A PERSONALIDADE AUTORITÁRIA EM “OS DEMÔNIOS” DE DOSTOIEVSKIAlexandre M. Botton1 Penso que o diabo não existe e foi por conseguinte criado
pelo homem, este deve tê-lo feito à sua imagem. Ivan Karamázov. Resumo: Este artigo procura analisar, a partir do romance Os Demônios, a forma como o escritor russo Fiódor Dostoiévski compreendeu e retratou o “fenômeno” denominado pela teoria crítica como personalidade autoritária. Neste intuito, confrontaremos passagens do romance de Dostoiévski com algumas idéias desenvolvidas pelos teóricos Theodor Adorno e Max Horkheimer, principalmente a partir do texto “Teoria Freudiana e o Padrão da Propaganda Fascista”. Assim, daremos atenção também ao conceito freudiano de psicologia das massas, porém, sempre pelo viés de Adorno e Horkheimer. Por fim, o texto aponta para a atualidade, não apenas da temática do romance, mas da própria estrutura polifônica da obra que, por seu caráter dialógico, soa como resistência ao autoritarismo que paira inclusive sobre a humanidade esclarecida.
Palavras-chave:personalidade autoritária, polifonia, crítica, fascismo. Abstract: This article aims to analyze, based on the novel The Possessed, how the Russian writer Fyodor Dostoyevsky has understood and pictured the “phenomenon” named by critical theory as authoritarian personality. To this aim we will face passages from the Dostoyevsky’s novel against some ideas developed by theorists Theodor Adorno and Max Horkheimer, mainly from the text “Freudian Theory and the Pattern of Fascist Propaganda”. Thus, we will also pay attention to the Freudian concept of crowd psychology, though always through Adorno and Horkheimer’s bias. Finally, the text indicates the modernity not only of the novel’s thematic, but also of the polyphonic structure of the work itself which, for its dialogical feature, sounds like resistance to the authoritarianism that hovers inclusively over the enlightened humanity. Keywords: authoritarian personality, polyphony, criticism, fascism. IAs conturbadas personagens criadas pelo escritor russo do século XIX, bem como os dilemas destas personagens são, segundo o biógrafo Joseph Frank, uma “mina de ouro para o exercício da psicanálise” (Frank, 1999: 469). Ainda mais quando o próprio Freud chegou a afirmar que Dostoiévski “não pode ser compreendido sem a psicanálise – isto é, [ele] não precisa dela, por que ele mesmo a ilustra em cada personagem e em cada frase”(Freud, apud Frank, 1999: 469). Aparte alguns exageros possivelmente cometidos por Freud ao analisar a personalidade de Dostoievski2, é reconhecida a importância da psicanálise para compreender com profundidade o caráter denso das personagens criadas por Dostoiévski. Faremos, porém, uma leitura pouco sistemática de algumas teorias freudianas, pois, na verdade, o que nos interessa são os estudos sobre a personalidade autoritária, desenvolvidos por Adorno e Horkheimer, que ultrapassam as teses freudianas sobre a psicologia de massas, embora as tomem como fundamento. Partiremos, pois, de algumas leituras “psicanalíticas”, feitas pelos autores supracitados, e nos remeteremos a passagens do romance Os Demônios de Dostoiévski, na tentativa de compreender o que nele há de “profético”: a forma como Dostoiévski expressa no enredo dessa obra um aspecto salutar e, por assim dizer, catastrófico da humanidade esclarecida, isto é, seus elementos de barbárie.3
IINo posfácio à edição brasileira de 2004 de Os Demônios, o tradutor Paulo Bezerra contextualiza a obra e, por assim dizer, ressalta seus aspectos proféticos, principalmente a semelhança entre as personagens “demoníacas” e históricas figuras autoritárias como Hitler e Stalim. Elementos sobressalentes à persuasão e ao poder, digamos, “cativante” dos sistemas autoritários parecem surpreender pela atualidade com que são “antecipados” neste romance de 1871. Além, é claro, do complexo caráter do líder autoritário Piotr Stiepánovitch, excepcionalmente construído pelo romancista, é notória a forma como ele percebeu e caracterizou o séqüito de discípulos dispostos a segui-lo. Nestas personagens, há algo mais profundo que a simples idéia de uma grande massa seduzida pelos ideais de um falso profeta, arauto do enganoso paraíso terrestre. Há, sem dúvida, elementos psicológicos e sociais que promovem a identificação entre Piotr e personagens apáticos, como o “sensível, afetuoso e bom Erkel,” (Dostoiévski, 2004: 558) rapaz jovem que repartia com a mãe doente “mais da metade de seu insignificante soldo.” (Dostoiévski, 2004: 648). Pois este jovem chegara a ser dos mais fanáticos4, de forma que era capaz e até desejava submeter-se à vontade alheia em prol da causa comum; e isso a tal ponto que não conseguia “compreender o serviço prestado a uma idéia senão como a fusão desta com a pessoa que, segundo ele, traduz essa idéia” (Dostoiévski, 2004: 558).
