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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Cultura Brasileira Moderna e Contemporânea"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê 

A LINGUAGEM DOS DIREITOS HUMANOS EM SÃO BERNARDO

Isabel de Sousa Ramos1
Resumo: Este trabalho centra-se na questão inerente ao narrador de São Bernardo e sua negatividade constituinte, evidência da problematização do lugar do intelectual na sociedade brasileira se atentarmos à relação entre Madalena (o intelectual) e Paulo Honório (o iliterato). Ou seja, o propósito da narrativa parece ser o de esclarecer a conexão existente entre o lugar de enunciação adotado por este narrador e a sua intenção de ilustrar a incapacidade debilitante da camada intelectual de agir sobre e/ou transformar efetivamente as situações de precariedade, injustiça e violações dos Direitos Humanos, devido a uma inexorável inadequação linguística.
Palavras-chave: Linguagem, Direitos Humanos, Intelectualidade.
Abstract: This paper is based on the issue of São Bernardo’s narrator and its constitutive negativity, which noticeably questions the place of the intellectual in Brazilian society, palpable in the relationship between Madalena (the intellectual) and Paulo Honório (the illiterate). Therefore its chief purpose is to clarify the connection between the place of the subject of enunciation and its intention of illustrating the damaging inability of intellectuals to act upon and / or transform precariousness, injustice and human rights violations, due to inadequate linguistic interaction.
Keywords: Language, Human Rights, Intellectuals.

1. O emprego da linguagem negativa
As páginas iniciais de São Bernardo revelam-nos de forma crua e indiscutível uma negatividade peculiar, adensada tanto pela linguagem empregada bem como pelo fato de seu narrador se auto-apresentar como ignorante, como iliterato. Se enquanto leitores esta postura nos parece controversa e nos suscita suspeita, logo percebemos que estamos perante um narrador perfeitamente consciente das suas limitações em termos de expressão linguística e narração, o que, por sua vez, está associado ao problema da memória, tanto mais pelo fato de este estar simultaneamente elaborando uma narrativa sobre si mesmo. Além disso, posteriormente, percebemos que a origem desta negatividade constituinte é uma experiência de sofrimento que conduz ao pessimismo e ao estado de melancolia.
Paralelamente, nas páginas do romance começa a desenhar-se um afastamento consciente do mundo intelectual brasileiro, cujo pilar fulcral é a discussão acerca da linguagem a se utilizar. De fato, a linguagem empregada em São Bernardo parece-me ser um dos primeiros índices da existência de uma mensagem latente que tenta denunciar a atitude pedante e descomprometida por parte de alguns membros da intelectualidade.
Desde seu início, convêm salientar a forma como os encontros para discutir a narrativa se constituem entre Paulo Honório, Gondim e Nogueira. Tais encontros são descritos como reuniões de intelectuais onde reina o egoísmo e o desejo de auto-afirmação, sem nenhuma tentativa evidente e palpável de cooperação e entreajuda.
Além disso, esta discussão inicial revela-se importante por debater o tipo de linguagem que deveria ser empregada. Antônio Cândido caracteriza a linguagem de São Bernardo tendo em conta a “vocação para a brevidade e para o essencial” (Cândido, 1992, p. 16). De fato, esta linguagem simples, despojada, próxima da oralidade desempenha, em minha opinião, uma dupla função. Por um lado, deve ser assumida como uma clara atitude modernista, de recusa da norma e do cânone clássico. Aliás, o narrador informa-nos de que não pretende escrever em consonância com as regras linguísticas estabelecidas. Por outro lado, essa opção simboliza um afastamento intencional do autor da classe intelectual dominante, reforçado pela constante reiteração de negatividade e pela alegada ignorância deste narrador. Esta é, em meu entender, a única forma de entender a incongruência aparente entre um narrador supostamente inculto e a sua prosa.
Com efeito, existe uma tensão latente entre o que o narrador expressa e a forma como escreve, empregando palavras que estariam fora do alcance da compreensão de alguém que aprendeu a ler e a escrever durante os três anos que passou na cadeia. Tal tensão é considerada por alguns críticos, como é o caso de Pedro Lins, como eventual incongruência e inverosimilhança, embora essa justificativa expresse, na realidade, uma função ulterior de distanciação. Ou seja, assim como Izabel Brunacci afirmou, trata-se de uma configuração
de elaboração da escrita literária que recusa o mero artifício estético da literatura voltar-se para si mesma para perscrutar técnicas e procedimentos discursivos, ela passa a questionar a função mesma enquanto elemento do conjunto das práticas de dominação que se processam no interior do processo civilizatório e são, geralmente, escamoteadas pela historiografia. (Brunacci, 2008, p. 132).
