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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 8 

TEORIA CRÍTICA : ALGUNS APONTAMENTOS1

Elisete M. Tomazetti2


No meu estudo procuro compreender a história da Escola de Frankfurt e mais, o conceito de razão produzido pelas reflexões de Horkheimer e Adorno, na intenção de compreender o sentido da Razão Instrumental. Assim, o que trago como diálogo são alguns apontamentos deste período, procurando enfocar prioritariamente a Crítica da Razão Instrumental e o conceito de Indústria Cultural.

1. HISTÓRICO DA ESCOLA DE FRANKFURT

Segundo Olgária Mattos, Horkheimer concebeu a existência de duas teorias críticas: "a dos anos 30 - marxista e revolucionária - e a dos anos 70 que ao mesmo tempo em que realiza um crítica ao mundo administrado, abandona explicitamente o projeto revolucionário" (1989). Mas segundo a autora haveria uma teoria crítica intermediária, entre 1939 e 1947, que iniciou a crítica à racionalidade. "Esta terceira forma de teoria crítica certamente representa a constelação mais interessante e mais rica (...). Consecutiva à ruptura que o advento do facismo marca, ela começa por descobrir que a teoria marxista não é pertinente diane do que excede, no facismo, categorias de uma teoria materialista do social-histórico e ao mesmo tempo traça os seus limites. A desrazão da razão histórica revelaria de maneira exemplar as sombras do movimento das Luzes, a parcela de debilidade qeu a razão histórica contém, sua autodestruição" (Mattos, p.16).
Do período que vai da inauguração do "Instituto de Pesquisa Social" até à década de 1930, há um conjunto de questões que é delimitado pelo referencial marxista. A filosofia assume o status de "Teoria Crítica da Sociedade", no sentido de negação ao existente, de adoção da "Crítica da Economia Política" de Marx para a reflexão da sociedade. A sociedade capitalista é negada pela sua irracionalidade para com os homens. A sociedade socialista é a grande meta, a utopia de "realização da razão no mundo".
Tendo presente todas as mediações e questões lançadas ao próprio marxismo, Horkheimer situa-se como um intelectual marxista e, em alguns momentos, revolucionário. A luta de classes é contemplada como elemento fundamental de contradição social. A "organização racional da sociedade", ideal de todos os frankfurtianos, era, naquele momento, representada pela instauração do socialismo. Há portanto, uma definição clara e radical pelo referencial marxista. A razão recebe, então, a definição de uma razão crítica e dialética, que tornada práxis visa a transformação da sociedade. Ela sustentava uma reflexão sobre a história da humanidade e dessa história extraia os mecanismos importantes (econômicos), que fundamentavam a organização da sociedade. Há, neste contexto, uma razão fortalecida, que se exterioriza para encontrar os mecanismos que impedem a sua realização no mundo. Sendo crítica e dialética, esta razão não precisa se justificar; ela mantém a sua eticidade.

1.1. A crítica da sociedade

Representou o primeiro momento do Instituto de Pesquisa Social, no qual a interdisciplinaridade e a metodologia dialética buscaram o acessa à compreensão da sociedade. Horkheimer compreendia a relação infraestrutura e superestrutura fora dos parâmetros do determinismo econômico. Criou a cátedra de Filosofia Social na Universidade de Frankfurt e deu à filosofia a função de "crítica da ideologia".
O texto demarcatório deste período é "Teoria Tradicional e Teoria Crítica", escrito em 1937. Neste texto Horkheimer problematizou e criticou a transferência do modelo das ciências da natureza (teoria tradicional) para as ciências do espírito. Lançou luzes sobre a questão dos interesses do conhecimento, advertindo sobre a suposta neutralidade da ciência e do cientista. O positivismo foi seu alvo, pois propunha "um encadeamento sistemático de proposições de uma dedução sistemática unitária"(Horkheimer, Teoria T e TC, p.32).
A teoria crítica da sociedade ultrapassa a mera descrição; traz o interesse pelo próprio destino da sociedade. "Classe, exploração, mais valia, pauperização, ruína são, segundo Horkheimer, categorias básicas utilizadas pela teoria crítica para elaboração de seus conhecimentos acerca da sociedade.
"Os homens não são apenas um resultado da história em sua indumentária e apresentação, em sua figura e seu modo de vestir, mas também a maneira como vêem e ouvem é inseparável do processo de vida social tal como este se desenvolveu através dos séculos. Os fatos que os sentidos nos fornecem são pré-formados de modo duplo: pelo caráter histórico do objeto percebido e pelo caráter histórico do órgão perceptivo" (Teoria T e TC, p. 39).
Ao constatar que mesmo nos países socialistas, a razão acabava por não ser mais dialética e crítica, era imperativo lançar os olhos sobre o próprio conceito de razão. Iniciava, portanto, a mudança de referencial de análise da sociedade e da razão.3 Os ideais de uma nova sociedade começam a ficar sombrios, o socialismo já não representa o desenvolvimento da razão no mundo.4 A luta de classes, como elemento gerador da transformação social, é abandonada. Não mais é vislumbrada essa transformação através de uma práxis revolucionária. A sociedade burguesa segue seus rumos cada vez mais fortalecida, porque se sustenta em uma razão instrumental. E a sociedade socialista, da mesma forma, se corrompe em seus ideais originários e se mantém através dessa mesma razão.

