LITERATURA E MARGINALIDADE EM PLÍNIO MARCOS: UMA LEITURA DE QUERÔ, UMA REPORTAGEM MALDITAAbstract: Based on the chriteries proposed by Quijano (1987) to study of the marginal characters and on the Bakhtin’s concepts about poliphony (Bakhtin, 1992 and 1994), this essay will show homologies between discoursive strategies and the ideologies existing in Uma reportagem maldita (Querô), by Plínio Marcos. The analysis emphasizes the text as diegesis and as discourse and it is anchored on different principles of literary theory.
Keywords: Plínio Marcos, marginalities, polifonic discourse.
Resumo: Tomando como base os critérios propostos por Quijano (1978) para o estudo da marginalidade e nos conceitos bakhtinianos de polifonia (Bakhtin, 1992 e 1994), este ensaio apresenta homologias entre artifícios discursivos e ideologias em Uma reportagem maldita (Querô) , de Plínio Marcos. A abordagem explora o texto como história e discurso, ancorando-se em princípios de distintas correntes da teoria da literatura.
Palavras-chave: Plínio Marcos, marginalidade, discurso polifônico
1. Introdução
Nos textos de Plínio Marcos (1935-1999), despontam personagens cujos comportamentos e cujo discurso projetam uma realidade social , num levantamento quase documental de situações sociais e de caracteres que, embora atuais, extrapolam limites temporais e espaciais para inscreverem-se numa cosmovisão sócio-política de cunho mundial. São narrativas polifônicas, construídas por uma multiplicidade de vozes e consciências (Bakhtin, 1994), veiculando plurivisões de mundo e concedendo maior dimensão existencial às personagens.
Neste ensaio, a obra objeto de análise é Uma reportagem maldita (Querô) , para cuja escolha foram considerados dois critérios: sua importância para um levantamento social do problema da marginalização e a densidade ôntico-discursiva de seu protagonista, como representante de um grupo social.
Quanto ao objetivo do trabalho, é esboçar um perfil da personagem central, tomando como base os critérios propostos por Rosenfeld (1987): o que a personagem revela sobre si mesma; o que ela faz; o que os outros dizem a seu respeito.
Metodologicamente, optou-se por um estudo predominantemente intrínseco, centrado na exploração do texto como história e discurso, sem, todavia, abandonar a temática e seus vínculos sociológicos: o fator social visto como um “agente de estrutura”.
2. Plínio Marcos: autor e obra no fio da navalha
Plínio Marcos de Barros (1935-1999) pertence às tendências contemporâneas da literatura brasileira e produziu, durante sua escalada artística, crônicas, romance, novelas, versos e peças teatrais. Embora se tenha destacado no gênero dramático, não se pode negar o valor das obras literárias de “gênero” narrativo por ele produzidas, entre as quais se destaca Uma reportagem maldita (Querô) .
Há, em seus textos, mesclados de drama, tragédia, comédia e lirismo, uma característica marcante: ao mesmo tempo em que trata de temas universais, põe a nu as mazelas da sociedade brasileira, seus preconceitos, seus valores e tabus, seus estereótipos, abordando, particularmente, os temas da marginalização social, da marginalidade, da exploração dos mais fracos.