Inicialmente Dostoiévski não pretendia escrever mais do que uma “resposta à queima-roupa” (Bezerra, 2005: 691) à organização clandestina Justiça Sumária do Povo, em virtude do brutal assassinato do jovem I. I. Ivanov que, ao que tudo indica, teria se desligado do grupo movido por convicções próprias. Com o tempo, a proposta se amplia, ganha corpo e forma própria. Além do mais, o próprio Dostoievski havia participado de uma organização socialista revolucionária que lhe rendeu quatro anos de prisão em regime de trabalhos forçados na Sibéria. Por mais que sejam apontadas diferenças entre essas duas organizações, o fato é que Dostoievski, sem perder a identidade com o sofrimento do povo russo que o levara a militar em uma sociedade secreta, passa a olhar e compreender de forma diferente as diversas organizações clandestinas de seu tempo após os anos de Sibéria.
Neste romance, Dostoievski lança mão de uma espécie de “autor-cronista e narrador que não apresenta quase nenhuma semelhança com o autor real.” (Bezerra, 2005: 76). Doravante, o autor-cronista ao referir-se à narrativa irá denominá-la “minha crônica” e ao desenrolar dos acontecimentos o que se destaca é, por vezes, a própria impressão do autor-cronista sobre os acontecimentos; seja no presente ou como previsão do futuro. Este movimento, que só pode ser produzido pela presença do autor como testemunha da própria narrativa, visa a ressaltar o caráter de verossimilhança da obra. Isto é, ao recriar uma história e, sobretudo, impregná-la de aspectos não perceptíveis ou inexprimíveis no mero relatar dos fatos, o autor usa a figura do autor-cronista como uma espécie de testemunha, para recriar ficcionalmente, em um caso particular, o todo que move a própria realidade vivida. Ou como bem resume Bezerra:
O cronista narra ora em simultaneidade com os acontecimentos que vive, ora acrescenta o que soube depois, e ao fundir esse antes e esse depois em um continuum, cria um movimento pendular que leva o leitor a sentir a proximidade da história narrada e envolver-se com ela (Bezerra, 2005: 76). Em seu reconhecido Problemas da poética de Dostoievski, Mikhail Bakhtin enfatiza, em Dostoiévski, uma significativa mudança de enfoque em relação ao que poderíamos denominar de “Romance Homofônico Tradicional”. Assim, no epicentro da teoria de Bakthin está a construção polifônica dos romances dostoievskianos. Segundo esta teoria, a voz do herói criado por Dostoiévski “possui independência excepcional na estrutura da obra, é como se soasse ao lado da palavra do autor, coadunando-se de modo especial com ela e com as vozes plenivalentes de outros heróis“ (Bakthin, 2002: 05). Neste ponto, a própria construção do romance polifônico em Dostoievski sugere uma tentativa de superação do monólogo, da idéia ou verdade última à qual tudo deve convergir no romance monológico convencional. O narrador e o autor, não são mais capazes de responder com precisão `a personagem sobre quem ela é: “à consciência todo-absorvente da personagem o autor pode contrapor apenas um mundo objetivo – o mundo de outras consciências isônomas a ela.” (Bakhtin, 2002: 49).