1.2. A crítica da razão

A "Crítica da Razão" realizada por Kant, na modernidade, buscava estabelecer os limites e possibilidades da razão, repensá-la em sua capacidade de conhecimento. Os pensadores do "Instituto de Pesquisa Social" de Frankfurt, também buscaram efetivar uma crítica à razão, mas já não mais uma razão transcendental que busca o conhecimento científico, definido a partir das formas da intuição sensível e das categorias do entendimento. A razão passou a ser inquirida em sua eticidade no ato de conhecimento e portanto, por aquilo que a sua capacidade de conhecer cientificamente acabou gerando na vida dos homens. A razão passou a ser situada na história humana e teve, então, que se desnudar em seus objetivos e realizações.
A hipótese fundamental levantada por Horkheimer diz de uma razão que historicamente foi desviando-se da sua essência. Isso significa dizer, uma razão que se transformou e, portanto, já não é mesma. A pergunta que surge, então, é: que razão é esta? É possível ainda usar a expressão "razão" para defini-la? Podemos mesmo indagar-nos se a razão não acabou transformando-se numa "não-razão"? Porém, se não mais falamos de razão, mas de não-razão, como podemos critica-la ? De onde fazemos a nossa crítica?
Seguindo Horkheimer, descobrimos dois conceitos de razão que vão se impondo à realidade, em alguns momentos da civilização simultaneamente, em outros separadamente, até o predomínio definitivo de um sobre o outro. Razão "objetiva" e razão "subjetiva" dizem do homem em sua própria condição humana, dizem da história realizada por estes homens. Mas ao fim, a razão subjetiva triunfa e a razão instrumental é seu novo nome e definição. É preciso então, a crítica. Mas em nome de que outra razão essa crítica é exercida? E mais, será possível outro tipo de razão? Que tipo de razão buscava Horkheimer e seus companheiros?
A mudança de paradigma de compreensão - da luta de classes e "Crítica da Economia Política" para a relação HOMEM-NATUREZA - é um elemento fundamental no pensamento de Horkheimer e, também, um dos mais instigantes. Aí se mostra toda a dialeticidade deste pensamento. É necessário não abandonarmos a visão de totalidade e compreendermos como se processou essa ruptura. Teriam sido as condições históricas criadas pelo nazismo, a 2ª Guerra Mundial, o avanço do capitalismo monopolista e a integração da classe operária ao sistema, através de uma política intervencionista e compensatória os fatores condicionantes do abandono do referencial marxista? Não teria sido a razão um elemento vital, de tradição idealista e iluminista, desde o inicio de sua imersão na filosofia? Podemos dizer que, mesmo reconhecendo, em determinados momentos, o proletariado como o agente da instauração da razão no mundo, a preocupação fundamental desses pensadores sempre foi com o Homem universal. Da mesma forma, a verdade acerca da sociedade acabava por não ser determinada em última instância, pelo ponto de vista da classe proletária. Permaneciam os ideais universais e não materialistas da razão hegeliana e iluminista.
Se a razão como crítica e dialética da sociedade capitalista e instauradora da sociedade socialista não se manteve em sua radicalidade. Se os desafios impostos pela realidade à compreensão desses pensadores os fez recuar diante da luta concreta pela instauração de uma organização racional da sociedade e em seu lugar originou-se um pessimismo, isto significava o próprio momento da negação em sua forma radical e absoluta. O momento da superação, da AUFHEBUNG, não mais poderia realizar-se. A reconciliação mantinha-se como um desejo, mas não mais passível de realização efetiva. A razão dos teóricos críticos não assimilava a razão hegeliana como manifestação total da vida do Espírito. O real racional e o racional que é real não eram mais contemplados.
Abandonada a compreensão hegeliana de razão, céticos em relação ao materialismo histórico, era preciso, na crise da racionalidade, encontrar-lhe um novo núcleo. O pessimismo começava a ser o único caminho para ser seguido. A relação HOMEM-NATUREZA expõe com clareza os rumos da civilização humana.

