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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 9 

ATROCIDADE DE ELITE -
LITERATURA E ARTES COMO LOCAIS DE VIOLÊNCIA
1

Jürgen Wertheimer2
Tradução para o português: Rosani Umbach3
Lidar com os fenômenos do feio, do mal, da violência, da destruição é mais complicado e ambíguo para os produtores de literatura e também para os artistas plásticos que para os criminalistas, cientistas políticos, pedagogos, teólogos. Isso porque a literatura, bem como as artes plásticas, trabalham com exatamente o mesmo material sangrento que há dois mil anos afirmam analisar. Eles trabalham eficazmente com esse material e tiram dele seus resultados mais efetivos. Assim, certamente não seria errôneo definir o honroso gênero da tragédia, cujo propósito per definitionem está orientado para o efeito, como o gênero que tem como requisito a morte de pelo menos uma pessoa. O arco pode ser estendido desde a tragédia grega e romana da Antigüidade até os cenários sangrentos dos Elisabetanos.
Entretanto, também devem ser lembradas, ainda, as fantasias sadomasoquistas de um Marquês de Sade ou dos românticos negros.
Grosso modo, pode-se situar no século XVIII, portanto na fase do aburguesamento da literatura, um limiar em relação à utilização, tematização e representação de fenômenos da violência no contexto literário e estético. As normas de uma ética fundamentada na solidariedade, piedade e moralidade alteram a regulamentação dos códigos de agressão física. As tragédias de Lessing - a forma do drama barroco burguês em geral - podem ser colocadas como exemplo disso. Desde então, isto é, no contexto burguês esclarecido, racionalista, não haverá mais concordância com representações de violência per se. Antes pelo contrário, a agressão física encontra-se sujeita ao controle coletivo inerente à opinião pública. No decorrer dos séculos XIX e XX, esse modelo guiado por premissas didáticas foi literária e esteticamente confirmado e ao mesmo tempo refutado: a moral realista da violência e o ritual da violência encontram-se diametralmente opostas, por exemplo na segunda metade do século XIX, da mesma forma que a inclusão do erotismo no contexto do amor individual e a liberação do mesmo potencial como pornografia no contexto decadente. Esta sincronia de tendências contrárias é típica do relacionamento de nossa cultura com o fenômeno da violência. Válida desde então e eficaz até a modernidade, pode-se até mesmo acompanhá-la até a contemporaneidade recente. No decorrer desta apresentação, procura-se acompanhar o desenvolvimento deste topos no período dos anos 80 e 90. O foco não está tanto no fenômeno da violência estrutural, mas na representação concreta de diversas formas do emprego da violência física.
Antes de apresentar o crescimento vertiginoso do potencial de violência recentemente liberado, parece oportuno fazer uma retrospectiva do final dos anos 70 e 80.
1. Os anos setenta e oitenta
A realidade dos fatos, da forma como pode ser reconstruída do curto distanciamento, mostra que a ambigüidade das relações com o fenômeno da violência estetizada parece continuar pertencendo ainda aos modelos de argumentação inscritos em nossa cultura. Talvez com exceção do campo da pornografia, em quase nenhum outro há uma hipocrisia tão conseqüente como com o fenômeno da violência. E também com quase nenhuma mentira se lucra tão bem.
Na mesma medida em que a violência se tornou tabu e foi proscrita, aumentaram os números de venda e os segmentos de mercado nos níveis de seus parasitas, como no comércio de armas (faturamento no ano comercial de 1983: 16 bilhões em divisas com exportação de armas na República Federal da Alemanha) e na mídia (onde se pode contar até mesmo com uma soma maior no mesmo período).
O fosso entre a pretensão ética e a necessidade político-econômica alargou-se, pois, amplamente: estruturalmente, isso se estendeu desde o chamado "pacto de controle do armamento" daquela época até o equilíbrio do terror e da intimidação e cunhou os modelos da percepção cotidiana, da produção e recepção do consumo de imagens e palavras da violência.
Prevalecia aí total concordância sobre o fato de que se deveria parar com a distribuição de produtos violentos, por exemplo no mercado de vídeos, com base em medidas jurídicas apropriadas. Simultaneamente o mesmo mercado movimentava-se pela primeira vez sob o boom de um novo gênero que soube aperfeiçoar o fenômeno de uma maneira até então desconhecida, especificamente na forma do videoclip musical, que naquela época fez sucesso pela primeira vez como fenômeno de massa na Europa, no estilo das obras artísticas completas de Wagner em formato de bolso, regalando-se com fantasias e apoteoses de destruição. Portanto, nem ao menos foi necessária a mudança de meio, bastou uma modificação no gênero para fazer do fenômeno-tabu novamente um jogo lucrativo.
A sincronia dos opostos pode ser observada também fora do âmbito dos meios eletrônicos propriamente ditos, por exemplo quando uma discussão sobre o tema "Garantias para a paz" foi transmitida simultaneamente a uma reportagem tecnocrática-eufórica no canal de televisão ZDF4 sobre o projeto "Guerra nas estrelas", atual àquela época. Sincronias semelhantes naturalmente também podem ser comprovadas na fase atual, quando reportagens sobre o Congresso da Igreja Luterana em Munique, de inspiração pacifista, são justapostas sem intermediação a cenários de horror na Bósnia e incêndios criminosos em Solingen, sem que afinal tenham referências entre si. Certamente não se trata de uma simultaneidade casual, nem de uma unidade maior dos opostos e tampouco de uma anulação sintética dos opostos. A duplicidade vocal da informação é parte e conseqüência do sistema pluralista.
Cisões ou duplicações semelhantes como as do âmbito político e social, no caso as da mídia, podem ser observadas nas instituições da literatura culturalmente exitosa. Assim, por exemplo, no ano de 1983 o teatro de câmera de Munique oferecia, por um lado, uma versão tocante de "Kassandra", de Christa Wolf, com apresentações paralelas quase parassacras, enquanto no anexo, no teatro de oficina, entrava em cena a peça "Kalldewey, Farce", de Bodo Strauß, na qual uma pessoa é esquartejada em pleno palco. Do outro lado da Rua dos Teatros em Munique, por sua vez, apresentava-se o thriller de violação "Até o extremo", de William Mastrosimones, sendo que durante a representação naturalista das violentas agressões também ocorreram fraturas reais de ossos dos atores.
Direção e auditório dessas produções, de modo geral, costumavam deleitar-se totalmente com essas ofertas hardcore para intelectuais críticos. Evidentemente não apenas na rua Maximiliam em Munique, mas em todo o país e toda a Europa. Os oportunistas de todos os matizes quase não conseguiam mais imaginar as representações de sentimentos autênticos da vida sem momentos da mais dura violência - pense-se nos rituais de Peter Zadek na encenação do bestiário "Tempo perdido", de Hopkin, ou nas encenações sadomasoquistas de peças elisabetanas como "A condessa de Malfi", de Webster.
