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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

A INTERMITÊNCIA DA MEMÓRIA: TRANSCONTEXTUALIZAÇÃO EM “O CORPO”, DE CLARICE LISPECTOR

João Manuel dos Santos Cunha1
Resumo: Este ensaio examina as relações contextuais entre a ditadura militar brasileira (1964-1985) e a literatura de ficção produzida no país naquela época, centrando a reflexão na análise comparada de “O coração delator” (The tell-tale heart, Edgar Allan Poe, 1843), “O coração denunciador” (tradução de Clarice Lispector para o texto de Poe, 1974) e o conto “O corpo” (Clarice Lispector, 1974).
Palavras-chave: Literatura e repressão; Edgar Allan Poe; Clarice Lispector; transcontextualização
Abstract: This essay examines the contextual relations between the Brazilian military dictatorship (1964-1985) and the fictional narrative produced in Brazil in that period. The analysis focuses on a comparison between Edgar Allan Poe’s “The Tell-Tale Heart”, its translation to Portuguese by Clarice Lispector, “O coração denunciador”, and a short story by Clarice Lispector, “O Corpo” (1974).
Keywords: Literature and oppression; Edgar Allan Poe; Clarice Lispector; transcontextualization

1. Introdução
Um dos traços mais evidentes da conseqüência da queda das ditaduras na América Latina no final do século passado, a partir do início dos anos oitenta, foi a recorrência de publicações de textos, literários ou não, bem como a produção de narrativas fílmicas e de espetáculos teatrais, os quais buscaram recuperar os fatos a partir da memória dos que, inseridos na clandestinidade da luta armada ou resistentes sociais, viveram os tempos repressivos dos períodos ditatoriais. Foi como se houvesse uma vontade imperiosa de cumprir o dever de restaurar a memória do horror através de depoimentos jornalísticos, análises sociológicas e antropológicas e estudos psicanalíticos, ou por meio da representação estética em todas as suas variantes poéticas. Seja na linguagem direta dos depoimentos de envolvidos e sobreviventes, por meio do discurso da prova testemunhal nos tribunais, seja na reelaboração dos fatos pela via da ficção narrativa, tal circunstância se faz imperativa sempre que a humanidade supera a travessia desses períodos cíclicos sob o domínio do mal absoluto.
Beatriz Sarlo, ao analisar a natureza desses discursos, no entrecruzamento do horror e do humano, a partir da leitura de É isso um homem? , obra na qual o escritor Primo Levi reflete sobre a terrível realidade dos campos de concentração sob o domínio nazista durante a Segunda Guerra Mundial, conclui que para esses sujeitos a necessidade de contar o vivido ao outro, de fazê-lo participar da experiência dolorosa, é tão irresistível quanto as necessidades mais elementares para a sobrevivência cotidiana (Sarlo, 2007, p.34). Certamente é a força dessa necessidade – atendida que é pela recuperação da memória do tempo passado na construção da memória do tempo presente – que anima autores e intérpretes a tomarem a palavra e a construírem o discurso da permanência do passado no presente, providência sem a qual, definitivamente, não há garantia de futuro.
No Brasil, como nos demais países latino-americanos que saíram de períodos ditatoriais nos anos oitenta e noventa, não foi diferente. Perseguidos políticos, sindicalistas, artistas, intelectuais, professores e estudantes, vítimas e familiares vieram à cena social cumprir o dever da memória. No âmbito da literatura de ficção, são exemplares as narrativas de cunho memorialista dos guerrilheiros exilados Fernando Gabeira (O que é isso, companheiro? ,1979) e Alfredo Sirkis (Os carbonários – memórias da guerrilha perdida, 1981); ou, no texto em verso, o testemunho de Alex Polari de Alverga, preso e torturado por sua militância política (Camarim de prisioneiro, 1980).
Ainda que se possa examinar esses textos sob ângulos diversos – seja do ponto de vista de que são testemunhos que podem ter validade como instrumento jurídico, ou como modo de escrita ou, ainda, como fonte de reconstituição histórica –, para os estudos literários, certamente, uma questão se coloca como crucial. O problema residiria em como exercer a leitura crítica sobre um conjunto de textos que, ao mesmo tempo em que se valem do discurso estético, no território demarcado da hegemonia simbólica, explicitam as condições culturais e políticas de sua produção, por meio da expressão testemunhal que se quer fidedigna dos acontecimentos vividos. Além disso, se atentarmos para o fato de que foi, justamente, nos últimos quarenta anos que se esvaiu a suspeita sobre a prevalência do “eu” em narrativas literárias, a permanência da memória conferida por esses escritos passa a ser tema que, de muito perto, interessaria à crítica e aos estudos de literatura. O problema estaria, ainda, em como balizar os excessos da memória no trato com um objeto estético que resulta do exercício do pensamento, possibilitado pela qualidade de abstração liberada pela palavra esteticamente trabalhada como linguagem. Nesse sentido, duas notáveis pensadoras de nosso tempo apontam para possível viés de leitura que possibilitaria a resolução da questão metodológica. Nas palavras de Susan Sontag, talvez se esteja atribuindo “valor demais à memória e valor insuficiente ao pensamento” (apud Sarlo, 2007, p.21), ao que complementa Beatriz Sarlo, refletindo sobre a intangibilidade de certos discursos sobre o passado: ”mais do que lembrar, é importante entender, embora para entender também seja preciso lembrar” (Sarlo, 2007, p.22).
