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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

O CORAÇÃO DAS TREVAS, DE JOSEPH CONRAD: DEFESA DE UMA UTOPIA COLONIALISTA OU CRÍTICA AO SISTEMA IMPERIAL DE SEU TEMPO?1

Enéias Farias Tavares2
Resumo: Pensando o enfrentamento entre o objeto colonizador e sua relação/reação com o dominado, especialmente no cenário do século XIX, encontramos no romance de Joseph Conrad, O Coração das Trevas, um corpus literário no qual esse trabalho concentra sua análise. Se concordarmos com a afirmação de Edward Said, em Cultura e Imperialismo, de que o Oriente se cria a partir do Ocidente, em Conrad percebemos como essa criação ocorre na medida em que o processo civilizatório é brutal e enlouquecedor. A análise proposta nesse ensaio não visa definir por meio de uma obra literária conceitos como de Nação, Cultura ou Identidade Social, conceitos já compreendidos como amplos e mutáveis e impossíveis de serem unitariamente definidos. Antes, o que propomos é um diálogo entre a análise que o teórico pós-colonialista Edward Said faz do processo de colonização e uma representação literária que argumenta positiva/negativamente ao descrever os processos dominadores conhecidos como civilizatórios, nesse caso o romance de Joseph Conrad, O Coração das Trevas.
Palavras-chave: O Coração das Trevas – Cultura – Imperialismo
Abstract: Abstract: When we think about the confrontation between the dominated object and its relationship with the colonizer, especially in the nineteenth century, we find in the novel by Joseph Conrad, The Heart of Darkness, a interesting literary corpus, in which this paper will concentrate the analysis. If we agree with the statement of Edward Said, in Culture and Imperialism, that the East is created from the West, the Conrad’s book demonstrate how this creation occurs when this civilizing process is brutal and baffling. The review proposal in this article is not define concepts as nation, culture or social identity, using a literary text. What we propose is a dialogue between the analysis that the post-colonial theorist Edward Said about the process of colonization and a literary representation, The Heart of Darkness by Joseph Conrad, that describes the process known as colonization.
Keywords: The Heart of Darkness – Culture – Imperialism
Num período cultural em que todas as verdades e superioridades sociais estão se desestabilizando, algumas até mesmo desaparecendo, o texto literário serve de reflexão sobre essas modificações no decorrer do tempo. Pensando o enfrentamento entre o objeto colonizador e sua relação/reação com o dominado, especialmente no cenário do século XIX, encontramos no romance de Joseph Conrad, O Coração das Trevas, um corpus literário riquíssimo no qual esse trabalho visa concentrar sua análise. Se concordarmos com a afirmação de Edward Said, em Cultura e Imperialismo, de que o Oriente se cria a partir do Ocidente, em Conrad percebemos como essa criação ocorre na medida em que o processo civilizatório é brutal e enlouquecedor. A análise proposta nesse ensaio não visa definir por meio de uma obra literária conceitos como de Nação, Cultura ou Identidade Social, conceitos já compreendidos como amplos e mutáveis e impossíveis de serem unitariamente definidos. Antes, o que propomos é um diálogo entre a análise que o teórico pós-colonialista Edward Said faz do processo de colonização e uma representação literária que argumenta positiva/negativamente ao descrever os processos dominadores conhecidos como civilizatórios, nesse caso o romance de Joseph Conrad, O Coração das Trevas.
