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Literatura e Autoritarismo
          Sujeito, Memória e História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 10 

A POESIA PASSADA A LIMBO
(REFLEXÕES SOBRE GRUPO ESCOLAR DE CACASO)

Débora Racy Soares1


Resumo: O objetivo desse trabalho é refletir sobre dois poemas de Cacaso, ambos do livro Grupo Escolar (1974), procurando demonstrar como eles dialogam com o momento de produção de formas diferentes.

Palavras-chave: Cacaso, Grupo Escolar, 1974, ditadura.

Abstract: The purpose of this paper is to reflect on two poems of Cacaso, both from a book called Grupo Escolar (1974), aiming to demonstrate how they dialogue with the moment of production under different approaches.

Keywords: Cacaso, Grupo Escolar, 1974, dictatorship.

Grupo Escolar (1974) é o segundo livro de poemas de Antônio Carlos de Brito, o Cacaso e foi publicado de forma alternativa pela coleção carioca “Frenesi”, considerada um “misto de euforia e falta de ar” (Hollanda, 2000, p.203). Integram essa coleção de poesia, lançada em outubro de 1974, na livraria Cobra Norato no Rio de Janeiro, os seguintes livros: Passatempo de Francisco Alvim, Corações Veteranos de Roberto Schwarz, Na Busca do Sete-Estrelo de Geraldo Carneiro e Motor de João Carlos Pádua. Embora os autores publicados pela “Frenesi” apresentem dicções poéticas particulares, é possível fazer algumas aproximações. De forma geral, em todos os autores está presente a “politização do cotidiano” que sobressai como força de grupo (Pereira, 1981, p.32). Como diz em depoimento um dos integrantes da coleção “Frenesi”, era urgente “reportar” através da “poesia referencial”, “o que esta(va) acontecendo fora” (apud Pereira, 1981, p. 38). É certo que a “poesia referencial” não predomina em todos os autores, embora compareça na maior parte dos livros. A ironização da idéia de progresso ganha força em Cacaso e Schwarz que também se encontram frente à necessidade de fazer uma crítica veemente ao Concretismo e de pensar as “conseqüências do marxismo pra produção cultural” (Schwarz apud Pereira, 1981, p. 143). Embora houvesse tendências convergentes solidificando a cumplicidade grupal, não havia homogeneidade em termos de linguagem poética. Pelo contrário, como confirma Geraldo Carneiro, há “cinco poéticas diferentes” convivendo na coleção “Frenesi” (apud Pereira, 1981, p. 145). Nesse sentido, é interessante pensar que aquela miscelânea de estilos poéticos, muitas vezes “discordan(tes) e “incompatíveis” que Cacaso diagnostica em sua geração, está presente não só entre os poetas que compõem a “Frenesi”, como também no âmbito do próprio livro Grupo Escolar (Brito, 1997, p. 154). Posto de outra forma, Grupo Escolar pode se lido como um livro de aprendizagem ou de realfabetização em matéria de poesia em “tempos de alquimia” (Brito, 2002, p. 169)2. Nesse sentido, o poeta experimenta vários modos de fazer poesia que contemplam desde a vertente metalingüística, passando pela “poesia referencial” até a entonação alegórica. Embora Cacaso não seja poeta de estilo único, predominam em Grupo Escolar a perspectiva alegórica e a referencial em versos que cantam o Brasil de setenta. A palavra agora será encarada como uma espécie de phármakon ou “química perversa”, capaz de “desvelar” e de “repor”, funcionando como remédio ou veneno, a depender da dose (Brito, 2002, p. 169). Se Alfredo Bosi quer “ver em toda grande poesia moderna (...) uma forma de resistência simbólica aos discursos dominantes” (1997, p.144), Cacaso concebe os poemas produzidos por sua geração como um vasto poema coletivo, um único poema ou “poemão”, “escrito a mil mãos” (apud Hollanda, 1998, p. 261). Portanto, há todo um subtexto político que – não pequemos pela generalização – perpassa boa parte do que se convencionou chamar de “poesia marginal dos 70”. Aliás, cabe ressaltar que há vários sentidos intrínsecos à idéia do “poemão”, sentidos que já percorremos em nossa dissertação e aos quais não seria pertinente retornar agora. No entanto, é preciso reter a idéia de que o “poemão” de Cacaso propõe-se a ser uma fala que pertence a todos e que, portanto, não é de ninguém em particular. Nesse sentido, o “poemão” parece ser uma resposta muito específica a um quadro de época, sinalizando a urgência necessária do que chamamos de “embaçamento da autoria poética”. A matéria desse “poemão” seria basicamente a experiência histórica do período da repressão. Ressaltemos que não se trata de um esforço no sentido de