A opção por escrever sobre personagens que estão à margem da sociedade, de cujas bocas saem inúmeras gírias e palavrões, custou-lhe o equivocado rótulo de “escritor marginal”. Equivocado porque
A palavra ‘marginal’, sozinha, não explica muito. Veio emprestada das Ciências Sociais, na qual era apenas um termo técnico para especificar o indivíduo que vive entre duas culturas em conflito, ou que, tendo-se libertado de uma cultura, não se integrou de todo em outra, ficando à margem das duas. Cultura, no caso, não significa grau de desconhecimento, e sim padrão de comportamento social. Foi nesse sentido, de elemento não integrado, que passou da Sociologia para o linguajar comum: um delinqüente, um indigente, e mesmo qualquer representante de uma minoria discriminada foram classificados de marginais. Tudo que não se enquadrasse num padrão estabelecido ficou sendo marginal: cabelo comprido, sexo livre, gibi, gíria, rock, droga e outras bandeiras recentes que tipificaram um fenômeno de rebeldia de novas gerações ocidentais denominado justamente contracultura. Tratando-se de arte, toda obra e todo autor que não se enquadram nos padrões usuais de criação, apresentação ou veiculação seriam também marginais (Mattoso apud Maia; Contreras; Pinheiro, 2002, p. 30-1). O conceito de “marginalidade” que permeia o trabalho corresponde à “teoria da situação social marginal”, ligada, sobretudo, aos problemas do subdesenvolvimento: o indivíduo marginal seria aquele que é alvo das incertezas psicológicas derivadas do fato de estar inserido num processo de mudança e de conflitos culturais, que ocorrem pelo choque entre duas culturas diferentes, superpostas numa relação de dominação. O indivíduo é membro participante da cultura dominada e, em decorrência disso, exposto às pressões de atração e de repulsão que a cultura dominante exerce sobre a cultura dominada, aos problemas das relações e das estruturas sociais, amplamente vista em Uma reportagem maldita (Querô) Trata-se, assim, da “marginalidade como cidadania limitada” (Marshall apud Quijano, 1978, p.21), correlacionada ao conceito de integração social.
As “populações” marginais que Plínio Marcos põe em cena caracterizam-se pela falta de integração na sociedade e pelas limitações em seus direitos reais de cidadania. Elas não podem participar, de fato, no processo econômico, o que as impede de alcançar uma mobilidade social vertical ascendente. O trabalho, problema central da primeira obra aqui analisada, é instável, informal, sem filiação sindical e com rendas de baixo nível; a habitação ou o lugar onde as personagens vivem seus dramas são caracterizados pelo apinhamento e pelas precárias condições de higiene e saúde; os serviços sociais não chegam até elas, acentuando a desigualdade e produzindo comportamentos desviantes em relação ao que a sociedade em geral considera como “normais”.
Num país que tem por característica a pluridiversidade cultural, Plínio Marcos fez uso de uma literatura envolta de signos que atravessam a cultura popular brasileira e trouxe para o palco dos teatros e para as páginas de seus romances a dinamicidade de um país com variadas características geográficas, étnicas e sociais. O que inevitavelmente une os vários Brasis é a língua, o idioma, mas a multiplicidade e as variedades dessa língua é que garantem as particularidades das várias personagens que Plínio criou; personagens que estão nas ruas, nos cabarés, no cais do porto de Santos, nos mocós para encontros sexuais, em bares pestilentos, enfim, um leque de personagens que estão inseridas na adversidade e que exprimem a riqueza de suas falas e expressões.
Toda essa variedade de pessoas que Plínio Marcos traz para o seu processo criativo está em todos os lugares e, especialmente, no inconsciente coletivo, o que facilita a decifração de seu código, muitas vezes considerado transgressor. São personagens que representam a face verdadeiramente brasileira do homem em cena, seja pelo realismo que exprimem, seja pelo tom lírico que muitas vezes reside nas suas falas. Em outras palavras, representam a voz cáustica de um povo que a sociedade considera com “sujeira” e que, na maioria das vezes, só se preocupa em esconder debaixo do tapete.
Também merecem destaque, na temática explorada por Plínio Marcos, os conflitos sexuais, com destaque à homossexualidade e à prostituição, e a morte como finalização necessária do conflito. Ressalte-se, ainda, o tom de grotesco e, às vezes, de mau gosto, que perpassa situações criadas e atinge as personagens que as vivenciam, revelando-se no vocabulário por elas empregado. Com efeito, toda a poética e todo o senso de literariedade da estética pliniana repousam em elementos extraliterários, pois:
A literariedade, como toda definição de literatura, compromete-se, na realidade, com uma preferência extraliterária. Uma avaliação (um valor, uma norma) está inevitavelmente incluída em toda definição de literatura e, conseqüentemente, em todo estudo literário (Compagnon, 2006, p.44). Caracterizada por gírias e palavrões, a linguagem de suas obras reflete a pobreza dos mundos por ele criados e a espoliação a que são submetidas as personagens que povoam esses mundos. Conforme afirma Magaldi (1998, p. 207), Plínio Marcos faz, em suas obras - e de modo particular em Querô -, um levantamento autêntico, quase documental, “das situações sociais e dos caracteres em jogo”, investigando “sem lentes embelezadoras a realidade, mostrando-a ao público na crueza da matéria bruta [...] – a fatia de vida cortada ainda quente do cenário original [...]”.
