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Literatura e Autoritarismo
          Sujeito, Memória e História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 10 

HERANÇA DE PHILOGÔNIO: A POÉTICA DO MANDO EM O MULO, DE DARCY RIBEIRO

Jean Pierre Chauvin1


Resumo: O mulo (1981), de Darcy Ribeiro, traz a autobiografia de Philogônio Castro Maya: coronel do sertão goiano que, à beira da morte, resolve doar todas as suas propriedades a um padre desconhecido, como forma de redimir seus pecados. Narrativa densa, o texto remete a Grande Sertão: Veredas, com direito a especulações metafísicas de teor universal em meio a confissões sobre crimes, relacionamentos afetivos e as lições de vida do protagonista.

Palavras-chave: O mulo; Darcy Ribeiro; mando.

Abstract: O mulo (1981), by Darcy Ribeiro, is the autobiography of Philogônio Castro Maya: a colonel from Goiás's hinterland that in face of the death decides to donate all his properties to an unknown priest, as a way of redeeming his sins. Densely narrated, the text is reminiscent of Grande Sertão: Veredas, with metaphysical and universal speculations among confessions of crimes, affective relationships and lessons of life from the protagonist.

Keywords: O mulo; Darcy Ribeiro; control.

1. Um mulo
Em O Mulo (1981), segunda experiência de Darcy Ribeiro como romancista – escrito enquanto ainda estava no exílio -, nove capítulos separam o leitor do universo ora vivido, ora fantasiado por Philogônio Castro Maya. De primeiro, apelidado Trem e Filó, depois, civilizado simbolicamente pela documentação de eleitor que tira com o auxílio de um militar, é o apelido (dado pelos homens que vivem em sua fazenda) que nomeia sua autobiografia: “Uma madrugada que acordei estremunhado e saí porta afora, bati com o pé no moleque que dormia enrodilhado ali. Acordando assustado ele perguntou gritando: que é, seu Mulo? Quem é quem?, perguntei eu. Aprendi ali, naquela hora, meu apelido.” (RIBEIRO, 1981, p. 258)2
Bruto ao proceder, é um ser rude e de pouca instrução, absoluto devoto da natureza dos “goiases” que se defende contra as afetações dos homens da cidade. “A cidade enorme, cheia de gente, me dava medo. Sem rancho e longe dos bichos com que sei lidar não posso viver.” (p. 205)
Em sua trajetória, o maior artifício parece estar mesmo com os leitores. A nós cabe reconstituir as sobras de um sertanejo próximo do fim. Nosso papel também é articular, sob a ótica muito particular deste homem decadente, suas próprias reminiscências e aprendizados. “Sou homem de gosto para gozos maiores. Ou era, fui; nos meus idos. Agora, estou aprendendo a gozar os menores.” (p. 22)
Trata-se de narrativa em tensão permanente, construída pelos atos de uma só personagem; de sua fala, aliás. O monólogo, feito de reminiscências e sonhos que se confundem, lembra Grande Sertão: Veredas (1956)3 com seus buritizais das veredas; capangas e assassinatos; animais, homens, mulheres e perversidades. Possível releitura do universo roseano, com um toque a mais de erotismo e violência, em linguagem que beira a escatologia. “Dentro de casa não quero escarro que não seja meu”. (p. 22)
Por outro lado, O mulo difere de Grande Sertão principalmente devido à linguagem menos erudita, digamos, e, sobretudo, à visão um tanto mais estreita do narrador a respeito de mandar no mundo.
Conseqüentemente, o papel do leitor é fundamental. Ainda que a linguagem seja fluida, com freqüência é necessário deter-se nesta ou naquela passagem para melhor captar o que Philogônio afirma com aparente despretensão. Em meio ao discurso extenso, o trecho mais ligeiro registrado às pressas como sintoma da visão estreita do narrador, para causar-nos maior impacto: “Mal comparada, raça de preto é como raça de jegue, e raça de branco, como de cavalo.” (p. 259)