anular as individualidades, as autorias, mas antes de uma tentativa de entender as particularidades como uma somatória de forças em que o particular fala no plural e o todo remete ao particular, numa dialética tensa entre o individual e o coletivo. A essa altura é oportuno lembrar que a lógica do aniquilamento, da qual as engrenagens da censura se alimentam operam no sentido da uniformização (abolição do singular) ou despersonalização, promovendo a destruição da identidade que pode beirar a loucura. Não entendam, pois, o “poemão” como um mimetismo perverso que reproduziria uma situação de opressão. Pelo contrário, “embaçar a autoria” não equivale a despersonalizar, mas antes sinaliza um esforço coletivo que tinha, sobretudo, “valor de atitude”. Ao “poemão”, mais do que ressaltar as individualidades poéticas, interessava antes proclamar em uníssono que “se estava vivo” e que, afinal, os poetas não haviam sucumbido – ou se “deixa(do) paralisar” pelos “esquemas paralisantes” (Brito, 1997, p.54). Logo, tanto o “poemão” dos anos setenta quanto a coleção Frenesi, deixam entrever não apenas uma experiência subjetiva, mas, sobretudo, uma experiência histórica de resistência. Quando a censura exigiu o rompimento dos laços entre cultura e política, resistir a esta ruptura, por si só já significava um ato de coragem, como explica Renato Franco. Nesse sentido, Grupo Escolar pode ser lido como um “texto-testemunho” ou um “texto-sintoma” que amplifica, como uma caixa de ressonância, uma outra história do Brasil, muito diferente da oficial (Viñar, 1992, p. 125). Nesse ponto, é interessante pensar com Seligmann-Silva para quem a literatura, lato sensu, guarda um “teor testemunhal” que precisa ser devidamente considerado (2003, p. 8). Em outras palavras, dizer que há um “teor testemunhal” latente nos versos de Grupo Escolar significa reconhecer a possibilidade de ler a escritura poética como uma “grafia da memória” ou como uma “historiografia baseada na memória” (Seligmann-Silva, 2003, pp. 389 e 395). Nesse sentido, a visão da história a partir da memória, essa espécie de amontoado de escombros ou ruínas, sinaliza a impossibilidade da totalidade e denuncia sua “falsa aparência” (Seligmann-Silva, 2003, p. 391). A alegoria, por sua vez, guarda semelhanças com essa concepção da história enquanto fragmento, já que pressupõe a desistência de qualquer sentido totalizante. Por outro lado, se os sentidos são determinados pela leitura, são sempre transitórios, fundados na temporalidade do agora. Portanto, a leitura pode ser pensada como um exercício alegórico e melancólico, pois os sentidos são instáveis e sempre nos escapam. Não é por acaso que no livro sobre o barroco, Benjamin não dissocia a alegoria da melancolia, definida como “o sentimento que corresponde à catástrofe em permanência” (apud Seligmann-Silva, 2003, p. 393). Antes, porém, de nos ocuparmos com a alegoria, é preciso entender que a idéia de história como um “amontoado de ruínas” sugere um outro conceito, o de catástrofe (Seligmann-Silva, 2003, p. 391). A realidade, entendida como catástrofe, questiona as possibilidades da representação nos moldes tradicionais. Posto de outra maneira: a forma tradicional de representação que garantia a diferenciação entre história e ficção fica abalada em sua fundamentação diante da perspectiva da realidade como catástrofe ou como trauma. Portanto, essa “virada freudo-kantiana” inaugura um novo paradigma: ao invés de “centralizar a reflexão sobre os modos de reproduzir a realidade”, questiona-se “a possibilidade mesma de se experienciar essa realidade” (Seligmann-Silva, 2000, p. 83). O que está em jogo agora são os limites e as possibilidades da representação. É por isso que uma das características do testemunho é a tensão (ou double bind) entre a necessidade e a impossibilidade da representação. Em tempo: o conceito de trauma – entendido aqui via Freud como um acontecimento que não pode ser assimilado nem enquanto ocorre, tampouco posteriormente, a não ser de modo precário, problematiza também a “possibilidade de um acesso direto ao ‘real’” (Seligmann-Silva, 2000, p. 85). Se o trauma é “uma ferida na memória”, Grupo Escolar pode ser lido como um inventário de cicatrizes (Seligmann-Silva, 2000, p. 84). A tentativa de representação sem metáforas, a literalidade extrema, o “excesso de realidade”, vislumbrados em alguns poemas deste livro de 1974 poderiam ser entendidos como sintomas de uma realidade traumática (Seligmann-Silva, 2000, p.92). Vejamos:

