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Literatura e Autoritarismo
          Sujeito, Memória e História
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 10 

CORPUS: A VIDA POLÍTICA

Flávia Biff Cera1


Resumo: O último livro de Ferréz, Ninguém é inocente em São Paulo, reabre a discussão sobre culpados e inocentes. Discussão que remete a leitura que Giorgio Agamben fez da zona cinza de Primo Levi em O que resta de Auschwitz. O filósofo refere-se a esta zona cinza como uma zona de irresponsabilidade, onde há indistinção entre vítimas e carrascos: o opressor vira oprimido e oprimido vira opressor. Esta zona nebulosa não diferencia exceção e regra, é o espaço propício para o permanente Estado de exceção em que vivemos. Não por acaso encontrarmos no livro referido de Ferréz um conto com o título “Terminal (Nazista)” no qual não conseguimos saber com precisão se se trata de um terminal de ônibus ou de um campo de concentração nazista: “eu tentava olhar diretamente para olhos, os que não tinham cabeças muito baixas não tinham globos oculares”. Resta-nos, então, procurar uma saída ética e, portanto, política, para derrotar a constante tentativa de naturalização do inumano, do horror e da catástrofe. Agamben aponta para a profanação e Jean-Luc Nancy insiste no tema do contato: duas formas que colocam o corpo no centro das atenções políticas. Políticas que não devem ser fundadas na politização da vida nua, que só faz manter a relação do bando soberano, ou seja, permite a captura e abandono, a inclusão-exclusiva, mas sim políticas fundadas na potência política contida no cerne da vida nua, porque esta vida é a própria política e tem como objetivo a busca da felicidade.

Palavras-chave: literatura marginal, corpo, política.

Abstract: Ferréz’s latest book, Ninguém é inocente em São Paulo (Nobody is Innocent in São Paulo), resumes the discussion about guilt and innocence, which allows us to remit to Giorgio Agamben’s reading of Primo Levis’ gray zone in Remnants of Auschwitz. The Italian philosopher refers to this gray zone as a zone of irresponsibility, where there is no distinction between victims and hangmen: the oppressor becomes oppressed and the oppressed becomes oppressor. This zone of indistinction doesn’t allow the difference between exception and rule to appear; it is the exact space of the permanent state of exception in which we live. Not by chance we find in Ferréz’s book a short story called “Terminal (Nazista)”, in which we can’t figure if it’s about a bus station or a Nazi death camp: “I tried to look directly to the eyes, those who didn’t have their heads down, didn’t have ocular globes”. What remains to us, then, is to search for an ethical and, therefore, political path to defeat the constant attempt to naturalize the inhuman, the horror and the catastrophe. Agamben indicates, as a way out, the profanation and Jean-Luc Nancy insists on the thesis of the contact: both forms put the body at the core of political affairs. A politics that must not be founded by the politicization of bare life, which keeps the relation of sovereignty, that is, permits the capture and abandonment, the inclusion-exclusion, but, on the contrary, a politics founded in the political potency contained in the center of bare life, because this life is politics itself and has as objective the search of happiness.

Keywords: marginal literature, body, politics.

Há pouco mais de um ano ocorreu em São Paulo um violento episódio desencadeado por rebeliões em presídios e por ataques à polícia cuja autoria foi atribuída a um grupo chamado PCC (Primeiro Comando da Capital). As retaliações da polícia vieram em grandes doses de crueldade: assassinatos e execuções em números nunca revelados marcaram esses dias sombrios. Na periferia - segundo uma de suas vozes mais importantes, Ferréz – todos foram considerados suspeitos.
Sintomaticamente, o último livro de Ferréz publicado após estes ataques foi um livro de contos em que anuncia: Ninguém é Inocente em São Paulo. Contos que representam fragmentos recolhidos das ruínas. Ferréz percebeu que já não é mais possível construir uma obra toda, senão não-toda, percebeu que não é possível armar coleções, senão séries, constelações. Séries que montam o muro de pedras livres, não cimentadas, apenas juntas. Séries infinitas, de livre combinação que não apresentam a possibilidade de esgotar um sentido. Séries informes, sem começo nem fim, sem cabeça, acéfalas. O fragmento “más que la inestabilidad (la no fijación), promete el desconcierto, el desacomodo” (Blanchot, 1983, p.14). Ele (des)opera na medida em que permanece sempre em movimento, não se fixa em territórios, senão na sua própria desterritorialização, no seu próprio nomadismo. A constelação de fragmentos é puro patchwork: heterogêneo e com conexões tácteis.
