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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 8 

CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CRÍTICAS AO AUTORITARISMO E PODER DA IGREJA CATÓLICA PRESENTES NA OBRA MEMORIAL DO CONVENTO, DE JOSÉ SARAMAGO

Adriana Reis Brun1


Tentando encontrar contrapontos entre ciência e arte, ou, mais especificamente, entre as ciências sociais e a literatura, tecemos, neste artigo, algumas considerações sobre as críticas ao autoritarismo e ao poder da Igreja católica, presentes na obra Memorial do Convento, de José Saramago.
Inicialmente, chamamos a atenção para o que Ianni2 observa a respeito da ciência e da arte, as quais, segundo ele, podem ser tomadas como duas linguagens distintas, porém compreendendo, ambas, formas de conhecimento e imaginação e revelando algum compromisso com a realidade, "taquigrafando-a ingênua ou criticamente, procurando representá-la, sublimá-la ou simplesmente inventá-la."(p. 10)
Nesse sentido, a narrativa de José Saramago deixa evidente esse "compromisso com a realidade", o qual é revelado a partir de vários aspectos presentes em suas obras. Entre os romancistas contemporâneos portugueses, podemos afirmar, de acordo com Gomes,3 que Saramago é o autor que abraça com maior entusiasmo uma arte compromissada, que acredita que o romance seja um instrumento de resgate das classes desfavorecidas e de denúncia dos desmandos dos poderosos. É devido a essa consciência sobre o compromisso da literatura com a sociedade que o cerca que o autor de Memorial do Convento tem dado preferência, em grande parte de seus romances, a personagens anônimas, esquecidas e deserdadas da sorte, como é o caso de Blimunda, Baltasar e o sem-número de construtores de Mafra retratados em Memorial do Convento. Em uma de suas entrevistas, Saramago faz a seguinte afirmação:
Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações.4
Ao produzir uma literatura como lugar de reflexão sobre o mundo e por isso compromissada com os problemas sociais de sua época e de épocas passadas, o autor não se detém na análise psicológica de personagens, preferindo traçar grandes painéis, panoramas de épocas históricas, como a grandiosa construção do Convento de Mafra ou as lutas dos camponeses do Alentejo retratadas em Levantado do Chão. Dentre suas reflexões, estão incluídos temas relacionados à religião, os quais são recorrentemente abordados no conjunto de sua obra e serão o foco de análise do presente artigo.
Conforme Cardoso,5 os livros de Saramago têm sido vistos como romances históricos, mas, numa perspectiva exclusivamente literária não o são, pois o autor realiza um movimento inverso àquele que é típico do romance histórico: ao invés de levar o presente até o passado, reconstituindo-o fielmente, invoca o passado com estratégias discursivas peculiares, conseguindo atingir a memória com um olhar de presente, o que resulta numa visão dos fatos muitas vezes sarcástica, irônica, ou até mesmo humorística.
De acordo com Segatto,6 a produção literária, ao reinventar, simular, imaginar, construir o real, muitas vezes gera um conhecimento particular que contribui para o desvendamento de processos históricos, como acontece no Brasil a partir das criações literárias de Machado de Assis, Lima Barreto, Mário de Andrade e muitos outros autores. Em Memorial do Convento podemos perceber o mesmo processo quando o autor resgata o painel histórico de Portugal do século XVIII, durante o reinado de Dom João V, e a partir desse ambiente constrói sua narrativa. Um dos elementos importantes do contexto histórico e ideológico da época é, sem dúvida, o poder que a Igreja e a religião exerciam sobre o povo e esse poder, por via da representação estética, será tomado como ponto de reflexão na obra de Saramago. Conforme o próprio autor observa em uma de suas entrevistas, o fato de viver em um país eminentemente católico e de ser assumidamente ateu não o leva a negar a religião, mas o faz tentar, de certa forma, reelaborá-la, seja através da crítica a certos dogmas da Igreja, da denúncia sobre a ação de seus membros ou até mesmo do uso parodístico de mensagens bíblicas.