Como se pode constatar em geral, a elite progressiva da época mostrava-se especialmente receptiva para o charme discreto da violência embalada de maneira nobre - "Terrorist chic" costumava-se denominar o produto festivamente apresentado. Resenhistas alertas do jornal "Die Zeit" falam de uma "apoteose impregnada de imagens do puro prazer estético assassino", e a crítica norte-americana Pauline Kael diagnostica uma espécie de maculação purificadora:
Freqüentemente é como se o público tivesse "a high great time" - e eu sinto esse nihilismo, que naturalmente não é de natureza reflexiva ou filosófica; é daquele tipo como num show pornográfico [...] lá tudo, a gente mesmo inclusive, é transformado em adubo.
Essa transformação é prazerosamente documentada pela relatora, e é de se supor que uma boa parte dos sucessos estupendos dessas obras afetadas resultem mesmo daquele prazer intelectual na automaculação em um êxtase coletivo de consumidores. Só assim se explica que uma crítica culta se esvaia em metáforas prazerosas e fale da "tragédia física absolutamente mais pura e divertida que jamais foi rodada", do "terror belo e horrível", de "metamonstros deliciosos" e, coroando todo o excesso, também ainda de "noites mágicas da libido, pansexualmente escuras". Violência barata como solução para o congestionamento erudito de instintos? Ou aqui também tudo se esgota na palavra? Quase é de se supor, quando se continua lendo a linguagem atual típica do gozo crítico, quando se traz à mente os êxtases presunçosos do jogo de palavras dos redatores de folhetins: "Engrenagens do diabo" intitula um deles o seu comentário, no qual o cenário do horror é estilizado da seguinte forma:
O palco é uma câmara de tortura. No programa está Grand Guignol moderno.5 Sangue e lágrimas jorram, ossos estalam, mulheres gemem sob as agressões estranguladoras de gângsteres brutais [...] cheios de ódio e altamente armados estão frente a frente. Sexo e violência, nojo diante do outro, esses são evidentemente os temas centrais da presente estação, a atrocidade está em toda parte.
Deve-se ter claro que se trata aqui potencialmente de pessoas que ontem se manifestavam em correntes pela paz e hoje fazem demonstrações em correntes de luz pacifistas e unânimes contra a violência, esteticamente aprovada por eles próprios. É evidente que aqui se expressam mecanismos sociais específicos de mercado e de distribuição. Em todas as aludidas simultaneidades de tabu e consumo, não se trata tanto de cisão ou esquizofrenia, mas sobretudo da regra do "tanto um como o outro", orientada pelo lucro. Imagem emblemática desse pensamento simultâneo desconcertante, em sua pregnância insuperável, foi a "dupla resolução", que nesse ínterim se tornou legendária.6 Como equivalente a isso, contrapõe-se uma dupla resolução estética em forma de sincronia da estilização literária da violência simultaneamente com a atenção ética. Uma fissura na consciência, com a qual a literatura européia se acostumou a viver lucrativamente.
Dentro do âmbito cultural "ocidental cristão", há essencialmente duas teses fundamentais relacionadas ao fenômeno "violência", de acordo com as quais ela pode ser considerada ou como encenação de uma vítima - na maioria das vezes com a perspectiva de explicação transcendental - ou como expressão do potencial agressivo predestinado ao ser biológico pessoa.
Com relação à primeira tese abre-se, especialmente na Alemanha, uma tradição extremamente eficaz, que é caracterizada pelas idéias de transfiguração da morte no Romantismo (p. ex. Novalis) e que continua até o capítulo final da "Montanha mágica", de Thomas Mann.
No que concerne à segunda linha, sua origem não é mais recente; no entanto, mostra eficácia, revigoramento e nova interpretação, especialmente na Modernidade. Eu me refiro aqui a Sigmund Freud e sua lenda do instinto de morte, que não deve ser relevada em sua eficácia, uma vez que foi cientificamente reconhecida. Em uma correspondência com Albert Einstein ainda no ano de 1932, Freud renova suas teses a esse respeito:
Agora posso explicar uma outra de suas frases. O senhor se admira que seja fácil entusiasmar as pessoas para a guerra e pensar que alguma coisa atua nelas, um instinto para o ódio e a destruição, que vem ao encontro de tal incitamento. [...] Nós acreditamos na existência de tal instinto e fizemos esforços, justamente nos últimos anos, para estudar suas manifestações. [...] Nós supomos que os instintos do ser humano são apenas de dois tipos, ou aqueles que querem unificar e manter, nós os denominamos eróticos [...] ou sexuais, com distensão consciente do conceito popular de sexualidade - e outros que querem destruir e matar; nós resumimos esses como instintos de agressão ou instintos de destruição.
Nesse contexto, é recomendável assinalar que a posição aqui descrita não pode de forma alguma ser considerada superada, mas que, ao contrário, essa relação entre agressão e sexualidade, voltada para o mítico e postulada sem restrições, pôde continuar atuante, até em comunicados mais recentes, através da intermediação da pesquisa comportamental (cf. p. ex. Konrad Lorenz).
A seguir, ambas as teses esboçadas serão deixadas de lado por enquanto em benefício de uma terceira posição antagônica, provavelmente menos atrativa, a qual compreende o fenômeno da violência, não como determinação sublime, nem como tribulação biológica, e sim como parte correspondente de um programa específico de socialização e portanto como desafio provocante para a inteligência humana e sua capacidade de análise e controle exatamente desse fenômeno.
Sem querer pregar aqui uma moralidade afinada com moderação ao lidar com representações de violência, permita-se uma breve retrospectiva daquelas formas de representação e transmissão que se distanciam nitidamente dos cenários embebidos de violência de Artaud, Ezra Pound, D'Annunzio, Jünger, dos manifestos dos futuristas e dos surrealistas; textos nos quais se fala sempre de novo que "a beleza deve ser empolgante, terrorista e demoníaca", ou conforme o postulado de André Breton de que no surrealismo, no final das contas, não se quer outra coisa que não "a violência". Também se pode lembrar aqui o manifesto de Marinetti. Um fragmento desse texto é citado pela escritora Ingeborg Bachmann por ocasião de sua 2ª Conferência Frankfurtiana sobre Poética, e ela, confrontada com o prazer estético que aqui se manifesta com a destruição, não receia lançar seriamente a "questão da culpa na arte". Por exemplo quando se refere a um trecho, no qual a tecnologia militar se apresenta esteticamente transformada:
Há vinte e sete anos nós futuristas fazemos levante contra o fato de a guerra ser definida como antiestética [...] nós constatamos: [...], a guerra é bela, porque, graças às máscaras de gás, aos megafones aterrorizantes, às bombas incendiárias e aos pequenos tanques, ela fundamenta a dominação do homem sobre a máquina subjugada [...] A guerra é bela, porque ela enriquece um campo florido com as orquídeas flamejantes das metralhadoras.
A guerra é bela, porque ela reúne em uma sinfonia o fogo das pistolas, as canhoadas, as tréguas de fogo, os perfumes e cheiros da putrefação.
A guerra é bela, porque ela cria novas arquiteturas, como as dos grandes tanques, dos esquadrões geométricos de aviões, das espirais de fumaça saindo de vilarejos em fogo e muitas outras coisas.