São questões como essas que conferem interesse específico, na cena dos estudos literários, aos textos produzidos a partir do rescaldo da era dos generais ditadores brasileiros – num período que se caracterizou pela “distensão política e social”2, e que iria de 1979 a 1985.
As ditaduras, entretanto, ainda que de forma não prevista, produzem às vezes efeitos “positivos” no quadro da produção estética, em nações amordaçadas pelo arbítrio da supressão das liberdades individuais, como foi o caso da brasileira. A partir da vigência do Ato Institucional nº 5, em dezembro de 1968, começa o período que Elio Gaspari vai chamar de a “ditadura escancarada” (Gaspari, 2002, p.13)3, marcado pela cassação dos direitos políticos não só de membros do antigo governo, mas de centenas de intelectuais, professores, escritores, jornalistas e artistas, submetidos à repressão cultural, com a apreensão e queima de livros, jornais e revistas. Centenas exilam-se. Os que permanecem no país, resistem, no cotidiano difícil, ou na clandestinidade.
Enquanto os exilados são a voz da resistência no exterior, circunstância que, pelo bem e pelo mal, coloca a realidade brasileira no quadro da cultura universal, chamando a atenção do mundo para os fatos por meio de conferências, entrevistas, traduções de livros proibidos no Brasil, apresentações artísticas e atividades acadêmicas, os que restaram vêem-se na urgente e incontornável tarefa de falar de aqui para aqui. Análises circunstanciadas da produção cultural e estética dessa época já evidenciaram que uma das invenções formais que possibilitava aos autores falarem sobre os acontecimentos proibidos, sem a ameaça de terem seus textos censurados ou mutilados, era o uso de linguagem simbólica no limite da convenção metafórica, tendendo para a codificação cifrada de circulação restrita. Exacerbava-se, nessas condições, o trabalho com a linguagem, praticada, então, no arco tensionado da criação estética experimental. Por meio da intertextualidade paródica e do remake de textos clássicos, por exemplo, inalcançáveis pela boçalidade da censura oficial, falava-se de uma situação histórica determinada para esclarecer sobre uma outra realidade não-determinada, ou, pelo menos, não nominável. Criaram-se, nesse quadro, alguns dos mais importantes e sublimes textos da arte brasileira, da música popular ao teatro, da pintura à literatura e ao cinema. Ainda que tal exercício de invenção exigisse dos autores a superação dos seus próprios limites criativos, não se deixou, entretanto, no período mais agudo da censura, de se escrever e publicar livros. É o que observa Silviano Santiago, ainda que refletindo numa outra via, quando analisa a produção dessa época; diz ele: “a censura não afeta, em termos quantitativos, a produção artística, ela, no entanto, pode propiciar a emergência de certos desvios formais que acabam sendo características das obras do tempo” (1982, p.52).
Uma conseqüência “positiva” do violento regime repressivo da ditadura brasileira a partir do final dos anos sessenta e durante os setenta no âmbito das artes seria, então, justamente, a de provocar a capacidade de invenção dos autores e o de refinar a percepção dos leitores para a fruição da obra de arte, ainda que, reconheça-se, a prática do discurso alegórico, metafórico e de lógica onírica seja uma das vertentes mais caras aos textos literários da modernidade. O que ocorreu, na verdade, foi uma agudização dos meios e dos métodos estilísticos e formais pelo retorno violento dessa opção de escrita ficcional, fincada na necessidade de referenciar os fatos da atualidade, sem o risco de que o texto fosse censurado ou proibido. Ainda que tal estratégia possa ter reduzido ainda mais o número de leitores para o texto literário, ela teve o mérito de manter ativa uma outra voz, em contraponto à única voz permitida: a do governo da ditadura. Mais: para ouvir e entender o que dizia essa voz, parcela do público leitor teve que afinar seu senso de percepção e ampliar seu repertório estético, livrando-se, assim, do estado de “minoridade intelectual”, para usar termo cunhado por Silviano Santiago (1982), que o sistema lhe reservara.
Tal literatura, produzida num período de tempo que ocupa pouco mais de uma década, foi gerada no social e não como conseqüência do social. Os fatos que ela recupera não são os fatos lembrados pela memória, mas fatos que são a própria memória do tempo diegético presente; memória como registro para o não esquecimento. Comparada com a prosa memorialista, essa literatura da urgência coloca, para os estudos literários, outros problemas tão instigantes quanto aqueles criados pelos textos testemunhais. Como ler esses textos de um presente histórico, instalados que estamos num presente que precisa do passado para lembrar, para constituir-se como memória? Mais uma vez é Beatriz Sarlo que aponta para uma possível saída: “Não se prescinde do passado pelo exercício da decisão nem da inteligência; tampouco ele é convocado por um simples ato de vontade. O retorno do passado (...) é um advento, uma captura do presente”. (2007, p.9) O que vale dizer: é a presença do passado no presente que assegura a imprescindível e humana persistência da memória.

