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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

O DOLOROSO IMPASSE DO POÉTICO DIANTE DO AUTORITARISMO E DO HORROR

Rauer Ribeiro Rodrigues1
Kelcilene Grácia-Rodrigues 2
Abstract: This paper aims to present theoretical considerations that examine authoritarianism as an element of horror, noting how such historical fact concreteness is mimetized and represented in the poetics recognized by the Brazilian literature canon. We base on the considerations made by Luiz Costa Lima in O redemunho do horror [The horror whirlwind], written in 2003, we observe analyses on horror in Erico Verissimo, we read studies on authoritarianism, selecting those works that focus on fictional narrative post 64, and note the repulse to alterity that characterizes the canonical in the national literature. Such endogeny decreases the scope of Brazilian literature, as our authors are lost in an inter-place with no meaning, wandering between the silence that denounces and the silence that omits. That is why they are unable to capture the horror inserted in the western society´s constitutive structure.
Keywords: Authoritarianism, Brazilian Literature, Silence.
Resumo: Propõe-se, este estudo, a percorrer considerações teóricas que examinam o autoritarismo como um elemento do horror, verificando de que modo tal concretude do fato histórico é mimetizado e representado nas poéticas reconhecidas pelo cânone da literatura brasileira. Partimos das considerações de Luiz Costa Lima em O redemunho do horror, obra de 2003, percorremos análises sobre o horror em Erico Verissimo, compulsamos estudos sobre o autoritarismo, voltando-nos para obras que focalizam a narrativa ficcional no pós-64, e verificamos a repulsa à alteridade que caracteriza o canônico nas letras nacionais. Tal endogenia diminui o alcance da literatura brasileira, pois nossos autores se perdem em um entre-lugar vazio de sentidos, vagando entre o silêncio que denuncia e o silêncio que omite. Por isso se mostram incapazes de captar o horror inserto na estrutura constitutiva da sociedade ocidental.
Palavras-chave: Autoritarismo, Literatura Brasileira, Silêncio.

A historiografia literária brasileira oscila entre dois pólos que se excluem por recíproca repulsa: a análise imanente e a leitura sociológica. Em uma, a estrutura discursiva sobreleva a partir de parâmetros lingüísticos que aspiram ao científico; na outra, o valor temático elide a fatura estética; em ambas, a crítica faz metacrítica, tratando mais de si do que do texto literário. As notáveis exceções, de ambos os lados, apenas evidenciam o deserto em que laboram.
Guiados pela concepção de que o mundo globalizado erige sociedade planetária em que o poder não emana mais de um centro hegemônico, um novo molde de crítica pasteuriza o texto literário como uma contrafacção midiática do consumismo hedonista, quando não edênico. Trata-se de uma razia que submerge diferenças e faz de todos os sujeitos uma só identidade universal, ou faz da identidade um compósito em que o indivíduo tem em si um arquivo das identidades disponíveis socialmente. A vida é um jogo de máscaras que emula máscaras dramáticas. O real ficcionalizou-se – esse é o entendimento que vigora. E o poético torna-se resto do biográfico, traço na memória da cicatriz do real ferreteada no artista.
Se esse é o quadro teórico de parte das Letras, indagamos:
a) de que modo, na história do Ocidente, o humano fratura-se no horror?
b) de que modo a representação mimética, no âmbito da literatura brasileira, registra tal referente?
Na insanidade insanável com que a razão ocidental molda todas as relações nas sociedades em que predomina, a violência – crescente em dimensão, intensidade e formas – ganha contornos que atualiza e sincroniza, no presente histórico, toda a inventiva gama criadora que a moldou, em gesto individual ou em conformação coletiva, do gênesis mitológico ao inexorável humanocídio do século XXI.
Nomeia-se tal violência de “horror”.