Logo, tal simplicidade estilística e vocabular deve ser entendida como virtude e evidente rejeição dos códigos e convenções representativas, uma substancialidade pautada pela integração de elementos linguístico-temáticos até então vedados a ele.
Todavia, esta multiplicidade de interpretações não se esgota no debate dos aspectos formais de São Bernardo abrangendo simultaneamente os seus aspectos temáticos. Desde cedo, uma das interpretações mais comuns é efetivamente a de caráter capitalista. Por exemplo Júnior Benjamin salienta a “orientação reificadora” (Júnior, 1981, p. 29) de São Bernardo, definindo Paulo Honório como um capitalista que não observa a qualidade dos meios que visam a realização dos seus fins, pois esta personagem é condiciona pela dinâmica do desejo, entendendo a prosperidade econômica como auto-justificativa.
Por sua vez, Floriano Gonçalves propõe uma leitura tendo em consideração a dialética homem-natureza, afirmando a existência de uma luta individual contra a sociedade, enquanto que Pucinelli sugere uma análise igualmente dialética, segundo a qual Madalena e Paulo Honório representariam o “dilema social brasileiro de mudança” (Pucinelli, 1975, p. 410), ou seja, as pulsões de continuidade e modificação, tradição e ruptura. Sendo assim, segundo o crítico os valores tradicionais não se mantêm na sua totalidade, o que explicaria a relativa mudança de Paulo Honório, mesmo que esses também não sejam substituídos por novos, o que adensa a negatividade.
Em vista disso, tendo em conta as perspectivas que acabei de enunciar, parece-me indiscutível que São Bernardo nos permite uma leitura dialética. No entanto, segundo o meu ponto de vista, a dialética mais relevante, e até ao momento pouco compreendida, é a dicotomia intelectual/ileterato2.
De fato, esta dialéctica manifesta-se antes de mais nada na caracterização das personagens. Com efeito, Madalena é desde o início caracterizada como alguém intelectualmente superior não só por ser professora mas também porque escreve artigos para o jornal local, o que sublinha a sua função de intelectual na obra, assim como o fato de passar horas a fio a escrever. De forma contrastiva, Paulo Honório se auto-apresenta ao leitor como completo ignorante nos assuntos de Letras, pois tudo o que ele conseguiu foi através de trabalho físico e pesado, pautado por processos irregulares e violentos. Além disso, a personagem possuiu uma inabilidade constitutiva para se relacionar com outros, que pode derivar da sua educação e profissão, havendo uma ambiguidade e uma assimetria entre aquilo que conseguiu enquanto proprietário e o que conseguiu enquanto ser humano.
Além disso, Paulo revela-se como alguém incapaz de idealização, inapto para arquitetar a imagem da mulher com quem deseja casar, isto porque como o capitalista que é, tem a tendência de coisificar tudo e todos, mas também porque a sua capacidade de reflexão é limitada. O protagonista é assim totalmente dominado pelo impulso da ação, da execução, do trabalho físico, pela acumulação de capital, pelo menos até ao momento da morte de Madalena. Aliás, quando afirma não gostar de mulheres inteligentes, torna-se óbvio que este comentário tem por base um receio de lidar com categorias que não compreende, como por exemplo abstração e argumentação, aliado nitidamente a um pensamento altamente marcado pelo patriarcado, sobretudo evidente no constrangimento que sente, tanto na esfera pública como na esfera privada. Isso fica evidente quando interage com Madalena, pois ela suplanta-o a todos os níveis.
Tal eloquência é mais um dos muitos indícios de que Madalena representa em termos alegóricos o intelectual brasileiro que se sente co-responsável pela situação dos outros, sentindo uma responsabilidade ética e moral para com estes. É uma figura extremamente humanitária, esclarecida e sensível, o que parece ser ainda mais profundo por se tratar duma personagem feminina, que visa operar transformações e que deste modo interfere na rotina de domínio e exploração de Paulo Honório. Paralelamente ela também simboliza a voz da resistência contra a opressão e o autoritarismo do seu marido bem como do sistema político-social implantado.