2. A RELAÇÃO HOMEM-NATUREZA: UM NOVO PARADIGMA DE COMPREENSÃO

A relação homem-natureza é o paradigma amplo de compreensão da razão como razão instrumental. Horkheimer caracteriza a razão instrumental (subjetiva) como uma razão que "se relaciona essencialmente com meios e fins, com a adequação de procedimentos a propósitos mais ou menos tidos como certos e que se prescrevem auto-explicativos. Concede pouca importância à indagação de se os propósitos como tais são racionais".5
Estão implicadas, aí, a compreensão do conhecimento científico, o estabelecimento da ligação entre "meios e fins" e a conseqüente "racionalização social". Nesta relação o homem se impõe como sujeito e a natureza define-se como o objeto; há, portanto, uma relação de domínio e superioridade de um sobre o outro.
O homem, como razão, se impõe sobre a natureza transformando-a em objeto, isto é, em algo a ser "observado" e "modificado" a partir dos seus interesses. Poderíamos afirmar que esse tipo de relação objetivadora se impõe historicamente na modernidade, com o movimento Iluminista. É nesse período que o homem se descobre como ser individual e finito. Exercendo a sua racionalidade, ele torna-se sujeito de si mesmo e, ao mesmo tempo, sujeito do seu mundo. Como ser racional, como sujeito livre ele exerce um poder sobre as coisas, sobre a natureza. Porém, esse processo fundado no domínio do sujeito sobre a natureza já está presente na própria origem da civilização ocidental, na mitologia. Esta tese é exposta na obra "Dialética do Esclarecimento". A mitologia e "iluminismo" (esclarecimento) se inter-relacionam dialeticamente.
O processo de conhecimento científico se dá, necessariamente, nessa relação entre homem e natureza. Uma relação de apropriação, de manipulação, de experimentação. Essas expressões não devem assumir um sentido valorativo, isto é, de algo não-ético realizado pelo homem. Por hora, nossa discussão quer apontar algo de essencial que ocorre no ato mesmo de gerar conhecimento científico e do homem estabelecer-se como sujeito racional. A existência humana se funda na capacidade que o homem possui de modificar o meio que o circunda, modificando-se a si mesmo. A intervenção sobre a natureza adquire a significação de trabalho.6
No "século das luzes", na modernidade, a ciência adquire um espetacular desenvolvimento. A apropriação e desenvolvimento do método experimental e a adoção da matemática como uma ciência transparente, e objetiva são alguns desses avanços. A filosofia de Descartes e seu racionalismo, com a busca da certeza matemática, constituíram um modelo para a própria filosofia. As descobertas de Galileu no universo da física inauguraram essa nova forma de se fazer ciência. O grande desenvolvimento gerado com a revolução industrial e as descobertas cada vez maiores de novos conhecimentos e técnicas expõem a marca do período moderno.
Immanuel Kant, como o "filósofo da ilustração", traça os limites e possibilidades da razão em relação ao conhecimento. Na obra "Crítica da Razão Pura", ele expõe a necessidade de se conceber a realidade a partir da dualidade entre "fenômeno" e "coisa em si", entre aquilo que pode efetivamente ser conhecido e aquilo completamente incognoscível à razão humana. É por isso, que a razão precisa ser crítica para consigo mesma, estabelecer os seus limites e possibilidades. No "Prefácio à segunda edição da "Crítica da Razão Pura", aponta sentido dessa nova razão, esclarecendo acerca da relação entre homem e natureza no ato do conhecimento.
A razão deve ir à natureza tendo em uma das mãos os princípios segundo os quais apenas os fenômenos concordantes entre si podem valer como leis e na outra a experimentação que imaginou segundo os seus princípios, na verdade para ser instruída por ela, não porém na qualidade de um escolar que se deixa ditar tudo o que o mestre quer, e sim na de um juiz, cujas funções obrigam as testemunhas a responder às questões que ele lhes propõe .7
Não há mais o homem como sujeito que "especula", que se prostra diante da natureza para que ela exponha as respostas que lhe são necessárias, ou mesmo para que absorva dela tudo que a sua percepção puder atingir. O homem deixou de esperar passivamente diante da natureza e encarou-a como uma fonte inesgotável de respostas às perguntas que lançava. A natureza só se revela se a razão transformar-se em ação, em experimentação. "O juiz obriga a testemunha a responder as questões que ele propõe" e a expressão "obrigar" significa a necessidade de manipular, de experimentar. Não há mais nenhum vestígio de algum princípio divino a reger a ordem natural. Ela passa a representar o universo profano; o sagrado foi expulso. Juntamente com o mundo humano, a natureza tornou-se profana, dessacralizada. O homem habita um "novo mundo"; ele é, também, um "novo homem". Um novo deus chamado ciência, tem aí seu nascimento.
