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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

ESCREVER SOB RISCO: OS DIÁRIOS DE VICTOR KLEMPERER COMO LITERATURA DE TESTEMUNHO

Elcio Cornelsen1

Resumo: Nossa contribuição visa refletir sobre conceitos centrais da literatura de testemunho e elege a obra Ich will Zeugnis ablegen bis zum letzen: Tagebücher 1933-1945 (título da tradução brasileira: Os Diários de Victor Klemperer. Testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista), de Victor Klemperer, no intuito de demonstrar como o autor presta um testemunho do cotidiano de discriminação e violência contra judeus na Alemanha nazista, mas também de si como alguém que escreveu sob risco, de modo que seus diários se tornaram exemplos de resistência contra o anti-semitismo e o totalitarismo.
Palavras-chave: Victor Klemperer, literatura de testemunho, anti-semitismo, nazismo.
Abstract: This contribution reflects on the main concepts of the testimonial literature and elects the work Ich will Zeugnis ablegen bis zum letzen: Tagebücher 1933-1945 (English translation in two volumes: I Will Bear Witness [1933 to 1941], To The Bitter End [1942 to 1945]), by Victor Klemperer, for the purpose of showing how the author testifies the everyday life of discrimination and violence against Jews in Nazi Germany, as his own experience as a person that wrote under risk, in order of his diaries became examples of resistance against Antisemitism and Totalitarianism.
Keywords: Victor Klemperer, testimonial literature, Antisemitism, Nazism.

Quando nos ocupamos do gênero “literatura de testemunho”, devemos ter em mente uma série de pressupostos. Um deles, como apontam Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p.7-8), diz respeito à noção de que “a catástrofe dificulta, ou impede a representação”, pois a “catástrofe é, por definição, um evento que provoca um trauma”. A literatura de testemunho é, pois, uma “literatura de trauma”, como ressalta Nestrovski (2000, p.186), pois se trata de “representar o irrepresentável; resgatar, sem trair um evento latente na memória; redescobrir alguma força viva na língua, que nos torne capazes de testemunhar o que foi visto”. Haveria, portanto, uma necessidade de se prestar testemunho de um dado evento traumático e, ao mesmo tempo, a impossibilidade derivada da própria vivência da catástrofe, que deixaria suas marcas no modo de articulação discursiva pela memória. Essa seria, pois, uma característica da literatura de testemunho, conforme indica Seligmann-Silva (2003a, p.46-47):
O testemunho coloca-se desde o início sob o signo da sua simultânea necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o próprio testemunho enquanto narração testemunha uma falta: a cisão entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o ‘real’) com o verbal. [...]
Entretanto, como Seligmann-Silva (2003c, p.377) alerta, “esse ‘real’ não deve ser confundido com a ‘realidade’ tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e naturalista: o ‘real’ que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação”. Para isso, o teórico lança mão das denominações em latim e grego para o ato de testemunhar algo traumático: testis (“o depoimento de um terceiro no processo”), superstes (“a pessoa que atravessou uma provação, o sobrevivente”), ambos os termos latinos, e martyros (“testemunha”), em grego:
[...] Se a noção de testemunha como terceiro já anuncia o tema da verificação da ‘verdade’, ou seja, traz à luz o fato de que o testemunho por definição só existe na área enfeitiçada pela dúvida e pela possibilidade da mentira, a acepção de testemunho como sobrevivente e como mártir indica a categoria excepcional do ‘real’ que o testemunho tenta dar conta a posteriori. (Seligmann-Silva, 2003c, p.377-378)
Para pensarmos a autoria de um relato de testemunho, devemos considerar a seguinte questão, colocada por Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p.9): “E para quem narra: como se tornar, narrando, uma testemunha autêntica do acontecido e uma testemunha autêntica de si?”. Pois o relato testemunhal está atrelado a outras duas noções, a de autoria e a de responsabilidade. Para Geoffrey Hartmann (2000, p.222-223), por exemplo, a memória seria o mecanismo que pode possibilitar a presença do “real” discursivo da catástrofe vivenciada, e não apenas do silenciamento pelo trauma:
[...] A memória, e especialmente a memória usada na narração, não é simplesmente um nascer póstumo da experiência, uma formação secundária: ela possibilita a experiência, permite que aquilo que chamamos de o real penetre na consciência e na apresentação das palavras, para tornar-se algo mais do que só o trauma seguido por um apagamento mental higiênico e, em última instância, ilusório.