IIIEm um texto intitulado Teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista5, que discute não apenas a propaganda fascista em si, mas também os elementos que fomentam e definem os meios de propagação do fascismo, os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer usam de teorias psicanalíticas de Freud para compreender a chamada psicologia de massas como base estrutural do autoritarismo. Segundo eles, o propósito universal entre os agitadores fascistas é “instigar o que, desde o livro famoso de Gustave Le Bon, é comumente conhecido como psicologia das massas.” (Adorno/Horkheimer: 2007). Deste modo, procuram com o auxílio da psicanálise desvendar elementos sistemáticos e “rigidamente estabelecidos” que formam um limitado, porém eficiente, estoque de dispositivos empregados na propaganda fascista. É perceptível, logo no princípio do texto, que a ênfase do estudo não está apenas nos dispositivos propriamente ditos, mas nas condições que tornam eficientes estes limitados dispositivos, ultrapassando assim as teorias do próprio Freud.
Em Os Demônios, devemos destacar que, apesar da facilidade com que Piotr circula e influencia a sociedade de seu tempo e, embora seja um homem esperto, de raciocínio rápido e hábil no trato com a palavra, não é o ideal ou o projeto político anunciados por ele que o tornam o engenhoso e tirânico líder de sua facção. Ao contrário, ele chega até a refutar qualquer teoria que possa sistematizar o objetivo concreto da organização, da qual se intitula apenas mais um dirigente. Assim, em reunião com os seus, para pôr fim às discussão que se alastravam entre o grupo, ele propõe, por exemplo, que ele deveriam abandonar “o caminho lento da escrita de romances sociais e da pré-solução burocrática dos destinos humanos, no papel, com mil anos de antecedência” ( Dostoiévski, 2004: 397) e adotar a “ação urgente, qualquer que seja, mas que finalmente desatará as nossas mãos e deixará que a sociedade humana construa ela mesma, com ampla liberdade sua organização social” (Dostoiévski, 2004: 397). Pois, segundo sua dramatizada caracterização da realidade, a Rússia estaria de fato doente e requereria uma intervenção cirúrgica rápida, sem prévia teorização.
Freud, para compreender justamente este tipo de organização, propõe-se a analisar a formação das massas6. Segundo ele, o vínculo entre o grupo e seu líder não se dá apenas no plano dos ideais, da persuasão ou, como o próprio Le Bon queria, por meio da sugestão; de maneira que, a idéia de um instinto social ou de rebanho, que estaria por trás da formação das massas, deve ser visto não como causa, mas como o efeito de um fenômeno que envolve causas psicológicas mais profundas. Contudo, “se os indivíduos no grupo estão combinados em uma unidade, deve haver, seguramente, algo para uni-los, e este vínculo poderia ser precisamente o que é característico de um grupo.” (Adorno/Horkheimer, 2007). Enfim, a questão é: qual o vínculo que une as massas em torno de uma autoridade comum e faz o indivíduo abdicar de si mesmo, isto é, de sua autonomia, e, assim procedendo, obedecer aos desígnios de um líder autoritário?
Para Freud, a unidade das massas se dá não tanto por vínculos racionais quanto por princípios de prazer, pelas gratificações reais ou fictícias resultantes da total aniquilação do eu em favor do grupo. A auto-renúncia deve resultar em “uma experiência prazerosa para os participantes que se renderem tão ilimitadamente às suas paixões e forem absorvidos no grupo e perderem assim os limites de sua individualidade.” (Freud, apud Adorno/Horkheimer, 2007)
Outra condição básica na formação de grupos autoritários, é que o indivíduo encontre no grupo condições que lhe permitam se livrar das pressões de seus instintos inconscientes, reprimidos pela sociedade. Este indivíduo não é o homem primitivo redescoberto, porém o que é pior, a sua erupção permitida, controlada e canalizada pelo grupo, principalmente nas relações com o líder que, invariavelmente, personifica o próprio grupo. Assim, “como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a recorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela civilização.”(Adorno/Horkheimer: 2007).