Esta consciência fragmentária pode ser lida através das propostas de Walter Benjamin sobre o conceito de História, sobretudo na tese nove onde a figura do Anjo aparece querendo parar o movimento de progresso e juntar os fragmentos das ruínas. Neste mesmo sentido, Ferréz (2006, p.10), no prefácio a Ninguém é inocente em São Paulo, afirma que os contos são “trechos da vida que catei, trapos de sentimentos que juntei, fragmentos de risos que roubei”. Ferréz também nos diz que a História tem que ser montada em fragmentos (contos) para que se possa montar uma constelação (livro). Neste instante de perigo o autor nos mostrou que não podemos nos render aos instrumentos de dominação, aos inimigos, que como nos diz Benjamin, não cessam de vencer.
Com esta constelação, Ferréz demonstra a nova potência da literatura que, de acordo com Rancière (1999), “é apreendida, inversamente, no ponto em que o espírito se desorganiza, em que seu mundo racha, em que o pensamento explode em átomos que experimentam sua unidade em átomos de matéria”. Esta nova potência vem na forma fragmentada de um movimento que depõe da forma, é um devir. A literatura de Ferréz é, portanto, o inverso da representação, já não quer mais organizar o informe, quer disseminá-lo. Nesta disseminação de fragmentos, nesta reversão da representação, a literatura marginal de Ferréz apresenta uma forte atuação política “não por descrever a realidade de maneira realisticamente verossímil e engajada, mas por ser ela mesma uma realidade que intervém nas práticas da sociedade” (Schollhammer, 2001, p.60). Deste modo se expõe um cenário biopolítico no qual a violência, o racismo e a desigualdade predominam, porém não totaliza suas narrativas nestes aspectos, Ferréz mostra-nos também que existe vida e que sua “determinação” política vai para além dos anseios sócio-econômicos.
Neste sentido a idéia de racismo trabalhada por Foucault e Lacan é decisiva para compreendermos o corte biopolítico do Estado. O psicanalista e filósofo francês diz que o futuro do mundo é o racismo. Para inibi-lo é preciso “deixar este outro ao seu modo de gozo, o que só pode ser feito ao não lhe impor o nosso, ao não considerá-lo um subdesenvolvido” (Lacan, 1993, p.58). Isto implica não querer desenvolvê-lo ao nosso modo, não fazer imposições de verdades, e sair da fórmula binária do bem e mal. Foucault por sua vez desenvolve a temática do racismo até as suas últimas conseqüências. Demonstra a volta do problema da raça na forma de um racismo de Estado constituído depois da tomada de poder sobre o homem como ser vivo: a biopolítica. Foucault explica o racismo de duas formas: a primeira trata do corte entre o que deve viver e o que deve morrer. Através da distinção, qualificação e hierarquização das raças, o racismo concretiza sua primeira função: “fragmentar, fazer cesuras no interior desse contínuo biológico a que se dirige o biopoder”. Sua segunda função é fazer funcionar uma relação guerreira do tipo “se você quer viver é preciso que o outro morra” de modo que compatível com o biopoder, a saber:
O racismo vai permitir estabelecer, entre a minha vida e a morte do outro, uma relação que não é uma relação militar, uma relação que não é militar e guerreira de enfrentamento, mas de uma relação do tipo biológico: ‘quanto mais as espécies inferiores tenderem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu – não enquanto indivíduo mas enquanto espécie – viverei, mais forte serei, mais vigoroso serei, mais poderei proliferar. A morte do outro não é simplesmente a minha vida na medida em que seria a minha segurança pessoal; a morte do outro a morte da raça ruim, da raça inferior (ou do degenerado,ou do anormal), é o que vai deixar a vida em geral mais sadia e mais pura (Foucault, 2002, p.305).
Essa forma não guerreira que declara um combate não aos inimigos políticos, mas aos perigos da população identificados através da classificação das raças revela a “aceitabilidade de tirar a vida em uma sociedade de normalização”. Ou seja, se a biopolítica quer garantir seu direito de matar, pois o biopoder se funda na modificação da máxima deixar viver e fazer morrer para fazer viver e deixa morrer, mas, de qualquer modo, se a biopolítica ainda quer garantir este direito ela tem que funcionar com os dispositivos do racismo. Este sentido de retirar a vida se estende à morte contemporânea da qual o homo sacer é vítima, o que não significa necessariamente assassinato direto, mas também e, talvez, principalmente sua forma indireta que atuam através do afastamento, rejeição e morte política.