Todavia, como aponta Seligmann-Silva (1998, p.10),
[o] testemunho escrito ou falado, sobretudo quando se trata do testemunho de uma cena violenta, de um acidente ou de uma guerra, nunca deve ser compreendido com uma descrição ‘realista’ do ocorrido. De resto, testemunha-se – sempre, diria Walter Benjamin – uma cena traumática. A impossibilidade de uma tradução total da cena vivenciada é um dado a priori.
De acordo com Nestrovski e Seligmann-Silva (2000, p.11), aparentemente, não há limites de representação no âmbito da Literatura. Porém, como ressaltam os autores, deve-se ter em mente que “transposições são sempre possíveis, mas deslocam a questão para a esfera não só das formas, mas da ética”. Isso se aplica, por exemplo, aos estudos sobre a Shoah (em Hebraico, “catástrofe”, “destruição”, “aniquilamento”), apontada por Seligmann-Silva (2000, p.75) como o “evento-limite, a catástrofe, por excelência, da Humanidade”, uma vez que não implica apenas a questão de se poder ou não prestar testemunho em termos da materialidade discursiva, como também da responsabilidade diante da própria representação da vivência individual e intransferível, que coloca em xeque, por exemplo, toda e qualquer tentativa de ficcionalização. Pois, como Nestrovski (2000, p.201) chama a atenção, “o fato de uma memória dos campos de concentração ser denunciada como fictícia parece comprometer mais do que o estatuto literário de uma narrativa”. Seria necessário, pois, se pensar numa “ética da representação histórica” em relação à “política da memória”, como propõe Seligmann-Silva (2003b, p.74).
Outro pressuposto para os estudos em torno da “literatura de testemunho” é a questão da impossibilidade de intercâmbio de algo que é único, intransferível, produto da vivência traumática de uma catástrofe, pois “a testemunha é sempre testemunha ocular. Testemunha-se sempre um evento” (Seligmann-Silva, 2000, p.92). Como afirma Selgimann-Silva (1998, p.22), “[e]ssa literatura implica, portanto, numa nova ‘ética da representação’. Ela despreza a indiferença política”, uma “nova ética e estética do sublime caracterizada por uma presença daquelas imagens mudas que exigem uma nova performance da linguagem”; “Essa ética e estética da literatura de testemunho possui o corpo – a dor – como um dos seus alicerces”. Portanto, a literatura de testemunho, antes de tudo, implica a vivência da cena traumática, a ferida na memória, em suma: o caráter individual e intransferível da vivência da catástrofe. Nesse sentido, Seligmann-Silva (1998, p.27-28) ressalta que a literatura de testemunho “é uma narração necessária tanto em termos individuais como também – pensando universalmente – deve funcionar como um testemunho para a posteridade. Ela é um ato subjetivo e objetivo, psicológico e ético”. Ético, na medida em que estabelece uma relação entre o sujeito que vivenciou a catástrofe e a necessidade de dar um testemunho do “real” dessa vivência. Seligmann-Silva (2003c, p.386) lembra que “[o] comprometimento com o ‘real’ faz com que o autor exija um redimensionamento do conceito de literatura. A relação desse autor com o passado ao qual ele tenta dar uma forma tem o caráter de um compromisso ético”. Portanto, o relato de caráter testemunhal é intransferível, pois resulta da individualidade da própria vivência, marcada por traços subjetivos profundos, que deixaram marcas necessariamente na representação deste “real”. Neste sentido, Roney Cytrynowicz (2003, p.133-134) afirma que
[...] [a] memória procura sempre apaziguar os conflitos, fechar as feridas, restaurar as ruínas, silenciar as dores; ela tem compromisso com a subjetividade, com a reconstrução de uma história pessoal que precisa encontrar saídas viáveis, até mesmo do ponto de vista psíquico, para reconstituir uma vida, um futuro, e isso por mais que ela conte das dores e das feridas.