É contra esse tipo de transformação em concepções de L'art-pour-l'art que Bachmann protesta de forma contrapontual e programática, estabelecendo uma contraposição poética à estética desumanizada da máscara de gás de Marinetti: o poema humano, crítico, de desmascaramento "Noivo Rei Sapo" de Marie-Luise Kaschnitz, um texto no qual a estilização estética se torna apreensível como falsificação:
Como é feio
Teu noivo
Virgem vida

Seu semblante, uma máscara de tromba
Seu cinto, uma bolsa de cartuchos
Sua mão,
um lança-chamas...
Dessa forma, é na base, a saber, no nível da palavra falsa que Kaschnitz e - através de sua voz - Bachmann combatem o efeito deformador de consciências inerente a esse tipo de texto. A resolução da ambivalência possui aqui - frente à autonomia do espaço artístico livre - prioridade absoluta.
Um segundo exemplo de textos analíticos objetiva explicitar o que se quer dizer. A narrativa de Christa Wolf, "Kassandra", do ano de 1983, mostra de forma exemplar que não se trata de uma tabuização asséptica da temática, e sim muito mais de tornar transparentes as causas que, então, levam ao uso factual da violência. O pano de fundo para isso é um cenário da épica heróica, a Guerra de Tróia. Em um monólogo contínuo que ilumina os acontecimentos a partir de seu início, a protagonista do texto, a vidente Cassandra, realiza um trabalho de autoconscientização poucas horas antes da própria execução. Ela fala da época antes da guerra, do engano feito pelos próprios. Dos prognósticos recíprocos falsos dos partidos, das diversas linguagens camufladas. Do erro daqueles que por sua vez se julgam pragmáticos. De seu lema, do "assim é que se faz". Da adaptação gradual do próprio comportamento ao dos inimigos - talvez também apenas ao da imagem propriamente criada do inimigo - e finalmente da violência que vai se manifestando concretamente:
Mas aí chegou Aquiles, o animal. A entrada do assassino no templo escureceu a entrada. O que ele quer? O que procura armado aqui no templo? Instante pavoroso: eu já sabia. Ele riu, então. Meus cabelos se arrepiaram e vi o pavor nos olhos do meu irmão. Atirei-me sobre ele e fui jogada longe [...]. O jeito como o inimigo se aproximava de meu irmão! Como um assassino? Ou como um sedutor. Sim, pode existir algo assim? O desejo de morte e o desejo de amor num mesmo homem? Pode-se permitir uma coisa assim, entre homens? O olhar fixo da vítima. A aproximação dançante do perseguidor, que eu agora via pelas costas, o animal lascivo. [...] A mão peluda de dedos curtos, maciços, no pescoço do irmão. Apertando, apertando. Eu, pendendo do braço do assassino, cujas veias se destacavam como cordas. Os olhos do meu irmão saltando das órbitas. E o prazer, no rosto de Aquiles. O prazer viril, cru e horrível.7
Nem Christa Wolf nem sua figura, Cassandra, acabam em uma loucura sanguinária difusa, apesar de toda a emocionalidade. O entorpecimento se dilui na reflexão e deixa transparecer atrás do ato um princípio causal - o princípio da "objetificação". Um princípio que é empregado estrategicamente como estrutura de poder por agentes contra vítimas, por homens contra mulheres, por pessoas contra pessoas. Essa relação sistêmica se torna apreensível e perceptível através de destinos individuais exemplares.
2. Cenários da atualidade
Eu faço um corte aqui e sigo para a segunda parte do meu material. Falo agora dos cenários fictivos de violência dos anos 90 - próximos e mesmo assim aparentemente um tanto distantes das posições esboçadas há pouco, aquelas de uma postura crítica-humanista, a qual se acredita nesse ínterim ter desmascarado como pose. No lugar dela, posicionaram-se novos lemas: das idéias dos anos 60 e 70 apenas se faz troça com mais ironia, como de ilusões; o campo de batalha social das "lutas atuais de distribuição mais duras" é aceito de forma geral. Diante do pano de fundo das condições modificadas, pode-se verificar continuidades, mas também momentos aparentes de diferença na transposição estética de áreas correspondentes. Novamente se toma como testemunha um folhetim, exatamente dez anos depois do anteriormente citado, desta vez da "Frankfurter Rundschau".8 Novamente se encontra um conjunto saliente de encenações de violência nos palcos dos teatros atuais e novamente a rua Maximilian em Munique é exemplar para o cenário alemão. Também idêntico é o já conhecido tom intermediário, resumidor e divertido, na tentativa de descrever a cena:
À noite, nos palcos dos teatros, dá-se pancada e estrangula-se, estupra-se, tortura-se, dão-se tiros, facadas e pauladas, cadáveres são violados e mortos são copulados; é de se pensar que os teatros tenham escolhido como tema preferido a forma comum de agir na Sérvia.
Alguns exemplos do relato inicialmente ilustram a impressão de algumas produções da programação teatral corrente: a peça de George Tabori, "O grande inquisidor", no programa atual do Teatro Residência, "Execução popular ou Meu fígado não faz sentido", de Werner Schwab, apresentada no teatro de câmara, e finalmente "New York, New York", de Marlene Steeruwitz, são abordadas como exemplos no relato. O crítico descreve, não sem um afável arrepio de prazer, como na peça de Tabori uma prostituta jovem é desnudada por um homem, humilhada e fisicamente maltratada, sendo finalmente violentada atrás de um banco de praça ao ritmo do Pai Nosso recitado em voz alta; ou como na peça de Werner Schwab, na discussão mais obscena entre mãe e filho da literatura teatral, um jovem aleijado desenvolve a idéia de que, quando tivesse matado a mãe, iria abrir sua cabeça com escopro e então "meteria seu Lulu solitário no buraco recém-perfurado da cabeça de sua mãe". A peça ainda chamaria atenção mais tarde pelo fato de um pai examinar sua filha, compondo-a como objeto sexual no ambiente da tranqüilidade familiar. No final uma senhora Goldfeuer, após um monólogo confuso que a caracteriza como mulher nazista, extirpa de seu corpo o próprio fígado e o espatifa a sua frente no chão do palco. O comentarista Peter Iden, entretanto, ainda considera tudo isso mais como "formas de violência branda", se comparado com a cena quase muda de aproximadamente 15 minutos de duração, na qual uma mulher jovem é executada por um cafetão em um pissoir vienense em "New York, New York". Ali a mulher inicialmente é tratada a socos pelo cafetão, depois é pisoteada até ficar inconsciente, o corpo já sem vida é jogado de lá para cá e sempre de novo é arremessado sobre as tábuas; finalmente o corpo da mulher, mesmo depois da morte ainda não libertado de seu agressor, ainda tem de servir, na forma de cadáver, ao homem para sua satisfação. Num prazer selvagem, o cafetão se lança sobre os restos sangrentos.
Apesar de alguns espectadores não estarem aptos a agüentar a pressão física dessa representação e abandonarem o teatro, as apresentações seguintes tiveram até mesmo uma boa freqüência.