A ciência vai se transformando, gradativamente, numa história de progresso e desenvolvimento. A razão torna-se a "razão da ciência"; uma razão instrumental que estabelece a relação entre meios e fins. O projeto do esclarecimento8 é o projeto do homem racional que precisa conhecer a natureza para nela poder intervir, isto é, exercer a sua ação. A natureza vai, assim, sendo modificada, exigindo também uma modificação do homem que a transforma.
A expressão "esclarecimento" não se refere à época específica do movimento Iluminista no século XVIII. Ela tem uma significação ampla, que expõe a própria trajetória do conhecimento humano, da racionalidade na busca da autoafirmação e autoconservação dos homens. O projeto do esclarecimento diz da própria humanidade buscando romper os grilhões da ignorância e dos mistérios, das explicações mágicas e mitológicas acerca da vida e do mundo. É o caminho trilhado pelo homem na tentativa de se impor sobre o desconhecido e fazer triunfar assim a sua razão. "No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investí-los na posição de senhores." (Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, p. 19).
Horkheimer realiza as suas reflexões sobre a razão, dentro da perspectiva da relação de domínio entre homem e natureza, na década de 1940, nos Estados Unidos. Sua crítica é severa para com a razão esclarecida, que se propunha "emancipatória" e, ao fim, parecia haver conduzido os homens, inevitavelmente, ao caos e à barbárie. Na sua compreensão, esta razão fracassou, desviou-se dos seus objetivos e acabou comprometida com o poder, com um sistema de dominação e opressão dos homens e da própria natureza. A razão que deveria ser emancipatória transformou-se numa razão apenas instrumental. O pessimismo que daí se origina é profundo e absoluto, sem volta.
Nas obras Eclipse da Razão e Dialética do Esclarecimento Horkheimer tem uma preocupação fundamental com o elemento da dominação instaurado pela razão instrumental. Mais ampla que o próprio desenvolvimento da ciência na modernidade, a dominação já está presente na mitologia e no livro do Gênesis na Bíblia. O homem é considerado como sujeito, como senhor de tudo o que existe. Todas as coisas do mundo acabam por serem consideradas apenas instrumentos, meios para os fins que o homem busca; ele transforma a face do mundo, a partir dos interesses que possui. Assim, o homem se autoconserva a si mesmo, mantém-se imune aos desígnios cegos da natureza. A autoconservação9 dos homens é o argumento que justifica o domínio, a transformação da natureza. Ela é o próprio objetivo do homem racional e esclarecido.
Poderíamos, então, perguntar: que outro tipo de relação seria possível de ser estabelecida entre homem e natureza? O homem conseguiria autoconservar-se sem o uso de sua razão instrumental? Como pensar a categoria do "trabalho" sem a relação meios e fins? Ora, é impossível conceber o homem, em meio ao ambiente natural, sem intervir, sem modificar, sem estabelecer meios e fins. E Horkheimer, como um crítico, tinha também esta convicção que no entanto, aparece de forma tênue, indelével pelo peso que impõe à reflexão sobre as conseqüências da razão instrumental. A partir dos dois conceitos de razão que estabelece, Razão Objetiva e Razão Subjetiva, ele traça o caminho da civilização ocidental. A razão objetiva adquiria sua sustentação na metafísica e na religião; possuía então, um caráter de universalidade e objetividade.10 A razão subjetiva, por outro lado, encontra seu ponto de apoio no próprio homem, como ser individual, que determina a si mesmo os seus objetivos e fins a alcançar. Segundo ele, não há uma ordem cronológica na definição desses dois conceitos. Ambos pertencem, essencialmente, à condição humana e, portanto, representam conjuntamente o homem.
A relação entre esses dois conceitos de razão não é simplesmente de oposição. Historicamente, ambos os aspectos, subjetivo e objetivo da razão, estiveram presentes desde o princípio, e a predominância do primeiro sobre o último se realizou no decorrer de um longo processo .11
