorein: ‘dizer’” (Gagnebin, 2004, p. 32).

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