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Revista Literatura e Autoritarismo
Dossiê Walter Benjamin e a Literatura Brasileira
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 5 

UMA ESTRADA DE PÓ: A MODERNIDADE EM UMA POESIA DE DRUMMOND SOB PERSPECTIVA BENJAMINIANA

Thiago dos Santos1
Resumo: O presente trabalho pretende ressaltar problemas da Modernidade em um poema de Carlos Drummond de Andrade, Canto ao Homem do Povo Charles Chaplin. Para isso, faz-se uso da imensa contribuição de Walter Benjamin com categorias fundamentais para a interpretação, a partir de uma abordagem interdisciplinar que considera literatura e sociedade.
Palavras-chave: Modernidade, Modernização, Walter Benjamin, Drummond, melancolia.
Abstract: This paper intends to highlight problems of Modernity found in a poem by Carlos Drummond de Andradre, Canto ao Homem do Povo Charles Chaplin (Song for the Man of the People Charles Chaplin). For this purpose, Walter Benjamin’s immense contribution, in the form of the fundamental categories of interpretation, is used. The analysis is based on an interdisciplinary approach, which considers both literature and society.
Keywords: Modernity, Modernization, Walter Benjamin, Drummond, melancholy

Em 1945, Carlos Drummond de Andrade lança A Rosa do Povo. O livro, como bem diz o poeta na introdução, “reflete um tempo, não só individual mas coletivo no país e no mundo”, fruto dos momentos decisivos da II Grande Guerra. Fecha a obra o poema intitulado Canto ao Homem do povo Charles Chaplin, sobre o qual gostaria de me deter neste trabalho. O poema parece suscitar questões da Modernidade; desta forma, insere-se em temáticas trabalhadas por Walter Benjamin a partir da poesia de Charles Baudelaire e a arte pós-aurática cinema. Parece, assim, de grande proveito trabalhar com categorias desenvolvidas pelo filósofo.
Antes de se aproximar do poema, cabe uma pergunta: por que Drummond escolhe Carlitos para homenagear? Uma resposta que pode ser dada é que Carlitos, a grande personagem de Chaplin, é exemplarmente moderna, vive o seu tempo com tudo o que há de desafios nele. A personagem é urbana, faz parte, como diz Baudelaire, da: “(...) multidão doentia, que traga a poeira das fábricas, inspira partículas de algodão, que se deixa penetrar pelo alvaiade, pelo mercúrio e todos os venenos usados na fabricação de obras-primas...Essa multidão se consome pelas maravilhas, as quais, não obstante, a Terra lhe deve” (apud. Benjamin, 2000, 73).
O personagem é o sobrevivente, no entanto tudo conspire contra: o desemprego, a fome, as necessidades básicas - para já citar um verso de Drummond: “Há sempre o vidro, e não se quebra, há o aço, o amianto, a lei” (Drummond, 2006, 194). Carlitos pode viver de pequenos furtos, e o vemos arrebentar vidraças, derrubar guardas. Mas apesar de tudo, cabe a fraternidade com os que tem tanto ou menos que ele, um exemplo, o filme o Menino, de quem tenta se livrar várias vezes, mas quando o aceita, desespera-se quando pensa tê-lo perdido.
A possibilidade de se utilizar W. Benjamin para a análise de Drummond é facilitada pelas afinidades dele com Charles Baudelaire, especialmente, o lugar do poeta na modernidade - Benjamin também se aproxima do poeta brasileiro ao ter presenciado a transformação da paisagem ao seu redor, guardadas as proporções, na Alemanha. O país começou o seu processo de industrialização na segunda metade do século XIX para em pouco tempo se tornar um dos mais industrializados da Europa (Almeida, 1990, 9).
Em seu livro, Coração Partido, Davi Arrigucci Jr. comenta a imagem do poeta na primeira estrofe do Poema de sete faces: “Não deixa dúvida, apesar do tom farsesco, quanto a maldição que recai como uma sombra demoníaca sobre seu destino, submetido à praga da falta de jeito, como o albatroz de Baudelaire” (2002, 45).
A ideia do poeta como deslocado, um sujeito com dificuldade de participar da sociedade, pode remeter à própria personagem Carlitos, também um deslocado, um gauche. Gauche como o albatroz de Baudelaire. Vê-se que há ligações possíveis que demonstram a pertinência deste estudo, e que surgem logo no primeiro livro do poeta.
