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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Cultura Brasileira Moderna e Contemporânea"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê 

O CORPO E LA INTRUSA: UM TRIÂNGULO AMOROSO

Satty Flaherty-Echeverría1
Resumo: O propósito deste trabalho é analisar as relações pessoais dos triângulos amorosos entre as personagens dos contos simétricos escritos por duas grandes figuras da Literatura Latino Americana, Borges (Argentina) e Lispector (Brasil) nos anos 70.
Palavras-chave: Repressão, amor, poder, patriarcado, sexo.
Abstract: The purpose of the work is to analyze the reactions in the relationships of three lovers of the symmetric stories, written by two big figures of Latin American Literature, Borges (Argentina) and Lispector (Brazil) in the 70´s.
Keywords: repression, love, power, patriarchy, sex

Desde a antiguidade os seres humanos têm-se unido em pares, famílias, comunidades, sociedades, povos, países, etc. Mas cada união contém diferentes valores, sendo vista de diferentes formas, especialmente quando a união resulta de uma relação baseada num sentimento como o amor, sendo este motivo tanto de auxilio quanto de dificuldades na relação amorosa. As características destas relações têm tido um papel importante na sociedade onde são desenvolvidas. Neste ensaio, pesquisarei os contos de dois escritores latino-americanos dos anos sessenta: O Corpo de Clarice Lispector e La Intrusa de Jorge Luis Borges. Os contos tratam das relações amorosas, entre três ou mais pessoas, causando um impacto forte nos leitores daquela época e revolucionando a forma de escrever o conto e os temas usados. A análise objetiva procurar respostas a perguntas baseadas nas atitudes das personagens, tais como o porquê das reações, os sentimentos expressados em cada uma das personagens e a representação geral dos autores quanto ao conto em si.
Nas sociedades apresentadas pelos contos O Corpo de Clarice Lispector (1974) e La intrusa de Jorge Luis Borges (1970) há variações nos enredos dos dois triângulos amorosos. Ainda que sendo dois contos semelhantes e culturalmente adiantados para sua época, representam uma imagem diferente, quase oposta às personagens características das sociedades nas quais os autores estavam inseridos.
O papel das mulheres é central nos contos. Elas são apresentadas na sociedade patriarcal com diferenças e atitudes que vão contra as sociedades que os autores, Borges e Lispector, tentam criticar ou ironizar com temas tabus. Em O corpo, Beatriz e Carmem se libertam em seus prazeres, se nutrem de amor entre elas, embora não sejam homossexuais. Também gozam de privilégio de estar à disposição de Xavier, além de terem a liberdade e os recursos de fazer o que elas realmente queriam. Motivados por uma tensão entre elas, decidem sem justificativa acabar com a vida dele, saindo do crime impunes pela sociedade. “A vida lhes era boa... saíam a fim de comprar camisolas cheias de sexo.” (Lispector, 1974, p.22)
A palavra "corpo" na estória tem um papel importante. Sendo o título do conto, o termo também representa a aparência física das mulheres. A idade das duas é exposta, quase como se só isso fosse importante para descrever uma mulher. Ambos os contos têm descrições físicas de cada mulher e não há uma descrição psicológica delas. Beatriz e Carmem não tinham uma relação fora do triângulo amoroso, por isso serem, de certa forma, reprimidas permanecendo à disposição das necessidades só de Xavier e delas entre si. Apesar de serem usadas por Xavier, ele tinha a obrigação de sustentá-las. Ambas obtinham de Xavier benefícios sexuais e também econômicos, mas para libertarem-se da relação a quatro, incluído a prostituta, elas rompem com a tensão que as aflige e a tragédia tem que acontecer para poder voltar ao balanço de antes. Seus atos trazem conseqüências que no conto não são mencionadas.
Depois de as duas matarem Xavier a aflição e o luto aparecem de uma maneira rápida. O processo de perda é quase instantâneo. Além disso, são descobertas que elas não são punidas, sendo ao fim definitivamente livres da repressão e do sofrimento.
A prostituta de O corpo aparece num tempo incerto. “Um dia Xavier só chegou de noite bem tarde” (Lispector, 1974, 22). Ela é representada como uma instigadora que provoca a tensão entre os três. Só era usada por Xavier, que pagava por seu serviço. Ela, livre também de usar seu corpo como objeto de trabalho, “excitava-o porque dizia muito palavrão” (Lispector, 1974, 25). Nesse aspecto, ela é semelhante à personagem Juliana do conto La Intrusa.
Juliana, do conto de Borges, é diferente das duas mulheres de O corpo. Ela é uma personagem que não tem a oportunidade de se libertar da repressão das exigências dos irmãos Nielsen, ela atua submissamente sem dizer uma só palavra mesmo quando é vendida e usada como um ser inferior ao humano.