2. Riobaldo e Philogônio
No romance de João Guimarães, Riobaldo cresce - como personagem e mito que escapa à dimensão ficcional - na medida de seus feitos de cangaceiro a chefe do bando, com o Diabo e Diadorim de permeio. Algo bastante similar acontece no romance de Darcy Ribeiro, mas há duas diferenças nucleares:
1. GS: Veredas privilegia a ação. Do início ao fim, o romance é cercado de muitas balas, alguns diálogos e certas sabedorias em processo constante. “Nonada” – a negativa absoluta (não + nada) recupera a fala dos sertanejos e anuncia o tom de um livro feito de incertezas (Diadorim: homem e mulher; Riobaldo: jagunço e chefe; sertão e veredas; Deus e o Diabo).
2. Ao recontar sua história, Riobaldo oscila entre os feitos do passado e as lições do presente, mas praticamente não menciona sua decadência física e mental, nem pensa na morte. Em suma, seu enredo é mais dinâmico. Está fortemente atrelado à noção de movimento, tanto é que mal precisamos o local de onde Riobaldo narra suas histórias.
Na narrativa de Darcy, o monólogo é produzido sobre a mesa, no meio da sala da “casona dos Laranjos”. Dirige-se a um padre de identidade ainda ignorada pelo fazendeiro, que herdará suas propriedades desde que leia o livro-testamento e perdoe seus pecados. Como o sábio Riobaldo, Philogônio elabora fórmulas universais a partir de seu mundo à parte. Ao rememorar a perda das terras no “Vão”, por obra dos políticos locais, pergunta sabiamente: “Quem é que pode matar uma sociedade anônima?” (p. 319)
No romance de Rosa, o “senhor leitor” é presumidamente instruído, civilizado, que não mata nem faz pacto com o diabo “no redemoinho”. Em O mulo se repete a sina: o diabo parece se escorar num devoto. Bildungsroman? Romance de formação que se completa no leitor. Aceito como tal, esta autobiografia ficcional brasileira se filiaria a “um gênero literário que representa a mais significativa contribuição alemã à história do romance europeu” (MAZZARI, 1999, p. 59).

