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Literatura e Autoritarismo
          Sujeito, Memória e História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 10 

A VIOLÊNCIA EM CAPÃO PECADO

Carolina Correia dos Santos1


Resumo: o presente trabalho pretende demonstrar como a violência apresentada em Capão Pecado, um romance escrito por Ferréz, significa uma descrença no projeto humanista de modernidade, tal qual concebido no século dezenove. Para isto, este estudo analisará a personagem principal do romance especialmente naqueles momentos quando a violência ocorre. Além disso, as noções de imperialismo, exílio e diáspora concebidas por Edward Said e Gayatri Spivak, juntamente com a recém desenvolvida “dialética da marginalidade”, uma abordagem crítica formulada por João Cezar Castro Rocha, serão fundamentais para determinar como e por que esta descrença na modernidade acontece no romance.

Palavras-chave: violência, Ferréz, exclusão, Estado, periferia, centro, literatura contemporânea brasileira.

Abstract: this work aims at showing that the violence presented in Capão Pecado, a novel written by Ferréz, means a disbelief in the humanistic project of modernity as first conceived in the nineteenth century. In order to do so, this paper will analyze the main character of the novel mainly at those moments when violence takes place. Also, the notions of imperialism, exile and diaspora conceived by Edward Said and Gayatri Spivak, together with the newly developed “dialectics of marginality”, a critical approach formulated by João Cezar Castro Rocha, will be fundamental in determining how and why this disbelief in modernity takes place in the novel.

Keywords: violence, Ferréz, exclusion, State, periphery, center, Brazilian contemporary literature.

1. Introdução
Quando Lukács escreveu A Teoria do Romance (2006), ele analisava as obras do século dezenove sob uma ótica hegeliana que concebia, entre outras coisas, aquele momento histórico como uma espécie de apogeu da humanidade. A ‘conquista Estado-nação’ era vista por Hegel como o vitorioso ponto final na evolução da humanidade. O Estado trataria de agregar os sujeitos que neste momento eram percebidos como indivíduos. Uma interpretação nostálgica deste momento lamentava a solidão do sujeito moderno. Lukács, neste contexto, escreve uma teoria para um gênero literário que era fruto desta percepção de ser e estar só. Em contraste com a epopéia, gênero típico de uma comunidade orgânica onde não existia o conceito de individualidade, Lukács afirmaria que o romance teria de dar conta de recuperar esta totalidade perdida. Desta forma, os escritores se encarregariam de conceber uma totalidade nas suas obras, realizando assim o que se nomeou romance. O que podemos concluir, então, é que o romance seria, acima de tudo, uma tentativa de escrever uma obra literária coesa, coerente e fechada, na qual os fatos descritos se organizariam de maneira causal e o escritor bem sucedido seria aquele que organizasse sob estes parâmetros os eventos narrados. Diante do caos da vida, a arte propiciaria um alento, uma instância de ordem.
Dentro dessa perspectiva luckacsiana, a violência, como qualquer outro aspecto exposto por um romance, só se poderia se fazer presente se mostrada como matéria organizada, com explícitas relações causais que conduzissem o protagonista ao seu autoconhecimento. Como que numa curva ascendente, o protagonista deixaria a realidade sem sentido rumo a si mesmo.
Isto posto, analisar a violência presente em Capão Pecado, romance escrito por Ferréz e publicado primeiramente em 2000, parece fazer outras exigências, convertendo-se num caminho diferente do sugerido por Lukács. A realidade é ainda caótica, mas a ficção não mais se conforma lugar da organização e do alento. Minha proposta é de que a violência na obra, nas suas diferentes doses, pretende significar uma dissociação entre o homem da comunidade em questão – a comunidade do Capão Redondo, periferia de São Paulo – e o que chamo de centro desta mesma cidade, nomeadamente o centro econômico, financeiro, cultural e político de São Paulo. Esta dissociação, então, implica uma cisão entre o homem da periferia – Rael, no romance – e o Estado, configurando um caro problema à noção de modernidade inclusora e homogeneizante.