2. Ficção e realidade: a urgência de uma literatura da atualidade
Ainda que se deva reconhecer, como postula Roberto Schwarz, que “em seu conjunto, o movimento cultural dessa época é uma espécie de floração tardia, o fruto de dois decênios de democratização, que veio amadurecer agora, em plena ditadura, quando as suas condições sociais já não existem” (1992, p.89), um quadro recortado da produção narrativa dessa época passada deve incluir, no presente, obrigatoriamente, a obra dos muitos escritores que impuseram à ditadura uma prosa inquieta e problemática, tanto não-conformada a padrões estéticos como inconformada com o estado da situação nacional, os quais criaram novos paradigmas teóricos e patamares formais para o romance e o conto brasileiros, a partir da própria impossibilidade de livre expressão cultural e artística. Dentre eles, destaca-se Antonio Callado, que produz pelo menos duas obras-primas nesse período, o alegórico Quarup (1967) e o exaustivo exercício de subversão de modelos romanescos, manancial conseqüente de intertextualidades, Reflexos do baile (1976). Ou Ignácio de Loyola Brandão, com, principalmente, seu “romance pré-histórico” Zero (1979), proibido para todo o território nacional antes mesmo de ser publicado e que será levado para a Itália pela historiadora Luciana Stegagno-Picchio (2004, p.632) e lá traduzido por Antonio Tabucchi, causando enorme repercussão internacional e chamando a atenção do mundo para a cena brasileira. Já José Louzeiro, com sua literatura parajornalística assestada na mira dos esquemas policiais paramilitares colocados em cena pela ditadura, fala pelas frestas da alegoria ficcional em textos como Acusado de homicídio (1967) e Infância dos mortos (1977). Rubem Fonseca, um dos alvos preferidos da censura nos anos setenta, ficciona uma realidade brasileira que os guardiões públicos da moral e dos bons costumes – de uma família brasileira que não pediu para ser protegida – insistem em escamotear da visão do público; dessa época, são paradigmáticas as narrativas curtas de Feliz ano novo (1975), A coleira do cão (1965) e O cobrador (1979). Um insuspeitado contador de histórias de seu tempo, Paulo Francis, jornalista cultural e comentarista político, ao transitar para a literatura de ficção, realiza o estupro do texto reticente da grande imprensa para a logorréia de uma narrativa que emula as técnicas da linguagem jornalística, em Cabeça de papel (1977) e Cabeça de negro (1979). Ivan Ângelo, de refinada pesquisa metalingüística, atinge, com A festa (1976) e Casa de vidro (1979), um estágio de experimentação formal que definiria, de forma paradigmática, a literatura alegórica e metafórica dos anos de chumbo, ao falar de uma festa que não houve e de uma prisão com paredes de vidro. Sergio Sant’Anna, com Confissões de Ralfo (Uma autobiografia imaginária) (1975) e Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer) (1973), insere a apropriação paródica de textos clássicos do passado no domínio da barbárie social vigente no presente do país.
A esse conjunto de obras e autores nos quais se pode identificar marcas formais e ideológicas da literatura de resistência conformada pela urgência de um tempo de opressão e fragilização das forças intelectuais e culturais da sociedade brasileira, seria pertinente ainda alinhar obras de Renato Pompeu (Quatro olhos, 1976; uma história entre a alienação do sujeito e a radicalização dos discursos nos anos setenta); de Tabajara Ruas (A região submersa, publicado primeiramente no exterior, na Dinamarca e em Portugal, em 1978); e, ainda, de Renato Tapajós (Em câmera lenta, 1977); João Gilberto Noll (O cego e a dançarina, 1980) e Caio Fernando Abreu (O ovo apunhalado,1975), em cujos textos curtos se reconhece o que Flavio Aguiar interpretou como “a sensação de marginalidade política que largos setores da classe média descobriram no fundo do baú de miçangas da publicidade milagreira” (1997, p.180), fator circunstancial e fundamental para a desintegração do sujeito no espaço brutalizado da vida dos grandes centros urbanos, nos anos do milagre econômico brasileiro, a outra face do horror institucionalizado pela ditadura dos generais.

3. Clarice Lispector e “O coração denunciador”
Mesmo na obra de autores não vinculados a tendências ficcionais surgidas a partir dos anos sessenta, como as da literatura jornalística e do chamado “realismo mágico” – as quais serviram à necessidade de falar sobre os fatos sociais e políticos, respectivamente pelo viés de um realismo documentado ou pelo da alegoria formal –, é possível detectar textos que, inventando narrativas a partir da atualidade, no olho do furacão social brasileiro, tangenciaram o tema da repressão, da perseguição política, da tortura e do cerceamento das liberdades individuais durante a ditadura militar.
Se tensionarmos esse arco circunstancial, veremos que, no traçado amplo da literatura produzida no contexto da ditadura brasileira, é possível ler no presente a persistência do passado, ainda que em textos até então insuspeitados de engajamento ideológico ou militante. No âmbito desse recorte, vou me deter em dois textos produzidos por Clarice Lispector em meados dos anos setenta.