No entanto, perante a impossibilidade de mudança, aliada a sua intolerância relacional, a personagem suicida-se, o que demonstra a inexistência duma eventual síntese desta dialética, sobretudo porque se cria um impasse e um fosso abismal entre o intelectual e o iletrado e ambos não conseguem criar uma ponte de comunicação eficaz. Isso fica evidente pelo fato de Madalena não conseguir adequar seu discurso ao do marido, nem sequer logra fazê-lo entender o seu ponto de vista, optando por uma confrontação constante. Paulo, por sua vez, devido à sua incapacidade relacional e comunicativa, é incapaz de penetrar no mundo de sua mulher, tão pouco consegue conhecê-la. Isso é o que origina os constantes ataques de ciúme e desconfiança, adensados pelo fato de ele sentir-se inferior a ela em termos intelectuais e físicos.
É efetivamente esta impossibilidade de síntese e a consequente emulação de Madalena, aliada à narração em primeira pessoa, que imprimem a São Bernardo um tom confessional, modelado pela melancolia e negatividade. Este aspecto do enredo é enfatizado, sobretudo, porque se cria uma bipolaridade entre o ‘eu’ que experienciou a ação e o ‘eu’ que narra a ação, este mais contemplativo.
Todavia, é importante salientar que esta atitude melancólica e negativista é partilhada pela própria voz autoral. Tal paralelismo é fundamental para desvendar a mensagem ulterior desta obra, e isto se ponderarmos especialmente a ideia da relação intrínseca entre melancolia e crítica, desenvolvida por Walter Benjamin. Sendo assim, é a melancolia autoral que permite elaborar uma crítica voraz à intelectualidade brasileira, centrada sobre si mesma e repleta de artifícios, pelo que se torna manifesto o processo de questionamento social levado a cabo em São Bernardo através da mediação ficcional.
Paralelamente, de outra forma não seria possível explicar certas escolhas discursivas, nomeadas de interlocução dialogal, que ameaçam o autoritarismo de Paulo Honório e a sua incongruente construção déspota. Maria Paulino afirma que:
O narrador não nega a sua intenção de contar sua história pessoal, o que deveria levá-lo a centrar a narrativa em seu próprio discurso. Além disso, baseando-nos em diversos procedimentos do Paulo Honório personagem, esperaríamos mesmo que o Paulo Honório narrador tentasse reduzir tudo a si próprio, sem dar lugar à expressão alheia autônoma (Paulino, 1981, p. 51)
Ou seja, esta heteroglossia expõe um comentário social e axiológico, uma vez que o dar voz aos outros personagens faculta uma “ambivalência axiológica”, e simultaneamente “um ataque monológico ao autoritarismo” (Paulino, 1981, pp. 55-56). Aliás, Antônio Cândido observou que “os interlocutores não falam à toa, e a impressão é que duelam” (Cândido, 1992, p. 70), visto que em alguns momentos o dominante é a própria cena que apresenta o diálogo das personagens, sendo que o narrador se retira para que o leitor possa julgar por si mesmo a situação apresentada. Alguns destes momentos vão mesmo contra a narratividade construída e seu estilo despojado por não serem breves, limitados ao essencial, como por exemplo a longa discussão sobre política.
No entanto, o mais pertinente é que o próprio narrador afirma que “Talvez deixe de mencionar particularidades úteis que me parecem, acessórias ou dispensáveis” (Ramos, 1979, p. 10); salientando que “Reproduzo o que julgo interessante. Suprimi diversas passagens, modifiquei outras” (Ibidem, p. 77). Contudo, se a narração é efetivamente seletiva e nos demonstra o ponto de vista de Paulo Honório, como podemos explicar o fato de certos momentos serem tão demarcados e como podemos explicar até mesmo essa seleção. Realmente tal interlocução revela a existência de uma mensagem latente a ser decifrada.
Sendo assim, o lugar de enunciação e as escolhas linguístico-discursivas patenteiam a existência de uma relação intrínseca entre o papel da literatura e o papel do direito, em geral, e dos Direitos Humanos, em particular, sendo esta, na minha opinião, o significado ulterior da obra. Portanto, Graciliano Ramos opta por demarcar momentos específicos com a intenção de denunciar a violação de Direitos Humanos que perdura na atualidade.