2. Capão Pecado como espaço de tensão
Considerando-se o romance como gênero eleito para a concepção do que considero um exemplo da descrença no projeto humanista de modernidade, Capão Pecado já se constitui num espaço onde forças antagônicas e contraditórias estão presentes. Ou seja, ele denota a falência da inclusão de todos os homens neste projeto no seu conteúdo, mas se apresenta exatamente através de um gênero literário representante da (e originado na) burguesia, para, contudo, subvertê-lo. Assim, Capão Pecado é espaço de uma relação de tensão entre o pertencer e o não pertencer, compreendido no ato de escrever um romance numa outra medida. O romance não configura a peregrinação de um indivíduo, como Lukács argumentou, por exemplo. Ele é, como veremos, a derrocada de um indivíduo em favor da reiteração de um destino comum, no sentido de pertencer a muitos; o que acontece com Rael é modelar. Capão Pecado, também, é uma obra aberta a outros escritores que têm seus textos (letras de música, ensaios, poemas, etc.) inseridos ao longo do livro, no início de alguns capítulos.
Finalmente, há capítulos que rompem com a narrativa, às vezes de maneira tão marcante que o tempo verbal muda. Deixamos o passado e adentramos o presente, por exemplo, quando tomamos conhecimento da história do ajudante de pedreiro Carimbê, que sai do Rio de Janeiro em direção à capital paulista em busca do dinheiro que receberia por sua demissão depois da primeira bebedeira. A história do homem que percebe que sua vida “não passa de uma grande decepção” (Ferréz, 2005a, p. 105) em nada agrega, altera ou perturba a pequena e incompleta (se assim a encaramos) narrativa sobre Rael, que constitui o principal enredo do romance.
Esta relação de tensão também é percebida pela linguagem usada que oscila entre o português padrão e o português vernáculo, referente à linguagem cotidiana dos jovens do Capão Redondo.
Deleuze e Guattari (1977, p. 42) identificam elementos lingüísticos “intensivos ou tensores” que exprimem “tensões interiores de uma língua” e presumem que uma literatura menor – como a de Kafka, segundo a obra crítica em questão – desenvolve particularmente estes elementos. Parece que o uso do português vernáculo por Ferréz denota tais elementos lingüísticos. Talvez, assim, oponha o caráter oprimido e o opressor da língua quando narra em português padrão e opta pelo português vernáculo da periferia quando seus personagens falam ou naqueles momentos nos quais perdemos de vista a voz narrativa individual, quando ela se funde e transforma-se em voz coletiva. E, se assim for, Ferréz opta por expor as diferenças em lugar de anulá-las. O trecho seguinte contém muitos elementos lingüísticos “intensivos ou tensores” que dificultam a leitura de alguém que não pertence ao meio do autor:
(...) e que desconfiava que haviam sido os manos da Paraisópolis que tinham contratado o Burgos pra fazer o serviço: afinal as bocas não podem se dar ao luxo de ficar com prejuízo, porque senão os negócios despencam: é só um nóia saber que tal mano comprou na boca, não pagou, e nada aconteceu, que tá feito o boato que os chefes da boca não tão com nada. O respeito tem que prevalecer. (Ferréz, 2005a, p.33)
Acredito que o uso desses elementos – “manos”, “bocas”, “nóia”, “chefes da boca” – figura uma questão importante. Eles não são utilizados somente porque é assim que se fala na periferia de São Paulo. Eles co-existem no romance com o português padrão para denotar o diferente, o marginal, o limiar, o que sugere uma opção pelo descentramento: Capão Pecado não tem a ilusão de pertencer ao chamado centro – universidade, centro econômico e literário – e, ampliando a potencialidade desta idéia, as personagens do romance também não têm a ilusão de pertencer ou de vir a pertencer ao centro político, social, econômico e cultural da cidade ou do país. Começo, então, a delinear a exclusão assimilada pelo sujeito da periferia, que percebe e conta a falência do projeto humanista de modernidade, na cidade de São Paulo, Brasil.