Além disso, ao pensar na literatura de testemunho a partir da relação entre sujeito da enunciação de um ato vivenciado no contexto da Shoah e a memória sobre esse mesmo ato, Leonardo Senkman (2003, p.247-248) apresenta três “paradigmas fundamentais” que constituiriam um processo que ele denomina de “desobjetivação”, ou seja:
[…] Insuficiencia de las palabras para nombrar los fantasmas del horror; representación del sujeto reducido a la pura nada de cuerpos dispersados en el humo; necesidad de la imaginación creadora para socorrer a la memoria: he aquí los tres paradigmas fundamentales del canon de la narrativa testimonial de la desobjetivación.2
E como aponta Shoshana Felman (2000, p.15), narrar um relato de testemunho por outro que vivenciou a catástrofe suspende, automaticamente, a própria condição de testemunho:
[...] Uma vez que o testemunho não pode ser simplesmente substituído, repetido ou relatado por outro sem perder, desta forma, sua função como testemunho, o fardo da testemunha – apesar de seu alinhamento a outras testemunhas – é radicalmente único, não intercambiável e um fardo solitário. [...]
Pois o relato não apenas se propõe como “testemunho” do vivenciado, como também é, na própria materialidade, “testemunho” do trauma, uma vez que, segundo Shoshana Felman (2000, p.18):
[...] Como uma forma de relação com os eventos, o testemunho parece ser composto de pequenas partes de memória que foram oprimidas pelas ocorrências que não tinham se assentado como compreensão ou lembrança, atos que não podem ser construídos como saber nem assimilados à plena cognição, eventos em excesso em relação aos nossos quadros referenciais.
Por um lado, como Seligmann-Silva (2000, p.88) ressalta, “a Shoah resiste na sua literalidade pós-traumática à estratégia de representação das metáforas”, “o seu registro, como todo registro da cena traumática, é o do absolutamente literal”. A literalidade “é, antes de tudo, marcada por um ‘excesso’ de realidade” (Seligmann-Silva, 2000, p.91). Por outro, segundo Jeanne Marie Gagnebin (2000, p.106), “o problema maior da representação do horror” é “o de sua fundamental irrepresentabilidade, pois essa experiência sempre será incomensurável à sua tradução em palavras e conceitos”.
Portanto, nossa diferenciação entre “testemunho” e “ficção” vai ao encontro daquela noção de “representação” proposta por Seligmann-Silva (1998, p.10), de que “não podemos mais falar em representação no sentido tradicional de adequação ou de mimesis, mas tampouco devemos abrir mão da diferença entre a noção de ficção e a de construção da cena traumática”. A afirmativa de que, com a ficção o testemunho perde o seu caráter enquanto tal, não deve, entretanto, significar a negação de procedimentos literários. De acordo com Seligmann-Silva (2003c, p.379), “[a] verdade é que esse limite entre a ficção e a ‘realidade’ não pode ser delimitado. E o testemunho justamente quer resgatar o que existe de mais terrível no ‘real’ para apresentá-lo. Mesmo que para isso ele precise da literatura”. Sendo assim, deve-se entender a especificidade deste “real” constitutivo da literatura de testemunho, relacionado com a noção de “trauma”:
Na literatura de testemunho não se trata mais de imitação da realidade, mas sim de uma espécie de ‘manifestação’ do ‘real’. É evidente que não existe uma transposição imediata do ‘real’ para a literatura: mas a passagem para o literário, o trabalho do estilo e com a delicada trama de som e sentido das palavras que constitui a literatura é marcada pelo ‘real’ que resiste à simbolização. Daí a categoria do trauma ser central para compreender a modalidade do ‘real’ de que se trata aqui. Se compreendemos o ‘real’ como trauma – como uma ‘perfuração’ na nossa mente e como uma ferida que não se fecha – então fica mais fácil de compreender o porquê do redimensionamento da literatura diante do evento da literatura de testemunho. Não se trata de apenas ‘psicanalizar’ a literatura; pois o testemunho, como vimos, é não apenas superstes, ou seja, a voz de um sobrevivente, mas também testis, enfrentamento por assim dizer ‘jurídico’ com o real (sem aspas!) e reivindicação da verdade. [...] (Seligmann-Silva, 2003c, p.387)
Portanto, para refletirmos sobre Ich will Zeugnis ablegen bis zum letzen: Tagebücher 1933-1945 (1995; “Eu quero prestar testemunho até o último: diários 1933-1945”)3, de Victor Klemperer enquanto exemplo de literatura de testemunho, devemos considerar uma série de aspectos anteriormente apresentados, entre eles: a noção de que a literatura de testemunho é uma “literatura de trauma”; a dificuldade ou o impedimento da representação do evento traumático; o testemunho como narração a posteriori; o caráter único, individual e intransferível, produto da vivência de um evento traumático; a definição de uma nova “ética da representação” que despreze a indiferença política.
