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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 8 

DIREITOS HUMANOS E LITERATURA: INTOLERÂNCIAS DO COTIDIANO

Sandra Regina Chaves Nunes1


Com muita constância o conceito de fantástico foi utilizado para denominar a literatura que se contrapõe ao realismo literário ou, mais especificamente, a que transgride as leis de causalidade.
Borges, no ensaio "El Arte y la Magia",2 afirma que o fantástico é um elemento presente na literatura desde seus primórdios. Seja de forma mais explícita ou menos explícita, o sobrenatural já habitou as mais diversas histórias. É a partir do século XVIII, porém, que um número mais significativo de escritores acaba por adotar o gênero em suas obras.
No século XIX, na América Latina, surgem os primeiros textos de uma incipiente literatura fantástica. Posteriormente, o gênero ganha força com os nomes de Horacio Quiroga, Leopoldo Lugones, Jorge Luis Borges, Adolfo Bioy Casares, Julio Cortázar etc. Além destes, escritores como Alejo Carpentier, Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez, entre outros, renovam o gênero com uma narrativa que pretende modificar o tom regionalista da produção literária vigente.
No Brasil, o fantástico permeia diversos textos literários, desde Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, no século XIX. Encontramos suas marcas em Machado de Assis, Mário de Andrade e Guimarães Rosa, entre outros. E, mais fortemente, na obra de escritores modernos como Murilo Rubião e Jorge Miguel Marinho.
Murilo Rubião é um contista singular no contexto literário brasileiro, pois, com a opção pelo gênero fantástico, assume a posição de inaugurador de uma tendência literária que só encontra paralelos fora do âmbito da literatura nacional.3 Sua estréia literária dá-se com a publicação de O Ex-Mágico, em 1947. Assim como outros escritores latino-americanos que optaram pelo gênero, o contista mineiro rompe com uma forte tradição regionalista. Autor de uma obra relativamente pequena, pode ser definido como um autor que praticou mais a reescrita do que a escrita propriamente dita.
Jorge Miguel Marinho estréia no gênero fantástico em 1984, com Escarcéu de Corpos.4 Por esse trabalho foi comparado, por alguns críticos, ao escritor mineiro. Marinho destaca-se por reescrever em seus contos personagens do cotidiano, personagens literários e personagens dos meios de comunicação de massa.
Uma característica significativa de Rubião e Marinho é a ficcionalização do cotidiano mais banal. Para os dois, o mundo é visto como um grande livro que pode ser lido e reescrito. A frase "existe coisa mais fantástica do que a vida real?" permeia a obra destes escritores.
Nas suas obras, o fantástico se instaura como experiência de limites, ou seja, de contaminação discursiva de realidades. O banal e o corriqueiro se imbricam em fatos extraordinários, ressaltando o absurdo da condição humana. Mais que o absurdo da condição humana, o que nos interessará aqui é como o fantástico, em dois contos destes escritores, faz emergir as intolerâncias do cotidiano.
"Os Dragões",5 publicado pela primeira vez em 1965, narra a história de uns Dragões que chegam a terra e deverão se adaptar às condutas humanas. Todo esforço da população centra-se na mudança de seus hábitos. Ao final do conto, os que não morreram, impossibilitados de adequarem-se, levam uma vida marginal.
Retomando uma marca de sua obra - a condenação a repetir sempre os mesmos atos - as ações desenvolvidas pelas personagens não levam à reflexão, mas sim a uma repetição vazia e desprovida de sentido. Há a dissolução da personalidade, que aqui, não se faz via metamorfose, mas sim pela perda da identidade e pela impossibilidade de construção de uma nova. Murilo Rubião, ao nos apresentar estas imagens, parece empenhar-se na libertação do homem da realidade e das limitações do mundo que o cercam. Empenho sempre frustrado, que levará à constatação da inutilidade das ações e das palavras humanas. Constatamos, ainda, o abandono e exílio das personagens murilianas, o que nos força a refletir sobre a nossa condição de exílio e abandono.
O insólito se abre, contaminando a estrutura do texto. O ritmo da frase se acelera; a precisão das palavras não nos leva à dúvida. Tudo é exatamente o que parece. Murilo faz a opção por uma linguagem extremamente simples, numa tentativa de descarregá-la do seu grau máximo de significado, zerando-a para elevá-la pelo conteúdo. Não será, então, o plano de expressão o que ajudará na ênfase do plano do conteúdo, mas o seu contrário: é o plano do conteúdo que se sobrepõe ao de expressão para elevá-lo.
Ao situar o absurdo temático em uma das dicotomias humanas: indivíduo-sociedade, o escritor mineiro nos propicia uma meditação alegórica sobre os problemas do homem e do nosso tempo. Em "Os Dragões", o escritor mineiro nos faz vislumbrar uma impossibilidade de convivência com o diferente.
E isto se repetirá em Marinho.
Jorge Miguel Marinho publica seu livro de contos Escarcéu de Corpos em 1984. A crítica brasileira Nelly Novaes Coelho, no pósfácio desta obra, afirma que o escritor é "um desvelador das reservas de amor e ódio nos desvalidos e solitários (...)".
Os contos deste livro centram-se no cotidiano mais comum, e, por isso, parecem mais centrados no absurdo. A alegoria e a hipérbole levam-nos às situações insólitas e inquietantes da realidade.
O universo de Marinho aproxima-se do de Rubião por suas estranhas personagens e pelo extraordinário como um contraponto para o cotidiano intolerável e carente de sentido. Marisa Lajolo, outra crítica brasileira, em artigo sobre o livro, observa que do insólito das figuras dos contos e do desagradável das situações por elas vivenciadas se chegaria a uma conclusão: o corpo como espaço mínimo e máximo de ser, onde, trancafiado nesse espaço de carne e osso, pode-se tentar, no limite, "um grito de discordância e de revolta".
É aí que se encontra "A mulher azul". Narrado em 3ª. Pessoa, este conto nos leva a vivenciar a metamorfose de D. Rebeca, uma simples dona de casa, que aos 79 anos se torna azul. Sua metamorfose dá-se pela noite, numa profusão de cores, até tornar-se completamente azul. Azul que a isola de toda a família, envergonhada pela aparência da velha.
Como Gregor Samsa, da narrativa de Franz Kafka, a protagonista desta história fica prisioneira em sua própria casa, impedida de sair de seu quarto e de qualquer contato com a família. Sua história de vida é esquecida diante da forma física azulada. O azul, metáfora da velhice, apaga o passado e transforma o presente em solidão.
Ao acompanhar a triste trajetória de D. Rebeca, percebemos que mal estar e desconforto assumem uma consistência palpável neste universo construído pela linguagem. Em sua anomalia, a personagem exemplifica o isolamento familiar sofrido com a velhice.
Nos universos fantásticos de Rubião e de Marinho, vemos revelada a realidade mais dura, para qual somos cegos. Realidade que, mesmo criada pela linguagem literária, nos extremos do seu absurdo, faz-se tão real quanto a nossa realidade.
Fantástico é o termo que classifica a obra dos escritores Murilo Rubião e Jorge Miguel Marinho. Um fantástico que postula a concepção de arte narrativa como artifício, ou construção, apresentando aventuras extraordinárias, que recusem a "poética" do realismo, mesmo sem recusar a realidade. Faz-se fundamental a percepção de que a própria obra literária é quem postula a realidade de sua ficção, introduzindo-se como realidade no mundo habitado por suas personagens. Mesmo valendo-se de ficções, a literatura fantástica expressa uma visão mais profunda e complexa da realidade.
Na visão do escritor argentino Jorge Luis Borges, esse tipo de literatura "destina-se mais a oferecer metáforas da realidade - por meio das quais o escritor quer transcender as observações pedestres do realismo - do que se evadir para um território gratuito."
O fantástico nos propõe imagens nunca "ouvidas". Imagens que podem abrir mão dessa ordem racional a que pertencem as palavras e a cultura, para nos trazerem uma ordem que transborda o convencional, que o nega e vai mais além. A condição intrínseca da arte literária é criar, sem prescindir dos signos e com palavras, uma ilusão das coisas; expressar pelo fantástico uma realidade é converter o real em ficção. Dessa conversão brota a denúncia do absurdo desta realidade.
Há nessas duas obras uma inquietante estranheza, o Unheimliche6 freudiano, o familiar-estranho. Familiar e estranho, pois é nesse paradoxo que se constroem os textos de Murilo Rubião e Jorge Marinho, fazendo aflorar as intolerâncias cotidianas.