3. Philogônio Castro Maya
Em O mulo, os episódios são contados por um homem que teme não exatamente a morte, mas o eventual desamparo de Deus que vive a questionar. No plano temporal, Philogônio sofre, foge, impõe respeito, mata, goza e definha. As justificativas para o seu gosto de mandar são, paradoxalmente, tanto perversas quanto envolventes.
Como só temos o depoimento do próprio narrador, o pacto que celebramos, na leitura desse romance, inclui tomar partido do coronel em alguns momentos, atribuindo sua estreiteza de visão do mundo aos maus tratos que sofreu como capataz, nas mãos de Lopinho e Dexu, e como soldado do exército, sob as ordens do major pervertido. “Sina dura essa minha, você não acha? Por que Deus teve que complicar tanto a minha vida, me meter menino debaixo da bruteza de Lopinho, e deixar ele ali oferecido, fácil, estornado naquela rede, em acesso de febre sezão, pronto para a morte?” (p. 479)
Nesse aspecto, a face do mando que ele encarna parece obra do destino:
“Aos meus negros vivi dando ordens em tom de sargento. Gritando com voz de trovoada. Não à toa, mas no serviço da produção. Cerca de lá, Isidoro. Agarra esse porco, Tião. Arreia essa mula, Bile. Cape esse touro, Zé. Com gozo meu e deles. Meu de mandar, ordenando a vida. Deles, de serem mandados, sentindo que não estão sozinhos, largados no mundo. Sabendo que podem deixar o tempo, o sol e o destino, tudo, na minha mão que eu dou conta. Por mim e por eles.” (p. 177)
O livro traz algumas mensagens evidentes. Por exemplo, a de que não há espaço para dois mandões no mesmo pedaço de terra. A morte de Dominguim – recontada tão brevemente quanto um tiro de revólver - é provocada pelo discurso autoritário do matador, instalado na propriedade de Philogônio.
“Uma tarde veio ele, falando alto, na frente de uma pretalhada. Subindo na varanda, disse meio gritado, que precisávamos mandar Militão no Nam, fazer compras. Só perguntei: precisamos? Ele: sou amigo prestável, seu Filó. Inimigo, também, o senhor escolhe. Escolhi ali na hora: instantâneo, tirei a garrucha e atirei uma bala na mão dele e no coice dela, outra na barriga. Deixei o homem arriado, e saí andando pro curral.” (p. 237)
Nos episódios em que o coronel se vinga de outros mandões, é possível que o leitor, paradoxalmente atingido e contagiado por esta poética do mando, passe para o lado do narrador, acometido por certa identificação com a trajetória do fazendeiro.
O ato de ler nos torna cúmplices deste sertanejo que, a seu modo, subiu na vida. Testemunhamos, em sua confissão, o regime da violência física que se reflete na linguagem ríspida e amarga do homem só. É com este ser, a um só tempo protagonista e vítima com que teríamos muito a antipatizar, que sentimos alguma solidariedade.
Se o narrador nos mantém cativos é porque, em certa medida, trava-se aqui o pacto de que fala Walter Benjamin: “essa é a lei da forma romanesca: no momento em que o herói consegue ajudar-se, sua existência não pode mais ajudar-nos” (1996, p. 60)
Romance que manipula seu leitor, na confissão - legada ao primeiro padre que ler suas memórias -, o narrador começa brando, humilde, pedindo licença. “Do senhor, seu padre meu confessor, nada sei, nem saberei. A missão de Militão é encontrá-lo.” (p. 79)
Nos capítulos seguintes, passa ao tom de aconselhamento, para, enfim, instruir o padre que sequer conhece: saudosismo dos idos de coronel?
“Esse, o mundo de coisas que faz de mim, hoje, um homem abastado. Essa, a prova provada da aprovação de Deus, que com tudo isso me galhardeou. Em suas mãos, amanhã, seu padre, será também, a prova provada da sua riqueza terra e da sua predestinação divina. Entre tantos padres, o senhor, pela graça de Deus, foi o escolhido para ser cumulado desses bens e dessas graças. Deus seja louvado. Amém.” (p. 92)
Trata-se de refinada retórica do mando, poética da persuasão. Um homem deixa todas as suas posses para o padre porque, como admitirá mais tarde, espera ser perdoado por Deus: “esse mundo precisa de guias, como tropa precisa de madrinha.” Ironia de quem? De Darcy ou do narrador? Philogônio aprendeu a barganhar mulas por ferros e terras por perdão: o seu. “Amém”.
Se na linguagem, este romance parece mais simples que o erudito GS: Veredas, outros aspectos formalizam a aproximação entre as obras, sendo o romance de Darcy Ribeiro um ponto de referência com nosso maior épico literário em prosa: a odisséia do sertanejo Riobaldo. Um e outro manifestam em comum uma necessária participação do leitor, desejoso de captar os universos sugeridos pelos protagonistas.
Esse contrato entre leitor e texto foi concebido com clareza por Dante Moreira Leite: “A rigor, só se pode falar em obra literária quando o pensamento produtivo se realiza num texto e este encontra um leitor ou um ouvinte compreensivo. Por isso, a divisão em três momentos, ato criador, texto e leitor, é artificial, pois supõe três etapas diferentes num processo que, na realidade, não pode ser dividido.” (LEITE, 2002, p. 309)
O mulo é romance de memórias, autobiográfico, narrado exclusivamente do ponto de vista do narrador. Estrutura-se sobre um extenso monólogo, baseado nas experiências de um homem que vivenciou todas as etapas entre a subserviência e o mando. Além disso, as principais teses de Philogônio lembram tematicamente as de Riobaldo, em especial o questionamento da fé em Deus e no Diabo e as concepções do amor.
Sobre Inhá, sugestivamente chamada a “mula-sem-cabeça”, afirma: “Dona de si, distinta. Logo, dona de mim, senhora.” (p. 270) O elemento simbólico é evidente. Ser mulo é refazer a própria trajetória, preparando-se para a confissão antes da morte. Ser mula sem cabeça é ser Inhá, mulher sedenta por sexo, como os animais, e sem o juízo dos homens. “Vida de homem casado feliz. Vida de corno, chifrudo.” (p. 273)
A respeito de Mariá, filha da dona de pensão, Ruana: “Lembro tão bem daquele instante, naquela tarde, que ele já está isolado na minha memória, separado de tudo mais. Vejo a luz avermelhada saindo da telha vã e caindo na cara dela.” (p. 324).
A lembrança do homem se faz de episódios em geral tórridos ou violentos. No caso das mulheres, aquelas cujos nomes guardou, é constante o forte apelo aos instintos, aproximando a relação erótica de um ato selvagem. Seu repertório ajuda: “a luz avermelhada caindo na cara dela”. Repare-se na concreta ação da luz: desde quando a luz cai sobre a “cara” de alguém? Animalização para reforçar o apelo instintivo do sexo?
O aprendizado de Philogônio Castro Maya – o derradeiro nome adotado por esse jagunço contador – leva-o da subordinação de quando jovem, sob as ordens de Lipinho, ao controle, quando dono de vastas terras em Goiás. Suas reflexões dizem respeito à vida e à morte: homens, mulheres; mando e desmando.
Os temas vêm respaldados pela postura do coronel dos “goiases”, solitário por opção, poderoso por engenho, temido: mulo.
“Mesmo o mais triste que fui é melhor do que esse fim. O Trem, filho de Tereza. O afilhado de Lopinho apanhando, ramelando. O capiau das Cagaitas, servo daquele seu Duxo, bruto, explorador. O piolho-de-meganha de Grãomogol. O soldado arrombado, condenado a ficar debaixo da dureza do major come-cu. O tropeiro e muleiro das Águas Claras. O abridor do Vão. O marido de siá Mia” (p. 105)
Cada capítulo alinhava a prosa saborosa, habilmente tramada pelo fazendeiro decadente com vistas ao padre anônimo. Aliás, nada mais verossímil que a fala de um só, quando a história é recontada por ele mesmo, mandão sem amigos, afora o padre que não conhece. Certas declarações escapam ao universo ficcional: “Nunca fui homem de bondades. Um dos meus pecados é a sovinice de dar para cativar e até de negar o que devo, se estou na frente de credor reles. Gosto muito é de enfeitar de caridade a paga do que devo.” (p. 119)
Como um país em busca da certidão de nascimento, Philogônio Castro Maya reconhece-se como homem inteiro e de grandes feitos justamente no momento em que as forças se esvaem e a “malineza” dos “bofes” persiste.
Os nove capítulos do livro lembram os círculos do inferno de Dante: lá estão diversos retratos dos homens que Philogônio matou ou mandou matar. “Meus mortos”, afirma com propriedade suprema. “Essa confissão é minha perdição. Contando aqui, sofrido e gozoso, os terrores e as alegrias dos meus pecados, vou ficando vazio.” (p. 127)
O padre que aceitar a confissão deverá corromper-se. Ironia feroz de Darcy Ribeiro: tudo tem seu ônus. “Como obrigá-lo a ser leal comigo? A revelar a verdade de minha vida? Bobagens! Para que recordar ao mundo os impuros caminhos pelos quais vim sendo o que sou? Eu terei a imagem que o senhor engendrar para atender a seus fins.” (p. 147)
Sabedoria do mulo, que admite ter preparado um testamento tortuoso, extenso e detalhado: a terra dos Laranjos em troca do perdão de Deus. “Eu tinha mesmo de contar aqui que minha intenção real, verdadeira, é subornar o amigo.” (p. 276)

