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Revista Literatura e Autoritarismo
Dossiê Walter Benjamin e a Literatura Brasileira
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 5 

ESPELHOS, DE WALTER BENJAMIN, E BRASÍLIA, DE CLARICE LISPECTOR: A CIDADE E O OLHAR

Gabriela Ruggiero Nor1
Resumo: O trabalho tem como objetivo discutir a percepção da cidade moderna a partir da análise conjunta do texto Espelhos, de Walter Benjamin, e da crônica Brasília, de Clarice Lispector. No texto analisado, Walter Benjamin discorre a respeito da profusão de espelhos na cidade de Paris, relacionando sua presença a ilusões óticas acerca dos espaços citadinos. Para o filósofo, os espelhos funcionam como instrumento para que haja um completo abalo da percepção do indivíduo, através da dissolução dos limites entre o real e o ilusório e do aprofundamento dos espaços. As considerações de Benjamin em torno do objeto espelho vêm ao encontro de suas teorias sobre a modernidade e o choque, além de se relacionarem ao conceito de fantasmagoria, conforme proposto por Theodor Adorno. A cidade, um dos temas mais caros ao frankfurtiano, é tema de crônica de Clarice Lispector, Brasília, parte da coletânea Para não esquecer, em que a autora descreve, perplexa, suas impressões sobre o local. Carregado de negatividade, o texto Brasília se presta a análises benjaminianas, constituindo matéria exemplar para o estudo da percepção do indivíduo no contexto moderno e da predominância do aspecto imagético no ambiente urbano. Dessa forma, tanto o texto de Walter Benjamin quanto o de Clarice Lispector convergem para um entendimento da cidade a partir do olhar. O trabalho centra-se, assim, no exame desta temática no referido texto de Walter Benjamin, análise que será pontuada pelo estudo da crônica de Clarice Lispector.
Palavras-chave: cidade; modernidade; espelho; percepção.
Abstract: The paper aims to discuss the perception of the modern city through the joint analysis of the text Mirrors, by Walter Benjamin, and the chronicle Brasília, by Clarice Lispector. In the analyzed text, Walter Benjamin focuses on the profusion of mirrors in Paris, relating their presence to optical illusions of the spaces of the city. For the philosopher, the mirrors act as a tool that provides a complete shake in the individual's perception, through the dissolution of boundaries between the real and the unreal and through the deepening of the spaces. Benjamin's remarks on the mirror align with his theories about modernity and shock, and relate to the concept of phantasmagoria, as proposed by Theodor Adorno. The city, one of the most important issues discussed by the Frankfurt School, is the subject of Clarice Lispector's chronicle, Brasília, in which the author describes, perplexed, her impressions of the place. Loaded with negativity, the text seems appropriate to a benjaminian analysis, constituting an exemplary matter for the study of the individual's perception in the modern context, and the dominance of images in the urban environment. Thus, both texts converge to an understanding of the city though the sight, through the act of looking.The paper focuses therefore on the examination of this issue in Walter Benjamin's text, an analysis that will be accompanied by the study of Clarice Lispector's chronicle.
Keywords: city; modernity; mirror; perception.

O trabalho a seguir se concentra no texto Espelhos de Walter Benjamin, publicado em Passagens, e na crônica de Clarice Lispector, Brasília. A crônica de Clarice Lispector, publicada em Para não esquecer, diz respeito às impressões da escritora sobre a cidade em dois momentos distintos: quando ela conhece a cidade, em 1962, e doze anos depois, ao voltar para lá. Já o texto de Benjamin aborda a cidade de Paris, centrando-se na quantidade de espelhos presentes no local e as consequências disso para a visão do passante. Neste trabalho, procuramos aproximar os textos de Walter Benjamin e Clarice Lispector, procurando mostrar como cada autor pôde, a seu modo, articular diferentes aspectos da modernidade a perturbações de ordem visual, que culminam num abalo da percepção do indivíduo na cidade.