Embora constatemos que os principais teóricos da literatura de testemunho desenvolvem seus estudos a partir da realidade do universo concentracionário e da Shoah enquanto “evento-limite”, isso não impede que apliquemos os conceitos propostos nesses estudos para interpretarmos Os Diários de Victor Klemperer, escritos durante o período nazista e publicados em 1995 pela editora Aufbau, de Berlim. Pois, em seus apontamentos, o autor é testis – aquele que observa e narra o testemunho de um evento traumático observado, mas não vivenciado –, e supertes – aquele que vivenciou o jugo do Estado totalitário e se tornou um sobrevivente do “Terceiro Reich”. Não obstante o fato de terem sido publicados a posteriori, Os Diários de Victor Klemperer brotaram justamente da vivência imediata no cotidiano durante o período nazista. Não se trata, pois, de um resgate, pela memória, de um passado traumático distante, mas sim daquele que escreve sob o efeito imediato do trauma, com intenção de prestar testemunho do vivenciado à posteridade. Tal caráter é destacado numa resenha publicada no jornal Frankfurter Rundschau, citada no conjunto de fragmentos que atestam, nas primeiras páginas da 2ª edição d’Os Diários publicada pela editora Aufbau, de Berlim, em 1997, a repercussão e o significado dessa obra:
As anotações escritas por Klemperer sob risco de morte possuem uma autenticidade, uma proximidade dramática da desintegração da sociedade alemã, de um modo que, aliás, importantes obras de História só raramente alcançam. Esses relatos diários sobre o inferno de um Estado de terror, de fato, prestam “testemunho” da vida das vítimas. (citado in Klemperer, 1997, p.2) (tradução própria)
O texto publicado na contracapa da mesma edição também resume, de maneira lúcida, as principais características que compõem os relatos de Victor Klemperer, vivendo e escrevendo em condições de extremo perigo e ameaça:
Como os contemporâneos vivenciaram o Holocausto? O que eles podiam saber, ver, ouvir? O diário de Klemperer responde a questões como essas, que são lançadas novamente por cada geração. Ele, judeu de nascimento e catedrático aposentado prematuramente de modo forçado, despertou com seus apontamentos diários, cuja descoberta teria significado a morte certa, um dever imposto para si próprio enquanto cronista: Ele quis ser o escritor da história da catástrofe e prestar testemunho para a posteridade. Dia após dia ele fixou, no “prédio de judeus” onde morava, aquilo o que observava e vivenciava: o terror diário das batidas policiais, as contínuas proibições e novos obstáculos, oportunamente também gestos de solidariedade de desconhecidos, e ele também anotava o que lhe era contado: boatos, piadas políticas, relatos de soldados do front. Seu depoimento minucioso é um documento singular sobre o cotidiano da perseguição a judeus – em meio a uma grande cidade alemã.4 (citado em Klemperer, 1997, contracapa) (tradução própria)
Victor Klemperer nasceu em 09 de outubro de 1881 na cidade de Landsberg an der Warthe, num lar religioso, pois seu pai era rabino. Entre 1902 e 1905, estudou Filosofia e Filologia Românica e Germânica em Munique, Genebra, Paris, Roma e Berlim, onde a família se fixara desde 1890, quando o pai foi transferido para a Comunidade Reformista da capital do Reich. Mais tarde, quando começou a escrever diários, não foi um ato, por assim dizer, fortuito. Pois Klemperer sempre esteve ligado à atividade da escrita. Entre 1905 e 