Há no romance de Joseph Conrad, O Coração das Trevas, um discurso artisticamente construído com o intuito de lançar luz ao processo civilizatório/exploratório vivenciado pelo narrador protagonista, Marlow. No entanto, o que percebemos é que a narrativa é repleta de ramificações discursivas entre o ideal colonizador e o real colonizado. Comentando o romance, Edward Said, no livro Cultura e Imperialismo, descreve dois eixos narrativos nos quais o autor sustenta sua narrativa. Se de um lado temos as aflitas descrições psicológicas do narrador, em outro momento temos o curso interminável da viagem que levará ao explorador perdido, Kurtz. Said (2003, p.55) analisa essa narrativa descritiva/objetiva da viagem em resposta à narrativa interior/subjetiva no que todas essas vivências significam para Marlow. Said (2003, p.55) argumenta que se
De um lado, o narrador Marlow reconhece o impasse trágico de todo discurso – que “é impossível transmitir a sensação vital de qualquer época da vida de uma pessoa – a qual constitui sua verdade, seu significado – sua essência sutil e penetrante. Vivemos como sonhamos, sozinhos” -, e ainda assim tenta transmitir o enorme poder da experiência africana de Kurtz por meio de sua narrativa pujante sobre a viagem que fez pelo interior africano, em busca de Kurtz. Essa narrativa, por sua vez, está diretamente ligada à força redentora, bem como à devastação e ao horror, da missão européia no mundo negro.
A partir desse comentário, poderíamos nos perguntar: se Said refere-se a essas infinitas “digressões” do narrador conradiano como aspectos da subjetividade do narrador, seria essa narrativa totalmente confiável e verossímil? Embora, segundo Said, não escape ao narrador nenhum detalhe dos efeitos devastares e terríveis do imperialismo, ele próprio nomeia esse discurso como encenação para “um grupo de ouvintes ingleses” (Said, 2003, p.56). Desse modo, como poderíamos ler o romance de Conrad? Como mera encenação discursiva visando ilustrar indiretamente a segurança e o bem estar de seus ouvintes em relação às trevas do desconhecido? Ou podemos, como o próprio Said faz, ler na novela de Conrad uma problemática perspicaz da dicotomia Colonizador/Colonizado, discussão tão em voga nos estudos literários contemporâneos?
O romance de Conrad inicia com a narrativa do protagonista Marlow sobre sua funesta viagem a África, como funcionário de uma importante empresa francesa vendedora de Marfim. Algo presente em todo fio narrativo, mesmo aquele dedicado à descrição do estranho mundo em que o personagem adentra, é a escuridão/solidão que domina o mundo selvagem descoberto pelo homem civilizado. Como contaminações infinitas que adentram no organizado mundo ocidental presente na mente dos que visitam essa terra inóspita, estranha e exótica, assim é a descrição que Marlow faz dos efeitos psicológicos que essa terra não tocada pela mão do homem tem sobre a mente dos que a visitam, dos que a conquistam, dos que colonizam.
Desembarca num pantanal, marcha através da floresta e, em algum lugar no interior, sente que a selvageria, a mais extrema selvageria, o cercou – toda aquela vida misteriosa que se agita no ermo das florestas, nas matas, no coração dos selvagens. Não há iniciação em tais mistérios, também. Ele tem de viver em meio ao incompreensível, que é igualmente detestável. E há, ainda, um fascínio que opera sobre ele. O fascínio do abominável – os senhores sabem -, imaginem os crescentes arrependimentos, o anseio de fugir, o desgosto impotente, a capitulação, o ódio (Conrad, 2004, p.11).
Na passagem acima, fica evidente a relação fascínio/medo com a qual esse viajante desbravador se refere a esse novo mundo. De um lado, um mundo misterioso, selvagem e assustador. Do outro, fascinante no seu aspecto abominável, no desespero que advém do inexplicável. Em tal pantanal selvagem, imprecações racionais e informações definidas pelo discurso histórico não significam nada. Nesse ponto, o narrador de Conrad descreve com pertinente sobriedade a viagem civilizatória como um voltar no tempo. Nesse novo mundo antigo, Marlow deixa claro que ele e seus companheiros eram “viajantes numa terra pré-histórica que possuía o aspecto de um planeta desconhecido” (Conrad, 2004, p.67). A partir dessa colocação, percebemos em toda a narrativa de Marlow uma descrição fiel a obscura sensação de tocar o que não é facilmente reconhecível. Interessa também o fato de que o seu relato demonstra como o continente africano não é apenas outro lugar, um lugar distante e desconhecido, e sim um território completamente à parte de qualquer conhecimento ou experiência que o homem branco teria experimentado até então.
