Site do Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo  |  Índice de Revistas  |  Normas para Publicação
Literatura e Autoritarismo
Dossiê Estudos de Literatura Comparada
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Dossiê nº 10 

APRESENTAÇÃO

O volume de Literatura e Autoritarismo, que ora está sendo lançado, caracteriza-se pela abordagem comparatista dos seus artigos, justificando, assim, o subtítulo de “Estudos de Literatura Comparada” dado a este volume. Os textos aqui reunidos focalizam questões pertinentes ao perfil temático da revista, como violência, violação dos direitos, exclusão, preconceito e autoritarismo, apresentados através de relações intertextuais e interdisciplinares que evidenciam o trânsito entre a literatura e outras áreas do conhecimento, propiciando uma abordagem diferenciada do fenômeno literário. Sob vieses variados, os dez artigos aqui agrupados mostram distintas possibilidades de leitura comparatista, em estudos voltados, preferencialmente, às literaturas brasileira e latino-americana. Em face do largo alcance do Comparatismo Literário, os textos trabalham sob aspectos variados, mostrando assim a diversidade e a produtividade inerentes aos estudos de Literatura Comparada.
Dentro desta linha, o trabalho de Daisy Cesar aborda a obra de Julio Cortázar em – Fantomas contra los vampiros multinacionales - propondo uma discussão sobre o autoritarismo na América Latina. Considerado um texto híbrido, formado de palavras e imagens, ele também propicia que se estabeleçam relações com o momento histórico de sua produção, ao refletir sobre o exercício do poder ditatorial no continente latino-americano. Daisy analisa as versões impressa e digitalizada do livro do autor argentino em razão das diferenças ideológicas que cada uma delas manifesta. A versão digitalizada de 1977 é mais comprometida com as questões sociais, mostrando mais claramente a violência, a repressão e o autoritarismo, enquanto que a versão impressa de 2002 não evidencia esses aspectos. Esta foi elaborada por Cortázar originalmente em 1975, tendo sido atualizada em edição de 2002 onde o autor argentino, além de mesclar ficção e realidade, imprime um viés interdisciplinar ao incluir conteúdos de ordem literária, metaficcional, histórica-política a que se somam as imagens visuais.
No ensaio “Eva Luna e Scheherazade: tecelãs do destino”, Cinara Pavani destaca as relações intertextuais entre a personagem Eva Luna, do romance homônimo da chilena Isabel Allende, e Scheherazade, conhecida figura das Mil e uma noites, estabelecendo igualmente uma ligação com uma terceira personagem, a Eva, do Gênesis. A autora diz que o romance de Allende se aproxima, por sua estrutura interna, dos relatos das Mil e uma noites porque ambas as protagonistas contam histórias dentro de outras histórias e usam a palavra para transformar e salvar suas vidas. Em Eva Luna, Cinara destaca que a ligação intertextual com a Bíblia e as Mil e uma noites também possui a finalidade de evidenciar “o processo de libertação da personagem de uma vida de sacrifícios e subjugação a partir do uso da palavra”, evocando, por extensão, a emancipação verificada na história das mulheres ao longo do século XX.
O texto de Clarissa Mombach - "O governo Vargas e suas implicações na produção literária teuto-brasileira" - apresenta dados do contexto histórico do período da ditadura Vargas no Brasil, marcado pela repressão e perseguição de descendentes de imigrantes alemães, e pela proibição de divulgar a língua e a cultura germânicas. Essa repressão se acirrou ainda mais com a entrada do Brasil na guerra contra o Eixo, tomando dimensões de extrema violência, sobretudo nos estados de Santa Catarina, Paraná e Rio Grande do Sul, onde as delações provinham não só da população luso-brasileira, mas também dos próprios alemães. A autora comenta que o governo Vargas desenvolveu uma forte campanha de nacionalização, visando eliminar qualquer manifestação das culturas estrangeiras, principalmente da alemã. Isto provocou o cerceamento da produção cultural que já circulava na época nas zonas de imigração, sob a forma de almanaques, jornais, calendários, bem como contos e romances teuto-brasileiros veiculados em língua alemã.