Em seu texto, Espelhos, publicado em As Passagens, Walter Benjamin discorre a respeito da profusão de espelhos na cidade de Paris, relacionando as múltiplas reflexões especulares às ilusões acerca dos espaços citadinos. O flâneur caminha por uma cidade ampla, em que os bares, restaurantes e mercearias não têm início nem fim demarcado; em que um aposento parece prolongar-se para longe, mesmo que seja, na verdade, ínfimo. A Paris de Benjamin assemelha-se a uma espécie de labirinto em que, para onde quer que se olhe, não se vê limite concreto para os espaços. A quantidade de espelhos em Paris faz ainda com que a cidade possua uma luminosidade atordoante, já que “horizontes amplos, claros como o dia, estendem-se então por toda a cidade ao cair da noite” (Benjamin, 2006, p. 579), impedindo que a escuridão prevaleça.
Os espelhos agem, portanto, como catalisadores de uma percepção diferenciada da cidade, pois desafiam o olhar do passante: não se pode determinar início e fim dos espaços, tantos são os reflexos de espelhos, confundindo a vista. Tornam-se vagas as fronteiras entre realidade e ilusão, pois se perde a origem primeira dos reflexos, e a imagem refletida se confunde com o objeto que reflete. Nesse sentido, poderíamos dizer que o modo como os locais da cidade se espelham uns aos outros, ou a si mesmos internamente, desafiam uma visão lógica ou cartesiana dos arredores; há desorientação e atordoamento.
O texto de Benjamin sobre espelhos, na verdade, retoma um dos motivos constantes de seus ensaios sobre a modernidade: a predominância do aspecto imagético da cidade moderna, em especial Paris. Este apelo aos olhos não é de todo confortável, como se nota em Passagens e se confirma quando Benjamin cita Simmel em Charles Baudelaire - um lírico no auge do capitalismo (1989, p. 36): “Quem vê sem ouvir fica muito mais inquieto do que quem ouve sem ver. (…) as cidades se distinguem por uma notória preponderância da atividade visual sobre a auditiva.” Nesse sentido, Paris é exemplar, pois a reprodução de imagens através dos reflexos não é acompanhada dos respectivos sons dos ambientes e objetos refletidos nos espelhos, intensificando seu aspecto visual, em descompasso com os sons urbanos; assim, a cidade se caracteriza como local de desequilíbrio dos estímulos sensoriais.
Em sua descrição de Brasília, Clarice Lispector atribui à cidade características muito semelhantes às utilizadas por Benjamin para se referir ao abalo na percepção em Paris. A cidade também tem, para a escritora, um apelo à imagem e ao olhar, em detrimento dos outros sentidos: ela usa inclusive a expressão “silêncio visual” (Lispector, 1999, p. 42) para se aproximar do impacto causado pela paisagem moderna e solitária de Brasília. Embora as fontes deste atordoamento dos sentidos sejam diferentes em Benjamin e em Clarice Lispector, nos dois casos a consequência é uma perturbação visual que desorienta e confunde o sujeito.
A cidade moderna, para Benjamin, é o espaço da multidão anônima, da aglomeração de pessoas e lugares heterogêneos; a experiência da cidade, com o esbarrar do passante na multidão, traz consigo sucessivos choques. A Brasília, no entanto, a multidão é o que falta: Clarice Lispector insiste no vazio da cidade, escrevendo que “é urgente: se não for povoada, ou melhor, superpovoada, será tarde demais: não haverá lugar para as pessoas” (Ibidem, p. 42). Ela se pergunta, ainda: “se não há esquinas, onde ficam as prostitutas de pé fumando? ficam sentadas no chão? E os mendigos? têm carro? pois só se pode andar de carro lá” (Ibidem, p. 46).