Para sairmos desta guerra, Agamben nos apresenta um caminho distinto, uma forma de burlar esta cisão bipolítica com o fato novo da política que vem: “ela [a política que vem] não será a luta pela conquista ou controle do Estado, mas a luta entre o Estado e o não-Estado (a humanidade) disjunção irremediável entre as singularidades quaisquer e a organização estatal”. Esta luta “nada tem a ver com a reivindicação do social contra o Estado” (Agamben, 1993, p.67) e não deve ser confundida com trabalhos humanitários ou com movimentos sociais. A proximidade com a proposta de Agamben pode ser verificada neste comentário de Ferréz sobre os ataques do PCC:
a sociedade também sofre quando não tem ônibus, quando um ônibus é queimado. mas eles querem alcançar direto é o estado, mano, que deixou o sistema carcerário fracassado. onde não chegou nada do estado, no sistema carcerário, eles tiveram que criar um próprio jeito de sobreviver. é que nem eu, eu fiz do meu próprio jeito, de fazer minha roupa, meu livro. não tive oportunidade de que alguém falasse "ó, vem aqui comigo que nós vamos fazer, você só cria". eu não posso ser só criador, tenho que ser realizador. a mesma coisa eles, só que no criminal. (grifo meu) (Ferréz, 2006b).
A literatura marginal, que também tem o hip-hop como aliado, não está fazendo um convite à militância na busca de melhores situações. Não é meramente contestação; é, na verdade, uma proposta de reversão política. Porém, como muitos entendem estas manifestações culturais como serviços sociais, Ferréz e Mano Brown têm a resposta para os questionamentos sobre o “retorno” que a literatura e o hip-hop oferecem à periferia. O primeiro simula uma pergunta típica da “mídia”: “o que você faz pela favela?”, Mano Brown o orienta a responder desta forma:
um tipo de pergunta dessa você tem que responder com outra pergunta. 'Eu te pedi voto? Eu pedi voto para alguém? Eu sou cantor de rap, não sou...’ (...) É isso que eu acho errado. o rap não é obrigado a fazer as coisas. É lógico, ele faz de coração, certo? Mas por que o rap é obrigado a fazer e o Chico Buarque não é? (...) É uma pergunta para punir você por ter tocado no assunto, 'vou te punir porque você cutucou a ferida' (2006 c).
Percebemos aqui uma clara desvinculação social; uma mudança de estratégia: travam suas lutas contra o Estado. Seguindo a mesma linha argumentativa, Mano Brown (citado por Kehl, 2003, p.1.077) fala sobre o caráter político do hip-hop:
Você já nasceu preto, descendente de escravo que sofreu, filho de escravo que sofreu, continua tomando ‘enquadro’ da polícia, continua convivendo com drogas, tráfico, com alcoolismo, com todos os baratos que não foi a gente que trouxe pra cá. Foi o que colocaram pra gente. Então não é uma questão de escolha, é que nem o ar que você respira. Então o rap vai falar disso aí, porque a vida é assim.
É importante observar o afastamento dos discursos de inclusão velados nas “boas intenções” de igualdade. Por isso, tanto Ferréz quanto Brown estão na contracorrente da politização2 da vida, que não faz nada além de obedecer à regra racista de impor ao outro o meu modo de gozo. O que pretendem é nos mostrar a politicidade da vida, esta potência política que está no cerne da própria vida.
Com o título Ninguém é Inocente em São Paulo Ferréz anuncia o anonimato dos crimes: anônimos matam anônimos, deu-se por encerrada a era do grande bandido. O anonimato foi usado por Zizek (2003, p.53) na análise dos ataques terroristas do 11/09. O autor afirma que estamos na era da nova guerra na qual “os agentes vão cada vez menos assumir publicamente seus atos: não somente os próprios ‘terroristas’ (...) as medidas ‘antiterroristas’ do Estado também são ocultas por um manto de segredo”. Badiou (2005, p.22), em sintonia com a afirmação de Zizek, nos diz que “los criminales nominales son sucedidos por criminales tan anónimos como lo son las sociedad por acciones”. Estes fatores nos encaminham para o Estado de exceção permanente que ao ser lido com a postulação deleuziana da sociedade do controle nos mostra que vivemos em guerras não declaradas e, portanto, anônimas. Ferréz em decorrência dos assassinatos acontecidos na periferia de São Paulo na época dos ataques e contra-ataques entre o PCC e a polícia entendeu que vivemos em um Estado de exceção permanente ao dizer que “a Lei marcial para pobres inocentes foi decretada”3.