As críticas à ação da Igreja Católica em Portugal são recorrentes em Memorial do Convento. Já no início da narrativa, podemos reconhecer uma denúncia sobre a troca de favores entre a Monarquia e a Igreja, já que a promessa da construção de um grandioso convento em Mafra é feita em troca da gravidez da rainha. O uso do poder da Igreja para conquistar favores reais fica bastante evidente quando Frei Antonio exige, como voto de fé, a promessa da construção de um convento franciscano, e não de outra ordem qualquer, e especificamente na vila de Mafra. Vejamos o texto de Saramago:
Perguntou el-rei, É verdade o que acaba de dizer-me sua eminência, que se eu prometer levantar um convento em Mafra terei filhos, e o frade respondeu, Verdade é, senhor, porém só se o convento for franciscano, e tornou el-rei, Como sabeis, e frei Antonio disse, Sei, não sei como vim a saber, eu sou apenas a boca de que a verdade se serve para falar, a fé não tem mais que responder, construa vossa majestade o convento e terá brevemente sucessão, não o construa e Deus decidirá (M.C. p. 14).7
O autoritarismo utilizado pela Igreja enquanto representante da vontade divina aparece aí de forma bastante clara e as exigências e argumentos do frei com relação à necessidade da promessa são tão absurdas que o trecho em questão chega a ser cômico. Como poderemos notar em outros exemplos, a ironia e o sarcasmo serão importantes armas de combate utilizadas pelo autor em suas referências à religião.
Ainda em outros momentos da narrativa, Saramago deixa evidente que os interesses econômicos estão sempre guiando as ações da Igreja. Assim, com a construção do Convento de Mafra, por exemplo, já se contabilizam o aumento do número de casamentos, batizados e passamentos na vila, "cada sacramento dispensando sua parte material e espiritual, desta maneira tanto se reforçando a burra como a esperança de salvação" (M.C. p. 116-117). Percebemos também que os "serviços prestados" pela Igreja são de toda ordem, sendo este um dos motivos pelos quais ela merece os favores da Monarquia. Na passagem que segue, Dom João V pensa sobre os melhores investimentos que poderia fazer com a riqueza de seu reino, chegando à seguinte conclusão:
Medita D. João V no que fará a tão grandes somas de dinheiro, a tão extrema riqueza, medita hoje e ontem meditou, e sempre conclui que a alma há de ser a primeira consideração, por todos os meios devemos preservá-la sobretudo quando a podem consolar também os confortos da terra e do corpo. Vá pois ao frade e à freira o necessário, vá também o supérfluo, porque o frade me põe em primeiro lugar em suas orações, porque a freira me aconchega a dobra do lençol e outras partes, e a Roma, se com bom dinheiro lhe pagamos para ter o Santo Ofício, vá mais quanto ela pedir por menos cruentas benfeitorias (...) (M.C. p. 219).
Nesse trecho, além da referência direta sobre a relação comercial que a sociedade da época tem com a religião, ou seja, ganha favores do céu quem faz favores à Igreja, temos ainda dois pontos importantes que serão abordados com insistência em Memorial do Convento: a promiscuidade dos membros da Igreja e a injustiça e crueldade dos Tribunais da Inquisição.
Na passagem citada, temos uma referência sutil aos favores sexuais prestados aos reis pelas freiras, já em outro trecho o autor nos fala diretamente sobre o divertimento do rei nos mosteiros, "emprenhando as freiras uma após a outra, ou várias ao mesmo tempo". Escreve também, em mais de uma ocasião, sobre o comportamento promíscuo dos frades com suas amantes:
(...) Ficava o vigário de Mafra com matéria para pensar, se Deus era fonte e os homens e os homens oceano, e que parte do saber geral lhe caberá de hoje em diante, que do saber passado esqueceu quase tudo, excepto, graças a uma continuada prática, o latim da missa e dos sacramentos e o caminho entre as pernas da ama, que esta noite, por causa do visitante, dormiu no vão da escada (M.C. p. 120).
(...) bem sabeis como as monjas são esposas do Senhor, é uma verdade santa, pois a mim como a Senhor me recebem nas suas camas, e é por ser eu o Senhor que gozam e suspiram segurando na mão o rosário, carne mística, misturada, confundida, enquanto os santos no oratório apuram o ouvido às ardentes palavras que debaixo do sobrecéu se murmuram(...) (M.C.p. 152).
Todas essas referências, além de promoverem a crítica à hipocrisia da Igreja Católica, que exige um comportamento moral dos fiéis que não é cumprido nem por seus próprios membros, promovem também a dessacralização dos representantes da Igreja (frades, freiras, sacerdotes), colocando em primeiro lugar a condição humana de todos, seja qual for a posição social que ocupam. Além disso, através dos comentários sobre o comportamento sexual dos representantes do clero, fica fácil deduzir a idéia de que o celibato eclesiástico não é um dom divino, mas um simples mecanismo de controle sobre a dispersão dos bens da Igreja.
Outro ponto que julgamos ser importante abordar neste artigo são as constantes referências à Inquisição, presentes na obra em análise. Conforme Serrão,8 a introdução do Santo Ofício em Portugal teve como objetivo a defesa da crença tradicional católica que o judaísmo, o cisma protestante e outras formas heréticas comprometiam na sua prática cotidiana. Assim, durante muitos séculos, a Inquisição procurou hereges nos reinos e nas colônias, homens e mulheres de diferentes classes sociais que não acreditavam, pensavam ou se comportavam conforme os padrões e regras impostos pela Igreja Católica. Os principais alvos do Santo Ofício eram os cristãos novos9 da burguesia em ascensão e os letrados, que disputavam com o clero e com a nobreza a ocupação de cargos oficiais. Em Portugal, a Inquisição foi estabelecida em 1536 e terminou em 1821.
De acordo com Novinsky,10 apesar de o estabelecimento da Inquisição na Espanha e em Portugal ter sido conseqüência direta da existência do problema converso, ou cristão-novo, e terem sido os acusados de heresia judaica os principais alvos dos Tribunais ibéricos, também caíam sob a alçada da Inquisição numerosos outros crimes: feitiçaria, bruxaria, bigamia, solicitação, sodomia, blasfêmia, desacato, etc. No século XVIII apareceram novos tipos de crimes, ligados principalmente ao campo das idéias. Tendo em vista o diálogo entre ficção e história estabelecido por Saramago em grande parte de suas obras, em Memorial do Convento, narrativa ambientada no século XVIII, os feitos do Santo Ofício não poderiam deixar de ser abordados como parte do painel histórico da época.
Lembramos que a Inquisição faz parte de vários episódios, do início ao fim da narrativa, começando pelo encontro entre Blimunda e Baltasar, num auto de fé, cerimônia em que a mãe de Blimunda seria condenada ao degredo. Lembramos também que a fuga das três personagens principais da trama acontece em virtude da perseguição do Santo Ofício e que, ao final da narrativa, novamente temos como pano de fundo um auto de fé, em que um dos condenados à fogueira é o soldado Baltasar Sete-Sóis. No trecho abaixo, Padre Bartolomeu, temeroso do que poderia acontecer se descobrissem sua máquina de voar, fala sobre a arbitrariedade das decisões do Santo Ofício e seus métodos cruéis de confissão:
(...) Padre Bartolomeu Lourenço, de que é que tem medo(...) Do Santo Ofício. Entreolharam-se Baltasar e Blimunda, e ele disse, Não é pecado, que eu saiba, nem heresia, querer voar, ainda há quinze anos voou um balão no paço e daí não veio mal, Um balão é nada, respondeu o padre, voe agora a máquina e talvez que o Santo Ofício considere que há arte demoníaca nesse vôo (...) bem sabem que, querendo o Santo Ofício, são más todas as razões boas, e boas todas as razões más, e quando umas e outras faltem, lá estão os tormentos da água e do fogo, do potro e da polé, para fazê-las nascer do nada e à discrição (M.C. p. 185).
Além da arbitrariedade dos julgamentos da Inquisição, outra denúncia é feita com relação aos interesses econômicos desta instituição, que sempre tira proveito dos bens materiais de perseguidos ou condenados. De acordo com Novinsky (1990), a primeira atitude dos Tribunais ao receber uma denúncia era invadir a casa do denunciado e seqüestrar todos os bens que o suspeito possuísse, antes mesmo de ter provas de sua culpa. Em relação aos benefícios econômicos proporcionados pela Inquisição, Saramago deixa evidente a visão pessimista que tem sobre os homens e o mundo e mostra que o dinheiro, "manjar de meirinho e socilitador, de advogado e inquiridor, de testemunha e julgador" (p. 183) é a força que move as instituições religiosas. No trecho que segue, fazendo uso da paródia de um texto bíblico, podemos perceber essa visão de mundo que o autor nos permite interpretar em sua produção literária:
(...) tolo foi Cristo que nunca pôs mitra na cabeça, seria filho de Deus, não duvido, mas rústico era, porque desde sempre se sabe que nenhuma religião vingará sem mitra, tiara ou chapéu de coco, pusesse-o ele e passava logo a sumo sacerdote, teria sido governador em vez de Poncio Pilatos, olha do eu me livrei, assim é que o mundo está bem, não fosse ele como o fizeram e não me veriam como patriarca, pagai portanto o devido, daí a César o que é de Deus, a Deus o que é de César, depois cá faremos as contas e distribuiremos o dinheiro, pataca a mim, a ti pataca, em verdade vos digo e hei de dizer(...) (M.C. p. 152)
Nessa paródia a um dos versículos do Evangelho segundo Marcos, podemos notar que o autor executa uma profanação do sagrado, dogmático e oficial, uma vez que inverte a mensagem bíblica e une dois pólos opostos em um só: o mundo de César e o mundo de Deus, ou seja, o terreno e o espiritual, os quais aparecem juntos em nome de interesses econômicos.
Através dessas considerações, tivemos como objetivo analisar como uma obra literária, por meio da representação estética, é capaz de trazer à tona elementos fundantes da história de um país. No caso da obra em questão, o autor traz à tona a imagem de uma sociedade dominada pelo poder econômico e pela troca de favores entre as classes sociais privilegiadas, ou seja, a monarquia e o clero, e oprimida pela hipocrisia dos dogmas religiosos e pela arbitrariedade das ações de instituições violentas, como foram os Tribunais do Santo Ofício. Ressaltamos ainda o caráter de crítica social que o autor conquista na construção de sua narrativa através de recursos como a ironia, a paródia e o humor.


1 Mestranda em Letras - PPGL/UFSM.
2 IANNI, Octavio. Sociologia e Literatura. In: SEGATTO, José Antonio; BALDAN, Ude (Org.). Sociedade e Literatura no Brasil. São Paulo: Ed. Da Unesp, 1999.
3 GOMES, Álvaro Cardoso. A voz itinerante: ensaio sobre o romance português contemporâneo. São Paulo: Editora da USP, 1993.
4 Disponível em: http://www.olharliterário.hpg.ig.com.br/entrevistasaramago.htm Acesso em 14/03/2004
5 CARDOSO, Luis Miguel Oliveira. José Saramago, um prêmio Nobel levantado do chão:uma escrita de subversão na subversão da escrita. Disponível em: http://www.Ipv.pt/millenium/pers12_sar.htm. Acesso em 15/07/2003.
6 SEGATTO, José Antonio. Cidadania de Ficção. In: SEGATTO, José Antonio; BALDAN, Ude (Org.). Sociedade e Literatura no Brasil. São Paulo: Ed. da Unesp, 1999.
7 SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 27 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
8 SERRÃO, Joaquim Veríssimo. História de Portugal: Volume III - O Século de Ouro. 2 ed. Lisboa: Editorial Verbo, 1980.
9 Portugueses descendentes de judeus forçados ao batismo pela Igreja Católica.
10 NOVINSKY, Anita. A Inquisição. 7 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

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