Assim, um dos signos mais marcantes na cidade, a multidão, não pode ser vista em Brasília; tal fato causa perplexidade e estranheza naquele que testemunha a completa ausência da massa nas ruas, contrariando a própria idéia que se faz de cidade. Em Paris, Benjamin (2006) afirma que os indivíduos vêem a si próprios em “lampejos” nos olhos dos outros, que se tornam, dessa maneira, outra espécie de espelho; em Brasília, Clarice Lispector diz ter sempre a sensação de estar exposta e vigiada por outros olhos - “o que me apavora é: vista por quem?” (1999, p. 41), ela se pergunta, uma vez que não há quem povoe a cidade.
Um dos aspectos mais alarmantes na percepção tanto de Brasília quanto de Paris é, no entanto, aquilo que Benjamin define nos seguintes termos: “quando dois espelhos se refletem, Satanás prega sua peça preferida, abrindo aqui à sua maneira (…) a perspectiva do infinito” (2006, p. 580). Ou seja, a presença de espelhos que se refletem uns aos outros cria a ilusão de ausência de limites. O que Benjamin sinaliza, por meio desta consideração, é a sensação de vertigem propiciada pela disposição das imagens e reflexos na cidade.
Clarice Lispector utiliza termos semelhantes, dizendo que “em qualquer lugar onde se está de pé, a criança pode cair, e para fora do mundo. Brasília fica à beira” (1999, p. 41). Pode-se inferir que essa sensação abismal sobre a qual discorre a escritora tem relação com um ponto insistente em sua crônica: o fato de a cidade de Brasília ser “redonda”, não ter esquinas, não permitir que se saiba exatamente onde se está. Nesse sentido, tanto Paris – pela profusão de espelhos – quanto Brasília – pela organização artificial e arredondada dos espaços – não definem “entrada” nem “saída”. A escritora afirma que “Em Brasília não há por onde entrar, nem há por onde sair” (Ibidem, p. 42); já o filósofo argumenta que “como as paredes são cobertas de espelhos, não se sabe se estamos entrando ou saindo” (Benjamin, 2006, p.579). Ele ainda anuncia que, coberta de espelhos, “a parede perde seu significado de limitação de espaço” (Ibidem, p. 583) – a cidade redonda e sem cantos também, pois em Brasília se “olha para baixo, olha para cima, olha para o lado – e a resposta é um berro: nãããão!” (Lispector, 1999, p. 48).
Há, portanto, indefinição dos limites entre os espaços, nas duas cidades. O impacto dessa desorientação e aprofundamento vertiginoso da cidade é tal que Clarice Lispector chega a afirmar que “Aqui [em Brasília] é o lugar onde o espaço mais se parece com o tempo” (Ibidem, p. 43) – ou seja, fugidio, indefinível, infinito; assim, Brasília é também “o retrato de uma cidade eterna” (Ibidem, p. 44). Essa indefinição e apagamento de fronteiras são ainda intensificados pela onipresença da luz. Em Espelhos, lemos que a claridade em Paris se faz presente também à noite; tudo é luminoso e claro, transparente, a todo e qualquer momento. Na crônica de Clarice Lispector, a cidade também não escurece: “Em Brasília nunca é de noite. É sempre implacavelmente dia” (Ibidem, p. 49).
No entanto, esta idéia ganha traços extremamente negativos no texto da escritora. A experiência de sentir permanentemente a presença da claridade está relacionada à insônia e à vigília, e também à sensação de haver um “olho” vigiando os indivíduos. “A luz de Brasília me deixou cega” (Ibidem, p.45), afirma a escritora. A característica apontada aqui é o excesso, o excesso de estímulos que, ao ultrapassarem a capacidade de absorção pela percepção humana, embotam os sentidos em vez de estimulá-los. Em Brasília “ninguém morre porque lá não se pode fechar os olhos”. A autora ainda acrescenta que “tudo lá é as claras e quem quiser que se vire” (Ibidem, p. 47). Curiosamente, tanto em meio à multidão de Paris quanto na solidão de Brasília, o indivíduo se sente visto, observado, sem poder detectar seu observador. Como já mencionamos anteriormente, a quantidade de espelhos em Paris faz com que se perca a origem dos reflexos, impedindo que o sujeito destaque, em meio às imagens, o objeto – ou o indivíduo – original. Os olhos dos passantes também se transformam em espelhos, refletindo, em lampejos, os rostos de outras pessoas. Assim, à semelhança do “olho” que vigia a cronista Clarice Lispector, aquele que anda pela capital francesa também está sempre sendo visto, a despeito do inegável contraste entre as duas cidades no tocante à presença e à ausência da multidão.