Comentando o romance, Said diferencia três autoridades históricas distintas, e ao mesmo tempo auto-referenciais: a do autor e das circunstâncias que o cercaram, a do narrador criado por esse autor para executar sua enunciação e a da comunidade ao qual esse narrador fará referência. Em sua opinião, a última diz respeito a um narrador que retoma quatro vozes tornando-as uma. Tais vozes são a família, a “nação, a localidade específica e o momento histórico concreto” (Said, 2003, p.117). Segundo Said, Marlow seria o caso típico de narrador que apresenta todas essas capacidades discursivas múltiplas. Sua história, contada aos ricos viajantes de um barco a vapor, parado às margens do Tamisa no meio da noite, traz marcações do período histórico em que Conrad escreveu seu romance. Porém, a personagem-narradora Marlow não seria apenas o narrador de Conrad ou um simples relato das experiências particulares do próprio autor, que anteriormente havia trabalhado num navio de marfim. Antes, é um construto lingüístico que retoma em si e em seu discurso uma série de coletâneas argumentativas sobre o mundo desconhecido pelo homem civilizado. Sua estranheza diante da terra misteriosa não é atípica, pois reflete o profundo desconhecimento de um homem que pertence a uma sociedade detentora também de seus medos e crenças. Tal sociedade, responsável pelo terror que todo processo civilizatório representa aos povos conquistados, também é aterrorizada pela escuridão da selva, pelo estranhamento cultural e territorial que seu ato de colonizar precisa dominar.
Curiosamente, ao lermos o estudo de Said nos deparamos com a seguinte afirmativa: a narrativa de Conrad é imperialista e anti-imperialista. Como? Também idéia presente em outro romance do autor, Nostromo, Conrad, como homem de seu tempo, segundo Said (2003, p.63), não “podia admitir a liberdade para os nativos, apenar de suas sérias críticas ao imperialismo que os escravizava”. Se de um lado Conrad monta uma narrativa que visa descrever o processo destrutivo, do ponto de vista não apenas natural mas também humano, perpassado tanto pelos civilizados quanto pelos bárbaros do outro, seu discurso sempre tenta justificar tais atos em resposta as ações de outros impérios. Sobre os franceses, patrões de Marlow, o narrador relata
Não eram colonizadores; a administração deles era mera extorsão e nada mais, desconfio. Eram conquistadores, e para aquilo é preciso apenas força bruta – nada de excepcional, quando se tem, pois sua força é somente um acidente que decorre da fraqueza alheia. Agarravam o que podiam, e simplesmente porque estava ali para ser agarrado. Era simples assalto com violência, agravado com assassinato em alto grau e praticado às cegas pelos homens – como é próprio daqueles que tateiam na escuridão (Conrad, 2004, p.11).
Embora Said cite o comentário do político americano Jimmy Carter sobre a guerra do Vietnã, conflito que o estadista denominou de “destruição mútua”, podemos entender essa citação como um reflexo também do sistema civilizatório (Said, 2003, p.54). Em O Coração das Trevas, essa destruição mútua se torna bem evidente. Se encararmos a matança de elefantes como conseqüência da busca do precioso marfim como destruição do colonizado, embora Conrad descreva outras formas de exploração mais ou menos sutis do que essa, percebemos que a destruição do destruidor também é severa.