2. A questão dos Direitos Humanos
São Bernardo apresenta-nos o mundo da oligarquia rural e a sua modernização nas primeiras décadas do século XX, evidenciando os efeitos nefastos desse imperativo que acentuam as desigualdades sociais e a discrepância entre ricos e pobres.
De fato, a temática dos Direitos Humanos transparece nas páginas iniciais quando Paulo Honório caracteriza Gondim como sendo um periodista que escreve o que lhe mandam, o que patenteia a corrupção aliada à falta efetiva de liberdade de imprensa. Outra das personagens importante neste sentido é, sem dúvida, Costa Brito que reitera essa mesma imagem do periodista. Mas esta figura é fundamental também para percebermos que o suborno está diretamente relacionado com a publicação de notícias. Diante dele, Paulo Honório reconhece a não existência da liberdade de imprensa, aspecto por demais provocativo da narrativa se levarmos em conta que Graciliano Ramos trabalhou em vários jornais, tendo conhecimento de organismo interno.
Paralelamente, outro dos direitos políticos e civis referenciados é o da tortura, quando Paulo Honório nos conta o episódio em que esfaqueou João Fagundes e foi preso, tendo sido submetido a atos de atrocidade. A tortura é apresentada de forma vulgar e rotineira o que reforça o fato de ser espantosamente aceita como prática ‘normal’ mesmo ainda nos dias de hoje.3
No entanto, a sua relação com a polícia muda bastante a partir do momento em que se torna proprietário. Por exemplo, o assassinato do Mendonça, não chega a ser investigado e Paulo nem sequer é considerado suspeito. Tal morte demonstra como as violações do direito à vida estão impunemente impregnadas na sociedade brasileira, acarretando qualquer tipo de consequência ou reação policial. Paralelamente evidencia a existência do que Sérgio Pinheiro designa de “regime de exceção paralelo” dissimulado (Pinheiro, 1991, p. 48), pois enquanto pobre, Paulo é preso e torturado por ter esfaqueado alguém, mas após ascender à classe dominante, após se transformar em proprietário e ter capital, apenas é advertido depois de ter espancado o jornalista, e porque tal foi feito em público. Em vista da sua atual condição, o espancamento do funcionário nem sequer tem relevância, pois é perpetrado na fazenda, para não mencionar as terras que rouba dos vizinhos.
Contudo, estes elementos destacam uma crítica ao sistema judicial e à própria justiça. Aliás o próprio narrador assegura que adotou processos irregulares, não só pelo fato de a Justiça ser dispendiosa e desde logo acessível apenas à minoria privilegiada da população, mas também porque o sistema em si mesmo é lacunar, sendo pautado pela corrupção, discriminação social e racial bem como pelo comodismo que impede transformações.
Com efeito, está patente em São Bernardo de forma inequívoca a aliança entre o poder político, econômico e judicial, os laços de cordialidade a que Sérgio Buarque se referia. Tal rede de corrupção, baseada em violência e suborno, de que fazem parte Casimiro Lopes, Gondim, Padre Silvestre, João Nogueira e todos os políticos da terra, comprova a existência de uma espécie de microdespotismo, cuja figura central é Paulo Honório.
Todavia, este micro-despotismo revela simultaneamente a falta de jurisprudência do sistema judicial neste meio social num momento em que se assistia a uma tentativa de implantação da ordem judicial estatal e sua institucionalização, representada pela figura do Sr. Ribeiro que, com o advento da nova ordem, deixa de ter a função social que havia desempenhado até aí. Além disso, sublinha a impregnação do sistema judicial por uma noção de impessoalidade e negociabilidade, que permanece como reminiscência do passado.
Sendo assim, tal ilegalidade e impunidade característica das práticas repressivas da classe dominante, expressa-se particularmente através da violência, o que explica a presença de episódios violentos em São Bernardo. Para além dos episódios já referenciados existe um que realmente se sobressai pela descrição minuciosa, quando Paulo Honório agride Marciano. Tal cena relata uma clara violação do direito a tratamento humano, permeado por preconceitos discriminatórios mas torna-se definitivamente mais contundente pela intervenção e pelos questionamentos de Madalena.