Por essa mesma época em que escritores tais como os acima referenciados criavam a literatura que hoje pode ser lida como um conjunto de textos em que persiste a memória de um passado lutuoso para a nação, Clarice Lispector, no Brasil dos generais Médici e Geisel, traduzia contos de Edgar Allan Poe para a Editora Artenova, de seu amigo e editor Álvaro Pacheco. Biógrafos da escritora (Borelli, 1981; Gotlib, 1995; Ferreira, 1999) têm lembrado o fato de que, no início dos anos setenta, Clarice, “sentindo a necessidade de manter sua estabilidade financeira” (Ferreira, 1999, p.265), após ser demitida do Jornal do Brasil, passa a trabalhar “por encomenda” e a publicar “os livros-sucata, compostos de textos anteriores” (Arêas, 2005, p.160). É desse período sua versão tradutora para alguns contos de Poe, que ela reuniu em uma coletânea intitulada O gato preto e outras histórias de Edgar Allan Poe, com “seleção, tradução e adaptação de Clarice Lispector” (Arêas, 2005, p.162), para a Editora Artenova. O livro encontra-se hoje no catálogo da Editora Ediouro, na coleção “Clássicos para o jovem leitor”, publicado sob o título de Histórias extraordinárias de Allan Poe/ textos em português de Clarice Lispector. A partir da edição de 2003, a ficha catalográfica informa ainda que é uma “2. ed., reformulada” e que “contém os textos de 18 contos selecionados e reescritos por Clarice Lispector”. Trata-se, como vemos, de empreitada que se exercita para além da operação tradutora interlingüística, a qual, por si só, já acarreta interpretação do texto primeiro. Ou seja, Clarice se propõe a “reescrever”, a “adaptar” os contos de Poe. Ainda que consideremos que toda tradução − semiótica ou intersemiótica − implica interpretação, o fato de ser explicitada a informação de que ela “adaptou” os contos que ela mesma escolheu reforça o caráter de apropriação do texto original pelo leitor-tradutor.
E que “Coração denunciador” é esse, na reescrita de Clarice Lispector para o “Tell-tale heart” de Poe? Se atentarmos para a extensão dos dois textos, verificados o número de palavras que os compõem, veremos que Clarice reduz para quase a metade a estrutura significante. Parágrafos inteiros são descartados ou sintetizados em poucas palavras, como, por exemplo, o quinto e os seguintes, nos quais Poe estrutura um dos pontos cruciais do conto: o estado de alucinação de que é tomado o velho, a espera no vazio do escuro que produz temor atávico à morte, e cuja origem não pode ser detectada. Essas marcas textuais, que permitiriam uma leitura psicológica para a história, ainda que não totalmente descartadas, são minimizadas por Lispector. O exercício de paráfrases que reduzem a extensão textual, no entanto, não pode ser visto como redutor do sentido do hipotexto, ou mesmo como leitura paródica do ato intertextual levado a termo por Clarice, como veremos. Por outro lado, constata-se que, nos parágrafos finais, nos quais são narrados os fatos relativos à chegada dos três policiais, a natureza coercitiva de sua ostensiva presença, bem como a confissão voluntária, são mantidos não só em sua quase integralidade, como recuperam, por meio de exercício tradutor não parafrásico, as circunstâncias em que ocorre o desfecho da história. Ao decidir por cortes profundos em trechos determinados ou pela manutenção quase integral de outras passagens do texto de Poe, Clarice certamente está apontando para a natureza de sua leitura tradutora. Reescreve o conto, portanto, apresentando sua interpretação para os fatos. E os fatos apontam para a valorização do segmento em que se conforma o aparato policial como condicionante da autodenúncia que encerra o conto, em detrimento de outros aspectos causais, de natureza psicológica, apresentados no hipotexto.
Por via dessa conclusão, pode-se inferir o motivo pelo qual Clarice teria nominado o conto de “O coração denunciador”. Ao mesmo tempo em que o distanciaria do original, ou de outras traduções brasileiras ou não, usando “denunciador” no lugar de “delator”, e marcando assim sua qualidade de “texto adaptado”, estaria valorizando o outro sentido da palavra, mais ligado à idéia de autodelação como sendo o ato de “dar-se a conhecer em situação-limite”, ou, ainda, “revelar-se sob circunstância especial”. Nesse jogo de sentidos com as palavras, vai o significado que Clarice quer exprimir: a escolha iluminaria a intenção de destacar o outro motivo que levou o anônimo personagem a confessar o crime, ou seja, a presença ostensiva dos policiais. Quando constatamos isso, não há como não pensarmos de que tempo e de que lugar Clarice falava: o Brasil da “ditadura escancarada” e suas práticas sociais coercitivas.