O professor Reinaldo Marques, da UFMG, em seu artigo Minas Melancólica: poesia, nação, modernidade (2002), sob viés benjaminiano, elege a figura do melancólico como uma metáfora esclarecedora das relações do poeta com o mundo moderno, na obra de poetas mineiros Abgar Renault e Drummond:
Disseminando pela obra desses poetas atmosfera ora difusa ora compacta, tal reiteração [de imagens de ruínas e de morte] nos permite tomar a figura do melancólico como uma metáfora esclarecedora das relações do poeta com o mundo moderno e com o lugar problemático que cabe no espaço da modernidade. Particularmente quando se trata de uma modernidade tardia, que parece de forma truncada e inacabada em espaços periféricos, como reflexo de modernidade centrado, traçado nas metrópoles colonizadoras (Marques, 2002, 1-2)
O crítico se refere a um projeto fracassado, do qual participa, de perto, Drummond, como chefe de gabinete do ministro da educação durante a Era Vargas. Vemos que o poeta presencia o processo da nossa modernização falha, pois as expectativas com relação à prosperidade geral se mostram ilusões. Reinaldo Marques vai observar o efeito disso na obra dos mineiros marcada por imagens de morte e de um passado de ruínas. Drummond dirá, no poema sobre Chaplin, que os homens estão sujos de tristeza e tem olhos melancólicos.
O poema Canto ao Homem do povo Charles Chaplin é uma espécie de ode a obra de um autor que fazia os homens rirem em tempos sombrios, a quem o público fizera “o homem mais popular do mundo” após a Primeira Guerra, diz o diretor e crítico, François Truffaut (Apud. Bazin, 2006, 8). Nos versos, há menção a filmes como “Em Busca do Ouro”, “O Garoto” e “Luzes da Cidade”. O poema é dividido em seis partes. A primeira é uma espécie de introdução, dela destacaria dois trechos. No primeiro, o eu-lírico diz que os brasileiros amam a obra do diretor, assim como:
“(...) os pequenos judeus de bengalinha e chapéu-coco, sapatos compridos, olhos melan-
                                                                                                                  [cólicos,
vagabundos que o mundo repeliu, mas zombam e vivem
nos filmes, nas ruas tortas com tabuletas: Fábrica, Barbeiro, Pó-
                                                                                               [lícia,
e vencem a fome, iludem a brutalidade, prolongam o amor
como um segredo dito no ouvido de um homem do povo caí-
                                                                             [do na rua.
Outro trecho:
Falam por mim os que estavam sujos de tristeza e feroz desgos-
                                                                                  [to de tudo,
que entraram no cinema com aflição de ratos fugindo da vida,
são duas horas de anestesia, ouçamos um pouco de música,
visitemos no escuro as imagens – e te descobriram e salva-
                                                                                      [ram-se.
(Drummond, 2006, 190-191)
Nota-se que o homem do povo escolhido pelo poeta não é a figura do chefe de estado, como poderia acontecer em se tratando de um governo, à época, em que o político tenta afirmar uma relação afetiva com os governados, pelo contrário, é uma personagem síntese do próprio povo, é a figura do excluído, do sobrevivente. E esse povo, como já dito, é caracterizado pelos olhos melancólicos e por estarem sujos de tristeza.
É importante notar o efeito anestésico que o cinema produz sobre esse público, que se salva através do cinema; o que pode remeter ao ensaio de Walter Benjamin, “Experiência e Pobreza”. Nesse ensaio, o filósofo diz:
Ao cansaço segue-se o sonho, e não é raro que o sonho compense a tristeza e o desânimo do dia, realizando a existência inteiramente simples e absolutamente grandiosa que não pode ser realizada durante o dia, por falta de forças. A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo (2008, 118)
O efeito descrito por Benjamin parece o mesmo que Drummond descreve quando fala de Chaplin. As pessoas que vão ao cinema, como sujeitos modernos que são, vivem uma série de impasses, um povo pobre de experiência que na frente de uma tela vê uma existência que se basta; cidadãos fatigadas com as complicações infinitas de uma vida diária veem essa existência lúdica para a qual um automóvel não pesa mais que um chapéu de palha, e se sentem aliviadas, sonham. É célebre a cena em que Chaplin, em Em busca do Ouro, come o seu próprio sapato, e o objeto sapato sofre sua redenção como simples objeto material, para se tornar alimento, para sofrer algo de uma “iluminação profana”.