Atenção a todos os amigos.
Apelo a todos que acompanham esse blog, que nos ajude a dizimar o que está acontecendo.
A Policia Militar e a Policia Civil afetados com a onda de matança, estão fazendo da nossa periferia um estado prá lá de nazista, já são mais de 100 "suspeitos" assassinados, e nenhum deles é PCC .
Só de colegas, foram mortos 4, isso pra não contar os que estão no hospital.
Nenhum deles tinha passagem, por isso apelo para que divulguem a real de que o acordo não foi feito com o povo, o povo tá morrendo, sendo baleado pelas costas, ao entregar pizza, ao voltar para casa.
A policia covarde, treme perante o olhar do ladrão, mas mata sem dó quem está simplesmente voltando para casa.
Isso é uma vergonha, e se é o trabalho deles, tá na hora da gente fazer o nosso, reagir com cidadania, mostrando que não queremos essa matança.
LEI MARCIAL PARA POBRES INOCENTES FOI DECRETADA.
(Ferréz, 2006, Disponível em www.ferrez.blogspot.com)
O intolerável para a “elite” tinha aparecido nas palavras de Ferréz e causou um grande tumulto. Em resposta ao seu apelo surgiram correções de português, discussões sobre o estado de direito, mas, principalmente, a acusação de cumplicidade entre o autor e os crimes. De algum modo era preciso desviar a atenção do estado de exceção que Ferréz colocava em pauta. O que não foi compreendido é que o autor não pretendia nomear culpados e inocentes, pois como ele mesmo afirma “ninguém é inocente em São Paulo”.
Esta discussão reaberta por Ferréz que está ciente dos assassinatos indiretos em conseqüência do racismo, passa também pelo fato levantado por Primo Levi: a vergonha de ser homem. Esta questão abordada por Deleuze em seu testemunho Abecedário aparece, não por acaso, na letra R de resistência. Esta vergonha de ser homem, explica Deleuze, não significa que todos são culpados, que todos são assassinos, ela atravessa a função criadora da arte de “libertar uma vida potente”. A consciência histórica do sofrimento da escravidão (evento que Stuart Hall defende ao lado de Auschwitz, como a maior catástrofe da humanidade) que se prolonga até hoje (estado de exceção permanente), expresso na resposta de Brown é o que nos faz ter vergonha de sermos homens, é esta vergonha que o obriga a escrever. A vergonha de ser homem, então, nos impõe duas perguntas: “como alguns homens puderam fazer isso, alguns homens que não eu, puderam fazer isso? Como eu compactuei? Não me tornei um carrasco, mas compactuei para sobreviver”. Esta compactuação a que Deleuze se refere tornou-se mais imperceptível e forte na medida em que consideramos nossa sociedade como sociedade do controle, na qual os muros das instituições caíram e as fronteiras se esfumaçaram. Todo esforço do controle se centra na obstinada negação de uma catástrofe coletiva, estamos em um individualismo capitalista muito bem armado: “não estamos mais diante do par massa-indivíduo. Os indivíduos tornam-se ‘dividuais’, divisíveis, e as massas tornam-se amostras, dados, mercados ou bancos” (Deleuze, 1992, p.221). Os portões dos campos se estenderam para a Terra inteira, nossos olhos não os alcançam, a minha sobrevivência se dá às custas de uma morte em algum lugar que não está determinado, muito longe e muito perto. Acontecimentos que não vemos ou que acompanhamos na sua forma numérica, pelas estatísticas; deslizantes como anéis de serpente, que nos comprometem na medida em que eu compactuo, são eles que nos fazem ter vergonha de ser homem. Constatação muito bem compreendida por Ferréz (2005, p. 137) que em Capão Pecado exemplifica este estado espetacular referindo-se a uma chacina: “saiu no jornal de manhã e entrou na estatística à noite”. À ebulição de sentimentos complexos Deleuze atrela a liberação da vida feita pelo artista, vida que o homem não cessa de aprisionar, de matar. Nossa tarefa é então criar, seja na arte, na filosofia, na língua. Se concordamos com o filósofo francês que criar é diferir, ou seja, produzir singularidades, a criação passa a ser a forma mais eficiente para resistir ao presente; forma que se concentra na libertação da potência da vida.
