Por: Carlos Augusto Carneiro Costa
CA: Que autores o senhor costumava ler durante sua juventude?
RT: Olha, é uma coisa enorme, porque eu comecei a ler muito cedo. Eu inclusive aprendi a ler antes de ir pra escola. Com quatro ou cinco anos eu já sabia ler. Meu pai tinha uma biblioteca gigantesca. E fora a biblioteca do meu pai, ainda tinha lá em casa a biblioteca do meu bisavô, que tinha sobrevivido e que era enorme. Devia ter qualquer coisa como 15 mil livros entre as duas bibliotecas. E a biblioteca do meu bisavô tinha preciosidades: primeiras edições do Eça de Queirós, do Camilo Castelo Branco, dos portugueses todos. E uma vez eu descobri – mais tarde, claro – a primeira edição do primeiro livro do Bakunin sobre o anarquismo. O meu bisavô, ele era coronel da guarda nacional, mas fazia questão de ler a teoria dos anarquistas pra saber, pra conhecer o inimigo (risos). Então eu comecei a ler muito cedo. É claro que eu comecei a ler por Monteiro Lobato, pelos autores estrangeiros. Quer dizer, fora o Monteiro Lobato, muito pouca gente escrevia pra criança e adolescente naquela época, na década de 50. Então, o primeiro autor que eu li inteiro, li tudo, foi o Monteiro Lobato. Li tudo o que ele tinha pra criança. E, mais tarde, já depois da adolescência, eu li tudo o que o Monteiro Lobato tinha na literatura adulta. E li muitos livros. Agora eu não vou lembrar os nomes de autores que eram publicados no Brasil. Autores franceses, principalmente franceses, italianos etc., que escreviam pra adolescente, histórias de aventuras etc. Logo depois, isso ainda na faixa dos dez anos de idade, eu passei a ler uma literatura que, na verdade, é uma literatura já pra adolescente, que é a literatura de aventura. Tinha uma famosa coleção na época que chamava
Terra, Mar e Ar, que publicava histórias de piratas, gangsteres,
westerns, enfim, todo tipo de aventura. Eu gostava muito de história de pirata, eu sempre tive uma grande simpatia pelos piratas (risos). E eu lia muito isso daí. E já em seguida, com doze, treze anos de idade, eu comecei a entrar na literatura brasileira, a ler Jorge Amado, muito por influência do meu pai que adorava o Jorge Amado. E, na verdade, ele tinha ligações com pessoas que eram amigas de um irmão do Jorge Amado, que era médico também, que eu vim conhecer muito tempo depois. Eu comecei lendo Jorge Amado, e aí, José Lins do Rego, Érico Veríssimo (risos), Fernando Sabino. E aí esse período de adolescência é um período em que eu li praticamente literatura brasileira. Eu vou me voltar um pouco – já com dezesseis, dezessete anos – pra literatura estrangeira. E aí eu começo a ler Aldous Huxley, os italianos, tinha toda uma série de romances italianos que os comunistas gostavam muito.
CA: Primo Levi o senhor leu?
RT: Muito tempo depois. Não nessa época. Primo Levi eu fui ler já depois dos quarenta anos de idade. Nessa época eu lia mais essa literatura italiana que tinha muito a ver com os comunistas, porque com a influência do meu pai, da minha tia e tal, eu tinha muito dessa literatura em casa. E aí, já por volta dos dezessete anos, Sartre, que se transformou numa espécie de grande virada intelectual. Quer dizer, antes de realmente eu me convencer pelo marxismo, eu acho que a maior influência que tive foi Sartre, que aí com dezessete anos eu li – com exceção das obras filosóficas diretamente como
O ser e o nada, que eu tentei ler e não consegui – eu li praticamente todo o Sartre, entre os dezessete e os dezoito anos. Os romances do Sartre, as peças do Sartre, os livros de divulgação, não os grandes livros de teoria filosófica, mas os livros de divulgação, como
O existencialismo é um humanismo, em que ele colocava as coisas do existencialismo. Quer dizer, é lógico que, paralelamente a isso, eu lia muita literatura policial. Meu pai era um fã de literatura policial. Então eu lia todos os autores: Dashiell Hammett, Raymond Chandler; todos os grandes
Standards: Agatha Christie, Sherlock Holmes, o Conan Doyle, Edgar Alan Poe, que eu considerava praticamente como uma literatura de diversão, de evasão, pra descansar a cabeça, porque eu já estava em outra. Depois disso, quando eu vim pra São Paulo, eu tive uma fase que durou anos, em que eu fui apaixonado pela ficção científica. Então eu li tudo o que se publicou no Brasil e em Portugal de ficção científica: Asimov, o Ballard – esse que morreu agora – o J. G. Ballard, que escrevia ficção científica antes de se transformar em um escritor já com uma outra tendência. Enfim, eu devorei a ficção científica que existia. Eu diria o seguinte: bem mais tarde, aí já aqui em São Paulo, eu vou ler e me apaixonar por Guimarães Rosa. Aquela coisa toda da literatura do Guimarães Rosa. E quando eu fui preso, na cadeia, eu li Joyce. Li o
Ulysses e li
Dublinenses. A grande falha da minha formação literária na área do romance é que eu nunca consegui ler Proust (risos). Proust eu nunca passei do primeiro volume em todas as tentativas que eu fiz. Eu já falei pra mim mesmo: depois que eu fizer setenta anos, eu vou tentar ler Proust de novo, mesmo em português. Pode ser que aí dê pra ler (risos). Porque até então, todas as minhas tentativas de ler eu não conseguia entrar naquele universo, naquela coisa. Eu sei que é importante, mas não rolou (risos).
CA: E na atualidade, o senhor tem algum autor preferido?
