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Literatura e Autoritarismo
Dossiê "Cultura Brasileira Moderna e Contemporânea"
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê 

ENTREVISTA COM RENATO CARVALHO TAPAJÓS - APRESENTAÇÃO

Por Carlos Augusto Costa
Há 40 anos, no dia 31 de agosto de 1969, Renato Carvalho Tapajós se tornava mais uma entre centenas de pessoas presas e torturadas pela polícia militar por conta de sua militância contra a ditadura. Na época, o jovem estudante de Sociologia, nascido em Belém do Pará e radicado em São Paulo desde os dezenove anos, já exercia a profissão de cineasta, tendo realizado seus primeiros trabalhos na linha do documentário: Universidade em crise (1966), Um por cento (1967), e Vila da Barca (1968), ganhador do prêmio de melhor filme no Festival Internacional do Filme de Leipzig, Alemanha. Essas produções corresponderam aos sintomas iniciais de um espírito contestador que não se limitaria apenas ao campo político, como igualmente ao da produção cultural. Cinco anos depois de sua prisão, em setembro de 1974, Renato era posto em liberdade. Entre os poucos objetos pessoais que carregava na mala, havia um bloco de papel de jornal no qual passava a limpo tudo o que escrevera nos papéis de seda que seus pais levavam discretamente da prisão quando o visitavam. Três anos mais tarde, em 1977, numa tiragem de três mil exemplares, Renato publicava o romance Em câmara lenta.
Quinze dias após a noite de autógrafos, Renato Tapajós, agora na condição de escritor, era novamente preso. O motivo foi praticamente o mesmo da primeira prisão, porém, desta vez, expresso por vias artísticas. De acordo com o relatório de análise feito pelo DOI/CODI, o romance apresentava conteúdo de apologia à subversão, com incitação à guerra revolucionária, além de ataques e calúnias ao governo. Por estas razões, o livro foi proibido de circular. Depois de aproximadamente um mês detido, parte dele sob regime de incomunicabilidade, Renato foi solto e passou a responder o processo em liberdade. Dentre os principais instrumentos utilizados pelo advogado Aldo Lins e Silva em sua defesa, figura um importante parecer escrito por Antonio Candido (publicado nos anexos da dissertação de mestrado defendida em 2006 na Unicamp, intitulada Prelúdios & Noturnos: ficções, revisões e trajetórias de um projeto político, de Mário Augusto Medeiros da Silva) em que ressalta as qualidades literárias do romance. Em 1979, Em câmara lenta tem sua segunda edição publicada, desta vez sem os impedimentos da censura.
O olhar distanciado que se pode lançar hoje sobre os eventos históricos responsáveis pela germinação do romance impõe à crítica literária a tarefa de promover debates sobre alguns aspectos literária e historicamente relevantes, presentes na obra de Tapajós. Primeiramente, a discussão apresentada sobre a atitude da esquerda brasileira diante do regime fornece elementos para a compreensão do posicionamento ético do escritor e das personagens do livro. Em seguida, vale pensar no lugar ocupado pelo romance à época de sua publicação, enquanto artefato cultural de conscientização do público leitor que o recebeu, em relação à situação política do país. Em outro extremo, é provocativo avaliar a atualidade de Em câmara lenta, à medida que se pode observar, por meio da atual produção cultural brasileira, bem como através dos meios de comunicação de massa, a recorrente divulgação de práticas de violência geralmente adotadas em períodos de intensa instabilidade política no Brasil, especialmente durante a Ditadura Militar, e que vêm sendo reproduzidas no presente. Por fim, é legítimo refletir sobre o papel do romance diante das políticas de esquecimento e das políticas de memória que se apresentam hoje como temas centrais nas discussões sobre violência de Estado.
Passados 32 anos de sua primeira edição, acreditamos que o romance de Tapajós configura-se como um importante documento histórico-cultural de compreensão do passado recente brasileiro, caracterizado pelo uso arbitrário da violência como mecanismo de controle social. Ele também se constitui como objeto de estudo que permite avaliar determinados instrumentos e práticas de violação dos direitos humanos que permanecem presentes no estado democrático brasileiro restaurado a partir de 1985, com o fim do regime militar. Para além de sua importância temática, Em câmara lenta merece atenção pela sua qualidade formal, uma vez que seu processo de construção é atípico, o que desestabiliza a noção tradicional de narrativa romanesca e levanta questões estéticas centrais para os estudos literários.
A participação no projeto de pesquisa Violência e forma, coordenado pelo Prof. Dr. Jaime Ginzburg, assim como no projeto temático Escritas da Violência, sob responsabilidade do Prof. Dr. Márcio Seligmann-Silva, possibilitou a realização de uma pesquisa (em andamento) sobre o processo de fragmentação do romance Em câmara lenta e suas relações com a violência produzida pela Ditadura Militar no Brasil. Para tanto, considerando que a fortuna crítica sobre o romance ainda é escassa, e levando em conta o fato de que, no caso de Renato Tapajós, trata-se de um autor vivo e em pleno exercício de suas atividades artísticas, achamos conveniente e oportuno ouvir o seu depoimento sobre diversas questões que de alguma forma envolvem ou tangenciam a sua produção literária.
Nesse sentido, a iniciativa de realizar uma entrevista com Renato não surgiu a partir de uma simples curiosidade em conhecê-lo, através do estabelecimento de um perfil biográfico. Além disso, não fomos levados pela ingênua tentativa de compreender melhor o romance por meio de suas revelações sobre o processo de criação das personagens ou do enredo. As inquietações foram desencadeadas pela leitura do que o próprio texto oferece como matéria interpretativa. Em primeiro lugar, nossa intenção é reconhecer em Renato, em sua formação familiar e educacional, trajetória profissional e militância política, traços que acreditamos estar intrinsecamente relacionados às convicções ideológicas presentes no romance. Após cotejar esses traços com a movimentação discursiva das personagens e, principalmente, do narrador, procuramos avaliar em que medida a obra estabelece uma atitude de resistência à Ditadura Militar, do ponto de vista ético e estético.
A partir da gravação original da entrevista, fizemos um trabalho de editoração que resultou, por adequação ao espaço da revista, no texto aqui apresentado. No conjunto das questões presentes nesta versão, o leitor terá a oportunidade de conhecer o repertório literário e filosófico do escritor, os fatores que o levaram a militar contra a ditadura, as circunstâncias da sua primeira e segunda prisão, bem como o processo de produção do romance e sua recepção na época do lançamento das duas edições. Além disso, Renato faz uma avaliação inédita e, em certa medida, polêmica sobre a atual produção literária e cinematográfica brasileira e sobre a situação política do país.
A entrevista foi realizada no dia 11 de maio de 2009, em Campinas-SP, cidade onde Renato vive e trabalha. Conversamos por uma hora e meia nas dependências de sua produtora de cinema digital KinoStudio. A espontaneidade demonstrada ao responder às questões foi fundamental para o bom desenvolvimento da entrevista. Nesse sentido, aproveitamos o espaço para agradecer a ele pela gentileza de nos haver recebido e presenteado com seu depoimento.
Renato Tapajós não teve o mesmo destino trágico que tiveram centenas de outros militantes de esquerda, como no caso do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, também paraense de Belém, morto pela polícia militar no dia 28 de março de 1968. Por isso, sua memória sobre os anos de ditadura se configura como um importante conjunto de páginas da história do Brasil que, embora não escritas oficialmente, ganharam uma versão formal através do romance, gênero por meio do qual as tensões existentes na sociedade se fazem perceber com mais lucidez não apenas na sua composição temática, mas, principalmente, na sua própria estrutura.
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