1912, atuou como escritor e jornalista em Berlim. Daquele período remontam o conto Glück (1906; “Felicidade”) e o livro ilustrado Schwesterchen (1906; “Irmãzinha”). Em 1912, Klemperer converteu-se ao Protestantismo. Desde 1906, era casado com Eva Schlemmer, protestante. Este fato é importante para pensarmos as condições de perseguição de Klemperer durante o regime nazista, uma vez que, naquele período, dentro da política racial e racista vigente, sua conversão religiosa seria revogada e ele seria considerado “judeu” casado com uma cidadã “ariana”. Em 1915, alistou-se voluntariamente para participar da Primeira Guerra Mundial, combatendo no front até 1916, quando foi designado para a função de censor na Seção de Imprensa do Governo militar em Kaunas, na Lituânia, e em Leipzig. Após a guerra, em 1920, assumiu a cátedra de Professor de Estudos Românicos na Universidade de Dresden, onde permaneceu até 1935, quando foi destituído do cargo e prematuramente aposentado por ser judeu, atingido pela “Lei para a Restauração do Funcionalismo Público Profissional” (Gesetz zur Wiederherstellung dês Berufsbeamtentums). São inúmeros os estudos de Victor Klemperer publicados nesse período, tanto sobre a história da literatura alemã, quanto sobre a história da literatura francesa, sua área de atuação na universidade (cf. Klemperer, 1997, p.7-9).
Como poderemos constatar a seguir, o período de 1933 a 1945 é de tensão permanente para Victor e Eva Klemperer. Além da aposentadoria prematura, várias medidas de cerceamento de liberdade, sobretudo aquelas promulgadas em setembro de 1935 como “Leis Raciais” (Rassengesetze) de Nuremberg, atingiram a ambos: em 1940, eles foram forçados a se mudar para um “prédio de judeus” (Judenhaus), como forma de confinamento da população judia em determinados bairros e edifícios; de 1943 ao início de 1945, Victor Klemperer foi designado para trabalhos forçados em diversas fábricas na cidade de Dresden. Durante esse período, ele e Eva tiveram de se mudar mais uma vez para um outro “prédio de judeus”. Após o bombardeio de Dresden em 13 de fevereiro de 1945, que custou a vida de mais de 70.000 pessoas e deixou a cidade em escombros, eles fugiram da cidade rumo ao Sul, alcançando Munique em 04 de abril, e retornaram a Dresden somente em 10 de junho, mais de um mês após o término da guerra (cf. Klemperer, 1997, p.9).
No pós-guerra, Victor Klemperer foi reabilitado como professor catedrático na Escola Superior Técnica de Dresden, onde permaneceu em suas funções até 1947. Naquele período, ingressou no Partido Comunista da Alemanha, que viria a se fundir logo após com o Partido Social-Democrata da Alemanha na Zona de Ocupação Soviética, formando o SED – Sozialistische Einheitspartei Deutschlands (“Partido Socialista Unitário da Alemanha”), que se tornaria o partido que governaria ditatorialmente a República Democrática Alemã, fundada em 07 de outubro de 1949. Klemperer ainda assumiu o posto de professor na Universidade de Greifswald de 1947 a 1948, e de professor na Universidade de Halle an der Saale de 1948 a 1960. Num período de três anos, de 1951 a 1954, atuou também como professor na Universidade de Berlim. Seu vínculo com o SED o levou à eleição, como deputado, à Câmara Popular da RDA em 1950, como representante da “Liga Cultural de Renovação Democrática da Alemanha” (Kulturbund zur demokratischen Erneuereung Deutschlands). Victor Klemperer faleceu em 11 de fevereiro de 1960, aos 78 anos de idade.