À procura de explicações para essas e outras representações excessivas e para a mercantilização bem-sucedida de cenários de violência, Peter Iden segue citando uma série de razões que só em parte conseguem convencer. Por um lado, traz-se à memória que "violência" per se seria teatral, ou seja, apropriada "para criar situações tensas". Em segundo lugar, o teatro seria, "como espaço artístico par excellence", ao mesmo tempo sempre um gigante sinal de que o gesto assim praticado deva ser compreendido apenas ficcionalmente e, portanto, estaria exonerado de responsabilidades; permita-se apontar aqui pelo menos como pergunta, através de que, e de que forma esse processo de exoneração se deva realizar. O palco funcionaria, pois, como um espaço alternativo ideal, para o qual o Eu poderia ser seqüestrado sem riscos. Como "fenômeno civilizatório-cultural", o redator do folhetim introduz, em terceiro lugar, a suposição de que se observariam fendas na rede de convenções culturais após a implosão da ideologia, ficando em aberto se momentos de violência esteticamente transmitidos funcionam como argamassa nas fendas do sistema de valores em desmoronamento ou como explosivo. Correspondendo à saliência da argumentação geral, é apresentada como última tentativa de fundamentação para a prática observada uma situação de "esgotamento sem saída" dos teatros, os quais se veriam na contingência de alcançar, por quaisquer meios, um mínimo de ressonância, optando assim pelo choque da representação vulgar da violência. Todas essas não são exatamente explicações, mas no máximo suposições sobre possíveis motivos, são antes parte do sistema que elementos de sua análise.
No mais, o autor tenta uma historicização dos fenômenos observados, na qual a retrospectiva abrange inicialmente os anos 70 e 80. Com razão são lembradas performances não menos cruéis daqueles anos, como p. ex. as adaptações de "Macbeth" de Heiner Müller ou "Gerettet", de Edward Bonds, que naquele tempo chocou pelo apedrejamento atroz de um bebê. A tese formulada nesse sentido, de que as representações de terror de então se distinguiriam daquilo que hoje é apresentado nos palcos pela "funcionalização das cenas de violência no contexto de uma crítica política da situação", não é mais coerente do que as observações feitas anteriormente. Ao contrário, o argumento da funcionalidade lá e da ausência de função aqui conhecidamente encontra utilização sempre quando se trata de provar a qualidade estética. Pense-se apenas no retorno dessa seqüência argumentativa no contexto da diferenciação entre a representação de fenômenos eróticos e sexuais no contexto literário frente às representações colocadas em oposição àquelas no âmbito das produções pornográficas colocadas no Index.9 Apesar disso, deveria-se inicialmente pelo menos manter esse argumento na memória, pois a seguir se mostrará que, na realidade, atrás da mudança de superfície também é possível reconhecer aquela de estrutura profunda no que se refere à motivação dos fenômenos de violência representados.
A fim de ampliar o material de nossa pesquisa, sejam abordados ao menos resumidamente alguns romances e filmes de sucesso dos últimos anos, tornando-se necessário ultrapassar os limites da literatura alemã e do cinema alemão, uma vez que quase todos os produtos do mercado norte-americano que são de interesse central para o nosso tema encontraram ressonância admirável na Alemanha. Entre eles estão por exemplo os romances do jovem e bem-sucedido autor americano Bret Easton Ellis, sobretudo "Abaixo de zero" e seu segundo livro, "O psicopata americano", agora também em alemão, um grosso volume de 550 páginas publicado pela renomada editora Kiepenheuer und Witsch. A crítica liberal-esquerdista séria, por exemplo a da "Frankfurter Rundschau", não hesitou em recomendar o romance como leitura válida, e até mesmo "da primeira à última página", sendo encontrado novamente o pensamento já conhecido: não se trataria de ler as cenas de violência por si mesmas como peças cult perversas, cujos horrores tanto faz condenar ou desfrutar. Ao invés disso, se deveria ler esse "solitário monstruoso" como uma marca literária do final do século XX, como um "romance de fin-de-siècle" portanto, ao qual se poderia fazer referência quando se quisesse caracterizar literariamente a tendência mais escura da época".
Como qualidades especiais do romance, o comentário da "Frankfurter Rundschau" salienta três aspectos. Por um lado, o que fascinaria no romance seria a tentativa de "oferecer" um assassino "sem" vida interior, mais especificamente um assassino por falta de vida interior. Na diferenciação de uma superfície sem alma estaria - conforme o crítico - uma qualidade específica, e visto dessa forma - este é um segundo aspecto - a fúria atroz dentro de corpos humanos também deveria ser lida como uma "procura por e, ao mesmo tempo, destruição de" vida interior: o terror físico orgiástico de Patrick Batemens como êxtase de um viciado que, com a faca, quer tirar dos outros a vida que se subtraiu dele há muito tempo. Isso levaria - conforme o terceiro aspecto da leitura intelectual do cenário de violência - à destruição daquilo que é estilizado, liso, arrumado. A superfície totalmente mascarada feita de artigos de consumo que anteriormente haviam sido construídos com cuidado por nomes de designers como Armani, Gaultier, Gianfranco Ferré, Yves St. Laurent e outros para enfatizar um estilo de vida específico estaria sendo rompida agora:
Aspirar sangue, deglutir pele e carne, devorar órgãos internos, [...] Olhos se derramando, sangue espirrando, gordura respingando - o fanático por moda, limpo e fisicamente treinado, ensanguenta seu corpo, suas vestes, sua casa.
Em conformidade com isso, o artigo em discussão também leva o título significativo "Estilo de vida e massacre". E exatamente nessa formulação, isto é, na antítese entre o cenário de consumo pós-moderno aperfeiçoado de um lado e a ânsia por raízes arcaicas da existência, entre o existir (Dasein) cutâneo e subcutâneo, decidida na pele e pela mão, reflete-se a estética da destruição atualmente dominante. O nível dos designers, no entanto, não fica desacreditado como superfície ilusória, supor isso seria incorreto, mas é visto e desenvolvido como parte inerente de uma forma de vida bem específica. Sim, pode-se dizer que, na mesma medida em que se encontra essa camada sistematizada e refinada, também são desenvolvidas e ampliadas as técnicas de intervenção destrutiva, sem que seja estabelecida uma relação causal entre elas.
A ligação entre momentos de um estilo de vida específico, geralmente luxuoso, com aqueles de escalação de práticas específicas de violência pode ser observada em uma série de outros textos, sendo que cifras como Armani figuram quase como um motivo condutor.
