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Literatura e Autoritarismo
          Sujeito, Memória e História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 10 

O NACIONALISMO VERDE: A IDEOLOGIA PLINIANA NA ALMA DE TREPANDÉ1

Leandro Pereira Gonçalves2


Resumo: Este trabalho pretende analisar o romance Trepandé de Plínio Salgado como testemunho de uma determinada classe social, seguindo o referencial teórico proposto por Lucien Goldmann. Nessa obra, pode ser encontrada uma fonte historiográfica reveladora para a compreensão da ideologia presente na Ação Integralista Brasileira. A partir daí, foi possível observar um discurso conservador e autoritário para o desenvolvimento da sociedade brasileira. Utilizou-se o estruturalismo genético goldmanniano a fim de se verificar a existência de artifícios e formas que possam comprovar se as obras literárias de Plínio Salgado são consideradas romances e, portanto, expressão burguesa.

Palavras-chave: Literatura, Estruturalismo genético, Integralismo, Plínio Salgado, Trepandé.

Abstract: This essay intends to analyze the novel Trepandé of Plínio Salgado as a testimony of a specific social class, following the theoretical reference proposed by Lucien Goldmann. In this work, there can be found a revealing historiographical source for understanding the ideology present in the Brazilian Integralist Action. From then on, it has been possible to observe a conservative and authoritarian speech to the development of the Brazilian society. The genetic structuralism of Goldmann was used to verify the existence of artifices and ways that may prove whether the literary works of Plínio Salgado are considered novels, and therefore are expressions of bourgeoisie.

Keywords: Literature, Genetic Structuralism, Integralism, Plínio Salgado, Trepandé.

A formação do movimento integralista brasileiro deu-se no início da década de 1930 sob a liderança do escritor e jornalista Plínio Salgado. Em outubro de 1932, o escritor divulgou o Manifesto de Outubro propondo a formação de um grande movimento nacional.
O movimento registrou-se sob a denominação de Ação Integralista Brasileira (AIB). Sua organização, influenciada pelos movimentos fascistas europeus, priorizava a arregimentação de militantes e seu enquadramento em uma estrutura hierárquica. A partir de então, logrou intenso e rápido crescimento, ascendente até a decretação do Estado Novo, em novembro de 1937.
O Integralismo atacava o liberalismo, os partidos políticos e o parlamento, considerando a democracia liberal como destruidora da alma nacional e responsável pela disseminação do comunismo, inimigo maior a ser combatido. Apresentando-se como um movimento de despertar da Nação, o Integralismo canalizava para a ação política, as angústias e temores dos setores médios, constituindo-se como instrumento de sua incorporação ao processo político. O perigo comunista da revolução soviética e as mobilizações do proletariado acentuaram o temor de proletarização dos setores médios, universo em que o Integralismo recrutava a maior parte de seus militantes.
O líder integralista Plínio Salgado nasceu na cidade de São Bento do Sapucaí, em São Paulo, em 1895. Sempre teve uma grande participação política e tornou-se um jornalista conhecido a partir de 1919 na capital paulistana. Participou das agitações modernistas, tornando-se um romancista respeitado após a publicação de uma trilogia romanesca denominada “Crônicas da Vida Brasileira”, composta pelas obras: O estrangeiro, de 1926; O esperado, de 1931, e O cavaleiro de Itararé, de 1933. Plínio Salgado escreveu mais três romances: A voz do oeste, em 1934; Trepandé – redigido entre 1938 e 1939, mas publicado apenas em 1972 – e O dono do mundo, escrito no fim de sua vida, aproximadamente entre o período de 1974 e 1975. Esse último romance não foi finalizado em decorrência de sua morte, sendo publicado apenas no ano de 1999.