Apesar de todo o impacto causado na percepção dos espaços, é na aparência de fantasmagoria assumida pelas imagens que a presença de espelhos em Paris encontra sua manifestação mais perturbadora. Como afirma Adorno (2005) a respeito da música de Wagner, a fantasmagoria se dá na impossibilidade de traçar a origem do fenômeno que se admira - da melodia, neste caso - criando a ilusão de que esta é uma realidade à parte. A idéia é repetida em sua Teoria Estética quando o filósofo discorre acerca dos romances do século XIX, que se apresentam como fantasmagorias através do mascaramento de sua constituição: são objetos que se apresentam como surgidos a partir de si mesmos, escondendo sua origem e o processo que possibilitou que existissem, em primeiro lugar. Nas palavras de Adorno,
A aparência estética tinha-se elevado, no séc. XIX, à fantasmagoria. As obras de arte apagavam os vestígios da sua produção; provavelmente porque o crescente espírito positivista da arte se comunicava na medida em que ela devia ser um facto e envergonhar-se daquilo por cujo intermédio a sua densa imediatidade se revelara mediatizada. As obras obedecem a tal até bem dentro da modernidade. O seu carácter de aparência reforçou-se até se tornar o seu carácter de absoluto; eis o que se esconde por detrás do terminas hegeliano de “religião da arte”, que a obra do Wagner schopenhauriano tomou à letra. (1970, p.727)
Seguindo esta linha de raciocínio, em Espelhos, perde-se a origem da imagem que possibilitou os reflexos especulares, fazendo com que se questionem as fronteiras entre realidade e ilusão, confundindo-se espaços geradores de reflexos e espaços gerados pelos reflexos. Mas se para Adorno a fantasmagoria parece repousar no mascaramento, o que reforça a base marxista do conceito, para Benjamin o fenômeno repousa ainda na tensão entre o arcaico e o moderno. Sobre Paris, Benjamin afirma que
assim como as rochas do mioceno ou do eoceno carregam em si parcialmente a impressão de monstros destes períodos geológicos, situam-se hoje as passagens nas grandes cidades como cavernas com os fósseis de um animal extinto: dos consumidores da época pré-imperial do capitalismo, o último dinossauro da Europa. (2006, p.582)
Em outras palavras, para o filósofo, passagens e monumentos das grandes cidades evocam um passado que se anuncia mesmo sob a fachada do moderno; há indícios, ruínas que permanecem como símbolos fantasmáticos de uma anterioridade no ambiente urbano. As impressões descritas por Clarice Lispector a respeito de Brasília são extremamente problemáticas nesse sentido. Se em Benjamin os elementos modernos da cidade anunciam as ruínas de seu passado na forma de fantasmagoria, Brasília não tem passado. A cidade não tem absolutamente qualquer origem ou explicação de sua existência, no sentido processual da História: “Brasília é artificial. Tão artificial como devia ter sido o mundo quando foi criado” (Lispector, 1999, p. 40). Sem história, artificial e despovoada, Brasília é a própria imagem da reificação. Instigada pelo surgimento do local, Clarice Lispector faz referências ao que poderia ter sido o passado da cidade:
Brasília é de um passado esplendoroso que já não existe mais. Há milênios desapareceu esse tipo de civilização. No século IV a.C. era habitada por homens e mulheres louros e altíssimos que não eram americanos nem suecos e que faiscavam ao sol. Eram todos cegos. (…) Milênios depois foi descoberta por um bando de foragidos que em nenhum outro lugar seriam recebidos: eles nada tinham a perder. Ali acenderam fogo, armaram tendas, pouco a pouco escavando as areias que soterravam a cidade. (Ibidem, p. 41)
As enigmáticas especulações denotam a perplexidade face à inexistência de anterioridade em Brasília. O mero fato de Brasília existir exige uma explicação; mas como não há passado – pois sua “gênese” foi artificial – não há identidade a ser reconstituída através da paisagem. O que sobram são fantasmas: “Brasília é mal assombrada”; “Não me espantaria cruzar com árabes na rua. Árabes antigos e mortos” (Ibidem, p. 43). Em vez da multidão, legiões de fantasmas habitam a cidade. Os prognósticos também são negativos: “Que será de Brasília no ano, digamos, de 3000? Quanta ossada” (Ibidem, p. 57). A cidade é, ainda, “um futuro que aconteceu no passado” (Ibidem, p. 50). Como se pode notar, as considerações da escritora denunciam uma imagem agônica da cidade, percebida como um projeto frustrado de progresso que se anuncia solitário em sua glória, sem que haja qualquer referência à constituição histórica do local.