Na concretude do real existe, nesse passo, um paradoxo. Ei-lo: quanto mais poder, menos violência aparente; quanto menor o poder, maior a violência explícita. Assim verificamos tendo por princípio reflexões de Hannah Arendt (1985) no livro Da violência. Dessa obra, depreendemos que o poder instaura o horror de sua dominação autoritária, enquanto a ausência de poder instaura o horror da violência individual. A ação ou reação de violência do indivíduo surge pelo medo psíquico do outro ou pela busca de um deslimite de poder individual, institucionalizando-o como poder estatal, que faça – vã ilusão – cessar a violência.
A literatura nacional parece ter ficado à margem de registrar o horror3: “Supunha [...] que pudesse contar também com o exemplo de escritores brasileiros, o que depois constatei ser inviável”, confessa Luiz Costa Lima (2003, p.18) no seu O redemunho do horror: As margens do ocidente. Ao analisar O horror antigo e o horror moderno [...] em Érico Veríssimo, Maria das Graças Gomes Villa da Silva (2004) vê o antigo como resultante de “estados psíquicos” que denotam a “fragilidade” do humano diante de incertezas como a morte e o desconhecido, além do sentimento de culpa que surge pela violência contra o outro (cf. Silva, 2004, p.45). Literariamente, tal horror se manifesta por histórias góticas de assombrações, almas, bruxarias e cemitérios. Já o horror moderno surge dos “efeitos da guerra”: ele acrescenta, ao medo do desconhecido e da morte, o “medo da vida e do conhecido” (Silva, 2004, p.46).
Trata-se, o horror assim considerado, de uma manifestação psíquica da violência exterior, seja a potencial, iminente (ao menos assim parece ao que a vive), seja a que se efetiva, instaurando “dor física e moral” (Silva, 2004, p.46). Conforme Silva (2004, p.46), na consciência do sujeito ao horror submetido, seja o horror antigo seja o horror moderno, ambos os horrores têm o mesmo constructo: “o estranhamento do que é familiar” – é o unheimlich freudiano.4
Por seu lado, Luiz Costa Lima, ao verificar diacronicamente “o que se passara com a prosa ficcional brasileira e hispano-americana entre o século XIX e as primeiras décadas do século XX” (Lima, 2003, p.346), constata um conúbio, rompido nos anos cinqüenta, entre estudos naturalistas ou cientificistas e a ficção. Na prosa de Alejo Carpentier e Juan Rulfo, “o corte com o documentalismo realista se dava pela ênfase pelo apagamento entre vida e morte” (Lima, 2003, p.347). Já Guimarães Rosa “não desenvolveu uma visão que conectasse o que se passa no ‘sertão’ com o que sucede no mundo” (Lima, 2003, p. 348). Entende Costa Lima (2003, p.347-348) que o fantástico de Rosa inclui o mítico, o lendário, mas é dimensão do mesmo, enquanto que em Carpentier “inclui o contato com o estrangeiro, agente, embora não único, do horror que assediará os personagens” (Lima, 2003, p.348).
Desse modo, o horror, em Grande sertão: veredas, “quando [...] aparece, é gerado por motivos simplesmente internos”, o que, aliás, é – quanto a tal aspecto – constante “na literatura brasileira, antes ou depois de Rosa” (Lima, 2003, p.348). Nas passagens em que se verificam exceções à regra, por exemplo quando trata das “tentativas de exprimir a experiência brasileira vivida durante o golpe de 1964”, o horror fracassa como expressão literária, reduzindo-se à loucura, “a distúrbios privados” (Lima, 2003, p.348)5. Temos, pois, um “auto-engendramento do horror”, como se “o imaginário brasileiro se concebe[sse] a si mesmo alheio ao mundo externo” (Lima, 2003, p.349).
De tal endogenismo não escapa sequer Machado de Assis: “a questão da propagação moderna do horror como resultante de uma interação com a ação do império do momento não se põe em nossa literatura. Não é sintomático que os grandes romances de Machado de Assis dela não mostrem rastro?” (Lima, 2003, p.350).
A única ressalva consta em rodapé. Costa Lima (2003, p.350) anota que os “romances recentes de Bernardo Carvalho e Milton Hatoum” talvez rompam com o atávico auto-insulamento da literatura brasileira.
