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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação ISSN 1679-849X | Revista nº 9 |
O TESTEMUNHO EM É ISTO UM HOMEM?, DE PRIMO LEVIJoselaine Brondani Medeiros (PUCRS)
As discussões a respeito das conexões entre Literatura e História norteiam muitas pesquisas na área das Letras. Ambas se complementam e possibilitam um maior entendimento das mudanças sociais e políticas ocorridas na sociedade. Porém não se pode esquecer que tanto a História, como a Literatura não são neutras, pois o historiador e o escritor apresentam a sua versão dos fatos, estando embutido um caráter ideológico. Há autores que apresentam um posicionamento conservador, e há outros que mostram um pensamento inovador. Cabe ao leitor discernir esses posicionamentos apresentados e questioná-los para, assim, construir o seu conhecimento.
Com a acepção de que a História não é linear, mas marcada por ruínas, pretende-se entender o contexto da década de 30 e 40 européia. Para isso, é necessário se reportar para o início do século XX, no qual as disputas por territórios, por mercados consumidores e, sobretudo, por poder trouxeram como conseqüência a Primeira Guerra Mundial. A Europa viveu um período de turbulência não só política, como também social e econômica. Muitas cidades ficaram destruídas, mas dos escombros se reergueram com forte sentimento nacionalista. Desse nacionalismo exacerbado, nasceu a vontade de dominar e de vencer a qualquer custo. O poder e a ganância novamente levaram a mais outra guerra. Essa ainda mais sangrenta e violenta.
No período que antecede a Segunda Guerra Mundial, vários ditadores despontaram e conseguiram um grande número de adeptos, dentre eles, Adolf Hitler, que adotava posturas autoritárias, pregando a supremacia da raça ariana e condenando milhares de judeus ao exílio e aos campos de concentração. O combate contra os judeus era justificado pelos nazistas como uma necessidade biológica. Para os alemães nazistas, a raça superior ariana venceria os parasitas judeus e impediria qualquer forma de miscigenação, que era um sinônimo de decadência da civilização. A concepção alemã primava, então, pela purificação e hegemonia da raça ariana. Essas idéias podem ser observadas, através da fala de Himmler, membro da cúpula de Hitler: "a luta anti-semita é só uma luta contra parasitas. Livrar-se dos piolhos não é uma questão ideológica. É simplesmente uma questão de limpeza" (apud: Cytrynowicz, 1990 p. 25).
A política anti-semita do nazismo visou especialmente os judeus, mas não poupou também ciganos, negros, homossexuais, comunistas e doentes mentais. Os doentes mentais, por exemplo, eram condenados à morte por serem uma raça inferior e extirpá-los, como se faz a um câncer maligno, só elevaria a saúde do povo alemão. Dentre as práticas, usadas pelos doutores nazistas, estavam a esterilização e a eutanásia.
O nacionalismo nazista estava ligado umbilicalmente a um exacerbado racismo e, mesmo em um país visto como o berço da intelectualidade, Hitler conseguiu exercer um fascínio muito grande e dominar a nação. Isso aconteceu porque, na Alemanha, houve cooptação de intelectuais e uso intensivo da mídia, corroborando para a formação dessa figura endeusada. O ponto chave foi, então, ideologia pregada por Hitler para conseguir o domínio e a subordinação de uma nação inteira.
Houve três fases na política anti-semita nazista. A primeira, entre 1933 a 1939, caracterizada pela discriminação jurídica, espoliação econômica e ameaça física ao povo judeu. A segunda, entre o início da guerra e a Batalha de Stalingrado, marcada pela solução final territorial dos judeus. A terceira, de Stalingrado até o final da guerra, que é a fase do extermínio mais acentuado, com as execuções nas câmaras de gás.
Em todas as fases, nota-se que os judeus foram alvos das mais variadas violências: os seus bens foram confiscados, perderam as suas casas, não podiam andar nas ruas, ir trabalhar, ir à escola ou à universidade, pegar ônibus, freqüentar teatros e cinemas, tinham que usar uma braçadeira branca com a estrela de David, o que possibilitava o reconhecimento de um judeu a qualquer hora. Depois começaram os trabalhos forçados e, por último, as deportações para os campos de concentração a partir de 1940.