No célebre ensaio, A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica, Benjamin vai retomar a discussão sobre o cinema, na parte denominada Camundongo Mickey, escreve:
O cinema introduziu uma brecha na velha verdade de Heráclito segundo a qual o mundo dos homens acordados é comum, o dos homens é privado. E fez menos pela descrição do mundo onírico que pela criação de personagens do sonho coletivo, como o camundongo Mickey, que hoje percorre o mundo inteiro (2008, 190)
Benjamin dá nome ao efeito produzido por uma existência como a do camundongo Mickey: “sonho coletivo”. O filósofo diz que a tecnização infundiu perigosas tensões nas massas que assumiram um caráter psicótico. O riso geral em uma sala de cinema tem efeito benéfico, é uma explosão terapêutica do inconsciente. No mesmo ensaio, ele ainda diz algo fundamental, que esse papel de sonho coletivo é onde se situa Chaplin como figura histórica. Uma esfera de sonho é justamente a sensação que parece transmitir o poema de Drummond, com relação à receptividade do público, no que parece confirmar a percepção benjaminiana da personagem como sonho coletivo.
Ainda no primeiro momento do poema, lê-se: “Falam por mim os abandonados da justiça, o simples/ de coração,/ os parias, os falidos, os mutilados, os deficientes, os/ recalcados,/ os oprimidos, os solitários, os indecisos, os líricos, os/ cismarentos,/ os irresponsáveis, os pueris, os cariciosos, os loucos e/ os patéticos” (2006, 191)
A estrofe passa uma sensação de atordoamento ao leitor, uma quantidade grande dessas figuras se sucede numa grande enumeração que pode evocar o que Walter Benjamin chama, em seu ensaio Sobre Alguns temas em Baudelaire, de “choque”: “O mover-se através do tráfego implicava uma série de choques e colisões para cada indivíduo. Nos cruzamentos perigosos, inervações fazem-no estremecer em rápidas sequencias, como descargas de uma bateria” (Benjamin, 2000, 124-125).
O autor diz que, com a invenção do fósforo, surge uma série de inovações que tem em comum disparar uma série de processos com um simples gesto. O mover-se entre a multidão implica em choques. A impressão que se pode ter ao ler essa estrofe é a de ser um caminhante em meio a multidão, nas ruas. O homem do povo de Drummond é o homem das multidões, parte constituinte dela.
Na segunda parte do poema, a personagem de Carlitos entra em cena:
II
A noite banha tua roupa.
Mal a disfarças no colete mosqueado,
no gelado peitilho de baile,
de um impossível baile sem orquídeas
. És condenado ao negro. Tuas calças
confundem-se com a treva. Teus sapatos
inchados, no escuro do beco,
são cogumelos noturnos. A quase cartola,
sol negro, cobre tudo isto, sem raios.
Assim, noturno cidadão de uma república
enlutada, surges a nossos olhos
pessimistas, que te inspecionam e meditam:
Eis o tenebroso, o viúvo, o inconsolado,
o corvo, o nunca-mais, o chegado muito tarde
a um mundo muito velho [grifos meus]
(Drummond, 2006, 192)
A aparição de Carlitos chama a atenção. Ele surge à noite, com seu típico traje de gala. É escuro, “condenado ao negro”, as calças absorvidas pela treva sugerem ser ele também treva. As palavras que remetem a negro e escuro se sucedem deixando uma forte impressão, como se o personagem fosse a própria morte que veio dar descanso à multidão. Chaplin é o cidadão de uma república negra; ele é o enlutado.