A tese de Horkheimer de que a razão é, ao mesmo tempo, objetiva e subjetiva reaparece na "Dialética do Esclarecimento", quando da afirmação da dialética entre mito e esclarecimento. A necessidade de se pensar a razão como um órgão regulador entre meios e fins e assim, mantenedor da autoconservação do homem pertence, como já afirmamos, à condição humana. Razão objetiva e razão subjetiva puderam conviver harmonicamente até à modernidade, porque a primeira acabava por abarcar a razão subjetiva.12 A instrumentalidade, a relação meios e fins, era salvaguardada pelos valores universais, éticos determinados pela religião e pela metafísica. Na compreensão de Horkheimer, a razão objetiva era fundamentalmente uma razão ética, isto é, mantinha intocáveis o valor e o sentido da vida humana e da natureza. A ordem natural e do mundo humano era preservada e mantida por uma ordem supra-terrena, imutável e absoluta. A ela apenas pertencia o destino e o desenvolvimento da natureza e do mundo.
Na crítica que faz à razão instrumental, Horkheimer não nega a sua inevitável necessidade, mas se indaga acerca das conseqüências que daí se originaram para a humanidade. Estabelecida a vitória da razão subjetiva, esta deixou de ser crítica consigo mesma e atenta aos fins que deveria servir. Tais fins seguiram o livre curso dos interesses de uma organização social, incapaz de estabelecer critérios significativos para o progresso e o desenvolvimento. A sociedade industrial desobriga o indivíduo de usar a sua razão crítica e lhe incentiva a pensar e a agir em termos meramente pragmáticos e utilitaristas. O indivíduo está assim, fortalecendo cada vez mais esta sociedade que, ao fim, origina o "caos" e a "barbárie". Essas expressões de Horkheimer enfatizam o desenrolar da racionalidade subjetiva espelhada no quadro das duas guerras mundiais, do nazismo e do facismo.
A instrumentalidade da razão se mantém num mundo que se envaidece de ser filho do avanço da racionalidade. Apenas a razão já não é a mesma para Horkheimer, ela perdeu-se dos seus fins mais caros. Isso não significa, segundo ele, negar o desenvolvimento técnico-científico alcançado e desejado pelos homens. Não significa se lançar na tentativa de recuperação de um estado "anterior" e então, regredir no tempo. Não há a tentativa ingênua de negar a própria ciência, como se ela fosse a responsável por todos os desequilíbrios entre homem e natureza.13 O que está em jogo é o alerta para que se volte a fazer uso da reflexão e se descubra os elementos constituintes e determinadores da situação alcançada na trajetória do progresso.
Horkheimer demonstra um forte apego à tradição metafísica e religiosa sustentadora de uma razão "ética", isto é, de uma razão que buscava preservar o sentido e valor da vida humana. "A filosofia, preservando a idéia de verdade objetiva sob o nome de absoluto, ou de qualquer outra forma espiritualizada, conseguia a relativização da subjetividade. As idéias e valores universais eram a garantia de que a busca de uma "vida feliz" permanecia ainda sendo um ideal a ser alcançado. O exercício da racionalidade era, na tradição metafísica, o exercício de atitudes éticas e morais e não apenas o culto ao pragmatismo e ao utilitarismo.
A razão ética que Horkheimer quer recuperar tem o sentido de uma auto-reflexão e auto-crítica em relação aos fins que persegue. A razão deveria ainda, preservar o homem como supremo valor e a vida repleta de sentido. A eticidade da filosofia grega e, também, da filosofia medieval mantinham esses valores de forma absoluta e universal. A razão objetiva era concebida como "o instrumento para compreender fins, para determiná-los".14 Compreender fins e determiná-los significa a necessidade de uma eticidade a garantir as ações humanas dos descaminhos da irracionalidade. A razão instrumental era, então, submetida aos parâmetros de uma ordem justificada pela universalidade e objetividade da metafísica e da religião. A razão era, assim, preservada como elemento maior da humanidade em termos de capacidade e condição de um caminho que levaria a concretização de uma "vida feliz".
A relação Homem-Natureza determinada pela razão instrumental funda-se, segundo Horkheimer, em uma irracionalidade, em uma não eticidade entre meios e fins. Estabelece-se apenas uma situação de domínio e manipulação, conduzindo os homens à barbárie. A característica fundamental desta relação como trabalho é deixada de lado, sob o peso da crítica a sua instrumentalidade.