Há que se refletir sobre tal proposição, que aparenta radicalidade, mas que se firma em sólida reflexão teórica e em amplo e aprofundado conhecimento das obras consideradas fundamentais da literatura brasileira.
O que percebemos é que os escritores brasileiros, com o olhar do colonizado, mimetizam o colonizador,6 replicam o discurso da metrópole: o nativo surge rústico, grosseiro e bruto, enquanto o europeu detém o conhecimento, o saber e a humanidade. Inocência, de Taunay, por exemplo, representa tal ideologia, em um esquema narrativo e poético que os autores brasileiros repetem desde então, mesmo quando – como no modernismo de 22 – empunharam discursos nacionalistas e libertários7. No célebre romance do Visconde, o horror – se assim podemos chamar à caçada e assassinato que vitima o protagonista – é auratizado como elogio da honra patriarcal.
Temos o horror, portanto, como manifestação de violência física, como rejeição da diferença, como aversão à alteridade, como autoritarismo político, como mecanismo social de expropriação, lembrando que tal mecanismo é constituinte estruturador da mundividência helênico-européia transplantada a ferro, fogo, lágrimas e sangue por todo o planeta. O horror, na literatura, é a representação singular – e questionadora – da desumanização coletiva configurada pelos tópicos elencados.
Trata-se, essa entranhada experiência do horror que molda o ocidente, a carência histórica das letras nacionais. A literatura brasileira caracteriza-se por fechada reafirmação identitária que deságua, na ficção e na poesia, em intimismo psicológico subjetivista confessional.
Assim, sucedem-se os diários, as memórias, os memoriais, as biografias, as auto-biografias, as epistolografias, os poemas (ou pseudo-poemas) ego-patéticos, os textos em primeira pessoa, os títulos homônimos aos protagonistas, os protagonistas autodiegéticos. A esse eu falante, que confessa dores e amores, falta romper com o discurso metropolitano, superar a visão de mundo que homologa o interesse colonizador, colocar-se na margem e na fronteira como antropófago dos centros espoliadores, conscientizar-se de que o unheimlich deve ser jogo artístico denunciador do real.
Estamos, aqui, no âmbito das relações entre ficção e realidade. Para Luiz Costa Lima,
se o personagem não se confunde com o documento privilegiado pelos historiadores, contém e abrange, contudo, o homem que possa ter sido. Generalizo mais ainda: o texto ficcional, não sendo guiado pela fidelidade ao contexto que tem por referência, no entanto o dramatiza, i.e., o tem como sêmen do qual se desenvolverá seu corpo. Não é, portanto, que, de um lado, se ponham a História, a base documental, seu entendimento ideológico, e, de outro, a ficção que as desrealiza. É certo que a ficção e a arte em geral desrealizam, mas o fazem para investir seu texto de um lastro de realidade, que, embora seja histórica, não é captável por ferramentas históricas. Contém, assim, um histórico fluido, plástico, dependente, além do grau de talento pessoal, do lugar em que foi concebido – lugar que não só ultrapassa a intenção com que se escreveu mas é ainda flexível aos lugares outros em que venha a ser recebido. Essa porosidade do texto ficcional é resultante de sua estrutura-com-vazios (W. Iser),8 que exige a intervenção ativa do leitor, a suplementação que ele efetiva, a partir dos efeitos que os vazios nele provocam. (Lima, 2003, p.352).
Trata-se de “explicitar [...] o exame da dimensão política do discurso ficcional, para que não seja apenas subjetiva e, portanto, arbitrária” (Lima, 2003, p.25). Circunscrever o histórico e o político significa, pois, eleger um tema a ser analisado, mas “antes de se pretender dar conta do tratamento ficcional de um tema qualquer, se há de investir em uma teoria do discurso ficcional” (Lima, 2003, p.24).