Nesse contexto seja lembrado o livro "Fim de semana sujo", de Helen Zahavi, que inicialmente causa furor na Inglaterra, mas recentemente também na Alemanha, um romance de sucesso que estava esgotado na Inglaterra em três dias e que foi apostrofado pela crítica como sendo por um lado "sem consciência" e "asqueroso" ou também como libertador e de vanguarda. Pois a protagonista, uma mocinha frágil denominada Bella, realiza, no decorrer do fim de semana anunciado no título, a transmutação de vítima passiva a demônio da vingança, entrando em contato com quase todos os grupos sociais. Um certo ponto alto das seqüências de assassinatos é a cena na qual Bella liquida com tiros de pistola três homens jovens que estão a ponto de incendiar uma sem-teto idosa em uma rua lateral. Também esses três homens jovens são marcados inequivocamente como representantes de uma chickeria do dinheiro rápido. Novamente despontam os nomes conhecidos de marcas como insígnias desse estilo de vida. Completamente sem motivo os três homens jovens agarram a mulher idosa, expondo-a a uma série de torturas físicas e psíquicas em plena rua. De mais a mais, domina um tom de didática meio divertida com componentes secundários ritualizados, os quais se elevam permanentemente sobre o seu objeto e ao mesmo tempo sobre si próprios, parecendo ser primordialmente importante para a narradora subverter programaticamente as reações esperadas, normativas, como por exemplo as da compaixão:
"Nós te damos uma ajuda", dizia ele. "De volta para a escola, marcha."
Agradava-lhe como ela estremecia na frente dele. Agradava-lhe como os dedos dela agarravam no vazio e a boca murcha tremia em seu rosto. Agradava-lhe como ela se abaixava, mas ele a odiava por ela se humilhar.
"Ela precisa de uma lição."
"Se ela não recebe uma lição, não aprende." [...]
Nós somos a polícia. Ele olhava sorridente para os seus amigos. "Nós somos a lei."
Ele aplicou-lhe um murro na cabeça.
E esse foi o braço forte da lei.
O grito dela preencheu a travessa. Inchou e desinchou. Caiu e ergueu-se como um cano no vento [...] Um som estranho, como de um animal. Eles se arrepiaram, quando o ouviram.
O calado ria-se.
O baixo batia as cinzas da ponta de seu charuto.
O tenebroso puxou-a para cima pelos cotovelos. Ele apertava-lhe a mão na boca aberta. [...]
Ela era somente pele e ossos. Pele e ossos e fedor. Ele não vislumbrava como as pessoas podiam descer tanto. Elas não tinham merecido outra coisa, quando desciam tanto.
[...]
Ela não tinha forma. Ela era desformada. Uma carcaça desformada, uma carcaça de artrite desformada, com pernas em forma de o [...] Eles tiveram de rir. Não podiam de outra forma. Eles simplesmente tiveram de rir. Ela estava parada com sua calcinha de baixo na frente deles, com a pele de sua cabeça sangrando e chorava, enquanto eles riam. [...]
"Eu acho", dizia o tenebroso, "que estamos lidando aqui com um problema de meio ambiente."
Ele a segurava com força. Ela era fraqueza e putrefação. Era fedor e decadência. A morte era o melhor para ela.
"Deveríamos contribuir para uma Inglaterra limpa." [...]
"Vamos queimar a bruxa." [..] Vamos queimá-la, se diz. E soa bem, lá atrás na travessa escura.
Vamos queimá-la, pensa-se e pronuncia-se em voz alta. E uma vez que se pronunciou, se tem de fazê-lo. Vamos queimá-la. Já não parece mais tão indecente quando se diz. Tem quase algo de amigável, quando se pensa direito. [...]
Eles só queriam ter sua diversão. Eles não queriam nada de mal, nada a mal, eles só queriam ver como ela queima. Eles queriam testar seu fator de inflamação, eles queriam ouvi-la assando. Eles queriam torrá-la como um bolinho tostado. Ela era alguém da rua, por isso ela queimaria. Essas coisas acontecem de vez em quando.
O que Zahavi expressa nessas e em outras cenas pode ser descrito com aquela antipsicologia "de um buraco negro", com o qual também Ellis fazia provocações em "O psicopata americano". Por isso também não está mais em primeiro plano a pergunta se o assassinato ocorre por maldade, necessidade ou casualidade. Parecem mais interessantes, ao contrário, as variantes técnicas relacionadas à execução do ataque mortal. No caso do presente livro de Zahavi, é oferecido um leque quase completo de todas as formas usuais - desde o abate com o martelo, passando por um abalroamento prazeroso e várias vezes renovado com um carro até as formas tecnicamente mais avançadas de variedades como o do fuzilamento e finalmente o do apunhalamento. (Uma outra forma de leitura relacionada aos motivos da violência empregada consistiria em ler os acentos e sinais de ironia a serem observados como técnicas do grotesco. Os atos de violência de Bella nesse caso deveriam ser entendidos como atos de uma violência contrária vingativa, sendo que suas ações são descritas com os mesmos módulos destinados até agora apenas aos assassinos seriais masculinos.) De qualquer forma, especialmente no que se refere ao processo de apunhalamento, não deve ficar oculto do leitor o fato de que a isso está relacionado, para a criminosa, um processo de conhecimento em boa medida notável, aparentemente cínico. No decorrer da penetração no corpo do opositor masculino surge a sensação de uma certa intimidade, pelo menos se anuncia algo como uma sondagem pessoal do outro por esse caminho:
E havia algo de estranho nesses golpes com a faca. Isso era algo diferente que abater Timbo com marteladas. Algo diferente que extinguir Norman. Algo diferente que aplanar Reggie. Algo diferente que seu triunfo na travessa, com tiros certeiros.
Esses golpes com a faca, ela descobria, eram algo notavelmente íntimo. Precisava-se de sensibilidade para acertar a faca tão bem, no lugar. Apunhalá-lo com a faca, ela descobria, significava conhecê-lo. É necessário chegar muito próximo do outro para golpeá-lo com a faca. Não se pode ficar distanciado com uma faca. Coloca tua confiança na espada, e a espada na sua lateral. Mas rápido, certeiro, nada que tire o apetite. [...]
Ela pegou o caderno com ambas as mãos. Deu golpes com toda sua força. Apunhalou-o com o gume no meio do peito, no seu meio pulsante, em seu coração sombrio abafadamente palpitante.
Ele agarrou com suas mãos as dela. Foi uma cena comovedora. O batimento de seu coração pulsou através do aço. O gume vibrou com o batimento de seu coração. Seu pulso ficou fraco. Sua respiração leprosa soprou-lhe uma última, abjeta vez no rosto. Ela acreditou ouvi-lo dizer que se chamava Jack.