A transformação da libido no elo responsável pela união entre os seguidores de um grupo e o líder e comandados é estudada por Freud a partir do princípio de “identificação” que os une. “A identificação é a expressão mais primitiva de uma ligação emocional com outra pessoa, desempenhando um papel na história inicial do complexo de Édipo” (Adorno/Horkheimer, 2007). Inicialmente, o seguidor tende a ver na personalidade do líder uma espécie de ampliação de sua própria personalidade, assim, na medida em que aumenta a adesão e diminui a capacidade crítica frente ao grupo, cresce também a aproximação entre a figura do líder e o eu ideal projetado por seus comandados. Por fim, o seguidor tende a alienar a sua própria vontade em detrimento da vontade do líder. Daí que, segundo Freud, o narcisismo está na base do princípio de identificação que, artificialmente, une comandados e comandantes como se entre eles realmente houvesse algum consenso, algum objetivo comum a ser alcançado. Enfim, “fazendo do líder seu ideal, o sujeito ama a si mesmo, mas se livra das manchas de frustração que estragam a imagem que tem do seu próprio eu empírico.” (Adorno/Horkheimer, 2007).
É claro que, deste modo, a causa comum ou qualquer ideal estatuído pelo grupo torna-se, na verdade, apenas o pretexto para a experiência de pertencimento ao grupo, com todas as promessas de realização e satisfação que dela resultam. É esta experiência de pertencimento o verdadeiro grilhão do grupo. A identificação aparece então como o instintivo “ato de devorar, de tornar o objeto amado parte de si mesmo.” (Adorno/Horkheimer, 2007).
Porém, Piotr Stiepánovitch, não possui todas aquelas qualidades que fariam dele um líder capaz de mover as massas. Se em Piotr está a articulação das massas, ele é demasiado “comum” para poder figurar como o super-homem, isto é, como o eu ideal do grupo, que o líder deve ser. Neste ínterim, o jovem e presunçoso aristocrata Nicolai Stavróguin, temido e respeitado tanto pela aristocracia quanto pelo povo é, na imaginação de Piotr, quem deveria servir de imagem do grande líder que surgiria triunfante após a total destruição do Estado aristocrático.
Somente Nicolai é belo e “orgulhoso como um Deus.” Mas, o principal, segundo Piotr, é a lenda, isto é, a imagem que se pode construir a partir dele segundo a sua posição em relação à sociedade e à imagem que o povo faz dele. Aqui cabe ainda considerar que: “A agitação fascista está centrada na idéia do líder, não importando se ele lidera de fato ou se é apenas um mandatário de interesses do grupo, porque apenas a imagem psicológica do líder é apta a reanimar a idéia do todo-poderoso pai primitivo.” (Adorno/Horkheimer, 2007). Este é, pois, o papel de Nicolai: portar a imagem do grande líder. Na verdade, Piotr depende tanto deste “aristocrata rebelde” que, ao perceber a possibilidade da recusa de Nicolai em participar da organização secreta, alterado como se estivesse bêbado, passa desnudar o verdadeiro laço que os une:
Stavróguin, você é belo - bradou Piotr quase em êxtase – Você sabe que é belo! o mais valioso em você é que as vezes você não sabe disso. Oh! Eu o estudei! Freqüentemente eu o olho de lado, de um canto! Em você há até simplicidade e ingenuidade, sabia disso? Ainda há, há! Vai ver que você sofre, sofre sinceramente com essa simplicidade. Amo a beleza. Sou niilista mas amo a beleza. Por ventura os niilistas não amam a beleza? Eles só não gostam de ídolos, mas eu amo o ídolo! Você é meu ídolo! Você não ofende a ninguém e no entanto o odeiam; você vê a todos como iguais e todos o temem, isso é bom. Ninguém chegará a você e lhe dará um tapinha no ombro. Você é um tremendo aristocrata! Quando o aristocrata caminha para a democracia ele é encantador! Para você nada significa sacrificar a vida, a sua e a dos outros. Você é justamente a pessoa de que preciso. Eu, eu preciso justamente de alguém assim como você. Não conheço ninguém assim a não ser você. Você é o chefe, o sol, e eu sou seu verme [...] (Dostoiévski, 2004: 408) Era essa imagem, arraigada à figura de Nicolai, de que Piotr necessitava, já que Nicolai sempre fora visto pela sociedade com uma mistura de veneração e medo. Ora, os planos da organização incluíam, em ordem crescente: proliferar por toda Rússia seus pequenos e obedientes grupos; levantar um grande e generalizado motim contra o Estado e usurpar o poder da aristocracia tendo por base um messiânico apoio popular. É visível que, para o coroamento destas ações, a peça chave era mesmo Nicolai, isto é, aquele que porta a imagem de super-homem, ausente em Piotr. Ele parece de fato intuir aquilo que Freud, mais do que Le Bon, chamaria de psicologia das massas.