Na Semana de Arte Moderna de 1922, Plínio Salgado liderou um dos grupos formados a partir do movimento, o grupo Anta, no qual as posturas e idéias ultranacionalistas eram levadas ao extremo. Esse foi a base para a fundação do Integralismo, que tem como principais características os mesmos dogmas do fascismo: a aversão ao estrangeiro e à diferença; a disciplina irracional; a obediência cega e incontinente a uma ordem opressora; o cerceamento da liberdade de expressão; o favorecimento das classes dominantes; as paradas militares; e, por fim, mas não menos importante, uma ideologia nacionalista do “tudo pelo Brasil”.
A aproximação entre o campo literário e o histórico é algo que ocorre com freqüência, atualmente, no meio acadêmico, como conseqüência da renovação francesa da historiografia, com os Analles, nos anos 1920. Segundo a nova corrente historiográfica, tudo que se passou é objeto de interesse da história e é com ela que pode ser percebida a totalidade histórica, pois por meio da visão defendida por essa renovação, os fatos e acontecimentos não têm importância alguma, mas sim os critérios escolhidos pelo historiador. Portanto, é possível afirmar que tudo que possui registro é histórico e, sendo assim, passível de ser analisado.
Assim, dentro dessa visão, analisar romances é pertinente. Contudo, no escopo teórico deste trabalho, as razões da inclusão de fontes não ordinariamente examinadas pelo crivo dos historiadores – no caso específico, de textos literários e, mais especificamente ainda, de romances – se estendem a outros fatores.
O referencial teórico que orienta este trabalho segue a análise de Lucien Goldmann (1990), que coloca o romance como gênero literário criado pela sociedade burguesa, como reprodução literária homóloga do processo de estruturação social.
Ao verificar os romances de Plínio Salgado, esta pesquisa pretende transformar essas obras em fonte historiográfica, não enquanto um doublé das fontes tradicionais (documentos oficiais), muito menos enquanto descrição de sistemas sociais, mas como testemunhos de uma determinada classe social (burguesia, ou pequena burguesia, no caso), mirando uma formação social específica (a brasileira, da primeira metade do século XX). Nessa análise poderão ser recuperadas dimensões ideológicas (conotativas) expressas pelo autor por meio da ficção.
Nas últimas três décadas, Plínio Salgado e sua ideologia integralista foram objetos de muitos estudos. No entanto, como literato, o autor foi pouco abordado, embora sua importância seja incontestável não só para a literatura como também para o pensamento humano, pois Plínio Salgado tem a preocupação de colocar, nos romances, seus objetivos políticos, suas intenções doutrinárias, além de seu pensamento sobre a sociedade brasileira.
Em suas obras, verifica-se uma grande riqueza ideológica – inclusive no que diz respeito à formação social burguesa – e, com ela, é possível realizar uma profunda abordagem literária, histórica e sociológica de Plínio Salgado, analisando sua presença no mundo burguês.
Como foi proposto por Lucien Goldmann (1990), o romance é, ideologicamente, o gênero literário burguês e, portanto, expressão estética do Estado burguês, é um estudo das relações entre os personagens problemáticos e os contextos sociais opressivos. Tais relações passam para o leitor um contexto de tentativa de realização de valores autênticos num mundo hostil aos valores. Daí a busca degradada de valores por parte de personagens desadaptados – uma busca condenada ao fracasso e que assinala o caráter problemático do romance.
Esta pesquisa é a verificação sistemática desta afirmação, por meio de uma análise literária e, ao mesmo tempo, sociológico-histórica dos romances de Plínio Salgado.
A criação literária constitui um campo privilegiado de aplicação do estruturalismo genético. Lucien Goldmann parte do princípio de construção das estruturas cognitivas para aplicá-lo às relações entre o autor e o grupo social. O autor passa a interagir com esse grupo, procurando responder às suas expectativas. A criação cultural artística surge como uma resposta significativa e articulada, como expressão das possibilidades objetivas presentes no grupo social.