O poético, aqui, se define, em termos aristotélicos, por oposição ao discurso da história. No entanto, ao contar o que poderia ter sido, não o que efetivamente aconteceu, o poético erige-se por vazios suplementados pelo leitor. É desse vazio, inapreensível por metodologia da História, que flui o histórico presente no ficcional, revelador do locus temporal e geográfico do autor, e que se expande incorporando o locus do receptor – ou seja, ganha indeterminação alegórica no tempo e no espaço, podendo ser, para o leitor, qualquer tempo e qualquer lugar. A leitura política deriva do discurso ficcional, mas se efetiva pelo texto e não fazendo do texto mero pretexto.
A tese central de Costa Lima (2003), de que a literatura brasileira desenvolveu-se praticamente alheia à experiência concreta do horror9, passa realmente incólume – pelo que parece – ao examinarmos as mais diversas obras, da Carta de Caminha aos nossos dias. A violência ficcionalmente representada esgota-se nela mesma, o outro é rejeitado, os mecanismos sociais de exploração banalizam-se como discurso político, o desumano torna-se normal e aceito, a identidade fecha-se no mesmo, o antropófago perde os dentes, o poético explicita-se por fatura literária intimista ou pelo riso – do lúdico descompromissado ao satírico, cuja crítica se omite de atacar os alicerces para se circunscrever ao episódico, ao rasteiro e ao superficial.
Outro discurso – sempre no âmbito da literatura brasileira – no qual o horror parece se apresentar, mas cuja realização permanece superficial, é o que se volta para a evidência do autoritarismo, seja o das relações pessoais ou familiares, seja aquele da abordagem de aspectos vivenciados pela sociedade brasileira em decorrência do regime instaurado em 64.
Ginzburg e Umbach (2000, p.237) tratam da “perplexidade [dos pensadores] diante dos regimes autoritários” do século XX, em decorrência “das possibilidades de catástrofe a que a humanidade se expôs” devido a “posição agressiva do Estado com relação aos indivíduos”.
O horror histórico instaura-se como “[v]iolência, massacres coletivos, difusão e naturalização de preconceitos, atitudes conservadoras e reacionárias”, exatamente o caldo de cultura decisivo “para a consolidação da política autoritária contemporânea” (Ginzburg;Umbach, 2000, p.237-238). Considerando o autoritarismo como “um regime político em que existe um controle da sociedade por parte do Estado, que manipula as formas de participação política e restringe a possibilidade de mobilização social”, em que os intelectuais são cooptados, em que o Estado se volta para os próprios interesses e em que “o setor militar desempenha um papel decisivo na manutenção da ordem”, busca-se a forma de representação literária que exprima tal experiência autoritária (cf. Ginzburg;Umbach, 2000, p.238).
A partir das reflexões de Costa Lima (2003), como expusemos, configuramos que o discurso estético somente se define como expressão do horror se faz, da experiência do indivíduo, uma reflexão a contrapelo da desumanização coletiva implícita no horror referenciado.
Nessa interface, a historiografia, em antologias e em estudos, específicos ou panorâmicos, tem se voltado para as obras da literatura brasileira cujo pano de fundo histórico é o período que o país viveu com a implantação do regime de 6410. Sobre o horror então implantado, os volumes de memórias, os processos judiciais ou administrativos e os manuais de história têm sido, senão pródigos, de razoável magnitude.
Dispondo de razoável fortuna crítica, o número de autores cujas obras dialogam com a história do período chega à casa das dezenas. Com alguma pesquisa, é provável que passe da centena. Dos estudos, emerge uma estética: pela alegoria do fantástico ou pelo registro documental, a literatura do pós-64 é realista, no sentido de que descreve o autoritarismo vivido sem mediá-lo por invenção questionadora do horror, horror este que é um dos pilares da cultura ocidental nos aspectos sociais, econômicos e políticos.
Estamos como que “diante da exibição abjeta dos cabelos, das malas e dos sapatos de Auschwitz”, que emocionam menos do que a “ausência plena” como constructo estético: “Estou convencido de que a ausência é uma nova forma de reflexão e de representação da catástrofe e do horror”, pois o silêncio causa perplexidade “como [que] diante do sagrado” (Silva, 2006, p.189).11 A loquacidade da poética que dá forma à literatura do pós-64 não emociona, não causa perplexidade, não provoca reflexão, não leva à ruptura – é o que, a nós, nos parece corolário do conceito.