Libertar a vida se inscreve, portanto, na esfera da ética, na esfera da felicidade. Liberar uma vida potente significa partir do fato de que “o homem não é nem terá de ser ou de realizar nenhuma essência, nenhuma vocação histórica ou espiritual, nenhum destino biológico” (Agamben, 1993, p.38), de que o homem pode ser a sua própria singularidade qualquer. Na medida em que os discursos sociais de inclusão se afastam da ética, pois definem um destino à vida potente, se aproximam da responsabilidade que nada mais é que o cumprimento de uma obrigação jurídica e, como nos diz Agamben, não representa nada nobre ou luminoso4.
É neste misto de cumplicidade e abandono, nesta zona cinza, que se torna urgente repensar a diferença entre vítimas e carrascos sobre a qual Agamben fala em O que resta de Auschwitz e Deleuze discute brevemente em seu testemunho Abecedário. Agamben explica que nesta zona cinzenta o opressor aparece como carrasco e o carrasco como vítima. Seu exemplo, ironicamente, são as partidas de futebol – eventos que hoje, ironicamente, prometem a “harmonia” mundial – disputadas entre os oficiais da SS e os internos dos campos de concentração alemães.
A qualcuno questa partita potrà forse apparire come una breve pausa di umanità in mezzo a un orrore infinito. Ai mei occhi, invece, come a quelli dei testemoni, questa partita, questo momento di normalità, è el vero orrore del campo. Poiché possiamo, forse, pensareche i massacri siano finiti – anche se qua e lá si ripetono, non troppo lontano da noi. Ma quella partita non è mai finita, è come se durasse ancora, ininterrottamente. Essa è la cifra de perfetta ed eterna della ‘zona grigia’, che non conosce tempo ed è in ogni luogo. Di là viene l’angostia e la vergogna dei surperstiti ‘l’angostia inscritta in ognuno del ‘tòhu vavòhu’, dell’universio deserto e vuoto, schiacciato sotto lo spirito di Dio, ma da cui lo spirito dell’uomo è assente: nonancora nato o già spento’. Ma anche la nostra vergogna di noi che non abbiamo conosciuto i campi e che pure assistiamo, non si sa come, a quella partita, che si ripete in ogni partita dei nostri stadi, in ogni transmissione televisiva, in ogni quotidiana normalità. Se non riusciremo a capire quella partita, a farla cessare, non ci sarà speranza. (Agamben, 2005, p.24).
Esta relação estabelecida entre opressor e oprimido evidencia a nossa pacífica convivência com a normalidade do horror e com a naturalização do inumano; é preciso impedi-la. Ferréz elucida esta zona cinzenta em que ainda vivemos quando nos alerta que ninguém é inocente e recorre, sintomaticamente, ao Nazismo para descrever um terminal de ônibus da cidade de São Paulo. O conto nos mostra que, na qualidade de Homo Sacer, Ferréz já não se deixa enganar.
Eu tentava olhar diretamente para os olhos, os que não tinham a cabeça muito baixa, não tinham globos oculares.
Cheguei a um dos veículos.
Estranhei quando ninguém colocou a mão no meu ombro, os organizadores estavam ficando relaxados.
A fila se formou rapidamente, eu era o primeiro.
Alguém notou o início da desorganização e tentou se aproveitar quando a porta se abriu.
Um dos organizadores o agarrou pelo ombro e o jogou para longe.
Nesse momento todos começaram a rir.
Talvez a câmara de gás, talvez valas comuns.
Olhei para trás e vi que não parecia judeu, tentei ver o que pensava, mas estava fechado.
Comecei a duvidar do destino, saí da fila. Sendo visto pela organização com desconfiança, fui para a parte dianteira, alguém estava bem colado comigo.
Olhei o letreiro, o destino era o mesmo.
Gente que ia cedo, gente que vinha tarde.
Gente que ia cedo, gente que vinha tarde.
Gente que ia cedo, gente que vinha tarde.
Voltei à fila, alguém me puxou, estava cortando, esqueci de avisar que ia voltar.
Final da fila, tanto faz, sentado ou em pé, o gás é para todos mesmo.