Enquanto Chigalióv, uma espécie de teórico do grupo, preocupava-se em criar um novo modelo de sociedade, Piotr, como homem de ação que era, antes queria vê-la funcionar. Ele sabia que não eram as idéias de Chigalióv, embora aceitas pelo grupo, que fariam a organização secreta vigorar e espalhar-se por toda a Rússia. Eles só chegariam ao poder se pudessem cativar todos aqueles que, renunciando a si mesmos, se entregassem apaixonadamente ao grupo. Isso conduziria, posteriormente, à conquista de toda a população descontente com a aristocracia. Para tanto, Piotr necessitava de um líder apto a “encarnar” a figura do novo e autêntico “Czar”, o Verdadeiro Ivan Czarievitch, “uma lenda”. Assim, Piotr tenta acaloradamente convencer Nicolai da importância fundamental de sua figura neste processo:
Ouça, não vou mostrá-lo a ninguém, a ninguém: assim é preciso. Poderíamos mostrar a um só em cem mil, por exemplo. E por toda a terra se espalharia: “vimos, vimos”. [..] O principal é a lenda! Você os vencerá, lançará um olhar, vencerá. Traz uma nova verdade e está escondido. E aí lançaremos mão a uma, duas ou três sentenças de Salomão... (Dostoievski, 2004: 411) Neste contexto, insere-se também a necessidade extrema de se consolidar dentro do grupo um rígido sistema hierárquico, com enfoque na obediência cega e injustificada. Tudo para promover a devida identidade do grupo, tão necessária quanto menor for o elo natural que o une. Conjuntamente à hierarquia, reside a mistificação e a utilização das relações in-group, como forma de afirmar continuamente a submissão do indivíduo e sua dependência total em relação ao grupo, bem como a ilusão do fortalecimento individual. Todo aquele que deseja pertencer ao grupo deve, primeiramente, dar mostras de sua incondicional submissão, de maneira que, todo ritual de iniciação, por exemplo, marca ao mesmo tempo o pertencimento e a aceitação pacífico-masoquista da ordem pré- estabelecida.
A necessidade de hierarquia é, assim, definida por Piotr a Nicolai:
Vou Fazê-lo rir: a primeira coisa que surte um efeito terrível é o uniforme. Não há nada mais forte que um uniforme. Eu invento de propósito patentes e funções: tenho secretários, agentes secretos, um tesoureiro, presidentes, registradores e suplentes – a coisa agrada muito e foi magnificamente aceita. A força seguinte é o sentimentalismo, é claro. Sabe, entre nós o socialismo vem se difundido predominantemente por sentimentalismo. [...] por fim a força mais importante – o cimento que liga tudo – é a vergonha da própria opinião. Isso sim é que é força. (Dostoiévski, 2004: 375) A auto alienação no grupo, além de fatores como identificação e hierarquia, necessita de outro dispositivo que acaba por conferir maior solidez e, principalmente, desenvolve plenamente o potencial terrorista dos grupos autoritários. Aqui entra a questão acerca da necessidade que grupos fascistas possuem em combater àqueles que lhes são estranhos; os assim denominados out-grups. Cria-se, no interior do grupo, a necessidade de representar o diferente como a causa de tudo o que há de “errado” nos atuais condições de existência. Assim, os líderes tratam logo de encontrar uma credencial que “explique” tal suposição: a “inferioridade e o retrocesso” de determinadas “raças” em face à evolução e à superioridade ariana pregada por Hitler é o exemplo mais gritante deste dispositivo. Adorno e Horkheimer o denominam dispositivo joio e trigo, pois visa demarcar e caracterizar o diferente como o nefasto a ser combatido, o que novamente requer a unidade incondicional e inquestionável do grupo. Ainda, segundo observam estes autores, essa distinção in-goup e out-goup é tão forte que atinge até grupos que aparentemente nada têm de fascista. Segundo Freud, o cristianismo, por exemplo, é “do mesmo modo, uma religião do amor para todos aqueles a quem abraça; enquanto que crueldade e intolerância em relação àqueles que não pertencem a ela” (Freud, apud Adorno/Horkheimer, 2007). A submissão e anulação do sujeito ao grupo e, conseqüentemente, a recusa a tudo aquilo que representa a contrariedade aos ideais do grupo, tende a petrificar-se à medida que abre mão de qualquer conteúdo objetivo que pudesse fundamentar a união do grupo além, é claro, da aversão ao “nefasto” inimigo comum.