RT: Não. Autor atual, não. Porque eu tenho uma sensação, cara, que isso aí pode ser que seja um problema. Porque quando você chega aos sessenta e cinco anos, você já começa a ter uma visão um pouco... não diria nostálgica, mas um pouco de valorização do passado etc. Mas eu tenho a impressão de que nos últimos vinte anos, quer dizer, na década de 90, e nesses primeiros dez anos do século, a produção literária, musical, cinematográfica do mundo caiu de qualidade de uma maneira brutal. Olha, só pra te dar uma idéia, em termos de cinema, eu acho que nesses últimos vinte anos tem um filme que eu citaria como uma obra prima, que é
O olhar de Ulisses – ou
Um olhar a cada dia, que passou com esse nome idiota no Brasil – do Theo Angelopoulos. É o único filme nesses últimos vinte anos que eu acho que tem aquele status de estar entre os melhores filmes que eu já vi. Alguns filmes que eu tenho visto desse período agora são muito bons, mas não chegam lá. Enquanto que, até a década de 80, tinha muitos filmes que chegavam lá. E acho que a mesma coisa acaba acontecendo com a literatura também. Nenhum autor mais recente me chamou a atenção assim no sentido de criar – tanto da literatura brasileira, quanto da literatura estrangeira – uma paixão, quer dizer, aquela maneira de você ler que deixa de ser um simples ato da leitura, mas se torna uma comunhão com o universo literário.
CA: Bom, com essa resposta o senhor antecipou duas perguntas que eu ia fazer, que seriam justamente sobre a atualidade do romance e do cinema brasileiro. Mas aí tem uma questão muito importante que é o cinema de resistência ao regime militar. O senhor teria algum comentário a fazer sobre esse assunto?
RT: Bom, em primeiro lugar eu acho que o melhor momento da história do cinema brasileiro é o
Cinema Novo. No meu entender, tem dois filmes do Glauber Rocha que estão entre aqueles famosos dez melhores filmes da história do cinema, que é
Deus e o diabo na terra do sol e
Terra em transe. Depois eu acho que o Glauber pirou e o negócio ficou meio complicado. Mas até
Terra em transe ele tem a marca do gênio, e genialidade e loucura estão muito próximas, né? (risos). Então eu acho que o
Cinema Novo, ele foi, no primeiro momento, um cinema que estava dentro da estrutura geral de uma proposta de nação que estava se construindo nos últimos anos da década de 50, e nos primeiros anos da década de 60, e que estava se configurando ali em torno do governo Jango Goulart. Havia uma proposta de nação que se refletia no cinema, no teatro, na literatura, em todas as formas de arte, e que foi brutalmente cortada pelo golpe de 64. O
Cinema Novo ainda resiste durante alguns anos, aí já começando uma trajetória de um cinema de resistência. Eu não gosto particularmente do cinema chamado
Udigrudi, do cinema
underground que se seguiu ao
Cinema Novo. O
Bandido da luz vermelha pra frente. É um tipo de cinema que não me agrada muito. É um cinema de resistência, mas não é o meu tipo de cinema. E eu acho que a partir daí, o cinema de ficção no Brasil, ele vai ter uma dificuldade muito grande de formular um projeto próprio. Quer dizer, eu acho que durante os anos 70-80, até a crise provocada pelo Collor, que foi o ponto final de uma fase do cinema, o cinema brasileiro fica numa tensão muito grande entre ser um cinema comercial, voltado pra um público nacional e internacional, e ser um cinema de resistência política, e depois um cinema de investigação da realidade. E ele não consegue realizar nenhuma das duas coisas com sucesso. Você tem filmes isolados que são muito bons. Você tem o
Pixote do Babenco, você tem o
Memórias do Cárcere do Nelson Pereira, você tem alguns filmes isolados que são belíssimos filmes. Mas não existe um cinema articulado, uma coisa articulada que realmente represente uma visão de cinema brasileiro, como existia na época do
Cinema Novo. O que vai acontecer depois da crise do Collor com o cinema de resistência, eu acho que é um outro capítulo. Então, o que acaba assumindo o papel nessa época efetivamente de um cinema de resistência é o documentário. Quer dizer, é o documentário que já tinha começado como uma tendência forte antes de 64, a partir de experiências como
Aruanda do Jurandir Noronha, e outros filmes que foram feitos na época pelo próprio pessoal do
Cinema Novo. E aí desembocam as propostas de cinema verdade e vai dar nos anos 60, efetivamente no cinema de resistência. Quer dizer, a partir de meados dos anos 70, existe uma quantidade enorme de cineastas no Brasil inteiro fazendo um cinema quase clandestino, e que é importantíssimo porque ele foi mais significativo, e representou um papel maior nas mudanças políticas existentes no país, do que o “cinemão”. Só pra ter uma idéia de volume, aqui em São Paulo, no final da década de 70, tinha mais de quarenta cineastas fazendo documentários de oposição à ditadura, registrando o que estava acontecendo. Por volta de 1979, eu tenho notícia de mais ou menos uns noventa filmes feitos naquele ano com essa característica. É uma época em que, por exemplo, trinta e poucos cineastas daqui de São Paulo se reúnem pra construir um projeto, como o da Cinema Distribuição Independente, CDI, que se torna uma distribuidora alternativa de um cinema independente. Servia a um circuito alternativo, quer dizer, não passava na televisão, não passava nos cinemas. Passava no sindicato, na paróquia, nas esquinas de ruas etc., e, frequentemente, tinha um número de espectadores superior, bem superior aos do “cinemão”. Então esse foi o cinema de resistência que existiu no Brasil, que vai começar a enfraquecer por volta de 1985. Quando chega a crise Collor acaba junto (risos). Quer dizer, acaba junto com o “cinemão”. Aí a crise é geral. O cinema brasileiro, no começo dos anos 90, tem um período negro. Nada de importante é feito. Ele só vai reaparecer a partir de 1994, quando mudaram completamente os padrões de produção, surgiram as leis de incentivo, o cinema foi jogado pro mercado, e isso mudou o cinema brasileiro. Há um cinema brasileiro que vai até o final dos anos 80, e um cinema brasileiro que começa de 1994 em diante. E eles são totalmente diferentes.