Observa-se nas obras literárias de Plínio Salgado uma crítica a todo o sistema brasileiro, sendo a sociedade colocada como infeliz; daí a necessidade de mudança para a defesa do forte nacionalismo. Enquanto o comunismo e o liberalismo são tratados como males que têm de ser extirpados da sociedade, o Integralismo é colocado como o único capaz de salvar a humanidade desses inimigos da ordem. Em seus romances, essa análise da sociedade brasileira é clara, pois seus pensamentos de salvação para o Brasil são expressos por meio da crítica à sociedade que, em muitos momentos, é considerada apática por não lutar contra o mal.
Para comprovar essas afirmativas, foram avaliados os seis romances de Plínio Salgado: O estrangeiro; O esperado; O cavaleiro de Itararé; A voz do oeste; Trepandé; O dono do mundo.3 Deles, foi selecionada a obra Trepandé, última obra modernista do autor e cuja realização coincide com o período em que Plínio Salgado é obrigado a se exilar, em decorrência do decreto do Estado Novo de Getúlio Vargas. Nesse período, Plínio Salgado já havia vivido a fase mais importante de sua trajetória política, justamente no momento em que se consagra chefe supremo do movimento integralista.
Para o autor a ruralização é decisiva para a existência do verdadeiro nacionalismo. Nesse romance, o ponto central é a influência negativa que as metrópoles passam a ter sobre as zonas interioranas, tema já abordado no primeiro romance de Plínio Salgado, quando o professor Juvêncio exaltava a nacionalidade, dizendo que o urbanismo é o fim da nacionalidade, expressando o anti-cosmopolitismo existente no Manifesto de outubro de 1932. Em O estrangeiro, o autor exalta e defende o universo rural, símbolo da pureza nacional. Essa ideologia de vida política de Plínio Salgado será a base do último romance modernista: Trepandé.
Trepandé foi escrito entre 1938 e 1939, período no qual os reflexos modernistas estavam ainda presentes. Entretanto, essa última obra modernista do escritor foi publicada somente depois de trinta anos, em 1971. No início do livro, o autor explica o ocorrido:
Este livro, como se verificará pela sua estruturação, disposição da matéria, técnica de estilo e simultaneidade de ação de numerosos tipos humanos, filia-se à corrente literária que empreendeu a transformação dos métodos descritivos e narrativos, depois da Semana de Arte Moderna, realizada em São Paulo no ano de 1922. Daquele movimento provieram o meu romance O estrangeiro, depois O esperado, podendo-se inserir nessa linha O cavaleiro de Itararé e A voz do oeste. O romance Trepandé pertence àquela fase da literatura brasileira, cujo período máximo foi de 1926 a 1940 [...] Inicialmente, por motivos de ordem particular, posteriormente, por me haver dedicado a obras de caráter doutrinário, deixei de publicá-lo. Decorridos 30 anos, minha mulher, pondo em ordem meus arquivos, encontrou os originais do livro esquecido e, juntos, começamos a relê-lo. À proporção que virávamos as páginas, experimentava eu duas impressões: a de que se tratava de uma narrativa desenvolvida por outra pessoa e não por mim, e a de que o livro trazia o documentário de uma técnica expressiva da revolução literária e artística em que se haviam empenhado os prosadores da minha contemporaneidade. [...] E aí está Trepandé, na sua significação poética, nos seus processos literários e maneira de narrar. (1972, p. IX-X).
O romance, como pode ser observado pelas palavras do autor, tem a sua particularidade e importância literária. Plínio Salgado, no período de 1932 a 1937, esteve na liderança da AIB e, no ano de 1938, os integralistas foram colocados na clandestinidade definitiva por Getúlio Vargas. Com isso, o escritor se exilou em Portugal, lá permanecendo até 1945. Nesse período, Plínio Salgado dedicou-se a suas obras de doutrinação política e ideológica. Devido à efervescência política em que o mundo se encontrava – estava acontecendo a Segunda Grande Guerra –, Plínio Salgado deixou sua obra romanesca de lado, sendo essa obra editada tempos depois.