Certamente não é exagero dizer que aqui - como em muitos outros cenários da atualidade, pense-se no novo filme cult "Stark", de Romero, ou em muitos filmes na tradição do assim denominado gênero Splatter, por exemplo "O silêncio dos inocentes" - atos de violência dessa dimensão são até mesmo os únicos momentos nos quais ainda existe uma espécie de comunicação interpessoal, mesmo que exclusivamente sob o signo da destruição. Ou formulado ao contrário, a intimidade da família ou das relações sociais cotidianas que se tornou obsoleta se encontra substituída por uma intimidade elementar materialisticamente definida do intercâmbio entre os corpos através do ato do apagamento mútuo. Por isso quase todos os atos destrutivos estão conseqüentemente aliados a conotações ou denotações da sexualidade, e também aqui dentro de uma longa tradição ocidental. Sob o signo de uma "intensidade animalesca de violência" também deve ser visto o cenário geral das formas literária ou artisticamente codificadas de representação da destrutividade no início dos anos 90 do século XX. Com isso, não devem ser colocados limites estreitos entre sistemas literários e não literários, ao contrário, a atual situação midiática e tecnológica está propícia a apagar tais diferenças, ou melhor, a fazer da superposição o tema. Como exemplo disso pode ser citado o hooligan inglês de elite, Bill Buford, cujo título de sucesso "Loucos por violência" relata suas experiências com fãs violentos. Durante a programação de um simpósio de literatura em Munique em maio de 1993, Buford proferiu, face a um público tanto benevolente como elitista, uma palestra correspondente. O resultado é um documento no qual todas as especificidades acima denominadas se encontram mais uma vez de forma concentrada e amalgamada. Fala-se da "pureza venerável e excitante do ódio", bem como do momento da "epifania" na hora da decisão pela violência. Essa epifania se descreve como um "instante, no qual alguns dos fenômenos que haviam me ocupado nos últimos anos de repente se tornaram compreensíveis", ou também como um "rasgar da cortina". A violência como uma experiência de purificação da personalidade, de potencialização e como um rompimento de redes e regulamentos niveladores, convencionais, como infração absoluta: "Isso são percepções sem importância, sem relação, instantes leves como plumas antes que a compreensão as circunde":
O que eu quero dizer é isto: violência é uma coisa terrivelmente assustadora, pois ela quebra as regras. E no instante em que as regras são quebradas, a gente se assusta, pois não se sabe o que acontece com a gente.
Na parte final desse ensaio encontra-se então exatamente esse acontecimento concretizado e relacionado de forma dúbia a categorias como "diversão", "droga", "privilégio", as quais têm o mesmo papel que teve, à época de Ernst Jünger10, a elevação do sentimento de vida, sempre de novo proclamada sob as palavras-chave da "multivocidade", da "luta pela sobrevivência", do "instante mágico", da "atualidade absoluta", finalmente do desejo pela "força libertadora, envenenadora da violência". Com todos esses predicados, o fenômeno por um lado é descrito como assustador, por outro lado porém é identificado como sendo fascínio e parte integrante da natureza humana, e assim também da cultura, sendo legitimado perante um público que se julga elitista.
3. Construções midiáticas, figuras cult e a nova direita
Em larga escala e despontando em todos os meios e gêneros, pode-se observar um deslocamento correspondente do interesse de uma vanguarda reconhecida em direção a um retorno do animalesco, impulsivo, e como sinal disso figura o ato da violência. Sob o berrante título "A volta dos instintos?", por exemplo, o magazine do jornal "Süddeutsche Zeitung" de 12 de março de 1993, anteriormente pensado de forma mais séria, expunha um artigo abrangente sobre o tema "Sexo e violência", especialmente no cinema americano, ao lado de uma entrevista impressionante com a trendsetter literária americana Camille Paglia. Paglia figura igualmente como sismógrafa de um deslocamento do clima mental, pelo menos dentro da cultura ocidental. Recusada por editores ao longo de anos sob o veredicto de ser "reacionária e racista", dentro de poucos meses ela é estilizada como estrela cult de uma comunidade de alteração de valores transmitida pela mídia. Com essa alteração de significados coincide uma reanimação surpreendente do modelo "Eros"-"Tanato" de proveniência freudiana, que se julgava estar verdadeiramente superado. Fala-se cada vez mais, e também no artigo aqui citado, da "força destrutiva, desestabilizadora do lado escuro, animalesco e perigoso da sexualidade". Conseqüentemente são os "Instintos básicos", "Thriller dos instintos", imposições hormonalmente condicionadas de agressão e sexualidade que determinam o clima e transmitem uma mensagem que parece estar em crassa oposição às possibilidades longamente reivindicadas dos anos 60 e 70: "Sexo é mau. Sexo é risco de vida. Sexo traz a morte."
Camille Paglia cunhará a fórmula catastrofal da mudança de tendência: "Aids é a vingança da natureza sobre a sexualidade traída. Aids é fascismo."
O fascismo é visto aqui como uma forma de vida que, sendo assim positivamente definida, ao mesmo tempo introduz novamente no cenário da vida os direitos da natureza traída pela civilização democrática. Da mesma forma que as tendências há pouco denominadas, Paglia pede sempre de novo um extremismo da sexualidade, um "retorno dos instintos sombrios", sadomasoquismo, agressividade e animalidade como alternativas para o vazio cotidiano. Ao fazê-lo, ela esboça a imagem triádica, igualmente antiquada em seu cerne, de um modelo de figuras influentes, dentro do qual homem, gênio e violência aparecem como equivalentes:
Nós temos de parar de criticar os homens. Picasso permanece um gênio, mesmo que ele tenha sido um chauvinista. Ele poderia ter arrasado fileiras de mulheres com uma metralhadora, e apesar disso ele permaneceria para mim o maior artista do século. Quem vai querer homens que preencham as expectativas feministas? Não existiu um Mozart feminino, porque não existiu um 'Jack the Ripper' feminino. Mulheres não são capazes de ambas as coisas.
Pode-se atenuar que se trata aqui de poses encenadas de uma individualista extrovertida agressiva. Importante, todavia, não é o fenômeno em si, e sim o fato de que ele atualmente consegue, através de todo um conjunto de intervenções midiáticas, alcançar interesse e atenção pública. Assim ele se insere completamente no cenário geral da alteração de comportamentos e valores, funcionando ao mesmo tempo como seu reconhecimento e amplificação.
A crítica contemporânea pode soar divertida e analiticamente versada. Ela pode também desmascarar as teses de Paglia como conversa de botequim e desacreditá-las como sendo "sem valor"; mesmo assim, reverbera no final daqueles ataques, se não um gesto de oculta admiração, pelo menos de divertida resignação, como por exemplo de Michaela Haas, que finaliza sua crítica sobre obra e atuação de Paglia com a dúbia ponderação:
"Eu sou", proclama Camille Paglia, "exatamente aquilo que faltou a vocês."
E o que realmente oprime é: parece que ela, pelo menos nisso, tem razão.
"Razão", a crítica de cultura midiática talvez tenha, no máximo, com a constatação de que as elites esclarecidas, intelectuais e morais dos anos 70 e 80 estavam aos poucos tão possuídas pelo gesto, pela postura básica de apagamento anêmico de si mesmas e de recusa lamuriosa, que elas colaboraram para criar exatamente aquela lacuna ideológica na qual Paglia agora pôde entrar triunfalmente como construção midiática. Aquilo que ela rejeita e ridiculariza como frente iluminista burguesa, "feminista-presbiteriana-pietista", tornou-se completamente cínico ou permaneceu desesperançadamente ingênuo. A esquerda intelectual se entrincheirou por tanto tempo atrás de um aparelho maníaco de diferenciação intelectualista que por fim ela mesma começou a se dividir em partículas analisáveis e a se apagar como força viva ou observadora. Não é tanto a violência representada em filmes e textos que, penetrando na corrente social do comportamento, leva a uma brutalização da sociedade, e sim o gesto satisfeito, moderado de superioridade moral, de indiferença mesmo, que cai num dissenso cada vez mais forte com a realidade cotidiana observável e, por estabilizar e reproduzir caleidoscopicamente, torna-se alvo de um imenso potencial de necessidades humanas, sociais e políticas não satisfeitas. Na mesma medida em que sistemas civis democráticos não mais conseguem suprir ou satisfazer pelo menos em termos as necessidades afetivas e emocionais dos indivíduos e cidadãos que neles vivem, necessariamente serão procurados campos alternativos dramáticos de diversão. Não é tanto em suas conseqüências que o ponto de partida de Paglia em relação ao solicitado retorno ao animalesco é procedente, e sim muito mais na análise da situação intelectual e política da atualidade; e assim também pode ser explicada a razão pela qual seu sucesso à época não é apenas um acontecimento fabricado, mas também representa um depoimento sobre realidade.