Nem o prodígio dos prodígios, Kurtz, também chamado de “o emissário da piedade, da ciência, do progresso e do diabo a quatro” (Conrad, 2004, p.47), seria capaz de escapar da loucura no coração das densas trevas africanas. Nas palavras de Marlow, Kurtz é, anteriormente a sua viagem a selva africana, um caráter elevado, algo messiânico, que por meio de seu carisma encanta e apaixona a todos. Interessante percebermos que a capacidade carismática ilimitada de Kurtz se dá naquilo que há de mais civilizado, organizado e humano, do ponto de vista dos dominadores: a concretização lingüística. Um dos homens que Marlow encontra, antes de conhecer Kurtz, afirma:
A questão era que ele era uma criatura talentosa, e, dentre todos os seus dons, o que mais se salientava, o que mais carregava consigo um sentido de real e verdadeira presença era sua habilidade para falar, suas palavras... o dom da expressão, de nos deixar perplexos, iluminando o mais louvável e o mais desprezível fluxo palpitante de luz... ou enganosa fonte fluindo do coração das trevas impenetráveis (Conrad, 2004, p.90).

Você não fala com aquele homem, você o escuta (Conrad, 2004, p.105).
Na opinião de Said, essa eloqüência é tanto esclarecedora quanto enganadora (Said, 2003, p.62), pois promete demais embora presenteie pouco. Seus discursos são enigmáticos de um modo que não compreendemos se são eles fruto da mente mais perspicaz ou do cérebro já danificado psicologicamente pelos eventos que testemunhou ou perpetrou. Consciente do poder que tem em mãos, Kurtz discursa sobre o poder que o educado pelo sistema imperial possuía ao argumentar com homens não doutos nas artes da civilização branca. Não arbitrariamente, o personagem de Conrad não falava de trocas de espelhinhos velhos por pedras preciosas. Kurtz falava da dominação mais selvagem e violenta que homens como ele poderiam realizar.
Começava com o argumento de que nós, brancos, em razão do nível de desenvolvimento a que chegamos, ‘devemos necessariamente aparecer a eles (selvagens) como seres de natureza sobrenatural – aproximamo-nos deles com a força de uma divindade’, e assim por diante. ‘Pelo simples exercício de nossa vontade, podemos exercer para sempre um poder praticamente ilimitado’ (Conrad, 2004, p.95).
No entanto, Kurtz esquecia que o mesmo poder de aceitar o desconhecido é o de também afastar-se violentamente dele. Os nativos, segundo o acima citado, poderiam sim obedecer ilimitadamente ao discurso imperialista, mas também poderiam recusar ajuda desde que essa não lhe conviesse. O relato do antigo capitão do barco, morto por selvagens africanos devido a uma pequena negociata envolvendo meia dúzia de galinhas, demonstra muito bem a relativo poder imperialista, contrariando o próprio discurso de Kurtz, no que ele tem de mais ideológico.
Na adaptação de O Coração das Trevas para o cinema, feita por Francis Ford Coppolla em 1968, intitulada Apocalipse Now, há uma cena emblemática que caracteriza esse estranhamento, esse terror momentâneo e paralisante que atua em direções contrárias, tanto por parte do povo natural quanto por parte dos que adentram tal mundo misterioso e insano. O cineasta norte-americano adapta o romance de Conrad para o cenário da guerra do Vietnã. Nessa versão, Kurtz se transformou em General Kurtz, enlouquecido no meio da selva, entre nativos devotos e soldados desertores. Marlow, também militar, é enviado ao coração das trevas vietnamitas com a missão de silenciar a voz do velho general. Numa das cenas finais, Kurtz, interpretado por Marlon Brando, conta ao protagonista do filme seu modelo de exército ideal, dedicado a uma causa maior. Embora o argumento do general exemplifique uma das razões para os americanos estarem perdendo a guerra para um povo mais fraco, embora bem mais fiel aos seus ideais, ele é pertinente a nossa discussão por ilustrar como o outro, o colonizado, o dominado, vê as práticas de seu algoz, até mesmo as benéficas.
Kurtz narra que ao invadir um vilarejo no qual vivia um número considerável de mulheres e crianças, souberam que um jovem havia morrido de poliomielite. Os soldados enfileiram as crianças da vila, e as vacinam contra a doença. Saindo de lá, e se afastando a uma curta distância, uma mulher vietnamita vem correndo na direção deles gritando e chorando desesperadamente. Quando voltam ao vilarejo, descobrem um recém amontoado feito de pequenos braços infantis decepados. Por todo lugar, pequeninos choram enquanto tentam, com a ajuda de suas mães e avós, conter o sangramento. O tradutor diz ao general que os homens da vila deceparam os braços das crianças para que elas não fossem infectadas pela praga branca, injetada nelas pelas seringas dos soldados.