Silva (2006, p.188) nos diz: “cada tempo exige sua arte, novos engajamentos, e novas representações”. E assim emerge no poético – como uma “aura sagrada” (Silva, 2006, p.187) – o vazio, o elíptico, o inconcluso, o conscientemente elidido. Tal estética enuncia o horror que desumaniza, pois opõe, ao mutilado e à morte, o silêncio como ausência que criminaliza e conscientiza.
O capítulo “As metamorfoses do silêncio”, de O cânone imperial (Kothe, 2000, p.315-381) nos serve de exemplo. Nele se expõe a forma como o poema “Lucie”, de Musset, foi traduzido por Machado de Assis e retomado por Castro Alves, Bernardo Guimarães e, no Dom Casmurro, pelo próprio Machado. Circunscrevemo-nos aqui à tradução:
O poema de Musset é dividido em três partes, o de Machado em duas [...] O texto de Musset contém, no início e no final – como um misto de epígrafe, introdução, conclusão e moldura –, uma sextilha que não foi traduzida por Machado de Assis [...]
As três partes em que se divide basicamente o poema de Musset são separadas entre si por linhas pontilhadas constitutivas do poema, pois indicam um silêncio, um transcurso de tempo e uma ação que não chegam a ser explicitados em detalhe, tais como a doença e a morte da amada (Kothe, 2000, p. 327-328, negrito nosso).
Trata-se, o exposto, de um aspecto formal com clara implicação no efeito de sentido proposto por Musset. Do ponto de vista do conteúdo, outras alterações são percebidas:
A cena central do poema francês começa pela tardinha (soir) [...] e se estende até à noite. Machado não manteve a sutil seqüência temporal de soir para nuit, apresenta a cena como tendo toda ela transcorrido à noite. Com isso perde o halo resultante do gradativo cessar da luz natural, as etapas daquilo que aí se passa [...] o movimento básico do poema: da vida para a morte. Assim se destaca o efêmero, a fragilidade do encanto, o mistério, a lei natural da vida (Kothe, 2000, p.331).
Após considerar que a etimologia de “Lucie”, de cuja polissemia Musset se vale para amplificar sentidos no poema, indica a portadora de luz, a que luzia de modo permanente, Kothe (2000, p.340-368) descreve transposições que tornam a tradução de Machado “abaixo do original”, com “erros técnicos e imperícia” decorrentes de “superficialidade hermenêutica” (Kothe, 2000, p.369).
Após tais reparos, a importância, no poema de Musset, do silêncio, apagamento e ausência tornados efeito de sentido, é retomada. Segundo Kothe (2000, p.372), “[...] Quando a estrutura se mostra, ela pode ser melhor diagnosticada, resolvida e dissolvida”.
Em seguida, Kothe discorre sobre como o silêncio foi elidido na transposição do original francês para a versão portuguesa:
No texto de Musset, para indicar a morte ocorrida dois meses mais tarde e a radical alteração na vida do protagonista, tem-se uma linha pontilhada entre a segunda e a terceira partes do poema: ela é parte constitutiva do texto como um silêncio significativo. Essa linha não aparece na tradução de Machado, embora seja, ao indicar ausência textual, a parte mais importante. Ela é, de certo modo, mais importante que o texto, ao ser lida como sua transcendência, e não apenas como suspensão e suplementação do conteúdo manifesto. Há um “indizível” que só podia, então, ser configurado como “extra-vagância”, insólito e anomalia, o qual poderia ser visto, porém, como um momento necessário para que um dia fosse decifrado e dito (Kothe, 2000, p.372).