Ou seja, no entender de Paulo Honório a violência que exerce é tida como natural e banal, visto que na sua apreciação “Marciano não é propriamente um homem.” (Ramos, 1979, p. 110), porque não é branco e porque é pobre. Este mesmo tipo de preconceito torna-se visível quando afasta a possibilidade de sua mulher poder ter eventualmente um caso com um dos trabalhadores. Tal princípio de exclusão justificaria a reprodução da sujeição a que foi submetido, que nos aparece em São Bernardo como uma inevitabilidade, reiterando “a violência de uma sociedade que legítima e que reproduz os mecanismos dos quais é vítima, metamorfoseando-se rapidamente de oprimida em opressora.” (Junqueira, 1998, p. 144), tanto mais que o protagonista deve a transição de assalariado a proprietário ao seu aspecto físico, caso fosse negro tal movimentação seria vedada.
Portanto, Paulo Honório personifica a figura do capitalista patriarcal predatório, o que nos permite entender igualmente a sua posição relativa à educação, dado que os ímpetos capitalistas são claramente desfavorecidos com o letramento, este se tornando um inconveniente. Logo a protagonista encarna perfeitamente esta postura ao reprovar a existência do Grêmio Literário e Recreativo, assegurando a inutilidade da biblioteca. Convém salientar que a construção da escola na sua propriedade tem como única função agradar às autoridades públicas, não tendo nenhum tipo de objetivo altruísta.
De fato, esta percepção da construção da escola como um negócio, é mais uma crítica mordaz à classe dominante e ao seu desprezo com o direito à educação de todos. Além disso, este comentário é particularmente significativo num momento em que se empregava a educação em massa de futuros operários, tendo em vista a sua integração na crescente atividade industrial. Com isso, Graciliano Ramos censura uma política educativa centrada no instrumentalismo e autoritarismo que nega a criação de uma capacidade crítica individual.
Por um lado, o autor parece estar ciente de que “a educação pode ser instrumento para convencer as pessoas de que o que é indispensável para uma camada social não o é para outra” (Cândido, 1989, p. 111). Por outro lado, a tensão entre educação instrumental e educação reflexiva faz parte desta exegese, sendo Paulo Honório e Madalena, respectivamente, os representantes de cada uma, o que reitera a dicotomia iletrado/intelectual. Paulo acredita apenas na aprendizagem através da experiência pragmática, adotando uma atitude tipicamente capitalista e mecanicista de não atribuição de qualquer funcionalidade ao saber teórico e à produção escrita, criticando por isso a improdutividade de Madalena, pelo fato da sua dedicação não ser palpável em termos aquisitivos.
Assim sendo, por tudo que já foi apresentado, torna-se incontestável o fato de a discussão dos Direitos Humanos estar disseminada em São Bernardo. Aliás apesar de Paulo Honório ser um narrador-personagem, capitalista e reificador, este demonstra, mesmo assim, uma réstia de bondade e interesse pelo outro, que se pode interpretar como influência da sua própria experiência negativa e penosa, como se tivesse aprendido algo humanitário, mas que já está patente antes mesmo de conhecer Madalena. Logo, tais atitudes, por contraste, dilatam a amplitude crítica de São Bernardo, uma vez que, apesar de toda a negatividade que nos é dada a conhecer sobre esta personagem e sua exploração do outro, existem momentos de humanidade na narrativa.