CA: Quais atividades acadêmicas e profissionais o senhor desenvolveu em São Paulo logo depois de sua chegada?
RT: Bom, eu fiz vestibular pro ITA e passei. Fiquei uns quinze dias no ITA, e saí de lá apavorado com o regime militar que existia lá dentro. Isso foi antes do golpe. Isso ainda era 1962. Mas eu achei que aquilo ali não era vida. E aí eu fiz vestibular pra Escola Politécnica. Passei. Estudei Engenharia na Escola Politécnica dois anos, até chegar à conclusão de que o cálculo é uma coisa que serve pra pessoas que nasceram com aquela cabeça (risos). Não é uma coisa para o conjunto da humanidade. Tem que nascer com a cabeça voltada para o cálculo. Depois de dois anos de Poli, eu fui primeiro fazer Escola de Arte Dramática. Eu fiz o curso de dramaturgia na EAD e, em 1964, no começo de 1964, eu fiz vestibular pra Ciências Sociais. E aí eu segui o curso de Ciências Sociais. Só que aí veio o golpe e o meu curso de Ciências Sociais se dividiu entre o curso e a militância estudantil e o trabalho com o cinema. De modo que eu já não era mais exatamente um estudante, eu já estava misturado no mundo.
CA: E foi nesse momento que o senhor se reconheceu como militante?
RT: Como militante, sim. Como uma pessoa de esquerda que pensa como um comunista, isso já vinha de antes. Quer dizer, eu acho que a minha identidade nunca esteve distante da ideia de que eu era de esquerda. Eu nunca consegui me ver, ou me imaginar sem ser de esquerda. Agora, até essa época, eu não tinha uma proposta muito clara de militância. Eu circulava, fazia coisas, fazia poesia. Na época eu tive toda uma pretensão poética que acabou por volta dos vinte e um, vinte e dois anos. Mas é a partir dessa... de estar na Faculdade de Filosofia, de estar em contato direto com o movimento estudantil, que eu começo a me ver como um militante político. E eu vou, pela primeira vez, entrar numa organização política, em 1965, que foi no Partido Comunista do Brasil, PC do B. E logo em seguida, a gente fez uma luta interna no PC do B que deu origem à Ala Vermelha do PC do B. E aí a minha militância efetiva foi na Ala Vermelha.
CA: Sabe-se que o senhor foi preso por conta de sua militância política. Como ocorreu sua prisão?
RT: Bom, durante 1968 eu ainda fui um militante muito ligado ao movimento estudantil, embora eu já tivesse contato com as estruturas internas da organização; eu já tivesse cargos dentro das estruturas internas da organização. Mas as minhas tarefas políticas estavam muito ligadas ao movimento estudantil, ainda que, no final de 1968, eu já estivesse em contato com os grupos internos da organização que iriam desencadear o processo de ações armadas que pretendiam desenvolver um projeto de guerrilha urbana e, posteriormente, de guerrilha rural. Eu não cheguei a participar de ações armadas ainda neste período, mas eu acompanhei, como militante responsável por determinadas áreas da organização, várias ações armadas que foram realizadas neste período. Aí vem o Ato Institucional número cinco e, por decisão da organização, depois do AI5, eu e vários outros militantes que estavam ligados ao movimento estudantil mergulham na clandestinidade, e vão diretamente trabalhar com ações armadas e a montagem da infraestrutura da organização a partir das ações armadas. Em junho, julho de 1969, ocorrem algumas quedas de militantes na organização e, como conseqüência remota dessas quedas, eu acabo sendo preso no final de agosto de 1969. A história física da minha queda é mais ou menos assim: um militante que era do movimento estudantil, secundarista, aliás, por causa de outras quedas na organização, a repressão foi atrás dele. E esse militante foi abrigado num aparelho clandestino da organização, onde eu estava morando nessa época. Pelo que a gente sabe, ele teve contato com o pai dele, que era um oficial da reserva, que negociou com os órgãos de repressão. Tipo, eu entrego meu filho se vocês garantirem que ele não vai sofrer nada. Podem segui-lo que ele vai levar. E aí foi o que aconteceu, quer dizer, ele foi seguido, embora ele não soubesse onde era o aparelho. Mas a repressão ou seguiu, ou viu ele ser colocado dentro do carro, levado pra esse aparelho. No dia seguinte, de madrugada, o aparelho foi invadido pela polícia. Eu não estava lá. Prenderam quem estava lá, mas a gente ficou sem notícias e eu cheguei por volta de meio dia, uma hora da tarde, nesse aparelho, e fui preso na porta do aparelho. E é isso. As circunstâncias gerais da minha queda foram essas.
CA: Onde e por quanto tempo o senhor ficou preso?
RT: Bom, eu primeiro fiquei durante oito dias na Operação Bandeirantes. Foi o período de tortura mais violento. Foram oito dias de inferno mesmo. A Operação Bandeirantes funcionava em São Paulo, na esquina da Rua Tutóia com a Abílio Soares, no quartel da polícia do Exército. E era um centro de torturas violentíssimas.
CA: Que tipo de tortura?
RT: Pau-de-arara, e no pau-de-arara, você pendurado no pau-de-arara, você sofria espancamento, choque elétrico, afogamento, tudo combinado com o pau-de-arara. Aí tinha a cadeira-do-dragão, que era a cadeira de choque. E, além disso, fuzilamentos simulados, atropelamentos simulados, espancamento indiscriminado dentro da cela. Quer dizer, é um clima de completo terror e de destruição física, mesmo. A gente saia de lá completamente arrebentado do ponto de vista físico. Da Operação Bandeirantes eu fui levado pro DOPS. No DOPS eu fiquei três meses: agosto, setembro, outubro, novembro, em dezembro a gente foi transferido pra o presídio Tiradentes, que não existe mais, foi derrubado, só existe o portal do presídio Tiradentes. No presídio Tiradentes... aí tem uma coisa meio complicada porque a gente ficou um ano, eu fiquei um ano no presídio Tiradentes. Depois fui levado pra casa de detenção do Carandiru, fiquei uns seis meses no Carandiru. Depois voltei pro Tiradentes e ficamos mais uns meses lá no Tiradentes. Aí resolveram acabar com o Tiradentes. Eu particularmente fui levado pro presídio do Hipódromo. Fiquei também uns meses no presídio do Hipódromo, até reunirem todos os presos políticos de novo na detenção do Carandiru, onde nós ficamos um ano, um ano e meio. Depois desse período na detenção, nós fomos transferidos pra penitenciária do Carandiru e eu saí, eu fui posto em liberdade a partir da penitenciária. Há outros presos políticos que, depois da penitenciária, ainda foram pro Romão Gomes Fortana, que é o presídio da polícia onde ficam presos os policiais que cometeram crimes. Teve gente que ficou vários anos lá nesse último presídio, o presídio de Barro Blanco, como também é conhecido.