O dispositivo “joio e trigo” pode ser pensado, ainda, na perspectiva daqueles elementos narcisistas que despertam a simpatia entre seguidores e líder, pois, se, por um lado, em relação ao líder havia mesmo uma projeção do amor próprio, uma tendência a identificar nele aquilo que compõe o eu ideal no seguidor; por outro lado, em relação aos out-groups, a atitude é de repulsa, potencializada pela necessidade de se auto-afirmar, isto é, pelo medo e pela insegurança. Resultante disso é o sentimento de superioridade que todo membro do grupo sente em relação aos excluídos do grupo. Sentimento este largamente incentivado por aqueles que mais se “doam” ao grupo. Isto esclarece também a salutar importância agregada à uniformidade e à submissão à ordem hierárquica, da maneira como foi propagada por Piotr em Os Demônios. De fato, parece que a personagem de Dostoiévski também estava correta quanto ao potencial aglutinador da anulação da consciência individual frente à consciência do grupo. Algo semelhante percebeu Freud ao constatar que: “Enquanto a formação do grupo persistir ou pelo período em que ela se estender, os indivíduos se comportam como se fossem uniformes, toleram as peculiaridades de outras pessoas, colocam-se no mesmo nível, e não têm aversão em relação a elas.” (Freud, apud, Adorno/Horkheimer, 2007).
A homogeneização promovida pelo grupo é responsável ainda por certo “igualitarismo malicioso” comumente deflagrado em meios autoritários e populistas, mesmo quando camuflados em couraça democrática. Esta é, sem dúvida, a igualdade propagada por Chigalióv, o teórico do grupo. Segundo Piotr,
No esquema dele [Chigalióv] cada membro da sociedade vigia o outro e é obrigado a delatar. Cada um pertence a todos e todos a cada um. Todos são escravos e iguais na escravidão. Nos casos extremos recorre-se à calúnia e ao assassinato mas o principal é a igualdade. (Dostoiévski, 2004: 407) Todavia, a falsidade do senso de igualdade e do espírito de grupo, geralmente mais sutis que a idéia de Chigáliov, são diretamente proporcionais à anulação da consciência individual ao grupo e refletem, conseqüentemente, no ódio e na exigência da eliminação de todos aqueles que, ousando pensar por conta própria, denunciam a ordem pré-estabelecida.
Nas antipatias e aversões indisfarçadas que as pessoas sentem em relação aos estrangeiros com quem entram em contato podemos reconhecer a expressão do amor-próprio do narcisismo. Este amor próprio trabalha para a auto-afirmação do indivíduo, e se comporta como se o aparecimento de qualquer divergência em reação a suas linhas particulares de desenvolvimento envolvesse uma crítica e uma solicitação de mudança nas mesmas. (Freud,apud Adorno/Horkheimer, 2007) Este foi, possivelmente, o real motivo que levou Piotr e seu grupo a assassinar o estudante Chátov. Ele ousou o inadmissível: desviar-se do pensamento comum. Em conversa com Chátov, antes da grande reunião com o grupo, Piotr faz questão de não entender a recusa de Chátov em “prestar contas” ao grupo e tenta enredá-lo em contradições, com o único objetivo de tornar suspeita sua atitude de desligar-se do grupo. É claro que a decisão de eliminar Chátov ganha força total a partir da proposta de Nicolai: “convença a quatro membros do círculo a matarem um quinto a pretexto de que ele venha a denunciá-los e no mesmo instante você prenderá todos com o sangue derramado como se fosse um nó.” (Dostoiévski, 2004: 375). É interessante saber que Stavógrin sugere este crime logo após Piotr ter exposto seu modelo de organização e disciplina do grupo e ter enfatizado que o “cimento” que reforça a unidade da organização é a alienação total do indivíduo ao grupo, ao ponto de cada um ter “vergonha da própria idéia” (Dostoiévski, 2004: 374).