Esse “não-dito”, pois que “inexiste na página exceto como índice de uma ausência [...] implicitamente enunciado, prenunciado”, ressoa justamente por não estar exposto – torna-se elemento “fundante”, que contamina todos os sentidos do verbalizado (cf. Kothe, 2000, p.372). As mudanças que o tradutor impôs ao original decorrem, segundo o estudioso, da situação colonizada e dependente do pensamento brasileiro, incapaz de se emancipar das matrizes metropolitanas. Trata-se, nas palavras de Kothe (2000, p.380), de “um dos preços que o país pagou pelo totalitarismo, do qual foram agentes relevantes o sistema de ensino e o sistema editorial sob o controle da Igreja Católica”.
Existe, pois, um silêncio estético denunciador do silêncio autoritário estrutural que é um dos alicerces do horror da civilização cristã do ocidente. O gesto de violência não funda o horror: ele é sintoma. A intransigência diante do que não é identitário, o fechar-se no intimismo sem, ao menos de modo implícito, correlacioná-lo com a experiência social, o sangue e lágrimas individuais sem a contrapartida do fogo e ferro civilizatórios – tais parâmetros de fatura literária, que não faz ver “como é invisível a invisibilidade do visível”, é o molde no qual se amolda toda a literatura brasileira, tal como se a analisou neste trabalho.12 Em outras palavras, há que se incorporar – ao discurso literário que represente o horror inserto no social – a “mímesis [como] uma oficina de imprevistas correspondências” (Lima, 2000, p.289).
Entretanto, como vimos, uma das características da literatura brasileira – ao menos daquela acolhida nos manuais acadêmicos – a repulsa à alteridade, o não acolher a voz do diferente, o somente ter voz a subjetividade egocêntrica de um eu íntimo que se identifica com o canônico e com o status quo. Tal endogenia egolátrica diminui o alcance de nossas letras, uma vez que nossos autores se perdem em um entre-lugar vazio de sentidos, vagando entremeio o silêncio que denuncia e o silêncio que omite, sem chegar aos extremos, sem buscar a raiz. Incapazes de romper ou ao menos questionar o ideológico transplantado que os formou e conformou, mostram-se, os ficcionistas e os poetas tupiniquins, incapazes de captar o horror inserto na estrutura da sociedade ocidental.
Claro está, a representação artística pode tomar formas as mais imprevistas, e ainda assim não alcançar a expressão do sujeito fraturado diante do horror que funda a sociedade na qual vive e que se exprime em seus atos – esse é o absurdo dos nossos dias: os atos perderam eficácia real, pois quaisquer que eles sejam, terminam por caldear sentido ao sem-sentido, terminam por adicionar horror ou serem complacentes com o horror.
Como escapar, em termos artísticos, a impasse tão doloroso?

Referências bibliográficas

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1 Doutor em Estudos Literários pela Unesp; professor de Literatura Brasileira na UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Câmpus do Pantanal – Departamento de Ciências Humanas e Letras – Curso de Letras – Corumbá – MS – Brasil, CEP 79304-020; atua no Programa de Pós-Graduação Mestrado em Estudos de Linguagens da UFMS – CCHS – Campo Grande – rauer.rauer@uol.com.br.
2 Doutora em Estudos Literários pela Unesp; professora de Teoria da Literatura do Mestrado em Letras do Câmpus de Três Lagoas da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – Departamento de Educação, Três Lagoas – MS – Brasil, CEP 79603-011 – kelcilenegracia@uol.com.br.
3 Consideramos – e sobre isso discorremos à frente, neste texto – que o horror, na literatura, é a representação questionadora da desumanidade intrínseca do referente histórico.
4 A autora não se vale dos conceitos de sujeito e consciência que evocamos – e com os quais firmamos a descrição (e isso é o mais importante em nossas considerações) no âmbito do intimismo subjetivo, inerente ao fenômeno em análise.
5 Lima (2003, p.348-350) menciona os romances Reflexos do baile [1976], de Antônio Callado, Armadilha para Lamartine [1975], de Carlos Süssekind, e Quatro olhos [1976], de Renato Pompeu; lembra o poema O Guesa [1858 e 1888], de Sousândrade (1832-1902), e desconsidera, como manifestação do horror, a peça O rei da vela [1937], de Oswald de Andrade; nesse quadro, vê como única exceção o volume de poemas A rosa do povo [1945], de Carlos Drummond de Andrade, e cita, como paradigma de insulamento, o romance A menina morta [1954], de Cornélio Pena.
6 Na lição de Bosi (1996, p.51): “Não há dúvida de que, nos traumas sociais e nas migrações forçadas, os sujeitos da cultura popular sofrem abalos materiais e espirituais graves, só conseguindo sobrenadar quando se agarram à tábua de salvação de certas engrenagens econômicas dominantes. Tal sobrevivência não dá, nem poderia dar, resultados felizes em termos de criação cultural, pois é conduzida às cegas pelos caminhos de exploração do sistema.” Na passagem, Bosi faz juízo geral, não tem em análise a obra de Taunay.
7 Anotemos algumas obras: Machado (1981), Dalcastagnè (1996), Pellegrini (1996 e 1999), Franco (1999) e Bastos (2000); nessas obras, eis os trinta e seis autores estudados: Alfredo Sirkis, Ana Maria Machado, Antonio Callado, Antônio Torres, Assis Brasil, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Erico Verissimo, Esdras do Nascimento, Fernando Gabeira, Heloísa Maranhão, Heloneida Studart, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Janer Cristaldo, Jefferson Barros, Jorge Amado, José J. Veiga, Josué Guimarães, Josué Monteiro, Luiz Gutemberg, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Márcio Souza, Moacyr Scliar, Oswaldo França Júnior, Paulo Francis, Raduan Nassar, Renato Pompeu, Renato Tapajós, Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Salim Miguel, Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago e Victor Giudice. Com Fábio Lucas (1987), com destaque para o estudo inicial do antologiador, temos uma coleta com doze contistas: Deonísio da Silva, Flávio Moreira da Costa, Garcia de Paiva, Ivan Ângelo, Júlio Borges Gomide, Mafra Carbonieri, Manoel Lobato, Moacyr Scliar, Nélida Piñon, Ricardo Ramos, Rubem Fonseca e Wander Piroli. Em Silverman (1987), mais de centena e meia de autores se sucedem. Das histórias panorâmicas, em Stegagno-Picchio (1997) encontramos informação básica dos autores. Dados biobibliográficos e eventual fortuna crítica, disponíveis em Coutinho e Sousa (2001).
8 Diz Edson Rosa da Silva (2006, p.188-189): “ao lado de inúmeras formas concretas de representação, a representação do vazio tem cada vez mais lugar e é plena de sentido. / [...] Penso que há uma migração da representação concreta para uma representação pela ausência. [...] Visitei em julho de 2004 o Judisches Museum em Berlim. [...] São salas altas, grandes, corredores imensos e tudo quase vazio. Há salas com quadros de artistas judeus e outras salas vazias, numa ausência eloqüente de quadros que sumiram, foram destruídos, ou nunca existiram. Talvez se pudesse chamar isso de uma instalação do Vazio da Morte. [...] / O segundo exemplo é o monumento que, naquele julho, ainda estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de Berlim, a algumas quadras apenas da porta de Brandenburg. Túmulos vazios, plenos de lembranças. Era o centro do III Reich. Parece um cemitério. Mas não há corpos. Só pedras. É o monumento da ausência. / Creio que é possível pensar essa ausência-plena. Plena de memória, vazia de forma humana. [...] / Estou convencido de que a ausência é uma nova forma de reflexão e de representação da catástrofe e do horror.”
9 Em itálico, afirmação que consta na segunda orelha do livro (Lima, 2003) e que sintetiza, de maneira perfeita, a proposta desenvolvida na obra.