No ensaio A Modernidade (2000), Walter Benjamin chama a atenção para o fato que desde a Monarquia de Julho, o preto e o cinza começaram a predominar nos trajes masculinos, novidade tratada por Baudelaire. O poeta francês atenta para o pintor verdadeiro, que será aquele capaz de extrair o lado épico da vida contemporânea, nos ensinará a compreender como somos grandes e poéticos em nossas gravatas e botas envernizadas. Essa roupa é a vestimenta do herói moderno. É a roupa de uma geração que carrega sobre os ombros a símbolo de uma tristeza eterna. Nós todos celebramos algum enterro. Somos todos parte de uma república de enlutados. A imagem da modernidade aqui apresenta fortes afinidades com uma certa percepção do poeta brasileiro e talvez em nenhum outro momento fosse tão propício: era o Estado Novo, o momento da industrialização brasileira.
Tristeza, luto e, principalmente, melancolia se articulam com um momento político. Segundo Reinaldo Marques, o poeta mineiro tinha a percepção de que o mundo moderno com a sua sedução não garante a salvação do poeta, ao mesmo tempo, as questões trazidas pelos modernistas ainda ecoavam, e o poeta era aquele incumbido de uma tarefa específica: a tarefa da redenção nacional. Em carta a Drummond, Mário de Andrade escreve que os poetas devem ser aqueles capazes de dotar o Brasil de “uma alma” (Marques, 2002, 21).
Dotar o Brasil de uma alma significaria construir uma imagem positiva e totalizante da modernização. Para essa missão, no entanto, o poeta elabora um saber melancólico, desconfiado. A melancolia está associada ao fragmentário e descontínuo capaz de um olhar crítico sobre a racionalidade moderna e abstrata, cartesiana, que tem um desejo de evidência que Benjamin considera ser pura melancolia (Matos, 1990, 291). A melancolia é resultado de uma perda, a perda de ilusões de uma suposta prosperidade, a ruína dos sonhos alimentados. Daí o luto na modernidade diante de uma perda coletiva.
No último verso do poema, é evocada a clássica cena de Carlitos caminhando em direção ao horizonte:
Carlitos, meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode cami-
                                  [nham numa estrada de pó e esperança.
                                                           (Drummond, 2006, 1999)
No poema, a personagem é escolhida como exemplar para simbolizar uma massa urbana; o caminho incerto da modernidade - caminho de ruínas, pois de pó – e, ao mesmo tempo, o caminho incerto do próprio poeta, “gauche” como o albatroz de Baudelaire, e uma possível esperança.
A concepção de modernidade que permeia o poema evoca as reflexões benjaminianas que potencializam as significações e nos coloca no meio de uma estrada de pó a questionar o projeto de modernização e o lugar dos excluídos.
Para concluir, pode-se de fazer uma citação de Benjamin, do ensaio “Modernidade”, que parece conveniente por mostrar as preocupações do filósofo com os rumos da cidade a qual Haussmann deu uma nova face, enquanto pode servir também para retratar as preocupações do poeta mineiro. E de alguma forma, tenta-se demonstrar a importância de Benjamin como teórico da modernidade, para se pensar em um poeta do dito terceiro mundo:
Ele [Haussmann] realizou sua transformação da imagem da cidade com os meios mais modestos que se possa pensar: pás, enxadas, alavancas e coisas semelhantes. Que grau de destruição já não provocaram esses instrumentos limitados! E como cresceram, desde então, com as grandes cidades, os meios de arrasá-las! Que imagem do porvir não evocam! (Benjamin, 2000, 84)

Referências bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: . Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2008.
BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era de sua Reprodutibilidade Técnica. In: Obras Escolhidas, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2008.
BENJAMIN, Walter. A Modernidade. In: . Obras Completas III, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2000.
BENJAMIN, Walter. Sobre Alguns Temas em Baudelaire. In: . Obras Completas III, Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 2000.
ANDRADE, Carlos Drummond. A Rosa do Povo. São Paulo: Record, 2006.
BAZIN, André. Charles Chaplin. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
ARRIGUCCI JR., Davi. Coração Partido. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
ALMEIDA, Ângela Mendes de. A República de Weimar a Ascensão do Nazismo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
MATOS, Olgária. Desejo de evidência, desejo de vidência: Walter Benjamin. In: NOVAES, Adauto (org.). O Desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
MARQUES, Reinaldo. Minas Melancólica: Poesia, Nação, Modernidade. In: Revista do Centro de estudos Portugueses, Belo Horizonte, FALE/UFMG, v.22, n.31, p.13-25, jul-dez, 2002.


1 Graduando em Letras na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP. E-mail: thiago.santos@usp.br
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