3. O (sub) mundo de Querô
Importa esclarecer que toda a narrativa se desenvolve por meio da protagonista Querô . Nesse aspecto torna-se relevante salientar que:
É sobretudo através do protagonista, da sua condição e situação, do seu comportamento e ação, do seu êxito e fracasso, das suas inter-relações humanas com indivíduos e massas e da sua mentalidade geral – pela qual são determinados o horizonte da sua visão e as palavras ao se alcance [...] – que terá de ser projetada e criticada a realidade social e [...] ao mesmo tempo comunicada a necessidade do empenho ativo em favor de valores humanos e sociais [...] (Rosenfeld, 1996, p.45). Há, em Uma reportagem maldita, um "eu" imanente ao texto, que congrega aquele(s) que conta(m) a história e aquele que age na história, formando a unidade enunciador-personagem-narrador, sobre a qual se centraliza o foco narrativo. A narrativa inicia-se com uma "cena" em que Querô já está sob o olhar do outro, figurativizado, inicialmente, pelo leitor implícito.
A partir da personagem Querô e "com" sua visão percebem-se os fatos relatados. As outras personagens são, de um modo geral, vistos através dos olhos e dos sentimentos do personagem-narrador. Raramente os outros personagens falam; poucas vezes se faz “ouvir” a voz pura do narrador. Emergem, nos “diálogos-monólogos”, motivos sócio-culturais (justiça social, opressão x liberdade), ideológicos (a visão de mundo do protagonista), psicanalíticos (recalques, desejos reprimidos, obsessões).
Enquanto narrador, sua tarefa é enunciar o discurso, já que protagonista da comunicação narrativa; mas ele também detém uma voz que se traduz em opções bem definidas: é um narrador autodiegético (porque relata suas próprias experiências como personagem central da história), que se situa tanto no nível intradiegético (porque se refere a sua participação, como personagem, nos eventos que integram a história narrada), como no extradiegético (porque relata a história). No que concerne a sua atuação como protagonista, vai apresentar-se como um personagem que quase nunca procura os acontecimentos: todos os acontecimentos vão até ele. Isso vai ter um reflexo direto na seleção do modo de narrar encontráveis na constituição formal do romance. Ressalta-se, ali, num primeiro plano, a presença de diálogos, todos tendo Querô como interlocutor.
Narrada em primeira pessoa, em tom confessional, a obra caracteriza-se pela intersecção de tempos, ações e espaços, o que permite Querô arquitetar o enredo e reviver, num espaço-tempo restrito, uma vida inteira de falhas e frustrações. O centro vital do romance é o processo psicológico de um órfão, submetido a uma sociedade injusta, que o torna marginal. Disso decorrem os movimentos temáticos em torno dos quais se organiza o texto.
Os eventos do enredo afiguram-se tão importantes quanto a ênfase à dialética vida/morte, que se encontram nas teias do romance. O leitor só chegará, porém, a uma compreensão mais lúcida dos elementos significativos que formam a trama dessa "matéria vertente", se conseguir obter uma visão clara da linha do enredo, que representa a tela onde se desenham as falas, elementos inerentes à história e que constituem o cerne da obra. Focalizar o enredo torna-se um meio auxiliar para se atingir a compreensão global da função do discurso. A fábula é simples: Querô, órfão, solitário, ousado e falante, de posição social e econômica inferior, contestado em sua capacidade de comunicação e em sua virilidade, preso, torturado, espancado, vilipendiado, prende-se ao labirinto de seu espaço exterior e, movendo-se por uma obsessão (vingar-se do mundo), engana, rouba, mata. Ao terminar o relato de sua história a um jornalista, é assassinado pela polícia.