No filme, a voz de Brando vai sumindo, divagadoramente, enquanto descreve o ideal militar desses homens vietnamitas, dispostos a destroçar os corpos de seus próprios filhos por uma causa nacional comum. Mas além da visão do soldado branco na película de Coppola e além da visão do vendedor de marfim na narrativa de Conrad, o que temos nessa pequena historieta é a versão dos oprimidos, dos civis que sem conhecer a cultura do dominante, preferem a morte a traírem suas convicções.
As últimas palavras de Kurtz refletem o horror do homem não apenas no meio do pântano desse continente desconhecido, mas também daqueles que retornam ao meio civilizado. No fim da narrativa, Marlow retorna a Inglaterra, no entanto, retorna modificado. Sua visão das cidades e da própria civilização branca é diferente agora. Em sua opinião, o horror de Kurtz poderia ser o horror das selvas, mas também poderia ser o horror dos homens dividindo espaços urbanos cada vez menores.
Achei-me de volta à cidade sepulcral, ressentindo a visão de pessoas com pressa nas ruas para roubar um pouco de dinheiro umas das outras, devorar sua infame cozinha, engolir sua cerveja insalubre, sonhar seus sonhos insignificantes e tolos. (...) Suas maneiras, que eram simplesmente as maneiras de indivíduos comuns lidando com seus negócios na certeza da perfeita segurança, eram ofensivas para mim como a escandalosa empáfia dos tolos diante de um perigo que são incapazes de compreender (Conrad, 2004, p.135).
Nessa nova civilização, agora coleção fantasmática de cadáveres vivos após as experiências de Marlow na selva, o narrador pode reencontrar sua tia e também a noiva prometida de Kurtz. “Elas deveriam estar fora disso. Devemos ajudá-las a ficar naquele belo mundo só delas... ” (Conrad, 2004, p.92) relembra Marlow as palavras de Kurtz. Não há espaço para mulheres na narrativa de Conrad. A noiva de Kurtz não sabe e nunca saberá o que realmente aconteceu com seu noivo. Nunca saberá como ele sucumbiu catatônico/lúcido no meio da selva que jurou conquistar.
Said (2003, p.107) lembra bem da comparação que Conrad faz entre os conquistadores Ingleses e Romanos. Num certo sentido, mais humanos do que o antigo império, a conquista inglesa estava imbuída de um falso valor de Salvação/Redenção, tanto para conquistadores quanto conquistados. Embora Said não defina exatamente o que quer dizer com Salvação/Redenção, a não ser no plano ideológico, acredito que tal noção funcione como via de escape para um ato bárbaro e violento. Justificativas são sempre inúteis em campos de batalha, sendo guerras santas ou não, pois elas não modificam o fato de que sangue foi derramado. Sobre conquista e saque, Marlow descreve uma crença sincera numa idéia que justifique tais atos.
A conquista da Terra, o que na maior parte significa tirá-la daqueles que tem uma fisionomia diferente ou narizes ligeiramente mais achatados do que os nossos, não é uma coisa bonita quando você olha demais para ela. O que a redime é somente a idéia. Uma idéia que está por trás; não uma pretensão sentimental, mas uma idéia; uma crença não egoísta na idéia – algo que se pode erguer, para depois se curvar diante e oferecer um sacrifício... (Conrad, 2004, p.13)
Em Marlow, a idéia de que a civilização ocidental é mais desenvolvida, perpassa toda a narrativa, mesmo que indiretamente. Ao fim, ele volta modificado da selva, vendo em sua sociedade uma barbárie não muito diferente do que viu em solo africano. No entanto, o estranhamento ocorre depois de visitar as trevas e não o contrário. Embora continue tendo fé na “idéia” que a colonização prega, como a própria narrativa aos passageiros ouvintes demonstra, Marlow sente os efeitos destrutivos que tal idéia criou em si. Conrad relata o supra-sumo do homem civilizado na figura messiânica de Kurtz, homem destruído pela escuridão desconhecida. Marlow, crítico em sua narrativa desde o início, nunca deixa de criar um discurso assustador e desalentador, no entanto, para homens e mulheres seguros numa confortável embarcação às margens do Tamisa.