O futuro já chegou

- Como foi?
- Com revólver, arrebentou
a cabeça. E nem o sangue bastou
pra desatar seus cabelos.
O desespero cortou-se
pela raiz.
- Impossível, como foi?
- Assim.
- Mas como?
- Dizia que estava desanimado,
que as coisas não faziam sentido.
Ultimamente
já nem saía de casa.
“O futuro já chegou”: o advérbio “já” remete ao agora, ao instante da enunciação. Portanto, o futuro anunciado no título do poema perde sua dimensão temporal de porvir, do que há de suceder após o presente. Qualquer possibilidade de projeção está delimitada pelo advérbio “já”. Logo, não há futuro. O futuro condensa-se em uma cena, presente, que passa diante dos olhos do leitor que testemunha um acontecimento. O poema constrói-se na forma de um diálogo entre sobreviventes, em que um dos interlocutores transmite a notícia de um suicídio, que provavelmente testemunhou na condição de “testemunha secundária”. Aqui a perspectiva do testemunho não é a da vítima, mas de alguém próximo a ela. Como explica Seligmann-Silva, nesse caso, a “testemunha é pensada segundo a noção de testis, de um terceiro que seria citado diante do tribunal para dar sua versão dos ´fatos´”. Nesse sentido, o poema funciona menos como uma espécie de tribunal e mais como tentativa de apreensão e de representação de uma situação traumática. A voz que sentencia no poema pode ser a de um “superstes” ou “mártir” (sobrevivente) que remete ao duplo sentido de “testemunha ocular” e de “alguém que passou pela experiência extrema da dor” (Seligmann-Silva, 2005, p.84).

- Com revólver, arrebentou
a cabeça. E nem o sangue bastou
pra desatar seus cabelos.
O desespero cortou-se
pela raiz.
A descrição crua, literal, do acontecido remete à “incapacidade de traduzir o vivido em imagens ou metáforas” (Seligmann-Silva, 2005, p.85). A tentativa de apreender a situação traumática pode guardar semelhanças com o trabalho de “perlaboração” de Freud. Em outras palavras: o esforço narrativo, condensado no poema, ao tentar simbolizar o “real” – estamos bem distantes da imitação da realidade pressuposta no conceito de mímesis – revela-se como uma espécie de manifestação do “real”. Como explica Seligmann-Silva, não se trata de uma “transposição imediata do real” para a literatura, mas de uma “passagem para o literário” em que o “real resiste à simbolização” (2003, pp.382-383). A realidade “excessiva”, concebida como trauma, difícil de ser assimilada, expõe o poema-ferida: a linguagem funciona como uma espécie de alquimia verbal poderosa, capaz de revelar e curar, expurgando em versos todo o pus de um país inflamado. Desinflamar, através da linguagem, as feridas abertas de um país traumatizado seria, portanto, uma forma terapêutica de assimilar a cena, isto é, uma tentativa de dar forma a uma violência “sem-forma” que transcende os limites da percepção e põe em xeque os próprios limites da representação.

- Impossível, como foi?
- Assim.
- Mas como?
A dificuldade que o interlocutor encontra em acreditar na veracidade dos fatos pode ser entendida como uma forma de recusa, portanto, de não assimilação, de não aceitação do “real” do poema. O testemunho, por definição, “só existe na área enfeitiçada pela dúvida e pela possibilidade da mentira” (Seligmann-Silva, 2003, p.374). A própria possibilidade de questionar, de não aceitar uma determinada versão dos fatos, desestabiliza as outras versões, problematizando também o conceito de verdade. O advérbio “assim” funciona como uma espécie de vazio discursivo a confirmar que tudo transcorreu como o narrado, em tal grau, do mesmo modo. O “mas” sinaliza a objeção, a dificuldade de elaborar a violência do suicídio e que demanda outras explicações: mas como? De que modo? A que preço?