BIBLIOGRAFIA

RUBIÃO, Murilo. Contos Reunidos. São Paulo: Ed. Ática, 2001.
MARINHO, Jorge Miguel. Escarcéu de Corpos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
JACKSON, Rosmary. Fantasy. Literatura y Subversión. Buenos Aires: Catálogos, 1986.
BORGES, Jorge Luis. El Arte y la Magia. In: _____ . Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1990.
ROSENBLAT, María Luisa. Lo Fantástico y lo Detectivesco. Aproximaciones comparativas a la obra de Edgar Allan Poe. Caracas: Venezuela, 1997.
MONEGAL, Emir Rodríguez. Borges: Uma Poética da Leitura. São Paulo: Perspectiva, 1980.
ALAZRAKI, Jaime. En Busca del Unicornio: Los Cuentos de Julio Córtazar. Madrid: Editorial Gredos, 1983.
PROENÇA FILHO, Domício. A Linguagem Literária. São Paulo: Ática, 1992.
SANTAELLA, Lucia. A Assinatura das Coisas - Peirce e a literatura. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
WANDERLEY, Jorge. Literatura. In: JOBIM, José Luis (org.). Palavras da Crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
POUND, Ezra. ABC da Literatura. São Paulo: Ed. Cultrix, 1990.
PAZ, Octavio. Corriente Alterna. México: Siglo XXI, 1967.


1 Doutora em Comunicação e Semiótica: Literatura, PUC/SP, e professora do Centro Universitário FIEO - UNIFIEO.
2 Borges, Jorge Luis. "El Arte y la Magia". Discusión. Obras Completas. Buenos Aires: Emecé Editores, 1990.
3 Podemos chamá-lo de inaugurador do fantástico no Brasil, pois é o primeiro a dedicar toda a sua obra a esse gênero, sendo reconhecido pela crítica por essa marca.
4 Marinho, Jorge Miguel. Escarcéu de Corpos. São Paulo: Brasiliense, 1984.
5 Rubião, Murilo. Contos Reunidos. São Paulo: Ed. Ática, 2001.
6 Freud, Sigmund. "Lo Siniestro". Obras Completas. Buenos Aires: 1988.

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