Além do mais, confirma-se a atual tendência massiva de revitalização artificial da sociedade em todos os níveis. Sentimentos artísticos agressivos determinam os lemas de festivais de cinema ("Amor, ódio e paixão"), festivais de ópera ("Sexo e violência definem nossa vida") e até das mais recentes produções literárias. Todos esses produtos obviamente não devem ser vistos como desvios privatistas e exceções, ou como elementos de uma anti-realidade artificial, e sim como retrato correto e, portanto, expressão da situação mental de nossa cultura e realidade.
Esta tentativa de inventariação não pode terminar sem se deter em um outro fenômeno e sintoma que parece proporcionalmente elevado: o interesse da intelligentia literária e artística por posições de direita, que é sentido de forma cada vez mais intensa. Essa tendência já havia se revelado isoladamente nos anos 70 - por exemplo através do interesse fascinado de Karlheinz Bohrer11 por Ernst Jünger. Daí por diante, entretanto, adensam-se indícios de um interesse crescente por fenômenos de violência de direita em círculos amplos que até agora podiam ser considerados imunes. Representativo é o caso do escritor Botho Strauß, cujo artigo "Anschwellender Bocksgesang" na revista semanal "Spiegel" causou furor. Sob o signo das lutas de distribuição cada vez mais duras, da crescente intolerância e agressão, ele postula um novo credo, no qual todos os sonhos de "anything goes" são desacreditados como ingênuos e retrógrados, ou pelo menos como irreais. Estão aí incluídos tanto o projeto da multiculturalidade como - naturalmente - utopias esquerdistas. Ser de direita, aprovar posições de direita significa para o Botho Strauß dos anos 90 ao mesmo tempo colocar em ação fantasias poéticas. Pois, de acordo com a nova lógica, "ser de direita" significa também participar de um
outro ato de protesto: contra o domínio total da atualidade, que quer roubar e extirpar do indivíduo qualquer presença do passado não esclarecido, do que se formou historicamente, do tempo mítico. Diferentemente da fantasia esquerdista que parodia a história da redenção, a direita não se imagina um reino universal futuro, [...] mas procura a reconexão ao tempo longo. O impassível, por sua natureza, é lembrança profunda e, nesse sentido, uma iniciação protopolítica ou religiosa. Ele é sempre e existencialmente uma fantasia da perda e não da profecia (terrena). Uma fantasia do poeta, portanto, de Homero a Hölderlin.
A fantasia de direita como a reinvocação do poético, isso soa quase como a equação não menos bizarra de Paglia, dentro da qual o fascismo havia sido visto como reabilitação do sentimento de natureza perdido. Ambas as formas levam conscientemente ao erro (compartilhando simultaneamente de uma análise possivelmente correta da situação atual). Também em ambas não se trata mais de fazer frente à suspeita do fascistóide através de tentativas fracas de relativização e distanciamento - como no caso de Botho Strauß. O pacto com o radicalismo de direita, uma vez argumentativamente fechado, não pode mais ser revidado por uma nota de rodapé. Sobretudo também não, porque o modelo biologista, acoplado com um "encanto do pressentimento" mítico, sim com um "terror do pressentimento", é oferecido de forma tanto profética como ominosa e finalmente é intensificado para o sacro. A própria dimensão sacra conseqüentemente fica na ambigüidade mental, intencional. Respectivamente fatídica é a consumação da associação entre o ideário de direita, a repoetização e ressacralização em forma de referências de tipo duvidoso, como por exemplo a René Girard, cujo livro "O sagrado e a violência" é mencionado aqui por reflexo, ou a George Steiner, cujo panfleto contra o mundo do secundário ("Presenças reais", 1990) fornece valioso auxílio argumentativo. Quase no mesmo contexto modifica-se o modo de falar do artigo em direção a um "nós" pressuposto como coletivo, antes que, então, diante do pano de fundo dessa nova elite, arrisca-se o ataque contra as convenções do "protestantismo intelectual" de proveniência burguesa, que igualmente faz lembrar de novo o de Paglia. Como nova imagem dominante figura o poeta, o grande indivíduo, a minoria corporativa, a secessão política:
Onde ainda prospera algo a ser transmitido [...], que só é acessível a poucos e do qual nada sai que fosse de valor para as massas. Desprezo tolerante da maioria.
A luta de Botho Strauß contra as convenções da burguesia intelectual que o sufocam deságua em um esteticismo delirante que apenas pode ser descrito parcialmente com a rubrica da "revolução conservadora". Nos "Fragmentos da ambigüidade" joga-se, no limite entre citação e texto próprio, com clarezas ambíguas como: "Fascista ou não - quem se interessa?", ou também com declarações forçadas como: "Eu não sou um humanista". Sem querer ser sentimental, seja lembrado, porém, que essa postura de indiferença em combinação com excentricidades igualmente atávicas em direção a um "verdadeiro heroísmo" de proveniência poética ou política também existia no final da República de Weimar.12
Esse fenômeno, por si fatídico, obtém mais um reforço através de outros movimentos análogos, como em forma de uma glorificação constante e quase cult de Ernst Jünger justamente nestes anos. É de se manisfestar admiração quando a direção da "Bienal '93" considera premiável e evocável a voz de ninguém menos que a do mais que ambivalente decano, citando-o, com base em um clichê como "mudança de feição", como herdeiro dúbio de Nietzsche e Spengler e como grande vidente político-estético.
Por fim aborde-se ao menos um último fator, não muito chamativo, mas possivelmente decisivo no cenário de continuidades e deslocamentos dos últimos dez anos. Trata-se da mudança na forma e nas técnicas de percepção em decurso das revoluções técnicas mais recentes. Teóricos como o filósofo cultural parisiense Jean Baudrillard chegam ao nó da questão, por exemplo, quando formulam provocativamente em uma entrevista: "Eu me nutro do virtual. Se fossem me enviar para o real, ... (ri)."