(Ferréz, 2006, p.89-90)
Corpos enfileirados, amontoados, normalizados e anestesiados: prova do prolongamento dos campos nas democracias modernas. Este corpo que pensa na fila do terminal de ônibus, o mesmo corpo das filas de Auschwitz, é um corpo exausto. Um corpo que não agüenta mais “o sistema de martírio e narcose [que] primeiro o cristianismo e a medicina em seguida, elaboraram para lidar com a dor, um na seqüência e no rastro do outro: culpabilização e patologização do sofrimento, insensibilização e negação do corpo” (Pelbart, 2003, p.72).
O corpo é o alvo político e paradoxalmente o meio para sairmos desta zona cinza. Agamben define Corpus como “um ser bifronte, portador tanto da sujeição ao poder soberano quanto das liberdades individuais”, ou seja, vida nua. Corpus é o título do livro de Jean-Luc Nancy no qual ele tenta esboçar uma política do corpo. Nancy explica que a idéia de corpo no Ocidente sempre foi a de um corpo sacrificado e “la angustia, el deseo, de ver, de tocar y comer el cuerpo de Dios, se ser ese cuerpo y de no ser sino eso constituyen el principio de (sin)razón de Occidente” (Nancy, 2003, p.9). Agamben diz que é o corpus, e não o homo, “o novo sujeito da política, e a democracia moderna nasce propriamente como reivindicação e exposição deste ‘corpo’: hábeas corpus as subjiciendum, deverás ter um corpo para mostrar”. Isso revela que a democracia moderna coloca no centro da política a zoé, a vida nua: “esta é a força e, ao mesmo tempo, a íntima contradição da democracia moderna: ela não faz abolir a vida sacra, mas a despedaça, e dissemina em cada corpo individual, fazendo dela a aposta em jogo do conflito político” (Agamben, 2002, p.130).
Contudo, ainda temos a imagem do corpo sagrado que o retira completamente da possibilidade do contato, leva-o à condição de contemplação ou de sacralidade absoluta. Nancy, em concomitância com Agamben, intervém para apontar um sintoma do moderno: a falta de contato. É justamente através do contato que Agamben (2005a, p.98) percebe a possibilidade da profanação que
si realiza por lo contacto (contagione) en el mismo sacrifício que obra y regula el pasaje de la victima de la esfera humana a la esfera divina. Es suficiente que los que particiapan em el rito toquen estas carnes para que ellas se conviertan en profanas y puedan simplemente ser comidas. Hay un contagio profano, un tocar que desencanta y restituye al uso lo que lo sagrado había separado y petrificado.
Trata-se, sobretudo, de elaborar uma forma política que não atue através da determinista politização da vida, mas sim através da ativação da potência política que está no centro da vida nua.
Nancy afirma que a escritura é uma das formas de sairmos da relação contemplação/sagrado, pois escrever é o ato de tocar o extremo. Conseguimos tocar o corpo através da escritura porque ela está nas margens, nos limites. Entretanto, nos alerta o autor, pode ser que este contato corporal “no ocurra exactamente en la escritura, si esta tiene un ‘dentro’. Pero a orillas, al limite, en la punta, en el extremo de escritura, no ocurre sino eso”. A escritura é o gesto para tocar o sentido, ela toca “el cuerpo con lo incorporal del ‘sentido’” (Nancy, 2003, p.12). É, portanto, através da escritura que demanda um contato entre os corpos que poderemos reivindicar uma comunidade de seres quais-quer que, segundo Agamben (1993) sempre apresentam um caráter potencial. Esta comunidade nunca se fecha, nunca totaliza, tal qual o livro de Ferréz: mantém a potência do aberto. O ser qualquer é a sua singularidade e a “singularidade exposta como tal é qual-quer, isto é, amável” (AGAMBEN, 1993, p.9). Amável na sua própria diferença. É nossa tarefa libertar estas vidas potentes, restituí-las de viv-ibilidade5. Ferréz tenta através da escritura, fugir dos determinismos que muitos associam à vida na periferia. Mostra que não há certeza nem esperança, mas possibilidades de viver.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Mestranda em Teoria Literária na UFSC. Bolsista CNPq.