4. “O corpo” denunciador e a repressão transcontextualizada
Logo depois de sua adaptação para o conto de Allan Poe, no contexto desse mesmo período em que Clarice produz traduções e textos curtos, aceitando tarefas oferecidas pelo seu editor, ela publica, em 1974, o livro de contos A via crucis do corpo. São 13 as narrativas, precedidas de um texto denominado “Explicação”. Nele, Clarice descreve a gênese dos contos, produzidos em poucos dias: “tratava-se de um desafio”. E justifica-se por ter escrito “indecências nas histórias”. Espantada com o que escrevera, conta que sugeriu a Álvaro Pacheco que publicasse o livro sob o pseudônimo de “Cláudio Lemos”, o que não foi aceito: “Vão me jogar pedras. Pouco importa. Não sou de brincadeiras. Sou mulher séria”, diz ela no paratexto de A via crucis do corpo. Vilma Arêas identifica nesse texto de abertura do livro uma implosão do “mito romântico da criação livre e desinteressada”, por meio do qual o artista se posiciona acima das estruturas. Pelo contrário, diz Arêas, “ele é empregado do editor, que lhe encomenda histórias”. (2005, p.60). Clarice se colocaria, nessa perspectiva, como contestadora de sua própria condição, instalando-se na realidade nada romântica do presente brasileiro: tempo de tropas na rua e censura nos jornais. Escrever para sobreviver. Como ela previra − “Vão me jogar pedras” −, realmente, a crítica literária em suplementos jornalísticos e em revistas culturais não a poupou nem ao livro. E a Academia ficou muda. Só muito mais tarde, no âmbito do boom de Clarice, nos anos 90, os textos “menores” começam a ser devidamente avaliados no contexto de um projeto literário clariceano. O crítico Hélio Pólvora, em texto denominado “A arte de mexer no lixo” (apud Ferreira, 1999, p.266), foi um dos poucos a sair em sua defesa: “(...) suas ficções nada têm de pornográfico se comparadas às ousadias da permissividade absorvida também pela literatura (...); quanto a sua nova maneira de aceitar desafios, não tem por que se penitenciar: sua obra é um atestado libatório, justifica buscas”. Viu, o jornalista, o que poucos entenderam naquele momento: o livro, escrito na urgência do atendimento de uma encomenda, inseria-se na mesma busca de Clarice, desde os seus primeiros escritos e que se agudizou em A paixão segundo GH (1964), uma via crucis às avessas, tendo seu lugar de chegada em A hora da estrela (1977), com o relato da paixão de Macabéa até o momento da morte, a sua “hora da estrela”. A novidade é que, em 1974, a escritora se exercita de forma mais direta, mais explícita e até mais agressiva, como, aliás, já prenunciavam os contos de seu livro imediatamente anterior, Onde estivestes de noite? (1974). Neles, o corpo, em sua materialidade física, é o lugar da paixão, da humana trajetória da cruz na via pela qual o homem tem que passar. E por esse caminho transitam praticamente todos os temas da sexualidade − casamento, bigamia, traição, prostituição, homossexualismo, masturbação, fetichismo. O tom bíblico do discurso − além do que se pode inferir do próprio título do livro e de três contos, que têm epígrafes retiradas da Bíblia −, no entanto, é rebaixado pela linguagem intencionalmente sem polimento, simplificada, crua, servindo, às vezes até de forma escandalosa, ao tratamento paródico de temas pelos quais a literatura de Clarice, no entanto, sempre transitou.
É nesse livro de 1974 que podemos ler “O corpo”. É oportuno sublinhar o fato de que a narrativa é escrita e publicada poucos meses depois de Clarice ter adaptado o texto de Edgar Allan Poe na tradução de “O coração denunciador”.
“O corpo” é, da mesma forma como o relato de Poe, a narrativa de um assassinato, de um sentimento de desprezo, de um corpo ocultado, de policiais que investigam, de uma autodenúncia. Os personagens compõem um trio amoroso formado por um bígamo − o “truculento” e “sanguíneo” Xavier − e suas duas mulheres − Carmem, “alta” e “magra”, e Beatriz, “gorda” e “enxundiosa”. Vivem em harmonia, morando na mesma casa, compartilhando a mesma cama luxuriosa e a mesa de exageros diários: “gordas colheres de grosso creme de leite”, “frangos inteiros recheados com passas e ameixas, tudo úmido e bom”, “rosbife”, “maionese e molhos”. Geralmente não saem de casa, ficam comendo e copulando; vendo televisão e comendo; comendo e copulando. Às vezes vão ao cinema ou jantam fora. Aos domingos, vão os três à missa das seis. Em uma excepcional viagem a Montevidéu, os três viveram dias de desregrada gastança, muito sexo e comilança feliz; no avião, ele no meio das duas. Xavier adorava tango: na noite em que foram ver O último tango em Paris, ele “excitou-se tão terrivelmente” que, de madrugada, estavam exaustos. E assim foi por anos, até o momento em que as duas descobriram que havia a terceira mulher: uma prostituta a quem Xavier visitava com freqüência. Elas choraram, tentaram se consolar mutuamente, fazendo sexo. Ficaram tristes. Passaram a desprezar Xavier. Numa noite em que comeram chocolate até a náusea, mataram-no a facadas, sob o som da “lancinante música de Schubert”. Enterraram o corpo no jardim, com alguma dificuldade, já que “o pesado Xavier morto parecia pesar mais do que quando vivo, pois escapara-lhe o espírito”. Vestiram-se de preto, mal comiam, tomadas de tristeza; eram duas mas eram uma só solidão, no negro vazio da espera. Alguns dias depois, seguindo o modelo do gênero “conto de amor, traição, assassinato e morte”, chega a polícia, instada pelo secretário de Xavier que estranhou o desaparecimento do patrão. Após constatarem, preguiçosamente, que nada havia de anormal na casa, e já de saída, os policiais ouvem Carmem dizer: “Xavier está no jardim”. Beatriz mostra onde ele foi enterrado. Surge então o morto, “deformado, meio roído”. Transcrevo as últimas linhas do conto:
− E agora? disse um dos policiais.