Passando-se por irônica e presunçosa, a rejeição até mesmo da possibilidade de contato com a realidade implica, por conseqüência, uma atuação de forma alguma inofensiva na zona limite da irresponsabilidade radical. Não que quiséssemos manter uma posição desesperançada, com base em um postulado ingênuo e um credo na responsabilidade, em contextos nos quais ela não tem mais lugar. Por outro lado, deve-se ressaltar que está prestes a surgir um declive certamente perigoso por suas conseqüências. É que, por um lado, o contato pessoal com a realidade é negado, por outro - e é exatamente esta a mensagem de Baudrillard - uma "ânsia profunda pelo real" é permanentemente motivada como imagem de prospecção. Assim, surge uma tensão entre mundos virtuais e realidade, que leva a reduções paradoxais, manifestando-se em cifras como "Guerra como imaginação", "Vida como simulação", "Existência como produção". Com o aforismo "A própria guerra na verdade não é real", descreve-se em parte a realidade midiática, mas certamente não a realidade que mesmo assim existe. Em outras palavras, posições como a de Baudrillard, em parte também a de Virilio, criam um fenômeno cujos beneficiários centrais são, ao mesmo tempo, eles próprios. Certamente é correto que guerra e violência no contexto da intermediação midiática só podem ser apreendidas ainda de forma mediatizada segundo o slogan "Silêncio, estamos rodando!" ou "Silêncio, estamos atirando!" e que trajetórias reais estão contrapostas a virtuais, fronteiras reais, a artificiais. Também é correto que se deve falar em uma guerra de imagens, de "um passo atrás do tempo autêntico", de "armas comunicativas" e "munições inteligentes", de "imagens eletrônicas de combate", "mundos virtuais", "mundos midiáticos", "simulações", "incertezas" e "telepresenças", quando se quer descrever a realidade da intervenção midiática da realidade. O que certamente não é visto, é que atrás da presença transmitida na atrocidade ahistórica, está uma presença real. Não no sentido de uma presença real mítica-parassacra acima do signo estético, e sim como caminho da presença real; como doação da própria corporalidade também no discurso literário desejamos o atual pacto entre literatura e realidade. Não se deveria aceitar irrestritamente a atuação pós-moderna jocosa com ficções. Algo semelhante, também aqui convém lembrar as fases pré-fascistas, já pôde ser observado no contexto do surrealismo nos anos 20 e 30 do século XX, e quase os mesmos clichês de destematização também foram oferecidos então como precursores estéticos. Penso que Louis Aragon reivindicava, sem efeito, mas com razão, a defesa da cultura em um congresso de escritores de 1935 em Paris:
A volta à realidade. Jogou-se o suficiente, sonhou-se acordado o suficiente, [...] Vocês não vêem aonde essa assim denominada liberdade do experimento, na qual se sentem realizados, leva vocês? Não foi um de vocês que no final amou tanto o 'experimento', que até mesmo viu nas câmaras de tortura da SA [...] o acessório interessante do vício [...]?
Pode ser que um novo protofascismo nesta República Federal ainda não encontrou sua forma estética. Deveríamos fazer tudo para que essa situação permaneça como está. Pois apenas no acoplamento de ideologia e forma surge aquele potencial de poder que leva ao estabelecimento de fatos irreversíveis. Os produtos da arte, bem como os da produção midiática, não deveriam ser vistos aqui como causa única de remodelações correspondentes, e sim muito mais como indicadores extremamente sensíveis de deslocamentos culturais abrangentes dentro do cânone de valores. Seus textos e imagens são simultaneamente a membrana, a superfície do corpo da sociedade.


Bibliografia

Bachmann, I.: Frankfurter Vorlesungen, München 1980.
Bohrer, K.H.: Die Ästhetik des Schreckens. Die pessimistische Romantik und Ernst Jüngers Frühwerk, München 1979.
Duerr, H.P.: Obszönität und Gewalt. Der Mythos vom Zivilisationsprozeß, Frankfurt, 1993.
Ellis, B.E.: American Psycho, 1993.
Lorenz, K.: Das sogenannte Böse. Zur Naturgeschichte der Aggression, München 1984.
Paglia, C.: Sex, Kunst und Medienkultur, Berlin 1993.
Strauß, B.: Anschwellender Bocksgesang, in: Der Spiegel 6/93.
Virilio, P.: Krieg und Fernsehen, München 1993.
Wolf, Ch.: Kassandra, Neuwied 1983.
Zahavi, H.: Schmutziges Wochenende, Berlin 1992.


1 Texto originalmente publicado em alemão. In: "... überall, in den Köpfen und Fäusten": auf der Suche nach Ursachen und Konsequenzen von Gewalt. Hrsg. v. Hans Thiersch u. a. Darmstadt: Wiss. Buchges., 1994, p. 114-137. Direitos de tradução gentilmente cedidos pelo autor.
2 Prof. Tit. Dr. na área de Literatura Geral e Comparada da Universidade de Tübingen, Alemanha.
3 Profª Drª do Dep. de Letras Estrang. Mod. e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFSM.
4 Sigla correspondente a Zweites Deutsches Fernsehen (Nota da tradutora, a partir daqui assinalada como N. T.).
5 O qualificativo de Grand Guignol se aplica a divertimentos baseados em um espetáculo de horrores macabros e sanguinolentos. O termo vem da companhia de teatro francesa, Théâtre du Grand Guignol, fundada em Paris em 1895, por iniciativa de Oscar Métenier, que se celebrizou na divulgação de peças de terror, que contribuíram para a fixação de um gênero especializado nesse tipo de espetáculo e que tomou o nome da própria companhia (N.T.).
6 Resolução dupla da OTAN, de 12 de dezembro de 1979, propondo negociações ao Pacto de Varsóvia para limitar o número de mísseis de alcance médio dos Estados Unidos e da União Soviética e, ao mesmo tempo, anunciando o posicionamento de uma nova geração de mísseis americanos - Pershing II e Cruise Missiles - na Europa Ocidental, para o caso de as negociações não chegarem a um acordo. Seguiu-se uma onda de protestos e demonstrações pela paz em toda a Europa (N.T.).
7 A tradução desta citação é de Marijane Vieira Lisboa, extraída de: Christa Wolf: Cassandra. São Paulo: Estação Liberdade, 1990, p. 82 (N.T.).
8 Jornal de circulação diária, editado em Frankfurt a.M. (N.T.).
9 Referência a listas de obras não recomendadas ou proibidas (N.T.).
10 Escritor alemão (1895-1998), foi voluntário na I Guerra e prestou serviço militar em Paris durante a II Guerra até junho de 1944. Alguns de seus textos, como "In Stahlgewittern" (diários da I Guerra, publicados em 1920) e "Der Kampf als inneres Erlebnis" (ensaio publicado em 1922), são considerados como obras de glorificação do militarismo, da guerra e de idéias nacionalistas (N.T.).
11 Karlheinz Bohrer considera a violência em obras literárias como um procedimento estético, cf. p. ex.: "Stil ist frappierend. Über Gewalt als ästhetisches Verfahren". In: Rolf Grimminger (Hg.): "Kunst - Macht - Gewalt: Der ästhetische Ort der Aggressivität". München: Fink, 2000, p. 25-42 (N.T.).
12 A República de Weimar chegou ao fim com a ascenção de Hitler ao poder na Alemanha em 1932/33 (N.T.).
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