No entanto, em alguns desses episódios é difícil discernir se a voz de Paulo Honório se refere ao tempo da enunciação ou ao do enunciado, nomeadamente nas seguintes situações: “aqueles desgraçados que se apertavam lá em baixo ao pé da cerca”; “essa cambada vivendo com a barriga tinindo”; “Impressionado com aquela pobreza”; “As casas dos moradores eram úmidas e frias. A família do Mestre Caetano vivia num aperto que fazia dó.” (Ramos, 1979, p. 48, p. 56, p. 116 e p. 177)
Contudo, em outros instantes torna-se evidente a pré-existência de uma sensibilização, mesmo que débil, visto que, mesmo tendo retirado algumas das terras das filhas do Mendonça, em um ponto da narrativa decide ajudá-las a evitar que outros se apoderem das suas terras. É claro que tal conduta está igualmente relacionada com o fato de ele achar que elas seriam incapazes de se defender sozinhas por serem mulheres, mas revela cumulativamente que Paulo tem perfeita consciência de que vivem num meio predominantemente patriarcal, onde a mulher é submissa e não possui autonomia, sendo os papéis e ações pré-determinados, embora ele chegue mesmo a questionar o motivo inerente a estas convenções sociais: “Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costume de viverem os machos apartados das fêmeas.” (Ramos, 1979, p. 65)
De fato, Paulo apercebe-se das desigualdades sociais, ele vivenciou-as, o que o torna mais susceptível a essas desigualdades, embora defenda-se de sua própria indiferença, ou inação, pois alega que ajudar todos os indigentes seria a sua ruína. Além disso, é digno de nota igualmente que ele dá presentes à Rosa, e tem também despesas para procurar, trazer e manter Margarida. Nesse aspecto, Madalena e Margarina funcionam como os dois arquétipos femininos na obra, sendo efetivamente a grande fraqueza da protagonista. Por fim, ela acaba por conceder os pedidos de ambas, consciente ou inconscientemente, como quando pede o material escolar no valor de seis mil-réis, revelando assim, sem se aperceber, pelo valor e conteúdo da encomenda um claro lapso freudiano.
Outra menção no romance que julgo enquadrar-se nesta descrição da desigualdade estrutural por ser interpretada de modo polissêmico, tendo em conta o desenrolar da narrativa, é quando Paulo Honório caracteriza as pessoas com quem conviveu de bichos. Sinceramente, parece que esta afirmação não deve ser interpretada apenas como desprezo pelo semelhante de condição social inferior. Antes, acredito que revela cumulativamente uma amargura, visto que nesse momento Paulo Honório está ciente da sua incapacidade de se relacionar com os outros assim como da forma desumana que tratou as pessoas ao seu redor, o que simultaneamente realça a figura autoral e sua “atormentada aversão a uma sociedade injusta atuando de maneira absoluta sobre o homem.” (Abreu, 1965, p. 850). Esta visão está profundamente associada a um determinismo específico, como se o espaço social e natural tivesse o poder de definir a personalidade e comportamento.
Sendo assim, São Bernardo faz parte dessa “literatura empenhada”, designada de romance social, que se intensifica durante os anos 30 no Brasil e em que a literatura é “um instrumento consciente de desmascaramento” (Cândido, 1989, p. 122), ligada à discussão dos Direitos Humanos. Embora esta analogia possa parecer à primeira vista anacrônica devido à inexistência do campo conceptual, o fato de em 1934 essa temática já ser abordada de forma tão ampla revela apenas uma relação inerente entre Literatura e Direitos Humanos. Aliás Hérnan Vidal assegura que tanto a Literatura como a Crítica Literária devem ser entendidas como criação e defesa dos Direitos Humanos (Vidal, 1992).
Todavia, em termos ficcionais, o narrador-personagem é o capitalista perpetrador das violações de Direitos Humanos denunciadas, cujo mundo é totalmente abalado e revisado graças à intervenção de Madalena, que desempenha um papel fundamental na conscientização desta personagem. Ou seja, a narrativa desenvolve-se a um ritmo vertiginoso, como nos sugere António Cândido em Ficção e Confissão, pois ele nunca coloca em questão o seu comportamento, até o momento em que seu mundo é perturbado pelo suicídio de Madalena. Portanto, embora a ação da protagonista em vida tenha sido diminuta e pouco frutífera, a sua emulação proporciona o auto-exame de Paulo Honório, conduzindo-o à auto-reflexão, meditação e análise, e tal torna-se particularmente interessante e relevante se levarmos em conta que esta personagem feminina é nada mais, nada menos do que a metonímia do intelectual brasileiro.

3- O papel do intelectual
A minha proposta de análise que sugere a interpretação das personagens Paulo Honório e Madalena de São Bernardo como metonímias do iletrado e do intelectual, respectivamente, torna-se assim fundamental para entender o lugar de enunciação adotado por este narrador. Por outro lado, ela destaca principalmente a conexão entre a negatividade constituinte e a intenção autoral de demonstrar a incapacidade debilitante da camada intelectual brasileira em agir sobre e/ou transformar efetivamente as situações de precariedade e injustiça em geral.