A Juliana borgeana é tratada pelo narrador e personagens como se fosse um objetivo, desde o princípio sendo levada a casa dos Nielsen como “una sirvienta” (Borges, 1970, p.17). Ela sente a repressão e não fica claro se ela sofre, já que o narrador não permite que ela fale. É a mulher tradicional da sociedade daquela época, que só cumpre com as regras do patriarcado, pois não tem nem direito a voz nem a voto. A outra mulher que aparece no conto é uma muchacha que é expulsa por Eduardo. Esta também é apenas usada para satisfação do prazer sexual.
A mulher em La Intrusa é usada como um animal qualquer, “atendia a los dos con sumisión bestial” (Borges, 1970, p. 16), apenas sexualmente. Também seus algozes não demonstram qualquer sentimento por ela. Para os irmãos Nielsen era uma humilhação acreditar que estavam enamorados. Por isso, Juliana era apenas vista como um objeto para eles, uma intrusa que tornara ruim a relação dos irmãos e que por isso precisaria perder sua vida.
Embora os dois contos sejam simétricos, eles têm diferenças, sobretudo no modo como descrevem a relação amorosa. O triângulo amoroso se apresenta de diferentes maneiras em cada conto. Em O corpo, Xavier é bígamo e mora com Beatriz e Carmem. Em La intrusa, os irmãos Nielsen compartilham Juliana, uma pobre intrusa. Estas relações estão limitadas pelo poder masculino embora, no conto O Corpo, o poder feminino seja exercido quando as mulheres decidem acabar com o corpo de Xavier.
Num outro aspecto, o poder, a repressão, o desejo e a sexualidades nas relações das personagens muda de gênero de acordo com as necessidades de cada uma delas. Segundo Michel Foucault, o poder
is not something that is acquired, seized, or shared, something that one holds on to or allows to slip away; power is exercised from innumerable points, in the interplay of nonegalitarian and mobile relations. Relationships of power are not in a position of exteriority with respect to other types of relations (economic, knowledge, sexual), but are immanent in the latter. (1984)
Nas palavras acima, Foucault explica como o poder que se tem, numa relação, não é exteriorizado senão quando estiver relacionado com outros tipos de relacionamento humano. O poder que exercem os personagens masculinos dos contos sobre suas respectivas relações econômicas de sobrevivência tem a ver com suas relações sexuais ou amorosas.
As normas da sociedade de poder, a sociedade patriarcal, estão marcadas fortemente pelas atitudes das personagens masculinas. Eles são os provedores e decidem o que se deve fazer em relação a sua vida e das suas mulheres. Claramente se vê que Xavier “trabalhava muito para sustentar as duas” (Lispector, 1974, p. 22), porém, como ele “tinha vontade durante o dia” (Lispector, 1974, p. 24), precisava de uma mais. Ele mesmo afirma que gostava da prostituta porque era diferente das outras. Ele não pode desligar suas relações amorosas de suas relações de prazer e desejo. Os irmãos igualmente não se desviavam por outro caminho. Eles eram fortes e “fueron troperos, cuarteadores, cuatreros y alguna vez tahures” (Borges, 1970, p.16); mas pela sua aparência só tinham tido amores de “zaguán o de mala casa” (Borges, 1970, p.16). Eles pagavam como Xavier por prazer e satisfação sexual. Quando a relação com Juliana começou tudo parecia bem, mas os ciúmes carnais levaram os Nielsen a venderem-na. O poder que eles tinham sobre ela era impossível de mudar. Eles eram os encarregados de manejar Juliana.
Dentro da narrativa de O corpo a relação de bigamia é uma situação normal e as fantasias sexuais de Xavier também, porque Lispector desejava ir contra a sociedade tradicional e criar essa ruptura. Cheia de imagens de excesso, “às vezes duas por noite... Beatriz comia que não era vida: era gorda e enxundiosa” (Lispector, 1974, p. 21) se forma uma caracterização grotesca das relações que dividem. A forma narrativa é efetuada pela dupla hipérbole, que mostra uma bigamia normal desde o ponto de vista da virilidade masculina. Esta dupla hipérbole primeiramente mostra a solidificação e a forma estável da vida conjunta dos três. Posteriormente, mostra que a virilidade de Xavier tem de ser mostrada fora de casa, com o uso da prostituta. Este segundo fator causa a tensão entre os personagens e resulta em suas atitudes negativas.
Tendo duas mulheres o conto produz uma visão fora do normal ocidental. De acordo com o sistema patriarcal é mais comum encontrar uma situação amorosa entre dois homens com uma mulher, desde a literatura clássica e realista se observam padrões de triângulos amorosos como em Otelo, de Shakespeare, ou Dom Casmurro, de Machado de Assis. Usualmente os triângulos amorosos na literatura do passado apresentam a luta ou oposição masculina pelo amor de uma mulher. A representação da mulher como uma personagem ideal é totalmente diferente das relações que se apresentam nos contos de O corpo e La intrusa, devido à imagem da mulher sem valor.