3. A ruína de Rael: perda da ilusão de inclusão
Vejamos a construção do protagonista da obra, Rael. Único filho de pais analfabetos, um garoto muito pobre, que, ainda pequeno, mudou-se com a família para o bairro do Capão Redondo. Diz o narrador que ele fazia amigos facilmente e logo passava a freqüentar a casa dos colegas, pois era educado e seu tipo físico agradava as mães (Ferréz, 2005a). O menino cresceu assistindo a seriados na televisão e lendo. Entre mortes de amigos, a “necessidade de comprar roupas e de um material melhor para escola” (Ferréz, 2005a, p. 18) e o curso de datilografia nos fins de semana, Rael começou a trabalhar numa padaria. Orgulhoso, recebeu o primeiro salário. Prestativo e grato, ele separou parte do dinheiro para sua mãe. Jovem, ele jogava videogame e curtia “o som da equipe até a meia noite” (Ferréz, 2005a, p. 23). E, trabalhador, acordava cedo e atendia “os clientes como sempre, com muita educação e um sorriso de orelha a orelha”.(Ferréz, 2005a, p. 23).
Desta forma, neste tom, temos a construção de Rael que continuava a gostar de ler depois de adulto e eventualmente se apaixonou pela namorada do melhor amigo. Este parece ser o único pecado que a personagem comete até este momento. Consciente do mal e em vão, ele tentou não se entregar à paixão. Mais tarde, eles se casam, têm um filho e, pouco depois, Rael é abandonado pela esposa que o havia traído.
O que é importante notar é que até este momento Rael é o que ‘se gostaria’ de ver no garoto da periferia. Com exceção, talvez, da relação sexual claramente violenta com Paula que distancia a personagem dos ‘padrões normais’ – uma vez que amor não ‘combina’ com sexo anal, presumindo e caricaturando, como faço aqui, os ditos ‘padrões normais’ – Rael encarna o ‘bom selvagem’, a manifestação da visão romântica do garoto da periferia que vive feliz onde cresceu e poderia sair para ‘triunfar’: viver no centro, ‘melhorar’ suas condições de vida, participar de um projeto de nação, enfim, para continuar com a visão romântica.
Contudo, a aproximação e o afeto possíveis sentidos pelo leitor, se desconstroem diante da barbaridade cometida. Rael, ao saber da traição de Paula, consegue uma arma, mata o amante da esposa, vai preso e é morto na prisão – fim da simpatia. A violência das suas ações não corrobora para que se veja Rael romanticamente. Por outro ângulo, Rael não conseguiu pertencer ao centro e, acima de tudo, denotou sua exclusão. De fato, durante todo o romance há apenas um momento no qual o protagonista sai do seu bairro periférico, Capão Redondo, para ir à cidade a pedido de sua mãe. O trecho é longo mas vale a citação:
Não tendo escolha, Rael tomou um banho rápido, se arrumou e foi para o bairro da Liberdade. (...)
Ele tinha nojo daqueles rostos voltados para cima, parecia que todos eles eram melhores do que os outros. (...)
Chegando ao mercado de seu Halim, o pão-duro já o havia visto de longe e já estava contando o dinheiro para lhe dar. Rael se aproximou e Halim nem o cumprimentou, só entregou o dinheiro e disse que o serviço de sua mãe estava lhe custando muito dinheiro. Rael não respondeu nada, só guardou o dinheiro no bolso, disse obrigado e se retirou. Mas Halim notou algo em seu rosto, algo estranho, talvez por um momento Halim tenha visto nos olhos daquele simples menino periférico um sentimento de ódio puro e tenha sentido por algum momento que um dia o jogo iria virar.
Pegou o primeiro ônibus, desceu no terminal Capelinha e lá pegou o Jardim Comercial. Conforme o ônibus avançava, ele se sentia melhor, se sentia mais em casa. Era constante o pensamento de que seu amigo Ratão estava certo, talvez ele descolasse uma granada, era só chegar no mercado do Sr. Halim e explodi-lo com toda sua ganância, mas como sempre ele relevava e dizia a si mesmo ser loucura tal ato.