A progressão temática do texto vai garantir-se, na obra, pela recorrência do personagem, de seu discurso, de seu tempo-espaço. Fio que liga os diferentes episódios, Querô é um elemento permanente que sustenta o desenrolar da história. A coerência textual reforça-se na compatibilidade entre os atributos da personagem central, as ações por ela desenvolvidas, o fluxo-refluxo de sua memória, o seu discurso enquanto narrador e personagem e o espaço físico-social em que se movimenta, elementos tão ligados entre si que falar em um implica, necessariamente, remeter aos outros.
A ação não ultrapassa, todavia, a palavra, porque a palavra exprime tanto o cultural quanto o individual. Somente na tentativa de encontrar respostas para a angústia diante da morte e da miséria humana e social é que se incorpora, à voz de Querô, a voz do outro, a do jornalista, orquestrando um coro polifônico. Silencia a palavra de Querô, mas mostra-se a do novo sujeito enunciador: o jornalista que passa a falar com e por ele, em nome do indivíduo e em nome da coletividade.
O título é simbólico: toma-se uma parte, para simbolizar o todo. “Querô” é a abreviação de Querosene, apelido que a prostituta Violeta aplica ao menino Jerônimo da Piedade, como alusão ao fato de a mãe dele haver cometido suicídio ingerindo esse tipo de produto inflamável. É a marca que ele assume e que vai acompanhá-lo em sua trajetória. As idéias aparecem, pois, superpostas, tanto no espaço mimético quanto no diegético.
No que tange aos temas de Querô, destacam-se a exploração do homem pelo homem, o preconceito, a corrupção, o crime, a droga, a violência. Para ele, que deseja afrontar a sociedade, que precisa vingar-se do mundo que o deformou e, assim, transgredir as convenções burguesas, a marginalização e o crime parecem ser o caminho mais fácil, especialmente porque lhe surgem pela voz da polícia, seu oponente, que parece figurativizar a sociedade hipócrita.
Acrescente-se que “uma estrutura ideológica se manifesta quando conotações ideológicas aparecem associadas a papéis actanciais inscritos no texto”, os quais veiculam oposições axiológicas como Bem x Mal; Verdadeiro x Falso (Eco, 1986, p.153).
Desse modo, “os componentes espaço-tempo-sentido que constituem o todo do herói não existem isoladamente” (Bakhtin, 1992, p.153) e, como afirma Eco (1970, p.218), “temos ação (dramática ou narrativa) quando temos mimese de comportamentos humanos, quando temos um enredo, através do qual as personagens se explicitam e assumem uma fisionomia e um caráter, e quando, sempre através do enredo, toma fisionomia e caráter uma situação produzida pela interferência variada de comportamentos humanos”.
À des-ordem temporal-existencial e ao interior angustiado correspondem os espaços específicos em que se move Querô. Plínio Marcos produz, ali, uma espécie de “narração simultânea”, o que, no entanto, não impede ao público inferir que a punição sofrida pelas personagens, ao final do texto, é conseqüência lógica de seus atos socialmente condenáveis. Finalmente, resta considerar que a peça abriga uma visão sarcástica da humanidade e Querô é construído como um arquétipo da condição humana, de nossos medos, dúvidas e frustrações.
A linguagem do romance é simples, lógica, despida de ornamentos, voltada para a preocupação da clareza e da comunicação imediata. Prolifera-se, no texto, a voz de Querô e prevalece, no romance, um nexo de subordinação do episódico, que determinará a relação de causalidade entre os fatos relatados por Querô e o seu destino. O tempo exercerá, ali, uma função subordinante das cenas. Caracterizando-se pela linearidade, com a disposição dos fatos em ordem "natural", a narrativa apresenta-se com vinculações intrínsecas para a determinação do epílogo.