- Dizia que estava desanimado,
que as coisas não faziam sentido.
Ultimamente
já nem saía de casa.
A falta de sentido: a dificuldade de dar forma à violência. A reclusão como recusa: isolamento de um mundo adverso, sem sentido. A violência como norma aniquila (des-anima: tira o ânimo: coragem, espírito, alma, valor, intenção, desejo) o sujeito de várias formas. Podemos entender o desfecho do poema como uma possível sucessão de três momentos. Segundo Marcelo Viñar, à destruição dos valores e das convicções do sujeito segue-se o que chamou de “demolição”, isto é, a desorganização do sujeito consigo mesmo e com o mundo. Depois da “demolição” o sujeito precisa resolver a experiência limite. A morte seria uma forma radical de resolução subjetiva quando o mundo muda de signo.
Na seqüência, um poema alegórico. Sucintamente, interessa reter que a alegoria (de allo, outro e agorein, dizer) possibilita descobrir um sentido encoberto, inter-dito, recalcado sob o véu das palavras. A alegoria, ao instaurar a possibilidade de um dizer outro, diferente do sentido imposto, abre um espaço de liberdade polissêmica, “insist(indo) na sua não-identidade essencial”, isto é, na dissociação entre significante e significado (Gagnebin, 2004, p.38). Portanto, se a alegoria foge de um sentido único, a leitura de um poema alegórico pode ser entendida como um atentado ao poema, pois tende a fixar um sentido possível. Por outro lado, a ausência de referente último inaugura a possibilidade de novas leituras. Porém, diante da alegoria qualquer leitura é melancólica, pois reconhece a impossibilidade do sentido definitivo. Benjamin, em seu livro sobre o drama barroco alemão, ensina que o sentido não nasce somente da vida, mas que “significação e morte amadurecem juntas” (1984, p.188). Somente a morte põe fim ao jogo dos sentidos, o que pode remeter ao trágico final do poema anterior (vida x morte, sentido x não-sentido). Estamos agora novamente diante da morte, mas a de um corpo torturado. Antes, porém, lembremos que a alegoria, no sentido forte benjaminiano, parte sempre da fragmentação e da “desestruturação da enganosa totalidade histórica”, desenterrando sentidos excluídos ou esquecidos pela história oficial (Gagnebin, 2004, p.43).

Aquarela

O corpo no cavalete
é um pássaro que agoniza
exausto do próprio grito.
As vísceras vasculhadas
principiam a contagem
regressiva.
No assoalho o sangue
se decompõe em matizes
que a brisa beija e balança:
o verde – de nossas matas
o amarelo – de nosso ouro
o azul – de nosso céu
o branco o negro o negro
Aquarela: aqui se trata de um quadro lutoso ou de uma aquarela em preto e branco. Contra a “Aquarela (ufanista) do Brasil” de Ari Barroso e que ficou conhecida pela voz de Gal Costa.

O corpo no cavalete
é um pássaro que agoniza
exausto do próprio grito.
As vísceras vasculhadas
principiam a contagem
regressiva.
Trata-se da descrição alegórica de uma cena de tortura. O substantivo “cavalete”, mantida a ambigüidade, remete ao instrumento de tortura, mas também faz alusão ao tripé utilizado para apoiar a tela. A pintura, porém, se fará com tintas diferentes. O “corpo” definido como “pássaro que agoniza” é um corpo moribundo, torturado. Atentar contra a integridade do corpo, através da tortura, é desarticular corpo e linguagem, ou seja, as “estruturas arcaicas constitutivas do sujeito” (Viñar, 1992, p.73). A tortura é uma espécie de escrita da história no martírio dos corpos. Portanto, é possível escutar no sofrimento do sujeito a violência da história. Metáfora da liberdade por excelência, a imagem do pássaro agonizante não poderia ser mais contundente. O som da dor (grito) atravessa esses primeiros versos, sinalizando o limite da exaustão física e psicológica. Os últimos suspiros da vida – agora em contagem regressiva- têm início com o corpo torturado, sinalizado pelas “vísceras vasculhadas”. A intensidade da dor física e a privação sensorial levam à “demolição” que, como num crescente, ecoa nos versos iniciais para depois silenciar com o absurdo da morte:

No assoalho o sangue
se decompõe em matizes
que a brisa beija e balança:
o verde – de nossas matas
o amarelo – de nosso ouro
o azul – de nosso céu
o branco o negro o negro
As cores da aquarela são feitas de sangue, na escuridão de algum porão e pintam uma outra história do país, decomposto em matizes que o discurso oficial tende a anular, em favor da predominância de cor (e vale o trocadilho: de uma dada memória). Porém, a aquarela, enquanto técnica de pintura, permite que as cores se sobreponham, sem que se anulem. A tríade “brisa beija e balança” faz ressoar aquela idealização verde-amarela repisada em nosso cancioneiro e, principalmente, em nossa literatura canônica primeiro-romântica. A assonância bilabial (brisa beija e balança) evoca a possibilidade da festa, da dança, do samba e do carnaval, topoi conhecidos quando se trata de idealizar o país. O momento mais sonoro do poema trata dessa idealização que se opõe, imediatamente, ao mais fundo silêncio sugerido pela força das imagens. É como se os sentidos do poema exigissem o avesso da sonoridade. O sangue decomposto tinge as cores da bandeira nacional, o verde, o amarelo e o azul relembram nossas belezas naturais e nossos recursos. Em meio às cores (im)puras, o branco, sem adjetivos, nega a paz, o pássaro, invertendo seu sentido: o luto é branco, negro, negro. Portanto, o lábaro que essa poesia ostenta é bem outro e só faz confirmar o que as “aparências revelam”: que “há na violência que a linguagem imita algo da violência propriamente dita” (Brito, 2002, p.155).
Contra o historicismo “servil” ou “conformista” que se identifica com o “cortejo triunfante dos dominantes”, Benjamin propunha-se a “escovar a história a contrapelo” (Tese VII, apud Löwy, 2005, p.70). A expressão benjaminiana, de um “formidável alcance historiográfico e político”, como ressalta Michael Löwy, pressupõe duas dimensões: uma histórica que instaura a necessidade de “ir contra a corrente da versão oficial da história” e outra política que entende que se a história for “acariciada no sentido do pêlo”, produzirá “novas guerras, novas catástrofes, novas formas de barbárie e de opressão” (2005, p.74). Portanto, resistir em versos contra uma situação opressora é uma das formas de “escovar a história a contrapelo”, mostrando uma outra versão ou, como diz Cacaso, a “verdadeira versão” – sempre muito subjetiva - dos fatos (2002, p. 151). Nesse sentido, a poesia encarada como resistência a uma situação adversa ganha em amplitude ao transcender o propriamente estético, compreendendo uma ética que não suporta formas arbitrárias de poder e que se indigna diante de qualquer ato de barbárie. Ainda que o alcance efetivo da poesia seja bastante questionável enquanto força agenciadora de transformação social, mesmo assim, ensina um poeta saído do Grupo, é preciso “já sem resistência, resist(ir)” (Brito, 2002, p. 169). A impossibilidade de passar a limpo a poesia de maneira definitiva, isto é, de se livrar dos rascunhos, supõe uma concepção de história necessariamente aberta, sempre a se construir, ainda que a partir da libertação das imagens recalcadas no limbo da memória. Nesse sentido, a poesia política, com toda sua dimensão crítica, também mobiliza uma política da poesia e, conseqüentemente, da leitura.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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HOLLANDA, Heloisa Buarque de. (Org.). 26 Poetas Hoje. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1998.
_______. “A hora e a vez do Capricho”. In: GASPARI, Elio, VENTURA, Zuenir e HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Cultura em Trânsito: da repressão à abertura. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000, pp. 202-205.
LÖWY, Michael. Walter Benjamin: aviso de incêndio: uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” . Trad. Wanda Nogueira Caldeira Brant, Jeanne Marie Gagnebin, Marcos Lutz Müller. São Paulo: Boitempo, 2005.
PEREIRA, Carlos Alberto Messeder. Retrato de Época: Poesia Marginal Anos 70. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1981.
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_______. (Org.). História, Memória, Literatura: o Testemunho na Era das Catástrofes. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.
_______. O Local da Diferença: Ensaios sobre Memória, Arte, Literatura e Tradução. São Paulo: Editora 34, 2005.
VIÑAR, Maren e Marcelo. Exílio e Tortura. Trad. Wladimir Barreto Lisboa. São Paulo: Escuta, 1992.

1 Doutoranda em Teoria e História Literária no Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). E-mail: debora_racysoares@yahoo.com.br
Este trabalho foi apresentado no XI Encontro Regional da ABRALIC, em julho de 2007.
2Como as páginas da primeira edição do livro Grupo Escolar não são numeradas, preferimos utilizar como referência para citação o volume Lero-Lero (2002), reedição completa da obra poética de Cacaso.
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