3. INDÚSTRIA CULTURAL

O desenvolvimento da tecnologia ligada à area da comunicação e a adoção dos referenciais da sociedade, na dimensão da divisão do trabalho, para o universo da produção cultural foram elementos decisivos na modificação de formas e padrões culturais. A cultura transformada num grande negócio a serviço dos poderosos transformou-se numa notável forma de legitimação e afirmação do existente. A arte recebeu o status de uma mercadoria a ser consumida por milhares de pessoas, incapazes de reconhecerem seu verdadeiro significado.
A indústria cultural tem o objetivo de determinar, de antemão, tudo aquilo que os indivíduos devem fazer, ler, consumir e, até mesmo, sentir.
Aquilo que em geral e sem mais se poderia chamar de cultura, queria, enquanto expressão do sofrimento e da contradição, fixar a idéia de uma vida verdadeira, mas não queria representar como sendo vida verdadeira a simples existência eas categorias convencionais e superadas da ordem, com as quais a indústria cultural a veste, como se fosse a vida verdadeira e essas categorias fossem a sua medida" (Indústria Cultural, p.97).
A cultura passa então, a significar a afirmação da realidade existente, sem quaisquer negações à injustiça e à dominação nela presentes. A indústria cultural transformou a cultura em um mecanismo ideológico, capaz de promover a completa afirmação e legitimação do status quo. "A cultura sempre contribuiu para domar os instintos revolucionários, e não apenas os bárbaros. A cultura industrializada faz algo a mais. Ela exercita o indivíduo no preenchimento da condição sob a qual ele está autorizado a levar a vida inexorável" (IC, p.143).
Essa nova condição social está diretamente relacionada com a nova produção material, visto que esta "tem a função de ocupar o espaço de lazer que resta ao operário e ao trabalhador assalariado depois de um longo dia de trabalho, a fim de recompor suas forças para voltar a trabalhar no dia seguinte sem lhe dar trégua para pensar sobre a realidade miserável em que vive" (Freitag, p.72). Assim, através da criação de uma ilusão de felicidade, da eliminação da dimensão crítica que ainda existia na cultura burguesa e da dissolução da obra de arte, assegura a reprodução das relações sociais dominantes, sendo o consumo apresentado como o caminho para a realização pessoal.
Walter Benjamin observa essa transformação como a desauratização da obra de arte que destrói sua unicidade e singularidade, mas ao perder seu valor de culto, seu valor de exposição aumenta - torna-se acessível a todos. A obra de arte pode servir como elemento de politização quando se massifica. Já, segundo Habermas, o grande potencial da indústria cultural é o avanço na possibilidade da comunicação entre as pessoas e diferentes povos. As distâncias são encurtadas; o acesso torna-se rápido à informação e ao conhecimento.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense: Universitária, 1983.
HORKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. Rio de Janeiro: Labor do Brasil, 1976.
JAY, Martin. La imaginación dialectica: una historia de la escuela de Frankfort. Madri: Taurus, 1986.
MATOS, Olgária C. F. Os arcanos do inteiramente outro: a escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Brasiliense, 1989.
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e existência: problemas filosóficos da pesquisa filosófica. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. (col. Os Pensadores). p. 9-98 : Crítica da razão pura.