No final da reunião com “os nossos”, depois de astuciosamente convergir as mais díspares opiniões à necessidade de ações imediatas, Piotr propõe uma pergunta cuja resposta definirá, segundo ele, se o grupo deve ou não permanecer unido. A pergunta é: “se cada um de nós soubesse que se tramava um assassinato político, denunciaria, prevendo todas as conseqüências, ou ficaria em casa aguardando os acontecimentos?” (Dostoiévski, 2004: 400). Ao ver a resposta afirmativa emergir, em uníssono, de todos os lados, Chátov abandona a reunião. Esta é, por fim, a prova de que ele não se comprometeu. Ousadamente não se comprometeu! De alguma forma ele parece ter percebido que a anulação da autoconsciência à consciência do grupo significaria a sua morte enquanto sujeito.
IVA união do grupo em torno do assassinato é o momento flagrante que torna Os Demônios uma obra profética. O assassinato planejado e cometido pelo grupo não pode ser realizado sem a total anulação de cada um, em termos adornianos, sem uma parcela de morte interior. A visão do assassinado como “apenas um animal” e, conseqüentemente, como estorvo ao progresso dos ideais do grupo, traz consigo a certeza de que o assassino é também coisificado pelo grupo, diferindo do assassinado apenas no momento em que obedece, isto é, enquanto aceita ser coisificado.
Na sociedade repressiva, o próprio conceito de homem é uma paródia da imagem e semelhança. Faz parte do mecanismo de “projeção prática”, que os detentores do poder só percebam como humano o que é sua própria imagem refletida, ao invés de refletirem o humano como diferente. O assassinato é, assim, a tentativa sempre repetida de, através de uma loucura maior, distorcer a loucura dessa percepção falsa, transformando-a em razão: o que não foi visto como ser humano e no entanto é um ser humano, torna-se uma coisa, para que não possa refutar por nenhum impulso o olhar maníaco. (Adorno, 1993: 91) Os envolvidos no assassinato de Chátov experimentaram a fundo a loucura da qual fala Adorno em Minima Moralia. O uníssono da resposta à voz de comando de Piotr se desfaz frente à dor impingida em cada membro do grupo na véspera do assassinato. Dostoievski os mostra, cada qual em seu canto. É nos momentos de solidão que o peso do poder grupal enfraquece e dá lugar à contradição, à luta interior entre idéias e aos sentimentos que somente na ausência do crivo da reprovação do grupo podem existir.
A súcia lhes rendeu a alcunha de assassinos a partir do momento em que eles, pelas razões acima desenvolvidas, declinaram suas vozes ao coro do grupo. Enfim, como afirmamos de início, a própria estrutura polifônica das obras de Dostoievski, profundamente estudada por Bakthin, é, por si mesma, uma forma de resistência ao autoritarismo diluído nos recôncavos das relações humanas. Assim, dentre as conclusões mais interessantes a que chega este crítico está a de que o romance dostoievskiano é construído a partir do “todo da identificação entre várias consciências dentre as quais nenhuma se converteu definitivamente em objeto da outra” (Bakthin, 2002: 17). Tal conclusão ganha pleno sentido se percebermos, como o fez Bakthin, que este ato de dar voz plena às personagens está intimamente relacionado à preocupação de Dostoievski com os “humilhados e ofendidos”, traduzida em sua obra como “luta contra a coisificação do homem, das relações humanas e de todos os homens dentro do capitalismo” (Bakthin, 2002: 62).