CA: A sua soltura foi em que ano?
RT: Foi em 1974, ou seja, eu fiquei preso cinco anos, cinco anos e um mês, porque eu fui preso em trinta e um de agosto de 1969, e fui solto por volta do dia vinte de setembro de 1974.
CA: O senhor falou da destruição física pela qual o torturado passou. E quanto à destruição psicológica?
RT: Olha, aí é uma coisa que varia enormemente de pessoa pra pessoa. Aliás, a destruição física também varia. Por exemplo, fisicamente, eu tive sequelas que outros companheiros que passaram pelo mesmo tipo de tortura não tiveram. Por exemplo, eu tenho até hoje problemas no joelho, problema de ligamento, problemas nas pernas que outros companheiros não têm. Em compensação, tem outros companheiros que tiveram fratura de coluna que foi se manifestar anos depois. E assim por diante. E o psicológico também. É um negócio que varia muito. É meio difícil definir como é que foi pra mim essa coisa psicológica. Só posso te dizer o seguinte: quando eu saí da cadeia, que eu voltei a fazer cinema, eu levei praticamente nove anos pra conseguir voltar ao tema da militância política. Eu havia escrito o
Em câmara lenta na cadeia, publiquei o livro, fui preso novamente por causa do livro, mas fora da cadeia eu praticamente não escrevi, nem filmei, nem fiz nada durante todo o resto da década de 70. A respeito de problemas políticos, o primeiro trabalho que eu vou fazer envolvendo a questão de prisão, tortura, direitos humanos etc., é o filme
Em nome da segurança nacional, que é de 1983. Portanto, nove anos depois da prisão. E mesmo aí eu continuava com uma dificuldade enorme de escrever, ou fazer filme, ou fazer qualquer coisa a respeito do período de cadeia. Eu já conseguia, depois de 1983, falar muito livremente e muito amplamente da militância. Mas da cadeia, da tortura, era um troço que estava bloqueado. Eu não conseguia falar. Primeira vez que eu escrevi alguma coisa que dizia respeito à cadeia foi um artigo que eu escrevi pra aquele livro
Tiradentes: um presídio da ditadura, que foi publicado em 1996-1997, por aí. A rigor, vinte anos depois de ter sido solto. Eu escrevi um artigo que, na verdade, era ultra
light, porque era um artigo que contava um episódio ocorrido na cela em que eu estava. Um texto que chama
Floresta de panos. Era um episódio ocorrido na cela, não tinha nada assim, basicamente a ver com a barra mais pesada da cadeia. Mas aquilo ali deu a liberação pra minha cabeça de tratar desses assuntos. E aí, em 2002, eu consegui escrever – e olha, foi doloroso escrever, foi um circuito – um roteiro pra cinema chamado
Corte seco, que desde então eu venho tentando produzir e tenho uma dificuldade. Assim, parece que eu encontro sempre muros fechados pra produção desse filme. Parece, tudo indica que agora, por interferência da secretaria de direitos humanos da presidência da República, do Paulo Vannuchi, a gente vai conseguir recursos pra fazer o filme, recursos da Petrobrás pra fazer o filme. Foi prometido que a gente assina o contrato pra fazer o filme em julho, o que significaria que eu ficaria talvez fazendo o filme até o final do ano, ou começo do ano que vem. Agora com outro nome, que é o nome de
Espadas de papel. E que, na verdade, esse filme o quê que é? Ele conta a história desses oito dias que eu e meus companheiros que foram presos junto comigo passaram nos porões da Operação Bandeirantes, logo que a gente foi... Inclusive, o filme é assim: primeiro dia, segundo dia, terceiro dia. A estrutura dele é um relato dia por dia do que a gente passou lá dentro. E todo mundo que leu o roteiro, todos os lugares pra onde eu mandei o roteiro, as pessoas ficam horrorizadas e acham que ninguém vai querer ver o filme porque é barra pesada. E é. É uma barra muito pesada. Mas eu acho que é uma ilusão essa história de que as pessoas não vêm filmes que contam histórias barra pesada. As pessoas vêm filmes que contam histórias barra pesada. Eu acho que, na verdade, têm assim um medo enorme de se tocar no assunto, sobretudo de uma maneira, sabe? Hoje em dia, as pessoas falam “não houve tortura; somos contra a tortura”, mas a tortura virou uma palavra, virou uma palavra desprovida de significado real, ela é uma abstração. O que eu quero mostrar nesse filme é que a tortura não é uma abstração. A tortura é alguma coisa muito concreta, muito dolorosa e profundamente desumana. Ou seja, quer dizer, o objetivo central do filme é a ideia de que não existe justificativa nenhuma pra tortura. É isso.
CA: O senhor perdeu pessoas próximas por conta do regime?