− E agora é prender as duas mulheres.
− Mas, disse Carmem, que seja numa mesma cela.
− Olhe, disse um dos policiais diante do secretário atônito, o melhor é fingir que
nada aconteceu senão vai dar muito barulho, muito papel escrito, muita falação.
− Vocês duas, disse o outro policial, arrumem as malas e vão viver em
Montevidéu.
Não nos dêem maior amolação.
As duas disseram: muito obrigada.
E Xavier não disse nada. Nada havia mesmo a dizer.
Como se pode ver, pouco depois da tradução de “O coração denunciador”, Clarice reescreve o conto de Poe em chave paródica, localizando o contexto romântico e novecentista da história original no “mundo cão” da sociedade brasileira do último quartel do século XX. Por outro lado, ao esvaziá-lo de toda casualidade psicológica − já ensaiada na adaptação anterior −, ela coloca o nonsense, o cômico e o humorístico a serviço da longa tradição farsesca em que o seu conto se insere. Tratando, de forma humorística, os fatos decisivamente trágicos da trama narrativa em Poe, ela exercita jogo de intertextualidades que ilumina a intenção desritualizadora de um narrador que mistura riso e vida banal com erotismo e melancolia. Ao mesmo tempo, deslizando para o tom satírico da linguagem, corrompe o andamento grave e conciso da história de Poe, pela banalização do crime e suas conseqüências, tanto no plano individual como no moral e social.
Para que possamos entender melhor e em mais profundidade o alcance da intenção desse narrador, atualizemos algumas das situações históricas e do espírito da época em que o conto foi escrito. Creio que é bastante conhecida uma foto jornalística da tarde de 26 de junho de 1968 em que Clarice Lispector aparece ladeada pelo pintor Carlos Scliar e pelo arquiteto Oscar Niemeyer, conhecidos membros do Partido Comunista, numa das primeiras fileiras da emblemática “passeata dos cem mil”, realizada em Copacabana para protestar contra a ditadura militar. Essa imagem não corresponde àquela que se fazia de Clarice, tida como apolítica, voltada para as subjetividades de uma literatura intimista, psicológica, confessional e de matizes esotéricas. No entanto, desde algum tempo suas histórias deixavam transparecer uma crescente indignação contra a miséria e o estado geral da situação no país sob o golpe militar, como se pode verificar em alguns contos de A legião estrangeira (1964) e em suas crônicas e textos curtos publicados em jornais e revistas. É dessa época, por exemplo, o texto intitulado “Mineirinho” (compilado em Para não esquecer, de 1977), em que ela, de forma explícita, clama por justiça social, referindo-se ao fuzilamento do famoso marginal pela polícia do Rio de Janeiro. Essas reverberações da temática social vão sedimentar-se nos textos dos anos setenta, como nos contos de A imitação da rosa (1973) e Onde estivestes de noite? (1974), ou no de 1977, “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, publicado postumamente em 1979. Mas, principalmente, vão dar forma à derradeira obra-prima de Clarice, A hora da estrela (1977), em que, definitivamente, ela proclama “o direito ao grito” e que pode ser lida como o ponto de articulação que ilumina para trás toda sua obra. Seu ativismo coletivo e semiclandestino conformou sua obra pelo avesso, libertando-a do compromisso com uma certa tradição realista-naturalista da literatura brasileira que sempre apostou na inserção do fato literário no acontecimento sócio-histórico. Sua estratégia foi a de transferir para a linguagem o lugar central ocupado de forma arbitrária pela realidade histórica. Afinal, para ela, “palavras são fatos”, “atos são palavras”, quando afirma, recorrentemente em seus textos, que “minha ação é a das palavras”, ou que “palavra é ação, concordais?”4.
Ao encarar o desafio de seu editor, então, escrevendo as “histórias contundentes” de A via crucis do corpo em poucos dias, Clarice declara-se “chocada com a realidade”, mas se isenta de culpa: “descobri, como criança boba, que este é um mundo-cão (...) assim são as coisas”. (1974, p.11-12). A realidade brasileira do início dos anos setenta é a do “milagre econômico”, mas também do recrudescimento das perseguições políticas, da repressão, da tortura; da censura às manifestações individuais e coletivas, à imprensa, às obras de arte − livros, filmes, teatro − e até à canção popular. São tempos de “Brasil, ame-o ou deixe-o”, de exílio dentro e fora do país; são os tempos do “Esquadrão da morte”, organização paramilitar subterrânea, à margem do sistema de segurança público. Ao mesmo tempo em que o Estado não-de-direito se aparelhava para garantir a normalidade das instituições sociais − representadas pela paradigmática tríade “tradição, família, propriedade” −, vicejavam, nem tanto à sombra institucional, os grupos parapoliciais de extermínio. É nesse contexto que Clarice, a “apolítica”, vai reescrever, transcontextualizando-o5, o “coração delator” de Poe, inscrevendo-o no seu “corpo denunciador”.