No ensaio de Cristina Knapp, "A opressão na infância vista sob os vieses de Mario de Andrade e Monteiro Lobato", o tema é a violência praticada em crianças indefesas, através da leitura de dois contos: 'Piá não sofre, sofre?' de Mario de Andrade, do livro Contos de Belazarte, e 'Negrinha', do livro homônimo de Monteiro Lobato. A personagem Paulino, do conto andradino, sofre maus-tratos e a total indiferença da avó e das tias com quem vive, já que sua mãe o abandonara para se prostituir. Paulino é excluído do convívio social e esquecido por todos, causando revolta no leitor a violência com que esse pequeno ser indefeso é tratado pelos familiares. A Negrinha, de Monteiro Lobato, também é vítima de maus-tratos físicos, com o agravante da discriminação por ser negra. Órfã de pai e mãe, ela é um ser totalmente esquecido na fazenda onde moravam os pais quando vivos. Porém, diferentemente de Paulino que não conhece a piedade de ninguém, Negrinha vivencia um breve momento de atenção e humanidade por parte de sua patroa que lhe permite brincar com suas sobrinhas quando essas passavam um pequeno período de férias na fazenda. Ambas as personagens são vítimas da violência praticada no interior dos lares e incapazes de reagir aos seus algozes, sendo a morte o seu destino inevitável.
Fabiane Resende, por sua parte, trabalha com dois contos pampianos de Aldyr Schlee e de Acevedo Díaz, focalizando a questão da violência na literatura gauchesca sul-rio-grandense e uruguaia. Tradicionalmente, a literatura regionalista usou e abusou de situações violentas que demandavam virilidade, coragem, resistência e força física, atributos inerentes ao universo masculino. Contrariando essa tradição de supremacia masculina, a autora aborda dois contos protagonizados por personagens femininas que agem num ambiente belicoso, no enfrentamento físico com o inimigo: "O combate da tapera", do uruguaio Acevedo Díaz, e "Luzes do alvorecer", do jaguarense Aldyr Schlee. Embora escritos com uma diferença de quase um século, os contos apresentam situações de violência ocorridas num passado distante, "violento e rude, típico do meio rural e dos tempos de formação dos territórios sul-americanos". Fabiane mostra que os dois autores se aproximam por focalizarem, não os heróis, mas os seres ordinários, os que sofrem a violência dos que detêm o poder, sendo através de seu ângulo de visão que as narrativas são contadas. Além de explorarem o mesmo tema, os dois contos colocam a mulher "no protagonismo de uma ação tensa e violenta, usualmente atribuída às figuras masculinas".
O texto de Gerson Neumann - "Perder a terra - perder tudo"- reflete sobre a violência gerada pela perda da terra por parte dos agricultores de pequenas propriedades rurais, nas zonas de imigração alemã no Rio Grande do Sul, nas últimas décadas do século XX. Obrigado a abandonar o seu chão, a personagem do romance de Charles Kiefer analisado vai juntar-se ao Movimento dos Agricultores sem Terra (MST) como alternativa possível para reencontrar a sua dignidade através da posse de um novo pedaço de terra, incluindo aí as dificuldades materiais e o confronto violento com os órgãos de repressão. Antes de entrar na análise do romance em questão, Gerson traça uma retrospectiva histórica do longo processo de unificação da Alemanha e das condições que geraram as primeiras ondas emigratórias para o sul do Brasil, motivadas por fatores econômicos e político-religiosos. A análise aproxima Literatura e História ao tomar por base um episódio verídico acontecido em Porto Alegre no início dos anos 90, quando houve um confronto entre militantes do MST e soldados da Brigada Militar resultando na morte de um brigadiano ferido por um agricultor sem terra, que, no romance citado, se transforma em Mateus, o narrador-personagem.