No transporte para os campos, muitos já foram mortos, pois os caminhões estavam adaptados para lançar o monóxido de carbono, asfixiando os ocupantes. "A asfixia demorava aproximadamente quinze minutos. Ao abrir as portas do caminhão, os mortos tinham a face desfigurada e os corpos cobertos de fezes" (Cytrynowicz, 1990 p. 65). Nos vagões, não havia recipientes que serviam de latrina, provocando aflição muito pior do que a sede e o frio. Assim, nas palavras de Primo Levi: "evacuar em público era angustioso ou impossível: um trauma para qual nossa civilização não nos prepara, uma ferida profunda infligida à dignidade humana" (Levi, 2004 p. 96).
Todos os campos de extermínio possuíam linhas ferroviárias, e a viagem começou a ser feita de trem. Nos trens, os vagões iam sempre superlotados. Muitos prisioneiros morriam por falta de água e de ventilação. O destino da maioria deles era Auschwitz, que foi construído em 1940. Chegando lá, uma parte era selecionada para a morte, e outra, para os trabalhos forçados. Assim, apontar para a direita era trabalho e apontar para a esquerda era morte. Esse clima de destruição, em Auschwitz, é vivenciado pelo escritor italiano Primo Levi.
Primo Levi era judeu, pertencente a uma família com boas condições financeiras. Nasceu em Turim, em 1919, formou-se em Química pela Universidade de Turim, um ano depois da Itália ter entrado na guerra ao lado de Hitler. Em 1943, Levi juntou-se a um grupo de resistentes à invasão alemã do norte da Itália. Foi preso em 1943 e, no início de 1944, estava em um comboio que o conduziria para Auschwitz. Lá permaneceu 11 meses e sobreviveu ao campo de extermínio, devido aos seus conhecimentos de química, à necessidade de mão-de-obra e à generosidade de um trabalhador italiano, que lhe conseguia um suplemento de sopa.
Na obra É isto um Homem? há a representação da fase histórica que se estende da Segunda Guerra Mundial até o seu término em 1945. Primo Levi sofreu as conseqüências do nazismo, foi perseguido e levado aos campos de concentração por ser judeu. Ele permaneceu no campo de Monowitz, no complexo de Auschwitz, durante o ano de 1944, conseguindo sobreviver porque os alemães precisavam de mão de obra especializada.
No complexo de Auschwitz, no sul da Polônia, foram exterminadas cerca de 1,5 milhão de pessoas nas câmaras de gás. Este foi o maior entre os dois mil campos de concentração e trabalhos forçados construídos pelos nazistas. Em vista disso, tornou-se o símbolo da barbárie nazista. Poucos são os sobreviventes de Auschwitz, e Primo Levi foi um deles. Testemunhou a barbárie, que dizimou muitas famílias e sentiu necessidade de narrar essa experiência - sabendo não ser esta somente sua, mas de todo o povo judeu.
A partir da entrada no campo, os prisioneiros encontraram somente hostilidade, eram separados dos seus familiares: as mulheres, as crianças e os velhos partiam rumo à incerteza e à escuridão. Os homens mais fortes e saudáveis do comboio de Levi juntavam-se a outros no campo de trabalho, cujo objetivo era a instalação de uma fábrica de borracha de nome Buna. Assim, a vida no campo se resumia a trabalhar, passar fome (a comida era escassa; a sopa, aguada, e o pão, minguado), sede (a água não era potável e fermentava no estômago, deixando-os inchados e doentes) e frio (a neve cobria os campos, e eles, muitas vezes, tinham que ficar nus para inspeções. As cobertas também eram escassas, muito sujas e esfarrapadas).
Aqui estou no fundo do poço (...). Empurro vagões, trabalho com a pá, desfaleço na chuva, tremo no vento; membros ressequidos, meu rosto túmido de manhã e chupado à noite; alguns de nós têm a pele amarela, outros cinzenta; quando não nos vemos durante três ou quatro dias, custamos a reconhecer-nos" (Levi, 1988 p. 35). A única imagem refletida no espelho era a de fantasmas tosquiados e disformes. No momento em que chegavam ao campo, eram enviados para uma grande sala, onde tiravam as roupas, raspavam a cabeça e deixavam os seus sapatos. Ganhavam outros, às vezes grandes, às vezes pequenos, que não podiam ser trocados, tornando-se um forte instrumento de tortura. A aniquilação do homem é total, realmente não há como se imaginar a tamanha degradação e o quanto foram demolidos.
O regime extremamente desumano desgastava o físico e o psicológico. As vítimas eram aniquiladas, devido à crueldade. As mulheres que conseguiam sobreviver eram mandadas para Birkenau e tinham somente uma gamela que servia tanto para tomar a sopa cotidiana, como para evacuar durante a noite e se lavar quando havia água nos lavabos. Além disso, todos constantemente tinham que ficar nus, devido ao controle dos piolhos e sarnas, a buscas nas roupas, à lavação matinal, às seleções periódicas, que serviam para enfraquecer mais o ser humano, que se sentia como um verme: "nu, lento, ignóbil, vergado ao chão" (Levi, 2004 p. 98).