Entregou o dinheiro para sua mãe, correu para o tanque, lavou o rosto como uma forma de desabafo, como se estivesse se lavando dos olhares daquelas pessoas hipócritas. Foi para seu espaço naquela pequena casa, pegou um livrinho de bolso de faroeste e começou a ler. Era uma terapia para ele, uma forma de esquecer aquelas pessoas tão preocupadas consigo mesmas a ponto de não notarem as pequenas coisas, os pequenos momentos, que às vezes trazem tanta felicidade. (Ferréz, 2005a, p. 24-5)
Há, evidentemente, o desconforto, o ódio, a sensação de violência e humilhação sofridas quando Rael sai do seu bairro em direção ao centro. Mais do que os corpos dos vizinhos que de vez em quando aparecem estendidos nas ruas, não parece ser este, exatamente, o momento mais violento para o protagonista no romance?2 Talvez porque esta violência denota uma cisão completa entre um homem e os outros, uma total desesperança no outro.
Tão interessante quanto a percepção desta violência velada, não sangrenta, é a realização da ironia do autor. Há, primeiramente, a percepção do Sr Halim de que “um dia o jogo iria virar” e depois a vontade de Rael de cometer um ato violento – conseguir uma granada e matar o Sr Halim – mas, imediatamente após, a compreensão de que este seria um ato de loucura. Contudo, o destino de Rael é precisamente contrário a estes entendimentos: Rael não vira o jogo; ele comete a “loucura” de matar o amante.
Tal derrocada – entendida como sucessora da inicial afinidade entre Rael e concepções ‘centrais e simpáticas’ sobre o homem da periferia, no sentido de serem concebidas no centro; Rael, afinal, lê, estuda, trabalha, é bom filho e ama – é, na minha opinião, um exemplo da “dialética da marginalidade”, abordagem desenvolvida pelo crítico João Cezar de Castro Rocha (2005) para sublinhar uma nova forma de relações entre as classes sociais brasileiras que, segundo ele, já não obedeceriam à “dialética da malandragem” tal como Antonio Candido gerou. Sobre o romance Cidade de Deus, um dos expoentes mais notórios da nova produção cultural contemporânea, Rocha escreve: “The absence of a clear plan for overcoming social inequalities thwarts the utopian promise of the inhabitants of the actual shantytown Cidade de Deus being ‘finally absorbed by the conventional positive pole’, as ideally would happen in the case of the malandro.”3 (Rocha, 2005, p. 21)
O crítico denota que nesta produção cultural contemporânea a violência não mais seria controlada através de meios reconciliatórios; estes são descreditados, como o foram por Rael ao matar o amante de Paula e ir para prisão. Ou seja, sua atitude é, com efeito, marginal em relação ao “pólo positivo”, não a oscilação típica do malandro. Rael, talvez por saber sobre suas reais (im)possibilidades, não faz planos para, por exemplo, sair da favela – da margem – e trabalhar no centro, que lhe causa asco, como mencionado acima. Pelo contrário: apesar da crença ‘classe média’ de que ele poderia ser absorvido pela “ordem”, não é isso que acontece.
Também interessante no comentário de Rocha é o deslize da ficção para a ‘realidade’, sugerindo uma certa dissolução das fronteiras entre ficção e não-ficção, entre arte e vida: o caos da vida não consegue ser sublimado pela arte que é tudo menos alento, contrariamente ao que queria Lukács. Através de obras como Capão Pecado e Cidade de Deus, pode-se, então, compreender novas relações entre a margem e o centro, ou a periferia e o centro das cidades (re)significadas através da obra de ficção. Por meio da exposição da violência e das diferenças, esta produção contemporânea se caracteriza e adquire sua força irreconciliatória; como afirma Homi Bhabha, “the time for ‘assimilating’ minorities to holistic and organic notions of cultural value has passed.”4 (apud Rutherford, 1990, p. 219)
Outra característica importante da ‘dialética da marginalidade’, a mais importante segundo Rocha, diz respeito ao lócus de enunciação; o que Ferréz assim caracterizaria no seu prefácio para a coletânea Literatura Marginal: “não somos mais o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (Ferréz, 2005b, p. 9) O crítico comemora a voz nesta literatura da periferia que finalmente fala de si e controla o uso sua imagem (Rocha, 2005, p. 27).