4. Darcy, entre a antropologia e a ficção
Maíra (1976) e O mulo (1981) são romances que ilustram de forma antecipada algumas das principais linhas de pensamento de Darcy Ribeiro sistematizadas em O povo brasileiro (1995). Especialmente, os resultados de nossa constituição etnicamente miscigenada e sincrética, do ponto de vista cultural.
Portanto, muito antes de abordar de forma teórica os focos de miscigenação nas “Ilhas-Brasil”, seus primeiros livros privilegiam dois grupos sociais que não foram integrados à sociedade do homem branco. Maíra foi arquitetado sob o foco do indígena, cuja identidade se anulava em contato com o homem civilizado. O mulo, contado do ponto de vista do sertanejo.
Ambos os romances enfatizam o problemático contato entre os grupos sociais, pautados pela violência verbal e física: causa e conseqüência das assimetrias socioeconômicas e culturais neste país, como Darcy Ribeiro, antropólogo, afirma: “Ao contrário do que alega a historiografia oficial, nunca faltou aqui, até excedeu, o apelo à violência pela classe dominante como arma fundamental da construção da história.” (RIBEIRO, 2006, p. 23)
O fato é que este romance de Darcy ilustra com mais de uma década de antecedência, as teorias que o sociólogo publicou no fim da vida, a respeito de nossa constituição étnica exclusiva, multifacetada. É curioso que, atualmente, o antropólogo seja mais lembrado que o romancista talentoso que também foi. Possivelmente pela natureza e circunstâncias da produção de O povo brasileiro. Trinta anos de estudos, fruto da sanha de um homem em se descobrir como brasileiro, talvez sem nunca entendê-lo por completo.
Cotejado com a majestosa teoria a respeito de um país de muitas etnias, marcado por células ou “Ilhas”, O mulo pode soar obra de menor densidade e algum apelo convencional, comercial até. Mas vale ressaltar que as obras de Darcy se completam. Desse ponto de vista, o romance parece ilustrar certos dogmas de um narrador que se coloca como fortaleza: “Esses meus pretos têm malícia. Custei a descobrir que eles é que me usavam. Desde aquele primeiro dia, foram eles que me escolheram, adivinhando em mim coragens que não tinham e de que necessitavam para se proteger.” (p. 230)
Basta rever o conjunto dos escritos do autor para bem qualificar, com indubitável mérito, as inquietações registradas na história épica de um tropeiro, sob a ótica de seu “eu” do presente, feito dos vários “eus” pretéritos. O mulo, personagem, somos nós. - E o que somos nós? Perguntaria Darcy Ribeiro. Nas palavras do mulo, personagem: “Aquele eu que fui, ontem, irrecuperável, olharia, hoje, sem pena nem dó para isto que eu cheguei a ser e sou agora. Talvez até perguntasse: como é que um homem se deixa ir corrompendo e se acabando assim, enquanto cuida que vive?” (p. 44) Definição em forma de questionamento. Universal.