A diferença de ter duas mulheres no conto resulta numa ruptura, numa tensão e numa contradição relativa à sociedade. Os irmãos Nielsen mostram o despotismo, o autoritarismo que acaba sendo similar a situação de O corpo com as atitudes de Xavier. No conto de Clarice Lispector, as mulheres tomam a iniciativa de resolver o assunto e obter, mesmo que criminosamente, sua liberdade.
Seguindo o argumento de Julio Cortazar, escrever um conto é lutar a batalha de expressar algo efêmero e converte-lo em algo permanente. É um paradoxo: “de recortar un fragmento de la realidad, fijándole determinados límites, pero de manera tal que ese recorte actúe como una explosión que abre de par en par una realidad mucho más amplia, como una visión dinámica que trasciende espiritualmente” (Cortazar, 1993). Tanto na narrativa de Clarice Lispector como na de Jorge Luis Borges aparece essa luta de transformação que leva à fragmentação, à intensidade do enredo, à tensão e à necessidade de contar essa experiência que não tem, por si mesma, nem a capacidade nem o meio de ser narrada.
No conto O corpo, a estória se desenvolve com os detalhes hipertróficos e situações triviais que sucedem aos personagens, existindo no enredo um relativo equilíbrio entre a relação amorosa que se rompe e a introdução, na relação, da terceira mulher que é amante de Xavier. Posteriormente, vem a idéia do desejo sem limites que leva as duas mulheres à idéia do assassinato sem nenhuma justificativa. Ao final, o cadáver do Xavier é encontrado pela polícia e as duas mulheres ficam impunes.
Em La intrusa a história começa com uma outra história narrada por um dos personagens no velório do irmão mais velho. O narrador menciona que narrará o conto como “probidad, pero ya preveo que cederé a la tentación literária de acentuar o agregar algún pormenor” (Borges, 1970, p.15). Nesse sentido, o narrador deste conto é mais “entremetido” do que o narrador de O corpo porque ele mesmo opina e se torna personagem. O desenvolvimento da estória é a descrição da vida dos irmãos Nielsen e quando Juliana aparece e se intromete na vida deles, causando uma tensão em sua relação de irmandade, cheios de ciúmes ambos decidem vendê-la como uma tentativa de solucionar essa tensão. Ao término do conto, a única solução é o sacrifício da mulher e a continuação de suas vidas com a mesma normalidade.
Ambos os contos são narrados em terceira pessoa e relatam uma “espécie de ruptura de lo cotidiano que va mucho mas allá de la anécdota reseñada” (Cortazar, 1993). Os narradores, partindo de uma situação comum ou trivial, misturam elementos contraditórios que causam a tensão, tensão que resulta na trágica morte da personagem. Sendo assim, uma ruptura da narração que leva ao fim da história.
Esses contos, ao sair dos limites daquela sociedade e marcando essa explosão com a morte do terceiro personagem amoroso, logram atingir uma iluminação significativa do seu enredo, criando um choque no leitor. Levando-se em conta o que Cortazar afirma sobre a relação entre o leitor e o texto, as formas da narrativa dos contos envolvem o leitor, afastando-o sua própria realidade. Depois, ao fim da leitura o leitor se re-conecta com essa realidade perdida, porém com uma nova forma de ver as situações e tendo uma nova perspectiva dessa realidade.
A imagem da satisfação sexual representada nos contos permite diversos caminhos de análise. Em termos sociais, são relações fora do matrimônio, em nenhum dos dois contos existe um compromisso sólido. Essa não formalidade das relações resulta em que as situações apresentadas pelos autores sejam de tensão, de perda do controle nas vivências das personagens. Por fim, os contos também apresentam uma relação entre duas mulheres que não é bem vista pelos valores da sociedade patriarcal.

Referências bibliográficas

BORGES, Jorge Luis. El informe de Brodie. Buenos Aires: Emece Editores. 1970.
CORTAZAR, Julio. Del cuento breve y sus alrededores. Ed. Monte Ávila Latinoamericana, 1993.
http://www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz1.htm
www.ciudadseva.com/textos/teoria/opin/cortaz6.htm
FOUCAULT, Michel. History of sexuality.1984
http://ssr1.uchicago.edu//PRELIMS/Culture/cumisc1.html#FOUCAULT.
LISPECTOR, Clarice. A via crucis do Corpo. Rio de Janeiro: Ed. Rocco. 1998


1 Estudante de literaturas em Espanhol, Português, Inglês e Educação Cultural na Universidade de Minnesota. Bolsista Karin L. Larson. Email: echev010@umn.edu
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