2 É muito comum escutarmos comentário do tipo: “eles não são politizados” referindo-se às classes de baixa renda. Argumentos aparecem nas mais variadas formas: participação, comprometimento, responsabilidade. Um dos mais fortes exemplos são as ONG’s que intervém nestas comunidades sob o pretexto de politização. Embora muitas vezes tenham boas intenções elas acabam nutrindo a relação de captura e abandono do Estado. O mesmo caso podemos perceber na exigência de comprometimento representada pelos trabalhos humanitários, faceta velada da biopolítica e da guerra, como demonstram Agamben e Zizek. O primeiro diz que a ajuda humanitária mantém uma cumplicidade secreta com aquilo que ela deveria combater: o poder soberano. O segundo, na mesma linha de Agamben, inclusive colocando a questão do Homo Sacer, exemplifica com as conseqüências derivadas da “guerra contra o terrorismo”. Diz Zizek: “A principal imagem do tratamento das ‘populações locais’ como Homo Sacer talvez seja a do avião de guerra voando sobre o Afeganistão: nunca se sabe se ele vai lançar bombas ou pacotes de alimentos. A estranha ‘coincidência’ dos fatos atingiu o máximo quando, em abril de 2002, Harald Nasvik, membro direitista do parlamento da Noruega, propôs George W. Bush e Tony Blair como candidatos ao Prêmio Nobel da Paz, citando o papel decisivo dos dois na ‘guerra contra o terrorismo’ como a maior contribuição à paz nos nossos dias – o velho lema orwelliano ‘Guerra é Paz’ finalmente se torna realidade. Talvez a maior ironia da situação seja o fato de o maior ‘dano colateral’ para o Ocidente ser o sofrimento dos refugiados afegãos e, de modo geral, a situação catastrófica dos alimentos da saúde no Afeganistão; assim a ação militar contra o Talibã é algumas vezes apresentada como um meio de assegurar a entrega segura da ajuda humanitária. Deixa assim de existir a oposição entre guerra e ajuda humanitária: as duas estão intimamente ligadas”.
3 Depois desta denúncia, Ferréz foi ameaçado e teve que ficar fora de São Paulo por um tempo.
4 A confusão entre responsabilidade e ética é recorrente. Agamben em O que resta de Auschwitz (p. 20) nos apresenta a distinção entre os termos: Il verbo latino spondeo, da cui deriva il nostro termine “responsabilità”, significa ‘’portarsi garante per qualcuno (o per sé) di qualcosa di fronte a qualcuno’’. Cosi, nella promessa di matrimonio, la pronuncia della spondeo significava per il padre impegnarsi a dare in moglie al pretendente la propria figlia (che, per questo, era detta sponsa) o a garantire una riparazione se questo non avveniva. Nel più antico diritto romano, infatti, l’uso era che un uomo libero potesse constituirsi in ostaggio – cioè in stato di prigonia, di qui il termine obligatio – per garantire la riparazione di un torto o l’adempimento di um obbligo. (Il termine sponsor indicava colui che si sostituiva al réus, promettendo di fornire, in caso d’inadempimentom la prestazione dovuta). Il gesto dell’assumere responsabilità è, dunque, genuinamente giuridico e non ético. Esso non esprime nulla di nobili e luminoso, ma semplicemente l’ob-ligarsi, il consegnari in prigionia per garantire um debito, in uma prospettiva in cui il vincolo giuridico ineriva ancora al corpo del responsabile.
5 Este termo é usado por Giorgio Agamben em seu último livro ‘’Il Regno e la Gloria’’ (2007, p. 274) para explicar que é uma tarefa política inoperar determinismo designados ao ser vivente, ou seja, não se deve dar destino biológico ou social à vida; devemos ao invés de fechar, abrir a vida às poss-ibilidades. “Spinoza chiama ‘contemplazione della potenza’ um’inoperositá interna, per così dire, alla stessa operazione, una ‘prassi’ sui generis che consiste nel rendere inoperosa ogni specifica potenza di agire e di fare. La vita, che contempla la (propria) potenza di agire, si rende inoperosa in tutte le sue operazioni, vive soltanto la (sua) vivibilità. Scriviamo propria e sua fra parentesi, perché solo attraverso la contemplazione della potenza, che rende inoperosa ogni specifica energeia, qualcosa come l’esperienza di un ‘proprio’ e di un ‘sé’ diventa possibile. Il sé, la soggettività, è ciò che si apre come un’inoperosità centrale in ogni operazione, come la viv-ibilità di ogni vita. In questa inoperosità, la vita che viviamo è soltanto la vita attraverso cui viviamo, soltanto la nostra potenza di agire e di vivere, la nostra ag-ibilità e la nostra viv-ibilità. Il bios coincide qui senza residui con la zoe”.
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