5. Estrutura: identidade e transitoriedade
Ao longo dos numerosos e breves capítulos de seu diário/confissão, Philogônio promove uma rígida e constante alternância temporal (o presente versus o passado) e temática (violência, sexo, morte; profissões, lugares; a relação com os matadores e seus capatazes e a crença em Deus).
Provavelmente tal recurso fosse estratégico. A Darcy Ribeiro, possibilitaria facilitar a tarefa do leitor, de modo que o romance não se tornasse enfadonho, com uma única direção temática.
No universo do narrador, que é personagem e testemunha, tal mobilidade traduz maior verossimilhança, emprestando ao relato certa atmosfera de memorial: não sistemático, à beira do anacrônico, produzido por um homem que, no momento do registro, duvida de sua própria lucidez, com o acre senso de finidade: “Tenho de pensar naquela hora última, derradeira, A primeira que verei da Eternidade. Hora de encarar Quem me há de julgar: Deus. Qual! Ele não se ocupará pessoalmente de gentinha que nem eu. Decerto delega isso a algum empregado do céu.” (p. 498)
Ironia ou queixa sincera do próprio Philogônio? O fato é que representa bem o grupo social a que pertence, encaixado na definição de herói épico, definida por Georg Lukács:
“O herói da epopéia nunca é, a rigor, um indivíduo. Desde sempre considerou-se traço essencial da epopéia que seu objetivo não é um destino pessoal, mas o de uma comunidade. E com razão, pois a perfeição e a completude do sistema de valores que determina o cosmos épico cria um todo demasiado orgânico para que uma de suas partes possa tornar-se tão isolada em si mesma, tão fortemente voltada a si mesma, a ponto de descobrir-se como interioridade, a ponto de tornar-se individualidade.” (2000, p. 67)
A ambigüidade discursiva contagia o gênero do próprio livro. Ela se combina à não-linearidade cronológica que, afinal, é um dos poderosos ingredientes do romance. E por ser discurso aparentemente não sistemático, problematiza o papel do leitor, cioso por situar a si mesmo e localizar o protagonista no tempo. Mas a dispersão é superficial: “Estrutura e composição se acham em relação direta com o gênero.” (CASTAGNINO, 1968, p. 165).
Não por acaso, o diário prescinde da noção de futuro, o que pode justificar a força do passado, marcado por Mia, mulher única: “Eu bolinando siá Mia, aceso de tesão. Ela me acariciando como quem quer reconhecer, para não esquecer nunca mais, e ter pra sempre, na ponta dos dedos, a forma do homem que era dela.” (p. 373)
Os lances do destino, em acordo com as respectivas trajetórias de Philogônio, favorecem a sensação de que o protagonista revive suas histórias como homem sem lugar, ainda que vestido de terno, prostrado entre a sala e o quarto do casarão, plantado, vegetando no bom pedaço de terra que domina. “Não me sabia feliz; me achava, no máximo, desinfeliz. Sempre fui despreocupado de felicidades idiotas ou de infelicidades soturnas. Eu era inatingível. Alegre seria eu? Não diria. Penso mesmo que todo homem alegre é gaiato.” (p. 346-7).
Qual o gênero mais indicado para o protagonista questionar a si mesmo? O romance de memórias. A noção de indivíduo sem-lugar tanto se refere à sua condição de homem à margem do mundo dos letrados da cidade, ligados ou não ao governo, quanto induz a um delicado posicionamento ideológico e moral do próprio Philogônio: sertanejo sem pouso ou parada, com registro tardio do nome falso; sem vida nem morte; sem pai nem mãe; nem ruim nem mau. “Alcançar a santidade será exercício difícil. Se muito se quer, peca-se de orgulho. Se pouco, de soberba. (...) Os santos homens Deus fez de outra carne diferente da minha. A sua, seu padre, fora de qualquer pândega, é carne santificável?” (p. 362)