Em Turim, Levi começou a contar a sua experiência de sobrevivente do massacre nazista. Em meio à dor, precisou enfrentá-la para fazer justiça às vítimas, contando o processo de desumanização e degradação que sofreram e todas as injustiças cometidas nos campos de aniquilamento nazistas. Em uma entrevista para Ferdinando Camon (1997), Levi comentou a sua necessidade de falar:
Depois do retorno de Auschwitz, eu tinha uma necessidade enorme de falar, encontrava aqui os meus velhos amigos e os enchia de histórias (...). Acredito ter sofrido um amadurecimento, tendo tido a sorte de sobreviver. Porque não se trata de força, mas de sorte: não se pode vencer com as próprias forças um campo de concentração. Fui afortunado: por ter sido químico, por ter encontrado um pedreiro que me dava de comer, por haver superado a dificuldade da língua; nunca adoeci, caí doente somente uma vez, já no final, e também isto foi uma grande sorte, porque evitei a evacuação do campo de concentração: os outros, os que estavam saudáveis, foram todos mortos, porque foram deportados para Buchenwald e Mauthausen, em pleno inverno. Levi tinha a necessidade de falar porque teve a sorte de sobreviver, mas, muitas vezes, o seu relato era pontuado de silêncios, decorrentes da impossibilidade de verbalizar o ocorrido. O silêncio, o vazio e a solidão estavam entranhados no seu corpo e na sua memória. Pensa-se em como o sobrevivente poderia retomar a vida, sabendo que passou por uma experiência tão intensa e dolorosa, ou seja, depois do genocídio, os seus vínculos e os seus laços com o mundo real estavam dilacerados.
A solidão do sobrevivente é a dor de descobrir-se em um mundo em que tudo tem a mesma aparência, homens, carros, médicos, caminhões, chuveiros, e não poder entender como tudo isso transfigurou-se em uma gigantesca máquina de morte. É dor pela sensação de absoluto isolamento em um mundo no qual seres humanos - máxima semelhança - tornaram-se assassinos de um povo (Cytrynowicz, 1999 p. 54). Diante disso, a correlação narrar versus a impossibilidade de narrar aflora, pois como articular a necessidade de narrar uma experiência marcada pela barbárie, tendo consciência da percepção da insuficiência de linguagem para expressá-la?
Adorno questionava se havia possibilidade de se fazer poesia depois de Auschwitz. E o próprio Levi em depoimentos afirmava que a poesia era resultado de duas mãos esquerdas. Com relação à imagem "duas mãos esquerdas", pode-se pensar na impossibilidade de verbalizar a catástrofe. A escrita é quase morta. Só há mãos esquerdas, porque reflete a situação-limite em que se encontrava o escritor ao produzir poesia.
O que resta de um homem quando todas as condições da existência humana lhe são subtraídas? Será que há um discurso capaz de expressar essa realidade, sem distorcê-la ou banalizá-la? Seligmann-Silva (2000 p. 75) argumenta que "com a nova definição da realidade como catástrofe, a representação, vista na sua forma tradicional, passou, ela mesma, a ser tratada como impossível; o elemento universal da linguagem é posto em questão tanto quanto a possibilidade de uma intuição imediata da realidade". Então, como expressar algo que vai além da nossa capacidade de imaginar e representar?
A Shoah escapa à representação justamente devido à sua grandiosidade: não foram dezenas de pessoas que perderam a vida no campo de concentração; foram, sim, milhares. A visão de um campo de concentração não corresponde a nada na nossa experiência, tornando quase impossível de se crer. Daí a existência e, até mesmo, aceitação de teorias de que o extermínio dos judeus não tivesse acontecido.
Nesse ponto, vale pensar em o porquê do livro É isto um homem? ter caído no silêncio e no esquecimento quando foi publicado em 1947. Parece que houve, por parte da sociedade em geral e, sobretudo, dos Governos, uma vontade de negar a ocorrência da catástrofe. Isso mostra que a construção da memória do passado e do conhecimento histórico está intrinsecamente ligada aos interesses ideológicos e às lutas políticas que pertencem ao presente. A construção da memória coletiva deveria manter um elo com a envergadura ética, que se inscreve numa luta política e histórica precisa.