De fato, a ação de Madalena, do intelectual, é imprescindível, pois é esta que permite que Paulo Honório questione os seus valores e elabore uma revisão do seu mundo. Particularmente é por seu suicídio essa influência contínua contagia-o e perdura na sua percepção e memória. Paulo Honório transforma-se em alguém que não consegue ultrapassar o período de luto nem sublimar o seu sentimento de perda, mesmo passados dois anos, julgando ter-se transformado num monstro. Por isso, ele torna-se negativista e melancólico, colocando em questão sua identidade e valores, assumindo a culpa da emulação de sua esposa. É exemplo disso, sua afirmação em dois momentos, em que é dominado pelo ciúme, que a mataria, o que explicaria a sua auto-flagelação.
Embora o suicídio de Madalena represente a sua fraqueza, a sua falta de persistência e perseverança perante a adversidade, este incide igual e metaforicamente sobre a camada intelectual de Paulo, levando-o a uma reflexão, que é, ao fim, o papel da Literatura em seu sentido lato. Esta mudança é evidente sobretudo na elaboração da própria narrativa, pois o narrador-personagem não consegue explicar o motivo dessa pulsão para a escrita. Ele próprio assegura que a escrita não lhe trará qualquer benefício, embora o faça para dar sentido à sua dolorosa experiência de vida, numa tentativa de articular o motivo da sua cisão interna, procurando, por vezes, a ajuda de um interlocutor: “Mas para quê? Para quê? Não me dirão?” (Ramos, 1979, p. 181), como se apelasse ao leitor.
Ou seja, este penoso lugar de enunciação em que se encontra conscientemente, faz com que opte por assinar a sua narrativa pessoal com um pseudônimo, devido à sua dissociação e fragmentação, mas que acaba por funcionar como proteção do ego, de forma a que os outros não percebam seus questionamentos e reflexões. Esses, abalam a sua identidade e condição, como fica evidente na cena em que fala sobre o tacho que Margarida usou toda a sua vida, metáfora do seu sustento, e afirma “utilizou-o durante quase toda a vida. Ou foi ele que a utilizou” (Ramos, 1979, p. 58).
Todavia, esta postura de Paulo Honório também nos faz ponderar sobre o fato de ele ser efetivamente vítima de si mesmo, até por saber dolorosamente que não consegue mudar, ou por ser vítima das circunstâncias ou ainda, por ser ao fim vítima de uma conjugação de diferentes fatores. Mas é indubitável que a narrativa inequivocamente sugere que, devido à sua origem, ele não disporia de mecanismos relacionais e linguísticos adequados para ultrapassar ou transcender essa vivência. Aliás, a relação com Madalena é frustrante e lacunar devido à uma falha comunicativa: “Não me entende. Não nos entendemos.”; “Houve apenas incompreensão (...) Incompreensão é o termo” (Ramos, 1979, p. 104 e p. 105).
Com efeito, a inadequação linguística é indubitavelmente o problema central da relação entre o iliterado e o intelectual. Por um lado, ele não sabe lidar com o intelectual, devido à sua falta de objetividade e por sua frontalidade. Por outro lado, inicialmente tenta afinar a sua sintaxe para estar mais de acordo com a de Madalena, mas acaba por cometer diversos erros. No entanto, esta tensão linguística torna-se especialmente significativa por simbolizar igualmente a dicotomia entre a linguagem feminina e a linguagem masculina, embora a dicotomia entre linguagem erudita e linguagem popular assuma maior revelo.
De fato, tal dicotomia e incompreensão subjacente são uma constante no romance, como se cada palavra fosse um enigma a ser decifrado, sobretudo nos “livros que encerram palavras misteriosas de pronúncia difícil.” (Ramos, 1979, p. 35), mas que assume especial relevância na relação entre o iletrado e o intelectual, dado que ambos falam efetivamente línguas diferentes. A existência destes dois mundos linguísticos é sublinhada pelo narrador especificamente em vários comentários: “As minhas palavras eram apenas palavras, reprodução imperfeita de fatos exteriores, e as dela tinham alguma coisa que não consigo exprimir.”; “O que eu dizia era simples direto e procurava debalde em minha mulher concisão e clareza. Usar aquele vocabulário vasto, cheio de ciladas, não me seria possível. E se ela tentava empregar a minha linguagem resumida, matuta, as expressões mais inofensivas e concretas eram para mim semelhantes às cobras: faziam voltas, picavam e tinham significação venenosa” (Ramos, 1979, p. 102 e p. 155).