RT: Ah, sim, sem dúvida alguma (pausa longa). A minha cunhada. A pessoa mais próxima que eu perdi foi a minha cunhada, a Lola. A Aurora Maria Nascimento Furtado. Era irmã da então minha mulher, da Laís. E era uma pessoa com quem eu tinha uma proximidade muito grande. Era muito amigo dela. E ela foi assassinada de uma maneira absolutamente brutal. É o assassinato que eu descrevo no
Em câmara lenta. E houve amigos, pessoas muito próximas também que foram mortas nesse período, não só de militantes com quem eu me relacionei mais ou menos profundamente na época, mas militantes da própria organização a que eu pertenci. Eu era estudante e esses militantes geralmente vinham do movimento operário, do movimento camponês. Mas durante um período nós tivemos uma relação muito próxima porque eu estava militando junto com eles. Pelo menos quatro ou cinco deles, como o Coqueiro, o Devanir, os irmãos Carvalho, Devanir de Carvalho. São três Carvalhos e três irmãos Carvalho foram assassinados. O Devanir, o Joel e o Jairo. E principalmente o Devanir e o Coqueiro foram caras com quem eu trabalhei na clandestinidade durante um bom tempo. E o assassinato deles foi uma coisa pessoal, uma coisa muito pessoal. É isso.
CA: Qual era a opinião do militante Renato Tapajós sobre a luta armada à época da ditadura?
RT: Olha, eu era totalmente fechado com a idéia da luta armada. Quer dizer, a única maneira de realizar as transformações necessárias – derrubar a ditadura, construir o socialismo – só poderiam ser feitos através da luta armada. Isso aí eu não tenho dúvida nenhuma. Eu era totalmente fechado, eu não tinha nenhum tipo de dúvida a respeito. Depois de preso, quando a gente começa um processo de autocrítica, eu vou começar a ter uma visão não quanto à validade da luta armada, mas quanto à correção de tê-la aplicado naquele momento. E hoje em dia, a visão que eu tenho é uma visão muito mais elaborada disso daí. Eu não acho que a luta armada em si seja um pecado. A luta armada é uma forma de luta como qualquer outra que as classes oprimidas podem utilizar pra construir uma sociedade mais justa. O que se tem que levar em conta são as circunstâncias em que a luta armada pode ou deve ser utilizada, porque em muitas circunstâncias, a utilização da luta armada vai ser um atraso pra o processo de transformação política e vai comprometer outros esforços que estão sendo realizados. Exemplo concreto, nós atravessamos hoje em dia um período em que a luta legal, a luta através de formas que não levam diretamente para a clandestinidade, não só são possíveis como são eficientes, eficazes. Então eu acho que nós vivemos num momento em que falar de luta armada é uma loucura, é um erro completo, o que não significa que eu ache que hoje em dia a gente deva banir a violência. Uma coisa é luta armada, outra coisa é o uso da violência em determinados momentos. Por exemplo, eu não tenho nenhuma crítica a fazer às ocupações de terra realizadas pelos sem-terra. Eu acho que elas são corretas e acho que é a forma de luta mais eficiente que eles encontraram. E acho que, em alguns momentos, essas ocupações podem derivar pra atos de violência, porque você tem o choque, e ninguém, nós não estamos aqui fazendo uma luta pacífica ao estilo Gandhi. Não é isso. A ocupação, se ela levar a um confronto violento, ela levou a um confronto violento. Isso não significa luta armada. Isso é parte da luta legal (tossiu), pacífica, que se trava hoje em dia. É isso. Agora, luta armada com estruturas clandestinas utilizando armas pra fazer ações armadas etc., eu acho isso um absurdo total que alguém pense nisso hoje em dia.
CA: Qual a sua opinião a respeito daqueles que foram militantes à época do regime e hoje são atores de episódios escandalosos da política nacional?
RT: Ah, isso é complicadíssimo. Isso é uma história muito complicada. É óbvio que o grau de deterioração que certas instituições políticas atingiram atualmente é um grau extremo, e que realmente não é possível manter o funcionamento do processo democrático e de um Estado com esse grau de degradação. Eu acho que a gente precisa entender umas três coisas. Primeira é que uma boa parte desse problema que está acontecendo hoje no Brasil é derivada da própria história da formação brasileira, da Colônia, do Império. Quer dizer, veio ao longo do tempo no país se construindo uma sociedade patrimonialista, clientelista, onde os políticos sempre entenderam... essa história dos políticos entenderem o bem público com o privado não vem de agora, vem do Império, vem da velha República. Quer dizer, é um processo muito mais profundo do que você possa resolver com duas ou três CPIs. É um negócio que envolve mudanças estruturais na política brasileira. Então isso é a primeira coisa que a gente tem que levar em conta, pra você não cair numa visão moralista, tipo assim, “ah, chegou no limite, não dá mais pra ser assim”. Porque esse tipo de atitude leva a que? A você condenar as instituições: ah, não dá pra ter um congresso desse tipo, não dá pra ter um judiciário desse tipo. Então fecha tudo, bota um ditador e ele vai resolver todas as coisas. Ou seja, é um atalho direto pro fascismo. Quer dizer, o golpe de 1964 já foi um golpe que se construiu numa ideologia desse gênero: está tudo podre. Os primeiros inquéritos policiais militares do golpe de 1964 eram todos contra a corrupção. Até o Niemayer foi objeto de um inquérito policial militar que investigava a corrupção na construção de Brasília feita pelo Juscelino. Quer dizer, a condenação global e moralista da corrupção, ela leva ao