Os diversos diários de Victor Klemperer foram publicados postumamente após a Queda do Muro e a Reunificação da Alemanha: Curriculum vitae. Erinnerungen eines Philologen, 1881 bis 1918 (1990; “Curriculum vitae. Recordações de um filólogo, de 1881 a 1918”), Ich will Zeugnis ablegen bis zum letzten. Tagebücher 1933-1945 (1995; “Eu quero prestar testemunho até o último. Diários 1933-1945”), Und so ist alles schwankend. Tagebücher Juni bis Dezember 1945 (1996; “E assim tudo está oscilante. Diários de junho a dezembro de 1945“), e Leben sammeln, nicht fragen wozu und warum. Tagebücher 1918-1932 (1996; “Colecionar vidas, não perguntar para que e por que. Diários 1918-1932”). Em vida, publicou inúmeras obras nas áreas de Filologia e de História da Literatura. Mas a obra de maior destaque é LTI – Notizbuch eines Philologen (1947; “LTI - Livro de anotações de um filólogo”), que também pode ser considerado um documento de testemunho, pois suas anotações, feitas durante o período nazista, revelam o senso crítico aguçado de filólogo, atento para a LTI, abreviatura de Língua Tertii Imperii, “Língua do Terceiro Reich”. Seu estudo filológico sobre o discurso nazista recebeu como título essa abreviatura, pois, segundo Klemperer (1996, p.19), isso seria uma paródia ao próprio jargão do regime, povoado por abreviaturas como HJ, BDM, DAF, SA, KdF etc. Até hoje, LTI permanece um dos principais estudos filológicos sobre o “Terceiro Reich”.
Para efeito de análise, selecionamos uma série de trechos de Os Diários de Victor Klemperer, que revelam os seguintes aspectos: o testemunho da influência crescente do nazismo no cotidiano; o testemunho da perseguição de judeus durante o regime nazista; o testemunho da violência pessoalmente sofrida; a construção discursiva do relato de testemunho em forma de diário, por alguém que refletia sobre a situação de escrever sob perigo constante, como revela um apontamento datado de 08 de fevereiro de 1942:
Sempre a mesma coisa, para cima e para baixo. O medo de que meus escritos possam me levar para o campo de concentração. O sentimento de obrigação de escrever, trata-se de minha tarefa de vida, minha profissão. O sentimento de vanitas vanitatum, da insignificância de meus escritos. No fim das contas, continuo a escrever o diário, o Curriculum. (Klemperer, 1999, p.422)5
Comecemos, pois, nossa análise pelo testemunho da influência crescente do nazismo no cotidiano. Num apontamento de 22 de março de 1933, ou seja, pouco menos de dois meses desde que os nazistas chegaram ao poder, Victor Klemperer reproduz, de segunda mão, um relato feito por uma visita, que estaria vivenciando mudanças no comportamento e nas atitudes de crianças e adolescentes numa escola:
[...] A srta. Wiechmann esteve aqui em casa. Conta como todos se curvam diante da suástica em sua escola, em Meissen, todos com medo de perder o emprego, observando-se e desconfiando um dos outros. Um jovem de suástica aparece na escola para resolver um assunto oficial qualquer. Imediatamente, uma classe de alunas de catorze anos começa a cantar a canção de Horst Wessel. É proibido cantar no corredor. A srta. Wiechmann está encarregada da supervisão. “É preciso proibir essa cantoria”, insistem suas colegas. “Proíbam vocês! Se eu proibir essa cantoria, vão dizer que interferi numa canção nacional e vou para o olho da rua!” As meninas continuam a cantar. Numa farmácia, uma pasta de dentes com a suástica. Uma sensação de medo como a que deve ter dominado a França sob os jacobinos. Ainda não tememos pela vida – só por pão e liberdade. (Klemperer, 1999, p.17)6
Na referida passagem, podemos constatar uma série de aspectos constitutivos do relato de Victor Klemperer. Ao prestar testemunho, por assim dizer, de segunda mão, enquanto sujeito de enunciação, ele investe num eu-enunciador, para trabalharmos com as categorias semiolingüísticas de Patrick Charaudeau (1983, p.47), que relata, em terceira pessoa, aquilo o que ouviu da “fonte” do testemunho, a srta. Wiechmann, que estaria de visita em sua casa. Mas ele não se limita a relatar, mas sim cita o suposto diálogo entre a srta. Wiechmann e suas colegas. Através desse procedimento, ele não só presentifica a cena passada, como também empresta legitimidade ao relato ao reproduzir as possíveis palavras da srta. Wiechmann.