4. Crise do nacionalismo e exílio
Ferréz, então, se posiciona como agente desta enunciação, desde um lugar marginal. Ao se posicionar como oriundo da periferia de uma cidade num país que, em diversos aspectos, também é periférico, ele reforça sua condição de subalterno e a dúvida sobre seu direito de ser agente do processo de concepção de um romance uma vez que a periferia não é entendida como pólo produtor de literatura.
O imperialismo pujante dos dias atuais atua de modo a criar sociedades cada vez mais desiguais onde a distância entre os indivíduos que efetivamente podem fazer cultura e os que não seja, ao menos, duplamente percebida no Brasil: pela distância que o país tem com os grandes pólos econômicos e centros produtores de cultura e pela distância que impõe internamente, nas suas grandes cidades, entre os centros e as periferias, ambos microcosmos da situação global. Assim, as conseqüências e legados do imperialismo são também duplamente visíveis. Edward Said afirma que o pior e mais paradoxal legado do imperialismo “foi permitir que as pessoas acreditassem que eram apenas, sobretudo, exclusivamente brancas, pretas, ocidentais ou orientais”.(Said, 1993, p.411) Ferréz (2005b, p. 9) parece ser prova viva deste legado quando se coloca em oposição a um outro: “Somos contra sua opinião, não viveremos ou morreremos se não tivermos o selo da aceitação, na verdade tudo vai continuar, muitos querendo ou não.”, escreveria ele em seu ensaio “Terrorismo Literário”. Em Capão Pecado, ele estaria dizendo algo parecido quando permite que o leitor se identifique com Rael, como explicitado, por sua boa educação, seu hábito de ler, sua responsabilidade, etc, e, depois, faz a personagem cometer um crime bárbaro e condenável, distanciando-a do leitor, numa evidente tentativa de se contrapor ao leitor ou a qualquer simpatia deste para com a personagem.
O imperialismo a que se refere Said acha um complemento na noção de “transnacionalidade” de Gayatri Spivak. Se na citação acima Said se concentra mais no contexto cultural no qual o Imperialismo opera, Spivak desenvolve um pano de fundo amplamente econômico que explica o que ela chama de “new diaspora”:
It is impossible for the new and developing states, the newly decolonizing or the old decolonizing nations, to escape the orthodox constrains of a ‘neo-liberal’ world economic system which, in the name of Development, and now ‘sustainable development’, removes all barriers between itself and fragile economies, so that any possibility of building for social redistribution is severely damaged.5 (Spivak, 1996, p. 245)
Spivak argumenta que o desmantelamento do Estado e a desoneração do seu papel na vida cotidiana da população civil vitimam, principalmente, os indivíduos das classes menos favorecidas, e não há perspectiva de mudanças uma vez que o Estado prioriza uma agenda transnacional. A “new diaspora”, então, constitui-se não como migração, mas como uma das mais recentes formas do surgimento do capital pós-moderno, em que o constante deslocamento é uma possibilidade de sobrevivência e não mais existe o mito do retorno – este, proibido pela situação financeira.
Spivak refere-se à situação global e por isso mesmo à do Brasil, também. Tais sentimentos de deslocamento e desamparo originados pelo descaso do Estado, ou a falta de vínculo entre este e os seus cidadãos, pode-se afirmar, contribuem para a formação de identidades, dentro de um país, muito adversas e avessas à identidade nacional, ou ao projeto de uma. Na mesma medida em que os cidadãos de um determinado lugar (cidade ou país) não se sentem como pertencentes a este lugar, eles tendem à não identificação com a cultura hegemônica. Ou seja: parece haver uma ligação estreita entre economia, crise do Estado e sentimento de pertença a um lugar ou a uma nação, daí o deslocamento deixar de ser exclusivamente físico-geográfico para tornar-se psicológico, como uma condição de exílio no lugar de origem.