O percurso da narrativa, no nível da história, organiza-se em dez capítulos, ao longo dos quais se movem diversos personagens. Raras vezes as impressões recebidas do exterior orientam a reflexão do narrador para este ou aquele ponto e, pois, “seus” personagens auto-revelam-se e revelam os outros pelo que dizem e pela maneira como dizem. Reside aí o aspecto dinâmico da obra.
Dinamicamente, vai-se dando a representação da ambiência sócio-cultural em que se movem as figuras do romance, tipos vagamente desenhados por suas falas. O sexo e a imoralidade são temas que se cruzam nas conversas registradas em detalhes pelo narrador. Toda a situação social é revelada pelas personagens atuantes e não na configuração elaborada por um narrador, o que extrapola os limites do plano da representação, pois é uma forma mais viva, mais concreta e mais atualizadora de episódios. As personagens que falam não chegam a surgir, para o leitor, como estruturas sólidas, de contornos definidos, não obstante os traços de realismo fotográfico presentes no texto. São um grupo. Vão-se caracterizando, assim, os personagens, simultaneamente à configuração cênica da vida cotidiana e da ambiência humana do romance. Além disso, a presença do autor quase se apaga, desligando-se das figuras de sua criação, que falam por si, numa técnica de revelação de traços sócio-culturais.
Ocorre, ainda, que não há, salvo exceções, a formulação introdutora do narrador, diante de cada frase reproduzida, o que permite aos personagens emergirem da situação, atualizando os "episódios", ganhando autonomia, sucedendo-se de forma espontânea, provocando efeitos mais vivos, povoando o texto de expressões ricas em matizes afetivos e, pois, enquadrando o leitor na vivência do momento.
Com linguagem clara e objetiva, como requer um texto em que a mensagem é tão importante quanto o discurso, salienta-se um narrador cuja visão cinge-se à realidade observada e como que fotografada, vivida. Esse horizonte fechado e essa ênfase ao exterior-objetivo, aliada à sucessão dos dias, raramente permitem que o leitor veja, nas personagens, a complexidade psicológica.
O passado aparece, num primeiro plano, como um tempo de ações consumadas e estratificadas. O passado remoto não incide sobre os pensamentos dos personagens e nada modifica a velocidade das ações. Querendo eliminar intermediários verbais e psicológicos, o narrador quer apresentar-nos fatos puros, fazendo que a duração resulte, na obra, essencialmente da seqüencialização de momentos significativos da vida de Querô, com o prestígio da cronologia da ordem do relato. Ocorre, porém, que não há fatos puros. Então não se pode apenas dizer o fato, mas deve-se encarná-lo. É necessário fazê-lo incorporar-se à situação e Querô leva o leitor a compartilhar o presente do homem, o próprio homem e não apenas sua expressão, prescindindo de relevo do assunto e da história, bem como de artifícios que dêem densidade à trama.
Filtradas pela perspectiva temporal do narrador-personagem (o narrador posta-se numa época "atual" - num presente, a partir do qual ele relata os fatos, vendo-os como "passado" -, de onde ele relata o momento presente, a vivência temporal do personagem), as enunciações e as reflexões ficam obscurecidas, mas esse começar in ultimas res significa que o narrador já vivenciou as experiências, já pôde examiná-las e trabalhá-las, o que revela o fato de já ser dotado do saber, diminuindo a distância discursiva entre o sujeito conhecedor e o objeto a conhecer.
Ao colocar-se a si mesmo e a seu produtor como referente e objeto literário de reflexão, o texto libera-se de possíveis significações pré-estabelecidas e/ou esperadas pelo leitor. Desse modo, movimenta-se e deixa-se movimentar pela participação do receptor que pode (re) construir-lhe o sentido.