Helena Bonito Pereira, em “Ficção brasileira censurada nos anos 70", discorre sobre o problema da censura que se intensificou a partir dessa década no Brasil com a promulgação do AI-5 (Ato Institucional número 5), como mecanismo auxiliar da repressão do regime militar, que atingiu também a literatura. Segundo a autora, o uso da alegoria, em romances do período citado, seria uma forma de driblar a censura, fato que não é corroborado por uma parcela da crítica que vê na alegoria um traço de modernidade, na esteira do pensamento de Walter Benjamin. Helena discute essa questão em três narrativas ficcionais alegóricas, sendo duas delas vetadas pela censura, e uma autorizada a circular livremente. Para Helena, a presença desse tipo de ficção nos chamados 'anos de chumbo' instauraram realidades fictícias que expressavam indignação, revolta e inconformismo diante do poder arbitrário, da supressão das liberdades civis e da ausência de um estado de direito.
No ensaio "Representação da violência e forma literária", Helena Tornquist analisa a violência na literatura, mostrando que esta não é prerrogativa da modernidade, pois se faz presente nas formas literárias mais antigas, a começar pelas tragédias gregas. Para ilustrar, a autora focaliza, sob um viés comparatista, distintos modos de representação da violência na tragédia Antígona, de Sófocles, no drama romântico Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias, e em três contos de Simões Lopes Neto, em Contos Gauchescos.
João Manuel dos Santos Cunha, por sua vez, em "Seis contos da era dos generais", localiza a sua reflexão no período pós-golpe de 64, iniciado efetivamente com o AI-5, de 13/12/68, com a cassação dos direitos políticos e com a censura e cerceamento das liberdades individuais. Dentro desse contexto ditatorial, o uso da linguagem simbólica e metafórica era o modo encontrado pelos escritores para falar de temas proibidos. No entanto, em que pese todo fechamento político imposto pelo regime, a criação artística e literária não deixou de ser produzida. Para comprovar, João Manuel seleciona três autores que estrearam nos tempos negros da repressão, revelados e premiados no "Concurso de contos do estado do Paraná", de 1968: Flávio Moreira da Costa, Luiz Fernando Emediato e Roberto Drummond, dos quais escolhe seis contos para examinar. Este conjunto pode ser considerado um documento autêntico sobre a realidade brasileira daquele período histórico, retratada num contexto de "ditadura escancarada" e interpretada "de forma inventiva, experimental, inovadora e consequente".
Finalmente, Tatiana Zizmann, em "Getúlio Vargas na ficção: leituras comparadas de um suicídio político", propõe uma análise acerca de algumas das representações literárias que incluem o suicídio de Vargas, ocorrido em 1954. Este fato, segundo a autora, é desestabilizado pela literatura que se vale da ficção para mostrar a conjuntura em que os fatos se processaram, culminando com o tiro no peito dado por Getúlio em 24 de agosto. A literatura relativa ao fato e selecionada para o estudo, procura entender o que teria motivado o suicídio do presidente, em três obras que trabalham essa temática: a de Jô Soares em Quem matou Getúlio Vargas, em que reinventa a cena do suicídio "forjando uma personagem anarquista que é quem puxa o gatilho da arma que matou o presidente", a de Carlos Heitor Cony - Quem matou Getúlio Vargas - que interpreta os acontecimentos que levaram ao trágico final de Getúlio, procurando identificar quem eram os interessados na crise de agosto de 54, provocada pelo atentado contra o jornalista Carlos Lacerda em que foi morto o seu guarda-costas, major Rubens Vaz; e duas novelas de Flávio Tavares que formam a obra O dia em que Getúlio matou Allende - onde o suicídio de Vargas é visto como motivador da morte do presidente chileno. Nas leituras das três obras, Tatiana expande a noção de suicídio, deixando de encará-lo como um ato puramente pessoal, "problematizando-o em sua dimensão social".
Esperamos que os textos aqui reunidos cumpram a sua função de denúncia e de resistência, como forma de se opor às investidas permanentes da violência e do autoritarismo, demonstrando que as palavras, quando bem utilizadas, possuem mais força do que as armas e os canhões.

Gilda Neves da Silva Bittencourt
(Organizadora)

Voltar ao início

© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak