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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação ISSN 1679-849X | Revista nº 9 |
O PODER E AS INSTITUIÇÕES EM A CASA DE BERNARDA ALBALuciana Ferrari Montemezzo (UFSM)
Nesse momento dramático, o artista deve rir e chorar com o povo.
É preciso largar o molho de lírios e mergulhar até a cintura na lama para ajudar
os que buscam lírios. De minha parte, tenho uma necessidade genuína de me
comunicar com os outros. Por isso bati às portas do teatro e agora dedico
a ele todos os meus talentos.
Federico García Lorca1 Escrita em 1936, A Casa de Bernarda Alba foi a última obra de Federico García Lorca (1898-1936). O poeta não a viu encenada: um mês depois de uma leitura dramática realizada em Madri, Lorca foi assassinado, nos primeiros momentos do levante militar que culminaria na ditadura de orientação fascista que comandou a Espanha de 1939 a 1975.
O conflito armado que dividiu a Espanha em dois lados antagônicos - nacionalistas e republicanos - foi fruto dos incômodos causados por uma situação social desigual e injusta, que detinha o poder econômico e político nas mãos de uma pequena parcela da sociedade. Graças a um modo de vida fundamentalmente rural e anacrônico, o país era o menos desenvolvido da Europa. Segundo BROUÉ (1992: 19-20)
Na essência, a Espanha do século XX permanece um país agrícola, onde a esmagadora maioria, 70% da população ativa, se dedica à agricultura com meios técnicos rudimentares, obtendo os mais fracos rendimentos por hectare de toda a Europa, deixando incultos, por falta de meios e de conhecimentos, por causa da estrutura social, mais de 30% da superfície cultivável. Além do acesso a tecnologias mais avançadas, que permitiriam ao país a ascensão a um modelo de produtividade já vigente no restante do continente europeu, também uma distribuição mais justa de terras era uma necessidade urgente. Ainda de acordo com BROUÉ (1992: 20) "Não é menos verdadeiro que a terra da Espanha pertence a um punhado de oligarcas e que o camponês espanhol profundamente miserável tem fome de terra."
Além do poder do Estado, a Igreja também exercia grande influência na vida dos espanhóis, e dominava o sistema educacional. As escolas - mantidas pelos jesuítas quase que exclusivamente - formam a bases para a manutenção de uma sociedade hierarquizada e sem mobilidade: a porcentagem de analfabetos entre os espanhóis é de 45%. Além de desconsiderarem maioria iletrada, as escolas jesuítas contribuíam para a manutenção de valores morais extremamente repressores, que visavam a sufocar a individualidade em prol de práticas sociais coletivas. Assim, Estado, Igreja e escolas formam uma espécie de tríade que mantêm o poder no país em mãos de uma oligarquia retrógrada e tradicional que lembra, em determinados momentos, o "mundo rural medieval", nas palavras de BROUÉ (1992: 20).
O medo das reformas que a Segunda República estava disposta a implementar motivou, sem dúvida, a reação das elites rurais às quais Lorca já vinha atacando em suas peças. De acordo com MARTÍN (1989: 243)
Conviene recordar, para medir la justeza de um enfoque rural de la realidad española, que, en los años treinta, la ocupación mayoritaria de la población activa seguía siendo la agricultura y que, en definitiva, fue el miedo a una verdadera reforma agraria - tras el triunfo del Frente Popular - lo que echó la burguesía terrateniente en brazos del ejército antirrepublicano. A tensão social causada pelos enfrentamentos entre os dois pólos opostos que se alternaram no poder desde 1931 é o pano de fundo de A Casa de Bernarda Alba. Segundo GIBSON (1989: 486)
Não terá sido por acaso que Lorca escreveu uma peça tendo por tema o despotismo, numa época em que qualquer um com um mínimo de senso enxergava a possibilidade muito definida de um golpe de direita na Espanha. Bernarda, com sua hipocrisia, seu catolicismo inquisitorial e sua determinação de suprimir a liberdade dos outros, representa uma mentalidade muito conhecida do poeta. A peça, ambientada em uma localidade rural da Andaluzia, está demarcada no espaço interno da casa de Bernarda Alba, matriarca de 60 anos que vive com suas cinco filhas solteiras, a mãe e duas empregadas. Ainda de acordo com GIBSON (1989: 486), o poeta estava absolutamente convicto dos objetivos que tinha para sua peça, pois
(...) ao chamar a peça La casa de Bernarda Alba e não simplesmente Bernarda Alba, Lorca enfatiza o ambiente em que a tirana existe e age, e explicita essa intenção no subtítulo definitivo, "Um drama de mulheres nas aldeias da Espanha". Ao definir a peça como "um documentário fotográfico" o poeta indicava ser ela uma espécie de reportagem, com ilustrações em preto e branco, sobre a Espanha intolerante, sempre pronta a esmagar os impulsos vitais do povo, aqui representados pelas filhas de Bernarda e também pelas criadas. Devido à morte de seu marido, Bernarda impõe às filhas um luto forçado, impedindo-as de saírem de casa por oito anos seguidos, segundo reza a tradição familiar. O conflito, então, se estabelece no ambiente intradoméstico e se opõe diretamente ao espaço exterior aos muros da casa. Bernarda atribui a si mesma a autoridade na condução dos destinos de sua família, e se declara, por mais de uma vez, vigilante: "Nesta casa não há sim nem não. Minha vigilância pode tudo." (p. 43)2
Alheia ao conflito travado entre suas filhas - que tem por pivô o jovem Pepe Romano, futuro marido de Angústias, a filha mais velha -, Bernarda julga ter sob controle os sentimentos e as ações das filhas. Embora alertada por Pôncia - a criada - de que algo está prestes a explodir, Bernarda ignora os indícios da rebelião interna que vai tomando conta de sua casa. Inconformadas com o fato de que Pepe, que tem aproximadamente 25 anos, se case com Angústias, de 39, as demais irmãs tecem comentários maldosos em relação aos interesses financeiros que promoverão a união. Angústias, filha do primeiro casamento de Bernarda, é a única rica entre as irmãs. Por isso, Pepe quer se casar com ela.
Adela, a filha mais nova, de 20 anos, deixa-se levar pela paixão e se envolve com Pepe. Quando as irmãs lhe contam que Pepe virá pedir a mão de Angústias, Adela demonstra, além de surpresa, revolta e frustração. Em confronto direto com Martírio, de 25 anos, que também ama Pepe, Adela declara sua opção pela realização pessoal em detrimento das expectativas sociais: "Faz quem pode, não quem quer. Você queria, mas não pôde." (p. 35). Afirma GIBSON (1989: 486) que Adela
(...) é sem dúvida a mais revolucionária das mulheres de Lorca, rejeitando o código de honra fundado na manutenção a todo custo das aparências e no credo da superioridade masculina. Adela afirma seu direito absoluto à própria sexualidade (...) Apesar do conflito já instaurado no interior de sua casa, Bernarda crê estar no domínio de tudo que acontece. Leva sempre consigo uma bengala, que bate sempre no chão quando quer chamar atenção ou ordenar algo. Momentos antes de pôr fim à própria vida, Adela toma a bengala da mãe e a quebra, num ato de profunda rebeldia. Nesse momento, a filha a chama a bengala de "vara", e não de "bastón", designação utilizada desde o início da peça. O uso não é aleatório, e especifica ainda mais a representação autoritária do objeto. Diferente de "bastón", termo mais usual, a "vara" é um símbolo de poder e está relacionada diretamente aos mandatários, de acordo com MOLINER (1992)3. O desabafo de Adela explicita essa relação:
ADELA (Enfrentando-a.) Apesar de sua postura arrogante e inquisitiva, a matriarca não percebe o mal-estar que toma conta de suas filhas, negando-se a ver a disputa travada entre elas pela figura de Pepe Romano. Quando se dá conta, já é tarde demais. Tentando dissuadir Adela do firme propósito de manter seu romance com Pepe, Bernarda confessa tê-lo assassinado. Desesperada, Adela comete suicídio, enforcando-se. A tragédia que se instala no ambiente doméstico é prontamente sufocada pela matriarca, que exige das demais filhas segredo diante dos fatos:
E não quero choro. A morte deve ser encarada frente a frente. Silêncio! (Para outra filha.) Mandei calar! (Para outra filha.) Lágrimas, quando estiverem sozinhas. Nos afundaremos todas em um mar de luto! Ela, a filha mais nova de Bernarda Alba, morreu virgem. Ouviram? Silêncio, já disse! Silêncio! 5 "Silêncio" é primeira e a última palavra pronunciada por Bernarda . De acordo com GIBSON (1989: 487) "(...) da primeira vez para reprimir a manifestação de desgosto do público, da segunda para imprimir uma mentira." A extrema vigilância com que comanda a casa e a família, aliada à preocupação com as tradições familiares e a propriedade fazem de Bernarda uma autêntica representação da elite rural espanhola, alvo preferencial do teatro lorquiano. O desinteresse que demonstra pela condição humana de sua família, os maus tratos impostos à velha mãe, impedida de sair de um quarto, onde é escondida durante a maior parte do tempo, destacam a supremacia das aparências em relação à essência e à individualidade. Pouco lhe importa que suas filhas tenham o desejo de sair e de ter namorados, como fazem as mulheres "do povoado". Ali, segundo ela, não há homem a altura de suas filhas, por isso prefere que fiquem em casa, bordando e esperando o tempo passar. Importa é o que pensam delas, e a honra da família que deve ser mantida a qualquer custo.
Lançando mão de personagens-tipo, representantes de condutas sociais claramente marcadas, o último drama rural lorquiano consegue agudizar ainda mais a crítica iniciada por Bodas de Sangue (1933) e Yerma (1934). Cada uma das personagens tem um comportamento diferente do das demais, o que destaca sobremaneira várias nuances da sociedade espanhola. Assim como fazem o Estado e a Igreja, Bernarda Alba cerceia a liberdade de suas filhas - representantes do povo, reprimido e assustado, incapaz de enfrentar o sistema que o sufoca, embora desejoso de mudanças e liberdade -, esconde sua mãe e oprime os empregados. De acordo com FOUCAULT (2004: 247)
Geralmente se chama instituição todo comportamento mais ou menos coercitivo, aprendido. Tudo que em uma sociedade funciona como um sistema de coerção, sem ser um enunciado, ou seja, todo o social não discursivo é a instituição. Sob essa perspectiva, não somente as instituições públicas são responsáveis pela opressão do indivíduo. A que se destacar, também, o imenso poder que emana do núcleo familiar, instituição privada que fortalece as bases do sistema político autoritário que está prestes a dominar a Espanha que Lorca retrata. Ainda segundo FOUCAULT (2004: 249), o poder flui através dos discursos, a partir de um ponto que aos pouco se irradia:
De modo geral, penso que é preciso ver como as grandes estratégias de poder se incrustam, encontram suas condições de exercício em micro-relações de poder. Mas sempre há também movimentos de retorno, que fazem com que as estratégias que coordenam as relações de poder produzam efeitos novos e avancem sobre domínios que, até o momento, não estavam concernidos. Analisada sob a ótica foucaultiana, a última peça escrita por García Lorca permite afirmar que o poder político que o Estado e a Igreja demandam, na sociedade espanhola, oferece a Bernarda a credencial necessária para reproduzir em microcosmo o despotismo observado em macroescala. Para a filha que ousou ultrapassar os padrões de comportamento impostos, resta a morte: castigo para aqueles que, como o que vitimou próprio autor da peça, é imputado àqueles que ousam desacomodar a ordem vigente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BROUÉ, P. A revolução espanhola (1931-1939). São Paulo: Perspectiva, 1992. GARCÍA LORCA, F. Obras completas. Madri: Aguilar, 1972. . GIBSON, I. Federico García Lorca. São Paulo: Globo, 1989. . FOUCAULT, M. Microfísica do poder. São Paulo: Graal, 2004. . MARTÍN, E. Federico García Lorca: Antología Comentada. Madri: Ediciones de la Torre, 1989. 1 Em entrevista para o jornal El Sol, em 10 de junho de 1936.
2 Minha tradução para La casa de Bernarda Alba (1936), ainda inédita. Todas as demais citações do texto serão extraídas da referida tradução.
3 "Se aplica a algunos bastones que son a la vez insignia de autoridad en quien los usa; particularmente, de la del alcalde."
4 Minha tradução, p. 49.
5 Minha tradução, p. 51.
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