6. Romance de formação (às avessas)
A construção de uma sede para seus negócios mais ou menos escusos é simbólica. Só se firma quando o próprio Philogônio já maduro, perde a mulher siá Mia e passa a conviver com o enfisema. O menino que foi “Trem” e “Terêncio Bógea”, o jovem “Terezo”, agora todos são ou deram em Philogônio - criado e batizado por ele mesmo: remate de seus vários “eus”.
Aos cinqüenta anos, esse derradeiro “eu” defende suas teses com a convicção de um sábio, que só admite alguma fragilidade e medo diante da proximidade da morte. “Sempre fui circunspecto, mais fechado que falante. Sou calado. Era. Hoje, sou homem indiscreto por artes dessa confissão.” (p. 376)
Sua narrativa é, a um só tempo, confissão e suborno com muitas faces: 1. o eu do presente dá continuidade aos “eus” do passado, embora sejam totalmente diversos; 2. Philogônio é cria de si mesmo (philo = amor; gonia = geração, nascimento); 3. há pessoas dispostas a mandar; outras, a obedecer; 4. há aqueles que nascem para ser cavalo (os filhos de fazendeiro) e os que nascem para ser jumentos ou mulos (aqueles de origem mais simples e árdua vida de trabalho); 5. foge-se da vida, mas não da morte. “Quando nasci achei este mundo feito e acabado. Mal feito? Bem-feito? Que me importa? Não tenho outro, acessível. Senão aquele, o Terminal. Também Ele [Deus] já vou achar feito.” (p. 395)
O mulo, como foi dito, pode ser considerado um romance de formação, ainda que às avessas. Nos escritos, Philogônio rememora suas origens (família), viagens, instrução, ofícios e relacionamentos (amizades com os homens e aventuras com as mulheres). Homem-mulo, bravio e imponente; bruto e de parca instrução; de raros amigos e demasiado mando, o círculo social de Filó é naturalmente restrito. Coerência de Darcy Ribeiro: não se conhecem mandões com muitos amigos, descontados os bajuladores.
Formação, também sob a ótica do sujeito e suas múltiplas identidades. Nossa leitura dura enquanto Philogônio resiste à morte pelo enfisema. Reconstituídos os episódios da biografia do fazendeiro, o romance adensa-se. De nossa parte, cumprimos vicariamente o papel do padre confessor que herdará as propriedades do coronel. Mas a nós, no papel de leitores, cabe o confronto com as palavras, que nos atingem sob a forma mascarada de um escrito aparentemente sem alvo e destinatário.
A alternância temporal e temática dos micro-capítulos concede ao texto um tom de aparente digressão e desordem, como se faltasse ao narrador um traço prévio, um plano de escritura. O que permeia os depoimentos de Philogônio é um misto de fuga e débito. Escrever liberta e forma. “Viciei nisso. Acho até que, se terminar essa confissão, começo outra vez, tudo de novo, rodando em mim, revendo, revivendo idos, tidos, havidos.” (p. 421)
É que a narrativa se problematiza, à medida que o muleiro “desenrola” suas histórias e lições de vida. “Duas sortes de peste há no mundo piores que praga de pasto, impossíveis de se acabar. Sãos as valentias façanhudas e as as vagabundagem ociosa.” (p. 457) Nossa interpretação, portanto, não caminha livremente, mesmo porque o livro se dirige rumo à tragédia: “Saber que Lopinho foi meu pai, é meu pai, me espanta demais. Ele nunca foi homem de caridade.” (p. 478).
A leitura como exercício aqui só se faz nos vãos deixados, voluntariamente ou não, pelo jagunço e fazendeiro brabo. Homem que alega temer exclusivamente a morte sem perdão, revelando as outras faces do próprio leitor, outra espécie de “confessor e herdeiro.” (p. 79)

7. Trilhas
Como sugestão de trabalho, talvez fosse produtivo cotejar O mulo com outras obras de nossa literatura, produzidas na segunda metade do século XX, igualmente centradas na temática regional e de cunho personalista. Caberia resgatar – além do épico de Guimarães Rosa -: Vila dos Confins (1956), de Mário Palmério; O coronel e o lobisomem (1964), de José Cândido de Carvalho; e Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro (1971).
Certa melancolia perpassa O mulo, assim como acontece nessas obras. Paulo, Ponciano e Getúlio são homens acostumados à liderança, todos mais ou menos ligados ao poderio local – o que permite alusões críticas ao autêntico “coronelismo” brasileiro.
Imbuídos da autoridade local, a sobrevivência desses protagonistas é vincada pelo poder de mandar. Paulo (Vila dos Confins) participa ativamente dos bastidores das eleições locais; Ponciano (O coronel e o lobisomem) assiste à decadência de seu poder político e financeiro; Getúlio (Sargento Getúlio) decide levar um importante preso ao destino, à revelia de seus superiores, para que abortasse a missão.
São livros articulados por narradores no papel de contadores e intérpretes de sua própria história, cujo prazer maior é resgatar uma formação feita de enfrentamentos e conquistas, num balanço de vida unívoco, concreto: talvez por isso mesmo, poético. Particularmente em O mulo, certos questionamentos parecem ser dados constitutivos do sujeito que, aos poucos revela sua modesta participação no universo de um Deus seletivo: “Se eu fosse um homem qualquer, quero dizer, um desses homens cordatos, mansos, bons, como há tantos, Deus não tinha por que se ocupar de mim. Homem bom é covarde, ou, se corajoso, é de coragem recôndita, tão escondida do mundo que não ofende ninguém.” (p. 155)
Para quem gosta de ler sobre nós mesmos, é obra provocadora, localizada no centro-oeste brasileiro e montada em tom de denúncia sócio-econômica, do ponto de vista do sertanejo. Para os estudiosos, também.
Talvez seja um exercício bastante produtivo antever as teorias do antropólogo sob a pele de seu matuto ensinado e arredio. “Esse mundo é variado, seu padre. Há o café e a borra. Há o caldo e o bagaço. Há quem manda e quem é mandado. Esse é o mundo da fábrica de Deus. Vou eu refazer? Quem sou eu? O meu é meu. O alheio, não sei: será ou não. Assim pensamos nós, mandantes, assim agimos.” (p. 26) .
Nonada. Somos herdeiros de uma rica poética do mando.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ÂŞ ed. Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense, 1996.
CASTAGNINO, Raúl. Análise literária. Tradução: Luiz Aparecido Caruso. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
LEITE, Dante Moreira. Psicologia e literatura. 5ÂŞ ed. São Paulo: UNESP, 2002.
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. Tradução: José Marcos Mariani de Macedo. São Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000.
MAZZARI, Marcus Vinícius. Romance de formação em perspectiva histórica. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999.
MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 11ÂŞ ed. São Paulo: Cultrix, 2002.
RIBEIRO, Darcy. O mulo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
____. O povo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
ROSA, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. São Paulo, Nova Fronteira, 1988.

1 Professor de Literatura e Redação no ensino médio; doutor em Teoria Literária e Literatura Comparada (FFLCH/USP). Site: www.leituraescritura.com. E-mail: jpchauvin@terra.com.br
2 Nas demais transcrições do romance, serão referidas apenas as páginas.
3 Tal aproximação entre as narrativas foi sugerida por Antonio Houaiss, que assina a “orelha” da primeira edição de O mulo.
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