A manifestação das objetividades apresentadas na obra literária - indissociáveis dos conteúdos diegéticos que a inspiram - decorre da maneira pela qual o enunciador-narrador representa, manipula, articula o modo narrativo: elaboração do tempo, as modalidades de representação dos diferentes segmentos de informação diegética, a configuração do retrato dos personagens e do espaço, a caracterização do foco narrativo. Neste sentido, a escolha do modo dramático (segundo a tipologia proposta por Norman Friedman) revela-se, no texto, o mais poderoso recurso narrativo.
Há, no romance, um tempo cronológico, que marca a seqüência de acontecimentos na narrativa retrospectiva do narrador-personagem; e um tempo psicológico, que se caracteriza pela bipolaridade do "eu" determinante da narração: "eu(s)" narrante(s) x "eu" agente, entre os quais opera-se uma tensão. O(s) "eu(s)" que escreve(m) e o "eu" que age na história são representados pelo mesmo "ator" sincrético, que ora funciona como narrador, ora como personagem que vive os fatos narrados, ora chega a ser as duas coisas simultaneamente.
Como afirma Lira (1979), não há obra literária que não porte a cosmovisão particular de seu autor: a sua ideologia, a sua maneira própria de encarar o mundo em que vive, a estrutura e as condições sociais que o envolvem. Por outro lado, “o discurso do herói sobre si mesmo é impregnado do discurso do autor sobre o herói; o interesse (estético-cognitivo) que o acontecimento apresenta para a vida do herói é englobado pelo interesse que ele apresenta para a atividade artística do autor” (id.: 33). Assim, em Uma reportagem maldita, podemos afirmar que o enunciador atualiza seus pontos de vista no discurso do narrador e no objeto da narração: atrás das palavras e das histórias do protagonista há a palavra, as intenções e a história do autor.
Voltado para a exploração de assuntos que evocam emoções fortes como a morte, a angústia, o sofrimento, e caracterizado pela valorização da expressão mediante distorções formais, o romance surge impregnado de gírias e palavrões. O leitor encontra, no romance, um protagonista-narrador que norteia sua fala, dispondo conscientemente os eventos, organizados conforme o impacto que lhe causaram e o princípio de coerência interna da obra até o trágico final, que deixa o drama em aberto, passando a palavra ao jornalista incumbido de “gravar” a matéria.
O ato narrativo do último capítulo situa-se numa posição de posterioridade em relação à história, que é dada como terminada quanto às ações que a integram, quando o narrador-autor, colocando-se perante esse universo diegético encerrado, inicia o relato, numa perspectiva de quem conhece na sua totalidade os eventos que narra. Assim, o relato flui/reflui numa espécie de atemporalidade, como se se estancasse a marcação do tempo do relógio. Fragmenta-se o tempo, que se subdivide em momentos de vivência intensa, em que o presente é o contar simbólico de como o “real” imaginarizou-se e o passado, o tempo que recupera Querô, criança rejeitada e solitária, adolescente rejeitado, com sexualidade afrontada, pedaços deslocados, ser incompleto. Tudo se passa como se o texto-referente enunciasse, por si mesmo, a sua "verdade", com a qual compactua o (novo) narrador.
O mundo criado pelo texto ficcional é o mundo tal como é visto pelo produtor a partir de determinada perspectiva, de acordo com determinadas intenções. a inquietação, a perplexidade, o sofrimento, os limites de um ser dividido, enredado nas malhas dos interesses impostos por um mundo de mitos sócio-econômicos e de decadência moral, que sufocam a autenticidade, a dignidade, gerando a angústia de viver.
À des-ordem temporal-existencial e ao interior angustiado correspondem os espaços específicos em que se move Querô.
Acompanhando o processo de desintegração do homem, desmitifica-se e degrada-se o espaço, fragmentado e modelizado por uma “voz” que é a expressão sofrida do interior. Aquele que descreve o espaço seleciona e combina as imagens que quer mostrar. Imagens espácio-temporais, um aqui-agora, um espaço-tempo de sofrimento, uma síntese entre o exterior e o interior. O texto caracteriza-se por uma isotopia temática (o tema da desestruturação do homem, que alinhava os diferentes “pedaços” do texto) e uma isotopia figurativa (redundância de traços figurativos, pela associação de figuras e tema), apoiadas num nível descritivo metonímico.