Como sabemos, o conto de Poe remete a uma sociedade organizada, lócus demarcado para a loucura e para o crime, mas também para a ação vigilante do estado e para a punição social pela via do poder estabelecido. Em “O corpo”, a narrativa de Poe é virada pelo avesso, postada de cabeça para baixo. Inserindo-se na longa tradição farsesca, Clarice reescreve-o em tom de comédia, é verdade, mas a intenção é a da sátira demolidora e acre. Não nos iludamos com o aparato lúdico-cômico montado por ela, portanto. Por meio de propositada armação de cenas em que contrastes, correspondências e exageros que saltam aos nossos olhos − como “a gorda e a magra”; “os três mosqueteiros” que eram quatro e que se movimentam “no ritmo do Bolero de Ravel” e as pantomímicas comilanças −, finge-se uma cena de descomprometimento com o real. O nonsense que beira ao absurdo serve, no entanto, para criar as correspondências necessárias ao andamento da farsa com que a história é arquitetada. Assim, ao desregramento familiar, naturalmente aceito, corresponderia a desarticulação do Estado, representado pela inépcia preguiçosa dos policiais, os quais, ao fingirem que nada aconteceu, decidem, julgando e aplicando a lei, pela volta à normalidade doente, desconsiderando a evidência do corpo e deixando em liberdade as duas mulheres. Ou seja, o Estado abdica, por meio dos representantes legais, de seu direito de punir. Enquanto isso acontece no jardim da “família Xavier”, em terrenos baldios das grandes cidades, nos porões da ditadura e nos becos escuros da repressão não oficial, cidadãos brasileiros, sem direito à justiça, são julgados, sentenciados e mortos. Nesse contexto, em que se constrói o final da narrativa, é preciso recuperar questão nuclear na obra de Clarice: a problematização de idéias em torno do que é “proibido” e do que é “permitido” socialmente, num estado de direito, na esfera da lei que preside a organização da sociedade. Trago aqui um fato que, nesse sentido, esclarece muito sobre a questão. A cidadã Clarice Lispector, ainda jovem estudante de Direito, já havia firmado posição sobre o tema. Por meio de artigo publicado em 1941, em Época, revista acadêmica da faculdade, intitulado “Observações sobre o direito de punir”, ela enveredava por questões que serão centrais em suas futuras histórias, defendendo a tese de que “não há direito de punir. Há apenas poder de punir” (Lispector, [1941] 2005, p.45), eis que “não há direito de punir porque a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo: como julgar que posso punir baseada apenas em que o meu critério de julgamento para tonalizar o tal ato como criminoso ou não, é superior a todos os outros critérios?”. Como se vê, muitos anos depois, a convicção científica da universitária se explicita em ficção literária, reverberando na invenção satírica com que a agora escritora fecha a sua narrativa. Assim, poderíamos ler o final da história na seguinte direção: o Estado, aparelhado ideologicamente para coibir a ação “subversiva” por meio dos órgãos clandestinos da repressão, não consegue zelar pela integridade da família organizada nem pela ordem civil. Farsa, afinal, sem nenhum tom de comicidade. Sátira melancólica e acre, sim, se a lermos por esse viés. Visto assim, o final do conto abala certezas que sustentariam a necessidade social de “vigiar” e de “punir”.
Ainda nesse inter-relacionamento de circunstâncias que venho considerando para ler o conto de Clarice, é revelador o fato de que a história comece pela informação de que Xavier “foi ver O último tango em Paris e excitou-se terrivelmente. Achava que se tratava de filme de sexo”. Clarice traz para o parágrafo inicial de sua narrativa um filme que justamente naquele momento estava proibido pela censura da ditadura militar. Poderia ser qualquer outro filme de natureza erótica-sensual, mas foi esse, precisamente. Ao ficcionar o fato de que seu personagem assistiu a um filme vedado aos demais brasileiros6 sob a desculpa de que era preciso manter a integridade da família brasileira, em nome da moral e dos bons costumes, a narradora, em ritmo de farsa demolidora, escancara a obtusidade dos órgãos da censura, os quais, como Xavier, julgaram a trágica obra-prima de Bernardo Bertolucci como um excitante filme de sexo, erótico no limite do pornográfico.
Como se sabe, o filme narra a história de um homem maduro, americano em Paris, dilacerado pela perda da mulher, que se suicidara. Em sucessivos encontros, num apartamento vazio, ele e uma jovem desconhecida fazem sexo e conversam abertamente sobre temas que as instituições sociais prefeririam trancados a sete chaves. Para ele, sexo é uma forma de tentar uma última e desesperada conexão com o mundo. O corpo físico, via da paixão compulsória para o homem, em exercício sexual mecanizado e exaustivo, é o único lugar para o apaziguamento da grande dor existencial enquanto ele vela o corpo da mulher morta. Só Xavier e os censores da ditadura encontrariam em tal história razões que pudessem contribuir para o falimento da tradicional família brasileira.
Ao trazer para a cena literária justamente essa narrativa fílmica invisível para os brasileiros, o que Clarice realiza é um ato político por meio da palavra, uma manifestação de protesto por meio da linguagem que está ao seu alcance, lembrando, mais uma vez, que “atos são palavras” e que sua “ação é a das palavras”. Ao mesmo tempo, tendo em vista o tema do filme, articula a história fílmica, por meio da intertextualidade, com a narrativa literária, reforçando idéia que sustenta sua concepção de “corpo”.