Em Os Demônios, há momentos em que o plano polifônico parece dar lugar à voz única de Piotr, como no momento em que a resposta à voz da multidão toma o espaço do acalorado debate7. No coro da multidão, não é possível gritar sozinho, mas o diálogo (conflito) interior não tem fim, mesmo quando os membros da organização estavam totalmente submetidos o grupo, mesmo depois de todos terem finalmente aceitado ao assassinato como algo necessário. Daí a impossibilidade de assassinar olhando nos olhos.
A obstinação com que desvia de si tal olhar – “é apenas um animal” – repete-se sem cessar nas crueldades cometidas contra seres humanos, nas quais os autores precisam confirmar sempre de novo para si mesmos aquele “apenas um animal”, porque mesmo diante de um animal nunca puderam acreditar nisso por completo (Adorno, 1993: 91). Enfim, talvez seja possível reiterar a idéia de que, em Dostoiévski, a polifonia pode ser interpretada como uma espécie de denúncia e resistência ao autoritarismo; numa interpretação mais próxima da teoria adorniana, ela poderia soar como oposição ao olhar maníaco que transforma o homem em animal e, mesmo o animal, em objeto, tendo o cuidado de não fitar-lhe nos olhos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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2 No primeiro volume de sua famosa biografia sobre Dostoievski, Joseph Frank adicionou em apêndice o artigo intitulado ''O caso Dostoievski, segundo Freud''. Nele, Frank trata de expor várias imprecisões bibliográficas, adotadas como verdadeiras por Freud para sustentar a sua análise da personalidade de Dostoievski, no artigo denominado ''Dostoievski e o parricídio''. É com base nessa polêmica que afirmamos a possibilidade de haver algum exagero na análise freudiana da personalidade de Dostoievski. (Cf. Frank, 1999: 469-484).
3 A barbárie presente na sociedade esclarecida é um tema caro a Freud, principalmente em textos como ‘’o Mal estar na civilização’’ . Este tema foi estudado exaustivamente por Theodor Adorno e Max Horkheimer, em obras como a ‘’Dialética do Esclarecimento’’.
4 Há algo de surpreendente e assustador quando percebemos que pessoas ‘’comuns’’, pacatas e até mesmo sujeitos que normalmente passariam despercebidos, em situações de extremo autoritarismo possam se identificar tão bem com a tirania de seus líderes. Dostoievski desenvolveu com maestria estes ‘’tipos’’. Ele conseguiu conceber figuras como o bondoso e assassino Erkel com tamanha naturalidade e realismo que nos faz ponderar se, realmente há alguma discrepância entre essas duas faces da mesma pessoa, o pacato e submisso seguidor do grupo e seu líder autoritário, revelando assim, um enigma psico-social que só bem mais tarde tornar-se-ia objeto de estudos da psicanálise e da teoria crítica.
5 http://antivalor.atspace.com/Frankfurt/adorno71.htm acessado em 25 de julho de 2007. A formatação deste artigo na internet exibe apenas um texto corrido, sem qualquer paginação, de modo que ao citá-lo exporemos apenas o formato autor, data.
6 Segundo Adorno, embora Freud não estivesse interessado na ‘’face política do problema, claramente previu a origem e a natureza dos movimentos fascistas de massa em categorias puramente psicológicas.’’ (Adorno/Horkheimer, 2007).
7 O Capítulo VII da segunda parte de Os Demônios, intitulado ‘’Com os Nossos,’’ relata uma reunião entre Piotr, Nicolai e seus seguidores em potencial, na qual deveriam ser tratados os rumos do grupo. É interessante perceber que, nos primeiros momentos, diante de um acalorado debate travado entre alguns participantes da reunião, a postura de Piotr fora de silêncio e, principalmente, desdém. No final, porém, Piotr consegue, gradualmente, substituir o debate pelo ideal único da, aparentemente objetiva, ‘’causa comum’’. É nesta tensão entre debate e a ação imediata, exigida por Piotr, que Dostoievski parece denunciar a possibilidade sempre presente do autoritarismo ( Cf. Dostoiévski, 2004: 377-402).
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