Estampam-se, concretamente, no nível do enunciado - caracterizado por um discurso que se afunila -, as figuras do “eu” em tensão e do beco sem saída, dos corpos divididos, do espaço degradado.
Na fala de Querô, aparece um conflito profundo e inacabado com a palavra do outro no plano da vida (a palavra do outro a seu respeito), no plano ético (o julgamento, o reconhecimento/não reconhecimento pelos outros) e no plano ideológico (a visão de mundo do personagem como um diálogo inacabado e interminável).
E o desfecho do texto passa a focalizar a voz de outro narrador. Essa forma de representação do discurso serve, no romance, para a configuração da ênfase ao interior-subjetivo e, como tal, põe em destaque a fala a fala imaginada (de si e do outro), revelando a projeção do personagem no plano do enunciado, numa relação dialógica com as outras vozes que subjazem ou que assomam ao texto. Seu estatuto é o de uma reflexão metadiscursiva (sobre o discurso produzido), revelando o que o eu pensa de seu discurso, de sua finalidade e organização.
Insinua-se, ali, a presença e o papel do leitor como entidade co-participante na construção dos sentidos desta obra cujos vazios não se encontram apenas no plano semântico, mas também nas estratégias textuais (pluridiscursividade, dialogismo). Aqui, a “voz” do enunciador mostra que o processo criador não se esgota na fábula; antes deixa a última etapa a cargo da imaginação do leitor. O discurso dialógico estabelece uma relação direta entre texto e leitor (e, indiretamente, entre o leitor e o autor), uma vez que pressupõe a antecipação do discurso de outro, como se na própria fala do narrador (enunciador) estivesse encravada a réplica do leitor, chamado a penetrar no labirinto do mundo textual.
4. Considerações finais
Retratando com uma exatidão quase fotográfica o real objectual – um mundo rico de incidentes – Plínio Marcos focaliza, em Uma reportagem maldita (Querô) , fatos, sentimentos, idéias, um espaço cronotópico, um telling (porque o passado é recuperado pela memória do protagonista que relata a história), mas põe em cena a personagem, que “não só constitui a ficção, mas ‘funda’, onticamente o espetáculo”. (Rosenfeld, 1987, p.32) Assim, o dramaturgo que terá concluído apenas a quarta série do ensino fundamental demonstra, também em narrativas, sua capacidade de analisar em profundidade um fenômeno social e, pela/com a palavra de sua personagem semi-analfabeta e de um pseudo-jornalista, denuncia uma realidade que deverá ser corrigida.
Importa destacar que com o uso dessas personagens, Plínio Marcos mergulha o leitor/espectador numa atmosfera muitas vezes brutal, mas nunca permeada de gratuidade. Seus textos permanecem atuais, uma vez que representam a sociedade, uma realidade imersa em contornos contraditórios como a pobreza e a riqueza, a alegria e a dor, as mazelas e as riquezas de um país que ainda não aprendeu a respeitar seu povo.
Talvez para alguns os textos do dramaturgo tenham a função única de provocar reações desagradáveis ao leitor/espectador por serem, em maioria, histórias trágicas e desprovidas de linguagem formal, porém “Engana-se quem acha que Plínio quer chocar. A realidade do Brasil é que é trágica” (Maia; Contreras; Pinheiro, 2002, p.18). Ele não se distancia dos processos sociais nem se escraviza ao banal panfletário, uma forma demagógica de populismo literário que setoriza a problemática social. Embora não possamos afirmar que a qualidade se aperfeiçoa numa escala cronológica, podemos afirmar também que o vanguardismo de Plínio Marcos não padece do pressuposto temporal, segundo o qual só vale a última experiência. Seu texto é filho de outros textos que o precederam e cada obra é uma forma individual de utilização do sistema literário-dramatúrgico.
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2 Professor Adjunto da Universidade Estadual de Goiás – Unidade de Morrinhos.
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