Finalmente, outro momento da narrativa que leio, ainda, como fundamental para o aproveitamento da chave paródica e farsesca com que Clarice transcontextualiza seu conto com o de Edgar Allan Poe, localizando-o no tempo histórico em que vive, é o do fechamento da narrativa. Em “O corpo”, ao investir na centralização do corpo físico, já referido desde o título, como o móvel para a confissão do crime, Clarice apagará de vez qualquer resquício de alucinação como motivo determinante do desenlace da trama. Desaparece a figura do “coração delator/denunciador” que ela utilizara na tradução anterior para que se enquadre a figuração do “corpo denunciador”.

5. Conclusão
Como se pode ver, a opção de Clarice pela comédia em tom de farsa acaba por revelar a característica de sátira demolidora de seu texto “menor”, de sua “literatura de mala suerte” (ver “Experiência”). Implicada aí está a leitura paródica que faz para o texto de Allan Poe, no qual o lugar do regramento social, diferentemente do que acontece no tempo e no espaço brasileiro de Clarice, está garantido pela presença ostensiva e conseqüente do aparato policial institucional. Além disso, Clarice problematiza, em chave de total nonsense, pesando para o alegórico e o pantomímico, a natureza do ordenamento social embasado nas noções de “proibido” e de “permitido”, como demonstrei. Nesse invento, vai sua transcontextualização para a história de Poe, localizando-a no Brasil sob ditadura militar. Ensaia, assim, um grito, ainda que esse grito seja o exercício do direito a um grito gritado para dentro da linguagem, lugar em que, para ela, “as palavras são atos”, onde sua “ação é a das palavras”. São tais atos e fatos que garantem a permanência do passado no presente; é nesse trânsito de sentidos que se identifica a intermitência da memória.

Referências bibliográficas

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Referência filmográfica

BERTOLUCCI, Bernardo. O último tango em Paris (Ultimo tango a Parigi; Last tango in Paris) . Roteiro: Bernardo Bertolucci e Franco Arcalli. Itália/USA: MGM: 1972. 120’. color. Dist.: MGM. Cópia em DVD, MGM, s.d.


1 Doutor em Letras – Literatura Comparada, UFRGS, 1996; Pós-Doutor em Literatura Comparada – Literatura e Cinema, Sorbonne Nouvelle, Paris III, 1999. Professor Adjunto no Departamento de Letras Vernáculas, Faculdade de Letras da Universidade Federal de Pelotas – UFPel, RS. E-mail: profjoaomanuel@terra.com.br
2 É a partir do governo de João Baptista Figueiredo (1978-1985) que se dá, gradualmente, o início da “abertura”, com a extinção parcial dos atos institucionais. Em 1979, é promulgada a Lei da anistia, que permitiu a volta dos exilados, a libertação de todos os presos políticos, a reincorporação ao serviço público dos servidores cassados, inclusive professores das universidades, e que possibilitou eleições gerais, ainda que manipuladas. Esse período de transição encerra-se em 1985, quando se elege um presidente civil, ainda que por meio de eleições indiretas, sem a manifestação do voto popular. Para informações detalhadas sobre o período, ver GASPARI, Elio. A ditadura derrotada. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
3 “Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional nº 5 libertou das amarras da legalidade. A ditadura envergonhada foi substituída por um regime a um só tempo anárquico nos quartéis e violento nas prisões. Foram os anos de chumbo. (...) Foi o mais duro período da mais duradoura das ditaduras nacionais. (...) a tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade dos militares da época, e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais”. Cf. GASPARI, 2002, p.13.
4 Referencio aqui expressões retiradas de A hora da estrela (1970), p.19, 21, 22, 45, 85; no entanto, sob essas construções ou com variações semânticas, essa idéia é recorrente em toda a obra de Clarice.
5 Uso o termo na acepção que Linda Hutcheon (A theory of parody, 1985) construiu para designar a experimentação paródica pelo exercício da intertextualidade.
6 O filme, de 1972, ficou proibido no Brasil até 1979, liberado em tempos de abertura política e abrandamento da censura ditatorial. Exibido hoje até em sessões de televisão aberta, o que acaba marcando a grande audiência é a famosa “cena da manteiga”. Poucos conseguem lembrar, no entanto, o que o personagem vivido pelo ator Marlon Brando, um americano sem nome, fala para a jovem desconhecida francesa, enquanto praticam o inusitado ato sexual: “Vou falar-lhe de segredos de família, essa sagrada instituição que pretende incutir virtude em selvagens. Repita o que vou dizer: sagrada família, teto de bons cidadãos. Diga! (...) a vontade é esmagada pela repressão. A liberdade é assassinada pelo egoísmo”. Muitos brasileiros viram o filme em sessões clandestinas, ou em viagens para o exterior (havia até uma prestigiada excursão para Montevidéu que incluía a ida a uma sala de cinema que exibia o filme em sessões corridas). Teria Clarice visto o filme em alguma dessas circunstâncias? Conversou com alguém que teria assistido ao filme? De qualquer forma, informações sobre obra de tão marcante repercussão na época circulavam pela imprensa e revistas especializadas. Era perfeitamente possível saber do que se tratava.

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