fascismo, sem dúvida nenhuma. Então, é necessário que haja uma compreensão mais profunda do que acontece. E aí a gente chega no segundo aspecto. Quando militantes – que foram militantes na luta armada – optam por determinados tipos de ações que levam a atitudes consideradas corruptas, eu não entendo isso como uma simples corrupção, como uma simples prática da corrupção, mas como desvios políticos que têm origens muito mais profundas. O quê que eu quero dizer com isso? Quero dizer o seguinte: quando o PT se constituiu em 1980, naquele período ali, ele se constituiu como um projeto de construção social que derivava da luta política dos movimentos sociais. Ele tinha como raiz o movimento sindical, os movimentos no campo, toda uma série de movimentos sociais. E a estrutura do partido que se criou naquele momento era uma estrutura democrática, que partia dos núcleos de base até chegar no congresso que, por sua vez, discutia e elegia aquilo que era uma estrutura democrática e que estava comprometida com a transformação social. Acontece que muitos militantes nesse processo começaram a achar que isso daí ia levar um tempo enorme pra se conseguir chegar a alguma coisa. E a derrota pro Collor, do Lula para o Collor, foi um banho de água fria, e foi decisiva no processo de transformação, em que as pessoas começaram a substituir o projeto de transformação social, baseado numa estrutura partidária democrática, num projeto de tomada do governo e chegar ao governo pela via eleitoral. E pra chegar ao governo pela via eleitoral você precisa, primeiro, desmontar essas estruturas democráticas que ficam enchendo o saco (risos) durante o processo de tomada de decisão, ou seja, levar a tomada de decisão pra setores mais altos dentro da hierarquia partidária. Em segundo lugar, criar alianças com setores que representam justamente tudo aquilo que a gente vinha combatendo até o momento. Então, quando você cria uma estrutura pra tomar o governo, pra ganhar a eleição e tomar o governo, você perdeu essa base política e, portanto, tem que construir uma outra base política, e vai construir essa outra base política utilizando as formas tradicionais da política brasileira (risos), que como a gente já viu antes, são patrimonialistas, clientelistas e altamente abertas à corrupção. A raiz disso é uma decisão política. A raiz disso é uma visão de mundo. Eu não acredito nessa história que se divulga por aí de que “ah, os caras eram militantes, não sei o quê, aí chegaram lá e ficaram encantados com o... e aí começaram a se corromper”. Isso não existe. Quer dizer, pode até existir num ou noutro caso isolado, mas a maior parte dos militantes da luta armada que se envolveram em processos considerados eticamente questionáveis, eles fizeram isso em nome de uma política, de uma decisão política, de uma proposta política. Eu acho que o quê se deve combater nesse caso é essa política, porque se você for combater simplesmente os efeitos, ali adiante vai voltar tudo de novo. É puramente paliativo, a coisa se eterniza. Você tem que ir na raiz, que é política. E aí, antes que a gente avance nisso daí, eu gostaria de definir claramente uma posição que pra mim é decisiva nesse aspecto. Em relação ao governo Lula e ao PT, eu assim, eu acho que em função dos compromissos políticos assumidos durante todo esse processo, o governo Lula deu um tratamento à economia que é altamente questionável, e permitiu com que determinados privilégios se mantivessem e até se aprofundassem durante todo esse período. Então, eu tenho divergências profundas em relação a esse aspecto do atual governo. Mas eu preciso reconhecer que esse mesmo governo desenvolveu políticas sociais que têm resgatado uma dívida social gigantesca que esse país criou ao longo das décadas, e que não pode ser esquecido. Quer dizer, desde políticas como a bolsa família, o PROUNI, enfim, toda uma série de políticas que não são muito discutidas, mas que criaram uma diminuição na diferença de renda, no
gap de renda entre os mais ricos e os mais pobres, que permitiram o acesso de grande parte da população – são números gigantescos – a alguns benefícios da modernidade, e que abriram o caminho pra políticas mais justas. Inclusive, por exemplo, o caso do SUS na saúde. Eu acho que é uma coisa que tem uma proposta reconhecida mundialmente como uma das mais avançadas, mas que enfrenta problemas seriíssimos por causa de verba, por causa de desvio de verba (risos), de políticas locais mal resolvidas. Então vamos distinguir esses aspectos. Você tem um governo que talvez tenha continuado uma política econômica neoliberal, desenvolvida anteriormente pelo PSDB, mas esse governo tem o mérito de ter desenvolvido políticas públicas na área da saúde, na área da educação, na área da distribuição de renda, na área da cultura. Aliás, eu estou exatamente agora fazendo um filme sobre isso, sobre a política pública de cultura do Ministério da Cultura. Quando você começa a aprofundar a discussão você vai descobrir que é revolucionária, é uma transformação radical na maneira de encarar a questão da política cultural no país. Bom, tudo é contraditório, né cara? Se não (risos). Então, com relação aos antigos companheiros que foram acusados de práticas não éticas, ou corruptas nesse período, eu me reservo o direito de definir uma posição política, ou seja, eu discuto com eles as políticas que levaram a isso. Mas eu me recuso a ter uma posição moralista.
CA: O senhor acredita que há elementos da ditadura militar que permanecem no Brasil democrático, principalmente do ponto de vista da violência?