1 Texto apresentado na IV Jornada de Literatura e Autoritarismo, evento promovido pelo Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo e pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM, no período de 25 a 28 de outubro de 2005.
2 Profª. Dra. do Programa de Pós-Graduação em Educação / PPGE - UFSM.
3 Martin Jay, um dos mais importantes historiadores da Escola de Frankfurt, aponta para esta ruptura de paradigmas na compreensão da sociedade. O motor na história deixa de ser a luta de classes e passa a ser o conflito entre homem e natureza. O marxismo era substituído pela problemática da razão a nível de civilização ocidental. Martin Jay, 1986, p.413.
4 Os desvios sofridos pela dialética e a crítica no marxismo estalinista representaram um desencanto para os frankfurtianos. A razão instrumental havia dominado até mesmo os espaços da dialética e da crítica. Nascia assim, um pessimismo para com a sociedade socialista em realizar os ideais mais caros da humanidade. A dominação e a opressão do homem e da natureza estavam presentes tanto no capitalismo como no socialismo.
5 Horkheimer caracteriza a razão instrumental (subjetiva) como uma razão que "se relaciona essencialmente com meios e fins, com a adequação de procedimentos a propósitos mais ou menos tidos como certos e que se prescrevem auto-explicativos. Concede pouca importância à indagação de se os propósitos como tais são racionais." Eclipse da Razão, p. 11-12.
6 Álvaro Vieira Pinto, em seu livro "Ciência e Existência", expõe o significado da relação homem-natureza. Segundo ele, a capacidade que o homem adquire de intervir na natureza é denominada trabalho. Ele estabelece uma relação dialética com a natureza e se torna assim, o criador das condições que o cria. Op. cit., p.85. Immanuel Kant, 1974, p. 11.
7 Immanuel Kant, 1974, p. 11.
8 A expressão "esclarecimento" não se refere à época específica do movimento Iluminista no século XVIII. Ela tem uma significação ampla, que expõe a própria trajetória do conhecimento humano, da racionalidade na busca da autoafirmação e autoconservação dos homens. O projeto do esclarecimento diz da própria humanidade buscando romper os grilhões da ignorância e dos mistérios, das explicações mágicas e mitológicas acerca da vida e do mundo. É o caminho trilhado pelo homem na tentativa de se impor sobre o desconhecido e fazer triunfar assim a sua razão. "No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e investí-los na posição de senhores. Adorno e Horkheimer, Dialética do Esclarecimento, p. 19.
9 A expressão autoconservação é fundamental para a compreensão da razão instrumental, da razão teleológica. Horkheimer a concebe como necessária para que a vida humana se mantenha, mas questiona o grau de importância absoluta que acabou adquirindo na sociedade industrial e capitalista, ou seja, o grau de individualismo e utilitarismo. Autoconservar-se significa competir, usar os próprios homens como meios para os fins que deseja, fins utilitários e lucrativos.
10 Horkheimer afirma que a razão objetiva "denota, como essência, uma estrutura inerente à realidade que por si mesma exige um modo específico de comportamento em cada caso, seja uma atitude prática ou teórica.(...) pode também designar o próprio esforço e capacidade de refletir tal ordem objetiva." Eclipse da Razão, p. 19.
11 Horkheimer, 1976, p. 15.
12 Para Horkheimer, o conceito de razão objetiva "jamais excluiu a razão subjetiva, mas simplesmente considerou-a como a expressão parcial e limitada de uma racionalidade universal, da qual derivavam os critérios de medida de todos os seres e coisas." Cfe. Eclipse da Razão, p. 13.
13 "...somos herdeiros, para melhor ou pior, do Iluminismo e do progresso tecnológico e querer regredir a estágios primitivos somente nos levará a encontrar formas mais bárbaras de dominação social. O que é imprescindível é que o pensamento crítico, novamente possa ser realidade, somente assim a natureza humana e exterior também serão libertadas." Horkheimer, Eclipse da Razão, p. 138.
14 Horkheimer,1976, p.18.

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