Said afirma que existe uma relação essencial entre o nacionalismo e o exílio:
O nacionalismo é uma declaração de pertença a um lugar, a um povo, a uma herança cultural. Ele afirma uma pátria criada por uma comunidade de língua, cultura e costumes e, ao fazê-lo, rechaça o exílio, luta para evitar seus estragos. Com efeito, a interação entre nacionalismo e exílio é como a dialética Hegeliana do senhor e do escravo, opostos que informam e constituem um ao outro. (...) todos os nacionalismos têm seus pais fundadores, seus textos básicos, quase religiosos, uma retórica do pertencer, marcos históricos e geográficos, inimigos e heróis oficiais.” (Said, 2001, p. 49)
Ora, se é assim, Ferréz e nenhum dos membros que ele identifica no seu “nós” – a periferia – de “Terrorismo Literário” têm, verdadeiramente, razão para sentir-se pertencente à cultura produzida nas comunidades centrais. O Brasil, como todos os outros países, contou e conta sua ‘história’, sua ‘cultura’, pelas vozes que emanam dos seus centros e qualquer outra voz que eles incorporem (acredito que não estaria equivocada em afirmar que, primordialmente, estes centros são os ‘centros’ de Rio de Janeiro e São Paulo). Tal ausência do sentimento de nacionalismo ocasiona o exílio. Said (2001, p. 50) descreve este lugar de exílio: “E logo adiante da fronteira entre ‘nós’ e os ‘outros’ está o perigoso território do não-pertencer, para o qual, em tempos primitivos, as pessoas eram banidas e onde, na era moderna, imensos agregados de humanidade permanecem como refugiados e pessoas deslocadas”. Não é exatamente esta sensação de deslocamento que surge no momento em que intuímos ser o mais violento do romance, qual seja, quando Rael sai do seu bairro em direção ao centro e lá passa algumas horas? E não é a periferia o lugar para onde as pessoas foram banidas ainda que na contemporaneidade?
Explica-se por essa óptica do deslocamento e do exílio forçado a necessidade de Ferréz de contar uma história que só pode ser interpretada, por causa da violência, como a não-identificação com a identidade principal do brasileiro, ou, aquela que se pretenderia ser a identidade principal: do homem trabalhador, feliz com sua família que é vitorioso por ser bom. Há, em Capão Pecado, a intenção de narrar uma história violenta, onde a ironia prevalece, e assim, (re-) inscrever o homem da periferia, o pobre da contemporaneidade, numa história mais abrangente (a do Brasil, talvez?), através da enunciação de um excluído e não de um outro de fora.

5. Conclusão: a necessidade da crítica
Se, então, se chega ao ponto de perceber a existência da periferia e da sua produção cultural, não se pode mais recuar e deve-se entender o que se fala sobre quem se fala. Isto é, se o que há em Capão Pecado é finalmente um discurso que tem sido silenciado por quase toda a história literária brasileira, então, há de se tentar perceber que outra história é essa, ou, o que acontece ‘do lado de lá’ enquanto se aprecia a dita boa literatura e se ‘acredita’ nas histórias que esta conta.