RT: Sem dúvida. Mas muitos. Muitos. Vamos lá. Do ponto de vista da violência, sem dúvida nenhuma. Porque, na verdade, as nossas polícias, elas continuam sendo as mesmas polícias que foram criadas pela ditadura. Todo esse período democrático não conseguiu criar uma nova polícia. E essa polícia que foi criada pela ditadura é uma polícia que tem na violência física, na tortura etc., os seus principais instrumentos. Quer dizer, a maneira como a polícia trata a questão do tráfico no Rio de Janeiro é escandalosa. Quer dizer, transformar a questão – uma questão que é uma questão social – num quadro de guerra civil é uma maluquice. Porque você tem aí uma porrada de elementos envolvidos, inclusive o fato de que é a própria polícia que permite que os traficantes se armem. Quer dizer, se houvesse um combate efetivo ao tráfico de armas, você não teria forças equivalentes em termos militares se enfrentando nesse espetáculo absurdo que é o combate nos morros do Rio de Janeiro. Além disso, a polícia continua tendo um viés, que aí não é só da ditadura, é tradicional na polícia brasileira. Quer dizer, em muitos lugares do mundo, em quase todos os lugares do mundo civilizado... a polícia enquanto tal na França foi criada a partir da Revolução Francesa. Então a polícia foi uma criação da revolução. Então essa é uma polícia republicana, é uma polícia cujo objetivo principal é a proteção do Estado e do cidadão. A polícia brasileira, desde a sua origem, sempre foi uma polícia de proteção da classe dominante, descaradamente. Quer dizer, ela não protege cidadão coisa nenhuma. Ela protege os ricos, ponto. E isso a ditadura só acentuou, e não foi mudado de lá pra cá. Por outro lado, essa história de ter transformado o SNI em ABIN é uma das aberrações mais gigantescas. Quer dizer, o SNI é um instrumento da política de repressão da ditadura. Então, se acabou a ditadura, tinha que acabar com o SNI e começar do zero na construção de outro tipo de instrumento repressivo, que fosse comprometido com a retomada da democracia. Mas os caras mudaram de nome, eles mantiveram os funcionários, mantiveram as estruturas, mantiveram os métodos, só mudou de SNI pra ABIN. Então isso é uma sobrevivência completamente absurda. Isso com relação à violência. Mas a sobrevivência da ditadura está em muitos outros lugares. Por exemplo, a ditadura destruiu o sistema educacional que esse Brasil tinha antes de 1964, e construiu um monstrengo que era resultado do projeto de nação que a ditadura tinha. E esse monstrengo educacional criado pela ditadura é o que está aí até hoje, cara. Eles não conseguiram (pausa). Que reforma universitária porra nenhuma. Não se conseguiu mudar. Só você pensar que antes da ditadura, a função da universidade – que foi inspirada na universidade européia, nas universidades francesas, modelo da Sorbonne etc. – era criar os quadros pra classe dominante, o objetivo de criar os governantes do país. O quê que a ditadura fez? Acabou com essa universidade, colocou um modelo de universidade cujo objetivo é criar mão-de-obra para as multinacionais, quer dizer, criar pouco mais do que técnicos qualificados pra atender as necessidades das grandes empresas. Acabou aquela idéia humanista de criar os caras que iam dirigir o país. E os efeitos estão aí, bicho. Se você pega o que é a assim chamada classe política hoje, ela é resultado desse processo. O baixo nível do Congresso é resultado desse processo que já deu um tempo – nesses quarenta anos praticamente que vem dessas reformas pra cá – de formar uma geração de políticos que não tiveram aquela formação que existia no Brasil de antes, mas que passou a existir a partir da (pausa). Então você vê como a herança da ditadura, ela acaba se espalhando, quer dizer, uma coisa que foi a destruição do sistema educacional brasileiro acaba tendo repercussão na qualidade dos políticos brasileiros que hoje estão no poder.
CA: O que o motivou a escrever o romance Em câmara lenta?
RT: (risos) Bom, essa é simples de responder, né? Eu simplesmente tinha que escrever o romance. Quer dizer, quando eu comecei a escrever o romance eu não estava nem pensando em escrever o romance, eu estava com um monte de sensações, sentimentos etc. engasgados na garganta. Depois de estar três anos preso, com tudo aquilo que estava acontecendo, o desmonte das organizações, a morte das pessoas... Aquela coisa emocional que eu vivia naquele momento era muito forte. Então eu comecei a escrever. Depois de eu ter começado a escrever, ele foi começando a tomar forma de romance, até eu tomar consciência de que aquilo era um romance, e aí eu comecei a escrever como tal. Mas comecei a escrever como um jogo de liberação das emoções que estavam rolando.
CA: O senhor estava preso. Como o senhor conseguia escrever?
RT: Bom, nessa época eu já estava preso na detenção do Carandiru e aí havia um sistema em que as celas ficavam – o corredor era fechado – as celas ficavam abertas durante o dia. Havia uma série de atividades. Às seis horas da tarde, eles fechavam a cela. Começava a tocar uma musiquinha nos alto-falantes da cadeia e, às nove da noite, eles cortavam a luz, cortavam tudo. Então, nesse período, das seis as nove, eu sentava na minha cela e ficava escrevendo. Eu criei uma disciplina de ficar escrevendo nesse período. E era isso, eu me colocava metas de escrever um tempo durante tantos dias e ia em frente.
CA: O senhor tinha caderno?
RT: Não, eu escrevia em folhas soltas de papel almaço. Aí tinha o problema de tirar de lá de dentro, que isso era uma coisa extremamente importante. Eu escrevia em folhas de papel almaço, corrigia, ficava tudo riscado, aquela confusão toda que fica um texto original. Depois eu copiava o texto final, já corrigido, a lápis bem apontado, com uma letra minúscula, em papel de seda. Sabe bloco de desenho que vem aqueles papeis de seda que separam uma...? É, eu escrevia, cabia mais ou menos umas três páginas numa página de papel de seda feita com uma letra minúscula. Aí eu embrulhava esse papel de seda até ele ficar do tamanho de um comprimido. Embrulhava isso daí com papel celofane de cigarro, de maço de cigarro, e depois com fita
durex. Então fechava aquilo bem apertadinho e fazia um quadradinho assim, porra, do tamanho de um comprimido médio. E alguém – minha mãe, meu pai – saía com aquilo das visitas em baixo da língua. Porque eles eram revistados na entrada, mas na saída não eram. Levavam na boca, chegavam em casa, eles abriam e meu pai datilografava. Então quando eu saí da cadeia eu tinha um original datilografado em cima do qual eu retrabalhei durante um certo tempo.
CA: Esses originais ainda existem?
RT: Os originais de papel de seda não. O que eu tenho, que eu consegui sair da cadeia, é uma cópia que eu fiz lá dentro da própria cadeia em letra pequena, mas em papel, se eu não me engano, em papel de jornal, papel grosseiro. Isso eu tenho até hoje. Está em alguma pasta lá em casa.
CA: O livro foi publicado duas vezes, em 1977 e 1979. Houve alguma alteração da primeira edição para a segunda?
RT: Não, não houve. Eu queria fazer, mas o editor não quis. Mas não houve alteração.
CA: Que avaliação o senhor faz da recepção do romance à época de sua publicação?