Por isso mesmo, “Brasília não é. É apenas o retrato de si própria” (Ibidem, p.50). Lá, existem apenas adjetivos, mas nenhum substantivo (Ibidem, p. 48): essa afirmação repisa o fato de que “Brasília não é”, pois se pode falar da coisa, mas não se consegue chegar a ela. Brasília é um retrato, “o perfil imóvel de uma coisa” (Ibidem, p. 43), mas não é nada por si só. Essa impressão assombrada de Brasília contamina a percepção do sujeito sobre si mesmo: “Eu. A fantasmagórica. Meu nome não existe. O que existe é um retrato falsificado de um retrato de outro retrato meu. Mas a própria já morreu” (Ibidem, p. 53-54). A imagem negativa da cidade é, portanto, reiterada no próprio indivíduo, que experimenta, ele também, a desintegração de sua identidade. Em Brasília, perde-se a humanidade, e, com isso, também se deixa de ser, como mostra o trecho citado; Brasília é uma cidade em que o indivíduo se aliena de si mesmo. E a escritora questiona: “Ó espelho partido: quem é mais bonita que eu? Ninguém, responde o espelho mágico. Sim, bem sei, somos nós duas.” (Ibidem, p. 53). A obscura afirmação sublinha a perda de identidade da voz narrativa, aqui identificada com a cidade em sua beleza artificial, apenas reflexo, apenas um “retrato de si mesma”. O espaço da cidade de Brasília, como um retrato, está exposto à visão, mas não chega a se revelar; algo para além da percepção se mantém inacessível, fazendo com que o olhar seja insuficiente para dar conta do aspecto do local.
Dessa maneira, a originária ligação entre o ato de ver e o conhecimento é quebrada; uma concepção cartesiana da percepção não se sustenta em nenhum dos espaços discutidos pelos autores em exame. Tanto a crônica de Clarice Lispector quanto o ensaio de Walter Benjamin denunciam certo descompasso entre a expectativa de reconhecimento, compreensão e orientação nos espaços citadinos através do olhar, e aquilo que as passagens da cidade de fato expõem ao indivíduo: o olhar se torna precário, perturbado pelo excesso e pela confusão de limites.
Alfredo Bosi, em seu estudo A fenomenologia do olhar (1988), sublinha a existência, na tradição do pensamento filosófico, da relação entre o olhar e a verdade. Já no início do ensaio, o crítico define o ato de ver como primordialmente um “ato de significação” (Ibidem, p. 65), ou seja, participante na construção de sentido. Ainda que se modifique ao longo da história, e passe por diferentes concepções intelectuais, há uma certa permanência no sentido de entrelaçar “visão e entendimento”, que, na Renascença, por exemplo, estão em “estreitíssima relação” (Ibidem, p. 75).