O que parece interessante notar – como forma de sugestão, mais provisória do que última palavra –, primeira e finalmente, é que a violência cometida pelo protagonista deste romance – matar o amante da esposa – é desencadeada por uma espécie de pathos, sofrimento ou desvio, mas também uma certa sensibilidade de que alguns indivíduos, numa sociedade, são dotados. Assim, como se denotasse a falência de uma concepção de individualidade originada pelo gênero literário do romance, como Lukács aborda, Capão Pecado conta sobre um indivíduo que se identifica com um determinado valor da sua comunidade, objetivo, conseqüentemente, contrário às motivações modernas que são subjetivas. Este valor – motivação – é a retomada da “honra”, do respeito. Ao matar o amante da esposa, Rael se identifica com um determinado elemento cultural em detrimento de outro que, segundo minha hipótese neste estudo, seria a lei do Estado (que o levaria a não cometer o crime). Ainda, o valor ao qual ele se agarra pertence à sua comunidade especificamente. Devemos lembrar a citação acima que remonta ao respeito: “é só um nóia saber que tal mano comprou na boca, não pagou, e nada aconteceu, que tá feito o boato que os chefes da boca não tão com nada. O respeito tem que prevalecer.” (Ferréz, 2005a, p.33)
Portanto, o que se apreende através desta interpretação do crime é um tipo de clamor por uma identidade de grupo, de uma comunidade que certamente não é mais orgânica, mas que ‘estabiliza’ sua identidade por meio da voz do escritor. Essa identidade está à margem do Estado e conta com a violência para se conformar como tal. Esta é, certamente, uma das possíveis significações do romance.
Sentimentos como exclusão, ausência do sentimento de nacionalismo, deslocamento e descrença na promessa do Estado moderno de inclusão, presentes em Capão Pecado, apóiam esta significação e, acredito, fazem desta uma obra que merece uma atenção cuidadosa. Como se estivéssemos diante de um oráculo, Capão Pecado diz mais sobre nossos tempos (e um futuro próximo) do que poderiam inferir alguns depois de uma leitura desatenta. Afinal, não é nova a intuição que diz que quem está na periferia tem mais chances de ver o todo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] CANDIDO, Antonio. A dialética da malandragem. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, S. Paulo, 1970, nº 8.
[2] DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Kafka: por uma literatura menor. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1977.
[3] FERRÉZ. Capão Pecado. São Paulo: Objetiva, 2005a.
[4] _______. Terrorismo Literário. In: FERRÉZ (Org.). Literatura marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005b. p. 9-14.
[5] LINS, Paulo. Cidade de Deus. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
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[7] ROCHA, João Cezar de Castro. The Dialectic of Marginality: Preliminary Notes on Brazilian Contemporary Culture. Centre for Brazilian Studies, University of Oxford, Working Paper Number 62, Oxford, v. 62, p. 1-39, 2005.
[8] RUTHERFORD, Jonathan. The Third Space: Interview with Homi Bhabha. In: RUTHERFORD, Jonathan (Ed.). Identity: Community, Culture, Difference. London: Lawrence & Wishart, 1990. p. 207-221.
[9] SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
[10] ______________. Reflexões sobre o exílio. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
[11] SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Diasporas old and new: women in the transnational world. In: Textual Practices 10(2), 1996. London: Routledge, 1996. p. 245-269.

1 Mestranda em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP. Bolsista CAPES. Email: escarola57@yahoo.com
2 O crítico João Cezar Castro Rocha (2005), quando analisa o filme Cidade de Deus, argumenta que para ele a cena mais violenta é exatamente quando Buscapé acha que vai morrer por ter tido suas fotos do bandido Zé Pequeno publicadas sem seu consentimento, por isso mesmo entra esbravejando na redação do jornal e é recebido por uma superior que lhe exige calma e ignora o risco de vida que o fotógrafo amador corre. De forma similar, Rael é violentado quando é ignorado, ou seja, quando sua presença é imperceptível e sua realidade inexiste.
3 A ausência de um plano claro para superar as desigualdades sociais frustra a utópica promessa dos verdadeiros habitantes da favela Cidade de Deus serem, “no final, absorvidos pelo pólo convencionalmente positivo,” como idealmente aconteceria no caso do malandro.
4 o momento de assimilar minorias em noções orgânicas e holísticas de valor cultural passou.
5 É impossível para os Estados em desenvolvimento, os há muito recentemente descolonizados, escapar dos grilhões ortodoxos de um sistema econômico mundial ‘neo-liberal’ que, em nome do Desenvolvimento, e agora ‘desenvolvimento sustentável’, remove todas as barreiras entre ele e economias frágeis, tanto que qualquer possibilidade de construção de redistribuição social é severamente prejudicada.
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