10 Anotemos algumas obras: Machado (1981), Dalcastagnè (1996), Pellegrini (1996 e 1999), Franco (1999) e Bastos (2000); nessas obras, eis os trinta e seis autores estudados: Alfredo Sirkis, Ana Maria Machado, Antonio Callado, Antônio Torres, Assis Brasil, Caio Fernando Abreu, Carlos Heitor Cony, Erico Verissimo, Esdras do Nascimento, Fernando Gabeira, Heloísa Maranhão, Heloneida Studart, Ignácio de Loyola Brandão, Ivan Ângelo, Janer Cristaldo, Jefferson Barros, Jorge Amado, José J. Veiga, Josué Guimarães, Josué Monteiro, Luiz Gutemberg, Luiz Vilela, Lygia Fagundes Telles, Márcio Souza, Moacyr Scliar, Oswaldo França Júnior, Paulo Francis, Raduan Nassar, Renato Pompeu, Renato Tapajós, Roberto Drummond, Rubem Fonseca, Salim Miguel, Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago e Victor Giudice. Com Fábio Lucas (1987), com destaque para o estudo inicial do antologiador, temos uma coleta com doze contistas: Deonísio da Silva, Flávio Moreira da Costa, Garcia de Paiva, Ivan Ângelo, Júlio Borges Gomide, Mafra Carbonieri, Manoel Lobato, Moacyr Scliar, Nélida Piñon, Ricardo Ramos, Rubem Fonseca e Wander Piroli. Em Silverman (1987), mais de centena e meia de autores se sucedem. Das histórias panorâmicas, em Stegagno-Picchio (1997) encontramos informação básica dos autores. Dados biobibliográficos e eventual fortuna crítica, disponíveis em Coutinho e Sousa (2001).
11 Diz Edson Rosa da Silva (2006, p.188-189): “ao lado de inúmeras formas concretas de representação, a representação do vazio tem cada vez mais lugar e é plena de sentido. / [...] Penso que há uma migração da representação concreta para uma representação pela ausência. [...] Visitei em julho de 2004 o Judisches Museum em Berlim. [...] São salas altas, grandes, corredores imensos e tudo quase vazio. Há salas com quadros de artistas judeus e outras salas vazias, numa ausência eloqüente de quadros que sumiram, foram destruídos, ou nunca existiram. Talvez se pudesse chamar isso de uma instalação do Vazio da Morte. [...] / O segundo exemplo é o monumento que, naquele julho, ainda estava por terminar: pedras tumulares negras em pleno centro de Berlim, a algumas quadras apenas da porta de Brandenburg. Túmulos vazios, plenos de lembranças. Era o centro do III Reich. Parece um cemitério. Mas não há corpos. Só pedras. É o monumento da ausência. / Creio que é possível pensar essa ausência-plena. Plena de memória, vazia de forma humana. [...] / Estou convencido de que a ausência é uma nova forma de reflexão e de representação da catástrofe e do horror.”
12 A expressão original é: “[a] ficção consiste [...] não em fazer ver o invisível mas em fazer ver como é invisível a invisibilidade do visível” (Foucault [“La pensée de dehors”, in Dits et écrits (1954-1988), vol. I, D. Defert e F. Ewald (orgs.), Gallimard, Paris, 1994, p.524; a passagem referenciada é de 1966], apud Lima, 2000, p. 252). Embore a cite, Luiz Costa Lima (2000, p.252 e sgs.) faz restrições à proposição no seu Mímesis: desafio ao pensamento, informando que Foucault se apresenta em outros termos quando, em obra posterior, considera: “Deve-se escapar à alternativa do fora e do dentro; é preciso estar nas fronteiras” (Foucault, apud Lima, 2000, p.264). Costa Lima descarta as opções pelo imanente, pelo transcendente, pelo niilismo e pelo ontológico: “a literatura [...] não forma um texto sem raiz nem teto, sem pré-texto ou pós-texto. A [...] qualquer texto literário, é impossível desligar-se do antes e do depois do texto” (Lima, 2000, p.289). Já vimos que Costa Lima nega também o sociologismo mecânico; a opção de análise é considerar que o discurso poético mimetiza o referente, desvelando-o em seus mecanismos intrínsecos ao mesmo tempo em que se revela como discurso – e como ideologia, portanto.

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