Para os sobreviventes, a rememoração foi pontuada de tensões. Nos seus depoimentos e mesmo nos seus escritos, há fragmentações, descontinuidades, lapsos, silêncios. Mas esse silêncio era necessário, ele talvez pudesse traduzir a dimensão do mal. O silêncio se tornava uma espécie de prece aos mortos e uma demonstração de que os sobreviventes passaram por uma situação-limite. Em suma, não havia palavras a "a altura" desse evento.
Além do silêncio, na escrita deles, há a alegoria e a presença constante devaneios. Os sonhos e as alucinações atormentavam as noites cinzentas de Levi: realidade e sonho se misturavam:
O meu sono é leve, leve como um véu; posso rasgá-lo quando quero. Quero, sim, sair de cima dos trilhos. Pronto: estou acordado. Não bem acordado; só um pouco, entre a insensibilidade e a consciência. Tenho os olhos fechados; não quero abri-los, não, para que o sono não fuja de mim, mas ouço ruídos: este apito ao longe sei que é verdade, não é da locomotiva do sonho (Levi, 1988 p. 59) A locomotiva sempre trazia más noticias: mais companheiros chegando, mais famílias a caminho da destruição, mais corpos apodrecendo, após serem retirados da câmara de gás. Os próprios judeus tinham a difícil tarefa de retirar os corpos dos mortos da câmara de gás, porém não venciam transportá-los e enterrá-los nas valas, devido à grande quantidade de mortes por dia. Os corpos chagavam a ficar até semanas decompondo-se, cobertos de sangue, vermes e excrementos. Enfim, no campo, os dias, as vidas, a fábrica, as esperanças eram cinzentas. Era o inferno e, diante disso, "como é possível pensar? Não é mais possível; é como se estivéssemos mortos" (Levi, 1988 p. 20).
Mesmo após a chegada em Turim, depois de trinta e cinco dias de viagem, os sonhos não cessaram de atormentar Levi, angustiando-o:
Estou à mesa com a família, ou com amigos, ou no trabalho (...), mas, mesmo assim, sinto uma angustia sutil e profunda, a sensação definida de uma ameaça que domina. E, de fato, continuando o sonho, pouco a pouco ou brutalmente, todas às vezes de forma diferente, tudo desmorona e se desfaz ao meu redor, o cenário, as paredes, as pessoas, e a angústia se torna mais intensa mais precisa. Tudo agora tornou-se caos: estou no centro de um nada turvo e cinzento (..). Estou de novo no Lager (...) ouço ressoar uma voz, bastante conhecida; uma única palavra, não imperiosa, aliás breve e obediente. É o comando do amanhecer em Auschwitz, um apalavra estrangeira, temida e esperada: levantem, "Wstavach" (Levi, 1997 p. 359). Os pesadelos e os fantasmas da morte sempre rodeariam Levi. A luta para se tentar vencer a morte e a dor não tinha trégua. A imagem do transporte nos trens imundos, da seleção na descida do trem, da tatuagem no braço e da câmara de gás ficaria para sempre calcada na memória.
Daí a necessidade da rememoração, enquanto gesto que destrói e rompe com essas fantasmagorias, esbofeteando a sociedade a fim de que a desperte. A sociedade precisa acordar e rever o passado, cavar em meio aos escombros para descobrir os mortos e daí sepultá-los. Nesse gesto de voltar para o passado, os cidadãos terão contato com uma História esquecida, mas que precisa ser resgatada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, T. Educação após Auschwitz. In: _____. Sociologia. São Paulo: Ática, 1986. CAMON, F. Conversazione con Primo Levi. Parma: Ugo Guanda Editore, 1997. CYTRYNOWICZ, R. Memória da barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial. 2. ed. São Paulo: Nova Stella, 1991. LEVI, P. A trégua. Trad. Marco Lucchesi. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. ____. É isto um homem? . Trad. Luigi Del Re. Rio de Janeiro: Rocco, 1988. Janeiro: Paz e Terra, 1990. ____. Os afogados e os sobreviventes. Trad. Luiz S. Henriques; Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990. SELIGMANN-SILVA, M. A história como trauma. In: NETROVSKI. A & SELIGMANN-SILVA, M. (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000. p. 73 - 98. ______. A literatura do trauma. CULT - Revista de Literatura Brasileira: São Paulo, 1999. Ano II n. 23 p. 40 - 47. ______. Auschwitz: história e memória. Pro-Posição: São Paulo, 2000 v. 11 n. 2. p. 78 - 87. |
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