No entanto, esta limitação de compreensão não se resume apenas à linguagem oral, pois quando Paulo tenta ler a carta que Madalena lhe deixou a sua reação é idêntica: “Francamente, não entendi. Encontrei diversas palavras desconhecidas, outras conhecidas de vista, e a disposição delas, terrivelmente atrapalhada, muito me dificultava a compreensão.”; “detendo-me nas expressões claras e procurando adivinhar a significação dos termos obscuros.”; “Li-a, saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita” (Ramos, 1979, p. 156, p. 157 e p. 165).
Sendo assim, tal inadequação revela por um lado o cunho ideológico da palavra, e como a linguagem pode funcionar como um elemento coordenador de ideologias sociais. Por exemplo, quando Paulo se refere ao tabelião e ao oficial de justiça, afirma que se estes forem honestos aceitam o suborno, e por outro lado patenteia uma impossibilidade debilitante, por parte de Madalena de se fazer entender, como se se encontrasse fechada em seu mundo linguístico-social e não tivesse a capacidade de perceber o ‘outro’ e/ou adaptar a sua linguagem.
Aliás é exatamente devido a este tipo de situação que ocorre entre a camada intelectual erudita e o resto da população, particularmente os iliterados, que Graciliano se insurge pois, apesar do evidente esforço de Paulo Honório e das concessões que foi efectuando, Madalena demonstra-me inflexível, reiterando vez após vez a sua superioridade educacional. Paralelamente, esta questão torna-se ainda mais pertinente se atentarmos ao fato de Paulo Honório ser um proprietário influente, pelo que se subentende a inaptidão da classe intelectual brasileira dialogar até mesmo com a classe dominante.
Ou seja, Graciliano Ramos em São Bernardo critica o conceito de capitalismo e a sua dita competência na promoção do bem-estar pessoal e social, pois Paulo Honório no final da narrativa encontra-se arrasado e de braços cruzados. Todavia, ele simultaneamente elabora um comentário sobre a intelectualidade e o seu fechamento sobre si mesma, visível nas escolhas vocabulares devido ao seu carácter excludente, tanto mais que ocultam “com artifícios o que deve ser evidente” (Ramos, 1979, p. 157), e por isso ele nos oferece contrastantemente uma narrativa de descodificação simples e concreta, ou seja, de fácil compreensão e leitura, graças à linguagem empregada.
Além disso, a sua ênfase social, particularmente através do comentário de diversas violações de Direitos Humanos, torna-se trans-temporal, continuando a ter eco nos dias de hoje, sendo um grito contra a letargia e contra todo o empenho ineficaz fruto da inadequação de forma que não tem em consideração a especificidade do interlocutor. Ou seja, Graciliano Ramos apercebeu-se do papel preponderante da linguagem na reprodução de mecanismos que contribuem para o status quo e homeostase social e hierárquica bem como para a reafirmação dos processos de dominação. Simultaneamente, constatou a impossibilidade de subverter uma situação de desigualdade e violação de Direitos Humanos, caso a mensagem não se torne inteligível para o interlocutor em questão.
Entretanto, será que passados mais de setenta anos a intelectualidade brasileira já conseguiu estabelecer uma comunicação eficaz com o resto da população e integrar o excluído e seu discurso de forma a evitar a reiteração dos mecanismos de poder e proporcionar a aprendizagem e aplicação efetiva dos Direitos Humanos?

Referências

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1 Mestrando em Lusophone Cultures and Literatures: Department of Spanish and Portuguese Studies - University of Minnesota. A versão original deste trabalho foi realizada para a cadeira PORT 5530: Brazilian Literary and Cultural Studies (Spring 09), lecionada pelo professor Jaime Ginzburg. Email: desou022@umn.edu
2 Utilizarei o conceito de literacia de forma mais ampla, tendo em conta uma acepção que supera a capacidade elementar de saber ler e escrever, e enquadra a compreensão e utilização da escrita dita acadêmica.
3 Basta ver por exemplo o relatório 40/07 da Comissão Interamericana de Direitos Humanos para ver que estas agressões continuam a ser tidas como “normais” tanto mais que numa sondagem efetuada em São Paulo 64% dos entrevistados afirmaram apoiar a prática da tortura (Oliven, 2004).
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