Conrad demonstra assim que o trabalho do homem colonizador é feito destemidamente, mesmo em seus trágicos momentos finais, imbuído de uma fé suprema numa terra ideal, numa busca ideal. Logicamente, uma leitura crítica de todo romance demonstra que essa busca ou essa ilusão não diminui a evidente destruição desse território paradisíaco, esse éden perdido que é alvo do colonizador cristão e imperialista.
A terra para nós é um lugar para ver, onde temos de lidar com visões, sons e odores, também, por Deus! – respirar carne podre de hipopótamo, por assim dizer, e não ser contaminado. E aí, não percebem? Nossa força aparece, a fé em nossa capacidade de cavar buracos discretos para enterrar a coisa – nosso poder de devoção, não a si próprio, mas a um obscuro e extenuante trabalho. Isso é bastante difícil. Vejam, não estou tentando desculpar-me ou mesmo explicar... (Conrad, 2004, p.94)
Embora Marlow nomeie seu discurso como uma não-defesa, como uma não-justificativa para os atos cometidos e testemunhados, vê-se que em qualquer luta há a necessidade de se esquecer, de se apagar ou de se enterrar lembranças ruins. Processo imperialista negativo ou positivo? Said defende em seu livro a idéia de que Conrad simpatiza e antipatiza, mutuamente, com as ações do império, ações essas testemunhadas pelo próprio autor em algumas de suas viagens. Concordo com Said na medida em que penso que a visão de Conrad não é defensiva e/ou acusatória. Antes é uma visão realista que vê, assim como a tese de Said em Cultura e Imperialismo, uma relação antitética e ao mesmo tempo dialética entre a identidade dos dominadores e dos dominados. São mundos diferentes, sempre em eterna mudança e oposição. Mundos, que como o próprio Marlow deixa claro, possuem seus próprios demônios: o da ganância ocidental e dos seres desconhecidos do oriente.
Já me vi em situação em que fui obrigado a lutar, a resistir e também atacar – o que é às vezes a única forma de resistência -, sem me preocupar com o que isso iria me custar, e agindo conforme as exigências do tipo de vida em que me metera. Tenho visto o demônio da violência, e o demônio da ambição, e o demônio do desejo ardente; mas, por todas as estrelas! Aqueles eram os demônios fortes, robustos, de olhos injetados, que dominavam e conduziam homens – homens, estou dizendo! (Conrad, 2004, p.30)
Como Said menciona, Conrad está interessado no “que escapa à expressão articulada – a selva, os nativos temerários, o grande rio, a obscura, grandiosa e inefável vida da África” (Said, 2003, p.216). Nesse respeito, o que escapa ao discurso articulado do narrador, são os demônios do ambiente hostil, mas também os demônios do próprio colonizador, talvez muito mais assustadores do que os demônios do coração das trevas africanas.

Referências bibliográficas

CONRAD, Joseph. O coração das trevas. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2004.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

1 Este artigo foi resultante das leituras e discussões ocorridas na disciplina “Representações de Identidade na Literatura”, do curso de Pós-Graduação em Letras – Estudos Literários, da Universidade Federal de Santa Maria, ministrada pela Profa. Dra. Silvia Paraense.
2 Formado em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria, tendo recebido o título de mestre pela mesma instituição. É professor de Literatura Greco-Latina e tradutor. E-mail: eneiastavares@yahoo.com.br
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