A importância de Trepandé pode ser aquilatada por vários elementos, pois é um romance escrito em um período em que Plínio Salgado se encontrava em um momento de transformação ideológica, tendo suas primeiras manifestações políticas após a queda da AIB. Portanto, é possível observar nesse romance um escritor com diferenças de pensamento em relação ao da época de O estrangeiro, nesse primeiro romance, o seu forte pensamento político ainda estava sendo cristalizado. A outra importância de analisar a obra está no esquecimento no meio acadêmico, já que é praticamente inexistente qualquer tipo de comentário literário sobre esse romance.4 Assim, pode-se realizar um resgate literário de uma obra modernista de grande relevância política.
Em Trepandé, o autor coloca em questão os males que as metrópoles causam aos pequenos núcleos do interior e aos que dependem da subsistência e de uma dramaticidade excessiva.
O enredo do romance tem início em 1923, quando a população de Trepandé recebe a presença de grupos urbanos com o objetivo de iniciar o desenvolvimento da pequena cidade, causando uma grande euforia na população que começa a realizar planos pautados nessa possível transformação que pretende ser iniciada:
Planejaram naquela manhã empreendimentos formidáveis: reiniciar a atividade da Fábrica de Fósforos; organizar a extração do tanino das árvores do mangue; lançar uma empresa de colonização com venda de terrenos a prestações; instalar um posto de monta e seleção vegetal e animal para o desenvolvimento agrícola e pastoril da colônia; arrematar ‘salvados’ de naufrágios; fabricar gelo e desenvolver a pesca; explorar as minas de chumbo e prata; pesquisar petróleo. (Ibid., p.8).
O barbeiro Fidêncio, termômetro da opinião local, considerava Trepandé uma terra estropiada que esperava, agora, o progresso. Já o coronel Brasilino, presidente da Câmara Municipal, e o padre Antônio (cujo maior rebanho era o dos heróicos batalhadores do mar) mostravam-se céticos diante daquela “ventania de prosperidade” (Ibid., p.8).
Em pouco tempo a cidade passa por uma grande transformação principalmente com Torquato, que é colocado pelo autor como um dos participantes de um grupo de oportunistas, espertalhões, ambiciosos e corruptos que com o progresso iludem a população através de novas tecnologias. A cidade ganhou um cinema e luz elétrica. “– Luz elétrica, homem! Três lâmpadas: uma no Largo da Matriz, outra no Largo da Figueira e outra na rua João Ramalho. – Isso é que é gente! Exclamou entusiasmado Fidêncio.” (Ibid., p.41).
O objetivo é mostrar a aventura humana a aceitar a presença da cultura exterior promovendo assim uma ilusão. O centro do enredo está pautado no domínio imperialista que é colocado pelo autor como o grande mal a ser combatido.
Em meio a tudo isso, Fulgêncio Valério, um literato de sucesso que fugira das capitais asfixiantes para encontrar em Trepandé, o seu destino escreve sobre os “homens do mar” na caderneta em que gravava suas notas impressionistas, enaltecendo os nativos pescadores: “Os homens do campo estão mais perto de Deus do que os da cidade: porque à noite conseguem ver as estrelas.” (Ibid., p.30). As mudanças das cidades deixavam todos pasmos, ressaltando como a modernidade levava a mudança:
A chaminé da fábrica fumegava sobre o telhado novo. Mais adiante, um prédio recém-construído, com os letreiros Frigorífico e Fábrica de Gelo. As casas, em geral, pintadas de fresco, retelhadas e reencaixilhadas. Numa esquina, onde havia um sórdido barracão, erguia-se, agora, uma fachada vermelha com o dístico berrante: Cine Jazz. Três postes de luz elétrica. As ruas limpas. Gente transitando. E – novidade espantosa! – um automóvel. No porto, o Joli de tintas novas. Várias lanchas modernas. Próximo ao cais, numa ostentação supercivilizada, uma tabuleta com as palavras sugestivas em letras brancas sobre o fundo azul: Galveston Balneário. (Ibid., p.59).
A população de Trepandé crescera. Vieram de São Paulo e Santos 150 operários para diversos empreendimentos. Surgiram estabelecimentos novos na cidade. A Câmara Municipal e as Coletorias de Rendas Estadual e Federal arrecadavam mais impostos. A prefeitura aumentou seu rol de funcionários. O Madureira, diretor da Colônia Graxaim:
fez distribuir vários exemplares da obra de Henry Ford em que se demonstra que todo o progresso é uma conseqüência de maiores salários e maiores despesas. O Quim Frazão ficou de tal maneira entusiasmado com o livro que mandou pintar grande tela de morim, a atravessar a rua, berrando em letras pretas: QUEREIS FICAR RICOS? GASTAI O MAIS QUE PUDERDES! (Ibid., p.63).
O padre Antônio, no passado, havia encontrado em Trepandé: “as fontes puras da vida evangélica. A humildade cristã e a força do espírito nas batalhas tremendas do mar”. (Ibid., p.65). Ao contrário das suposições daqueles que o julgavam conservador, o padre, muito dedicado a sua paróquia, tornara-se um elemento de progresso local.
A modernização e o progresso das metrópoles são consideradas como uma influência externa e, por isso, vistas com maus olhos por Plínio Salgado, já que a essência da pureza é retirada em decorrência da presença exterior. Em toda a sua obra, Plínio Salgado trata a modernização e o progresso como um grande problema que provocará feridas morais e materiais.
Para Plínio Salgado as nações industriais assumem uma postura hegemônica sobre as nações agrícolas O conceito de civilização passa a ser sinônimo de industrialização e o cosmopolitismo é visto como o grande mal da sociedade, já que Plínio é um verdadeiro apologista do Brasil agrário:
O fato é que precisamos afastar vários inconvenientes e perigos, a fim de que o nosso progresso possa ir-se processando de uma maneira digna. A fascinação urbana conseqüente do nosso progresso industrial é agravada, [...] pela deficiência dos nossos aparelhamentos de higiene e de alfabetização, que não oferecem ainda às nossas populações rurais toda a alegria que deveria inspirar o contato com a Terra. [...] O êxodo dos campos para as cidades industriais acentua o cosmopolitismo, abre nossas fronteiras morais para a entrada de todas as doutrinas nascidas da superpopulação dos velhos países. Atenua-se, extingue-se o sentimento de Pátria, que é uma conseqüência natural do convívio entre o Homem e a Terra. [...] Nossa preocupação principal deve ser o consórcio mais íntimo entre a Cidade e o Sertão. (Salgado, 1956, p.78-79).
O cosmopolitismo é a grande causa da devastação da pequena cidade de Trepandé: “Um soluçado clamor subiu de todos os lares. Era a ruína dos pequenos comerciantes e agricultores; o esfacelamento de humildes economias domésticas; as desgraças privadas transformando-se em calamidade pública.” (Salgado, 1972, p.168).
A peste produz uma completa destruição da cidade, desgraça que traria para a alma coletiva a certeza de que não é possível acontecer mais nada além de uma destruição completa e geral:
Trepandé sentia-se imunizada contra novos desastres, pela própria extensão dos desastres sofridos. Conformara-se ao retorno da vida humilde, que vivera quatro séculos... Nas noites estreladas, iluminava-se a Matriz, subiam para o céu os kyries elegíacos, de longa melancolia monocórdica... Nos dias quietos, cantava o mar com velas brancas no dorso verde... (Ibid., p.183).
A modernização e o desenvolvimento artificiais são levados à pequena cidade do litoral Trepandé causando o apocalipse: “Um soluçado clamor subiu de todos os lares. Era a ruína dos pequenos comerciantes e agricultores; o esfacelamento de humildes economias domésticas; as desgraças privadas transformando-se em calamidade pública” (Ibid., p.168).
Essa modernização é tratada pelo autor como uma verdadeira peste, que provoca e deixa um rastro de feridas morais e materiais, causando a desgraça na alma coletiva. É justamente com esse fim cruel que a cidade ressurge através da autenticidade dos pescadores, e que se valorizam por viver na natureza, tendo a riqueza da terra ao lado deles.
Plínio Salgado coloca na obra que tudo fora completamente excluído da vida social – até mesmo a cidade havia desaparecido, passando a ser distrito de Iguape. Essa barbaridade ocorre justamente por causa da prosperidade urbana, mas que não ocorreu por incentivo nativo, e sim por um desenvolvimento externo, o grande mal que Plínio Salgado sempre quis evitar no Brasil: o cosmopolitismo:
O desenvolvimento da nossa vida urbana não pode efetivar-se numa progressão maior do que a do crescimento de nossas forças do interior. A fascinação das cidades é a fonte das discórdias sociais. A luta é nelas mais violenta. Em conseqüência do próprio desequilíbrio econômico que gera o seu excessivo progresso, a impressão de mal-estar se acentua na urbe, a concorrência agrava as revoltas e, sob a forma coletivista, rugem, não raro, os individualismo mais ferozes. (Salgado, 1956, p.96).
É visível que a luta de Plínio Salgado não é efetivamente contra a modernidade ou a tecnologia, mas sim contra um desenvolvimento vindo de fora, com uma cultura dominadora hegemônica:
A rapidez do nosso desenvolvimento induz-nos, porém, a meditações muito oportunas. Não que esse desenvolvimento seja um mal: ao contrário, ele só pode dignificar as gerações que nos precederam e o nosso dever é incrementá-lo ainda mais. Somos, porém, forçados a pensar sobre as conseqüências do próprio progresso [...] O nosso máximo problema não é ainda de ordem exclusivamente teórica, mas de ordem administrativa e prática. Antes de educar o povo para a democracia, temos de educá-lo para a nacionalidade. (Ibid., p.77).
No romance, a cidade de Trepandé é vista como verdadeira representante do herói problemático, pois é uma cidade que busca o nacionalismo defendido pelo ideólogo integralista, o que ocorre de uma maneira equivocada, o que leva à destruição pela ação cosmopolita, pois essa influência externa e sua “morte” representam uma ruptura com o mundo, buscando valores autênticos para o desenvolvimento da sociedade:
A cidade brasileira é, em tudo, parecida com a cidade européia. Pelo mesmo motivo por que Paris, Londres, ou Nova York se parecem. É verdade que cada uma dessas grandes metrópoles guarda certas feições próprias. O arranha-céu que sobe do formigueiro humano. Os largos parques londrinos assentados sobre a inquietude dos squares. Os crepúsculos iluminados na febre boulevardiana. Mas a vida social e o contato permanente com outros povos, outras raças, criam uma só fisionomia, como um só problema, como um só estado de espírito nos limites em que se enquadra a existência urbana. É que as cidades respiram no Tempo, ao contrario dos campos, que respiram no Espaço. (Ibid., p.95).
A cidade, para Plínio Salgado, pode ser analisada nesse caso como uma personagem, pois o autor dá a ela uma tônica de importância. Em O estrangeiro, diz: “As cidades têm uma alma, que paira sobre o panorama urbano: a projeção de todas as lamas que lutam, sofrem e sonham no seu bojo” (1936, p.19).
A designação de Trepandé como personagem central do romance é balizada no Manifesto Unanimista, elaborado por Jules Romains, em 1905, em que o teórico, ao perceber a agitação dos transeuntes e dos comerciantes de Amsterdam, diz que:
a existência de uma alma comum, um estado de espírito coletivo, que o levou a formular a teoria do unanimismo, ou seja, a teoria de que a vida humana não devia ser vista na sua individualidade, mas nas suas relações através das quais se poderiam perceber afinidades psíquicas que pareciam formar um ser novo e superior – a alma coletiva. Em todo agrupamento humano [...] haveria portanto um ser coletivo que deveria preocupar a atenção do escritor. (Teles, 2002, p.73).
Seguindo essa teoria, a cidade de Trepandé é colocada como a detentora da consciência possível que busca a verdadeira autenticidade dos povos. A cidade se refaz somente no momento em que os autênticos portadores da vida de Trepandé ressurgem com o objetivo de reerguê-la, movimento que ocorre na pureza dos seus pescadores, definidos como: “estranho lavrador da incerta lavoura” (Salgado, 1972, p.31).
Para Plínio Salgado, a pureza nacional está presente nos verdadeiros nativos da terra:
É claro que não sugiro voltemos exclusivamente ao tupi: mas quero significar quanto nos afastaremos da Humanidade, afastando-nos da Nacionalidade. [...] É evidente, portanto, que não pretendo um novo indianismo [...] Essa afirmação do homem da nossa terra dar-se-á em definitivo, quando as cidades cosmopolitas forem invadidas pelo Espírito Nacional. (Salgado, 1935, p.50).
São eles que, após o progresso, retornam para o mar, seu destino histórico, pois:
O mar não ilude, é sempre o mesmo, não promete riquezas, nem grandezas, mas alimenta e oferece com as suas tempestades ocasião para aventuras à brava gente em cuja companhia vive desde Martim Afonso de Sousa... Todos foram ou se irão embora, mas o mar fica, o mar não se vai embora. A sua presença é a única certeza deste povo. (Salgado, 1972, p.201).
A força do nativo mais uma vez é colocada como a força para se chegar ao valor autêntico, rompendo com esse mundo de modernização exterior:
Minha mentalidade, desurbanizada e cabocla, debalde tem procurado sentir como o homem da fábrica ou do gabinete, da burocracia ou dos salões. Acredito que a grande maioria do país está em idêntica situação. É que os centros industriais e cosmopolitas favorecem a desagregação do homem de suas peias naturais, e o projetam no terreno neutro, que é o mercado onde os gênios exóticos vêm abastecer-se de adeptos. (Salgado, 1956, p.97).
O pensamento político e ideológico de Plínio Salgado está claramente expresso no romance. O autor não realiza a transcendência vertical assim como não consegue a desvinculação com o mundo burguês existente. Nessa obra, Plínio Salgado quer demonstrar a situação vivida no período em que foi escrita – após o decreto do Estado Novo – quando os integralistas foram levados à ilegalidade. A obra pode ser lida como uma metáfora de vida para exemplificar a situação dos “verdadeiros nacionalistas” do Brasil. Para eles, Getúlio Vargas traz o progresso industrial, mas de uma maneira que não tem o objetivo de beneficiar a sociedade brasileira.
Após o momento de desagregação, que seria o fim do governo varguista, os integralistas chegariam ao poder e colocariam em prática suas doutrinas nacionalistas. Por realizar uma relação entre crônica social e biografia, Trepandé pode ser considerado um romance e, assim, a maior expressão burguesa literária.
Este pequeno ensaio obteve como objetivo analisar de maneira sucinta apenas um romance de Plínio Salgado para servir de amostragem da possível relação com o estruturalismo genético goldmanniano. Nos estudos realizados sobre as obras ficcionais de Plínio Salgado, percebe-se uma crescente politização da temática do autor, permitindo constatar que Plínio Salgado mostra-se sensível aos problemas políticos e, ainda, aberto às influências ideológicas. Assim, nota-se que o autor pretendeu transformar os romances em fontes ideológicas, pois neles percebe-se claramente a ideologia integralista.
Nos romances, o intelectual Plínio Salgado não conseguirá desvincular-se do mundo em que vive para buscar o valor autêntico. Por isso a vitória não ocorre, pois o caminho é percorrido de maneira equivocada devido à impossibilidade de desvinculação do Estado burguês existente. O nacionalismo almejado passa a ser um valor burguês da sociedade, uma vez que seu objetivo é atender o grupo que o ronda: a pequena burguesia.
Visto a luz da teoria goldmanniana, esse herói problemático busca a ruptura da sociedade, o que ocorre de uma maneira equivocada, já que os valores autênticos são vistos pela sociedade de uma maneira alienada. O romance deveria mostrar caminhos para os problemas, mas devido ao fato de ser uma criação burguesa, não acontecerá a desvinculação do herói problemático com o autor. Na maior parte das vezes, o autor se retratará no herói problemático. O autor não encontra saída para os questionamentos criados pelo personagem, já que é a sua vida que está sendo retratada dentro de uma vida burguesa, de um Estado burguês. Assim, o fim do herói problemático acaba sendo sua destruição: a morte.
O romance é composto por biografia e crônica social e o autor coloca sua vida e experiências nos romances; por isso o herói é o problemático. Portanto, o herói é um problemático sem valores autênticos num mundo de convenções existentes – as convenções burguesas. O herói está inserido numa sociedade individualista – pois é nela que o escritor vive – e, portanto, sua busca ocorre dentro de um contexto burguês. O romance é um gênero que estabelece uma ruptura entre herói e mundo, mas ela ocorre de maneira equivocada, pois o autor não consegue realizar a transcendência vertical, que consiste em não se colocar no romance. De acordo com a teoria goldmanniana, o autor não consegue realizar a transcendência vertical porque suas aspirações e desejos são sempre colocados na obra. Com isso, os valores usuais da sociedade burguesa passam a ser expressos. O romance é o único gênero literário em que a ética do romancista converte-se em problema estético da obra. A criação burguesa do escritor – o romance – precisa da presença do herói problemático que tem como objetivo buscar os valores autênticos.
Portanto, em Trepandé, é possível de maneira eficaz observar a relação entre a política doutrinária e a literatura romanesca, comprovando a teoria de Lucien Goldmann, segundo a qual o mundo burguês está presente do romance.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. Belo Horizonte: Una, 1999.
GOLDMANN, Lucien. A sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
GONÇALVES, Leandro Pereira. Literatura e Autoritarismo: o pensamento político nos romances de Plínio Salgado. Dissertação (Mestrado em Letras, área de concentração: Literatura Brasileira). Programa de Pós-graduação do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2006.
SALGADO, Plínio. A voz do oeste. Rio de Janeiro: José Olympio, 1934.
___. Despertemos a nação! Rio de Janeiro: José Olympio, 1935.
___. Literatura e política. In: ___. Obras completas. São Paulo: Américas, 1956. v.19. pp. 5-125.
___. Manifesto de outubro de 1932. São Paulo: Voz do oeste, 1982.
___. O cavaleiro de Itararé. São Paulo: Panorama, 1948.
___. O dono do mundo. São Paulo: GRD, 1999.
___. O esperado. São Paulo: Voz do oeste, 1981.
___. O estrangeiro. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1936.
___. Trepandé. Rio de Janeiro: José Olympio, 1972.
TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 2002.

1 Este artigo é uma versão ligeiramente modificada do Capítulo III da dissertação apresentado pelo autor intitulada: Literatura e Autoritarismo: o pensamento político nos romances de Plínio Salgado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, área de concentração: Literatura Brasileira. Orientador: Prof.Dr. Gilberto Mendonça Teles.
2 Professor assistente do Departamento de História do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora; Mestre em Letras: Literatura brasileira (CES/JF); e-mail: leandropgoncalves@gmail.com
3 Na versão completa da pesquisa foram analisados três romances de Plínio Salgado: O estrangeiro, Trepandé e O dono do mundo.
4 A única referência bibliográfica do romance Trepandé está inserida em: CHASIN, José. O integralismo de Plínio Salgado: forma de regressividade no capitalismo hiper-tardio. Belo Horizonte: Una, 1999.
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