Quando examinada à luz do pensamento de Descartes, por sua vez, a visão como forma de conhecimento adquire o recorte racional proposto pelo filósofo, que, em seu “código racionalista”, só admite “uma visão verdadeira” (Ibidem, p.76). Dessa forma, como ocorre com o restante da filosofia de base cartesiana, a insistência é na unidade, na totalidade e nas certezas. Apesar das modificações históricas, o conceito de visão se sustenta como instância capaz de transmitir conhecimento sobre o mundo e sobre o indivíduo; e é justamente esta conexão que se rompe nos textos ora estudados. Para Benjamin e Clarice, ver não implica conhecer; a percepção é desafiada, e cabe a Brasília o mistério atribuído por Clarice Lispector, ou seja, seu mistério de imagem que não se deixa desvendar – pois de Brasília a própria Brasília está ausente: “o Ovo2 faz falta” (Lispector, 1999, p. 48).
As afirmações na crônica Brasília de que a cidade seria somente o retrato de si mesma remetem ao ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, de Walter Benjamin. Ele afirma que “mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e o agora da obra de arte, sua existência única no lugar em que ela se encontra.” (1994, p. 167) Expandindo a afirmação para Brasília – que, apesar de ser uma cidade, foi criada, inventada, assim como um objeto – problematiza-se ainda mais a questão de seu “aqui e agora”, posto que “Brasília fica em lugar nenhum”, e “antes de nascer já nasceu, a prematura” (Lispector, 1999, p. 50). Em reflexão posterior de Benjamin no mesmo ensaio citado, lê-se que
No interior dos grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência. O modo pelo qual se organiza a percepção humana, o meio em que ela se dá, não é apenas condicionado naturalmente, mas também historicamente. (1994, p. 169, trechos em itálico no original)
Ao articular percepção, história e sociedade, Benjamin aponta para o caráter constante de mudanças e transitoriedade da forma de percepção no processo de formação das coletividades. No entanto, segundo a crônica de Clarice Lispector, Brasília é artificial, inventada; a percepção que a cidade exige do sujeito não condiz com o condicionamento histórico a que ele se submete, no momento da construção da capital. Brasília é um desafio ao olhar: não se está pronto para absorver seu impacto, porque ele não é histórico da maneira como entende Benjamin.
Apesar dos contrastes entre os dois textos e as duas cidades abordadas, o que se depreende da leitura de Walter Benjamin e Clarice Lispector é o estado de profunda perplexidade vivida pelo sujeito na cidade moderna. A vertigem experimentada na confusão de espaços causada em Paris pelos espelhos e em Brasília pela “ausência de esquinas” estende a cidade ao infinito, colocando à prova a capacidade de apreensão do indivíduo. A cidade de Brasília surge como um fenômeno inexplicável, assim como Paris, que assombra por sua luminosidade e indefinição. A dificuldade de orientação verificada nas duas capitais é denunciada pelos autores estudados através de descrições que insistem nos aspectos excessivos das cidades, revelando a impossibilidade de o indivíduo abarcar todos os seus estímulos.

Referências bibliográficas

ADORNO, Theodor. In Search of Wagner. Londres: Verso, 2005.
_____. Teoria Estética. Lisboa: Edições 70, 1970.
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In.: Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 1994.
______. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989.
______. Espelhos. In.: Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2006.
BOSI, Alfredo. A Fenomenologia do olhar. In.: NOVAES, Adauto (org). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
LISPECTOR, Clarice. Brasília. In.: Para não esquecer. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.


1 Mestranda em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP. E-mail: gabriela.nor@usp.br
2 Cabe ressaltar que o ovo é tema recorrente nas obras de Clarice Lispector, constantemente referido em seus textos para tratar da temática da origem, do insondável, daquilo que não é inteiramente apreensível, mas de que se tenta inferir o passado, o anterior. Na crônica examinada neste trabalho, entende-se que a “falta do ovo” está relacionada à ausência de passado e de indícios de uma origem para a cidade de Brasília.
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