RT: Olha, eu acho que são duas avaliações. A primeira é de que, num primeiro momento, ele foi recebido muito bem. Na noite de autógrafos desse livro foram vendidos trezentos exemplares. Eu saí de lá zonzo, com o braço doendo de tanto autografar livro. Quinze dias depois eu fui preso. O livro nem foi proibido no dia da minha prisão, quer dizer, o livro foi proibido alguns dias depois. E quando o livro foi proibido, a edição tinha se esgotado. E aí aconteceram duas coisas. A primeira é que uma quantidade enorme de pessoas – eu vim depois descobrir isso ao longo do tempo – leu o livro nesse período em cópia
Xerox etc. Eu conversei até com pessoas que estavam no exílio em Moçambique, e que leram o livro lá em cópia
Xerox. Na Europa circularam trezentas cópias
Xerox do livro. Então, uma grande parte das pessoas que leu o livro na época, leu a partir de cópias
Xerox. E em 1979, quando ele foi reimpresso, já tinham saído os livros do Gabeira, do...
Os carbonários. Como é que ele chama? Alfredo Sirkis. Principalmente esses dois livros já tinham sido publicados. E tinham feito um bom sucesso. Então, quando meu livro foi republicado, ele já não teve uma repercussão tão grande, porque (risos) a avaliação que eu faço hoje é que ele foi publicado dois anos antes do momento certo pra ele ser publicado. Quer dizer, se tivesse sido publicado em 1979, talvez eu não tivesse sido preso e talvez ele tivesse feito um sucesso de vendas tão grande, ou maior do que o livro do Gabeira. Mas aconteceram essas duas coisas. Quer dizer, grande parte das pessoas que constituíam meu público leu o livro em cópia
Xerox. Porque o livro circulou, ele circulou, mesmo como um documento clandestino na época. E o outro aspecto é esse, é que outros livros significativos já tinham sido publicados quando ele foi reimpresso.
CA: O senhor acha que o romance Em câmara lenta permanece atual em algum aspecto?
RT: Olha, eu não sei. Eu não sei. Eu acho que existe uma discussão central no
Câmara lenta que eu acho que é perene, que é a discussão entre a decisão política e a decisão moral. Porque o meu personagem em
Em câmara lenta é o cara que está dividido entre a decisão política correta, que é a de sair do país e evitar mais derramamento de sangue, e a decisão moral, que é a de continuar fiel, de uma forma quase irracional, à memória dos companheiros, mesmo que isso leve praticamente ao suicídio. Então essa é uma discussão que permanece. Quer dizer, a discussão entre as decisões políticas e as decisões morais, eu acho que é uma discussão que serve em qualquer momento. Eu acho que outro aspecto – aí não é um problema de ele ser atual, mas eu acho que ele permanece como tendo uma certa importância hoje – é o de desmistificar a imagem distorcida que foi feita dos militantes da luta armada pela mídia e pelas classes dominantes durante esse período todo. Eu acho que quando acabou a ditadura, quando as classes dominantes foram obrigadas a aceitar a ideia de que os militantes da luta armada não eram terroristas, mas pessoas que estavam lutando a favor da democracia, as classes dominantes iniciaram todo um processo de pintar essas pessoas como jovens ingênuos que não sabiam muito bem o que estavam fazendo e que, no fundo, foram iludidos pelos comunistas. E que é uma mentira completa. Quer dizer, as pessoas que fizeram a luta armada nos anos 60-70 sabiam muito bem o que estavam fazendo, e tinham uma postura política definida. Não eram iludidos. E eu acho que isso é uma coisa que tem que ser resgatada o tempo inteiro, inclusive pra que se compreendam direito essas pessoas hoje. Quer dizer, desde a discussão de figuras como Zé Dirceu, o que era presidente do PT... o Genuíno, até discussão de figuras como a Dilma, que eventualmente vai ser candidata a presidente, é importantíssimo que as pessoas, de um modo geral, saibam quem são essas pessoas e não tenham uma visão a respeito delas baseado nessas distorções que ao longo dos anos a mídia veio criando. Eu acho que o livro ainda serve pra isso, ainda tem uma certa utilidade pra isso. Mas eu não sei, pra mim é muito difícil discutir esse aspecto. Ele está muito radicado numa experiência pessoal, numa vivência. Eu não sei o quê que o livro significa hoje. Acho que cabe a vocês descobrirem (risos).
CA: Por que o senhor não escreveu mais romances para o público adulto?
RT: Eu tenho um monte de projeto na cabeça, mas eu acho que o cinema acabou ocupando muito esse espaço. Eu consegui escrever livros pro público infanto-juvenil num momento em que meus filhos eram adolescentes e que eu estava sentindo necessidade de criar uma ponte, uma ligação entre a experiência deles e a minha. Tanto foi assim que depois de um certo tempo, quando meus filhos já se tornaram adultos, eu também não consegui mais escrever pra o público infanto-juvenil (risos). O meu último livro é de 1999, 2000, sei lá. O
Rádio muda. 2001, eu acho. O que não significa que eu não tenha projetos. Vários projetos. Inclusive projetos de certa envergadura e que eu não tenho escrito. Tenho escrito, só que esses projetos vêm vindo. Eu comecei, há anos atrás, eu comecei um projeto chamado
Os aprendizes. Depois de um certo tempo eu comecei a escrever outros projetos de romance e, há alguns anos atrás, eu fui retomar isso. Aí eu percebi que
Os aprendizes era um projeto abrangente em relação a todas essas outras tentativas. Então eu comecei tudo de novo com
Os aprendizes, como sendo um romance só, que abrangia as histórias de todos esses outros projetos de romance que eu tinha desenvolvido. Em termos de literatura é o projeto que eu tenho mais desenvolvido até agora, que tem vários trechos escritos, é
Os aprendizes. Agora, quando eu vou conseguir realmente me dedicar a ele, eu não faço a menor idéia (risos), porque o cinema tem me absorvido. O cinema é uma coisa que me absorve. E o diabo é que
Os aprendizes também é uma história essencialmente política. É uma história que começa na noite de réveillon de 1967 pra 1968, e vai terminar em 2006 (risos). Sem nenhuma linearidade (risos).