Outro aspecto a se destacar na referida passagem é a invasão da simbologia nazista no cotidiano de uma escola – a bandeira com a suástica, hasteada na porta da escola, o jovem portando uma braçadeira com a suástica e, por fim, a Horst-Wessel-Lied (“Canção de Horst Wessel”), entoada pelas colegiais –, que se torna um indício material da crescente onipresença ideológica do Estado totalitário, produzindo nas pessoas adesão ou intimidação. Cabe lembrar que a chamada “Canção de Horst Wessel”, segundo Hilde Kammer e Elisabet Bartsch (1992, p.96), era a canção oficial do partido nazista desde 1930, cantada em cerimônias durante o período nazista juntamente com o hino nacional. Sua letra é atribuída a Horst Wessel (1907-1930), membro do partido nazista e das SA – Sturmabteilung (“Divisão de Assalto”) –, que foi morto em 1930, envolvido com prostituição.7 A cena, por um lado, revela o quão suscetíveis eram os jovens para a ideologia nazista, influenciados sobretudo pelas organizações juvenis do partido – a HJ – Hitlerjugend (“Juventude Hitlerista”) e a BDM – Bund Deutscher Mädel (“Liga das Jovens Alemãs”), que já existiam antes de 19338, e, por outro, a apreensão e o medo dos professores em se rebelar contra o status quo e fazer valer o regimento da escola.
Na passagem em questão, notamos também que o relato de Victor Klemperer apresenta uma seqüência contínua de informações – diferenciadas no original em alemão pela inclusão de um travessão –, passando do episódio na escola para a publicidade de uma pasta de dentes com a suástica, e culminando com a observação crítica do próprio Klemperer que, do seu lugar enquanto sujeito de enunciação, estabelece uma ponte entre o momento no “Terceiro Reich” com o passado da Revolução Francesa e do recrudescimento da violência promovida pelos Jacobinos. Em termos enunciativos, a própria relação de Klemperer com a história e a literatura da França enquanto romanista, autor de obras como Montesquieu (1915) e Die romanischen Literaturen von der Renaissance bis zur Französischen Revolution (1924, juntamente com Helmut Hatzfeld e Fritz Neubert), justifica a comparação. Além disso, a pasta de dente com a suástica vem se juntar aos outros símbolos nazistas da cena na escola. O caráter totalitário do regime se revela no modo como os diversos âmbitos que constituem a vida social, seja ele o da educação ou do comércio, são abarcados. Aliás, em termos publicitários, a influência da propaganda nazista era patente, seja, por exemplo, em campanhas que não divulgavam seus símbolos, mas suas idéias, como é o caso da famosa marca 4711 – Kölnisch Wasser (“4711 – Água de Colônia”), que exibia em cartazes de publicidade o rosto de dois jovens de acordo com os padrões “arianos” e a expressão “Zum deutschen Wesen” (“Para a essência alemã”) (Grube e Richter, 1982, p. 69), seja por aqueles produtos que, assim como a pasta de dente na passagem citada, exibiam em suas campanhas publicitárias a suástica.
Por sua vez, são inúmeras as passagens n’Os Diários de Victor Klemperer que prestam testemunho da perseguição de judeus durante o regime nazista. Isso, por si só, já é um documento não apenas do estado de ânimo daquele que escreve sob perigo e terror, como também um indício da onipresença da violência para aqueles que eram perseguidos pelo regime e destituídos gradativamente de seus direitos civis. Num primeiro exemplo de relatos sobre essa temática, um apontamento de 30 de março de 1933, podemos observar que Klemperer procura construir sua argumentação a partir da referência histórica da longa perseguição imposta a comunidades judaicas desde a Antigüidade, passando pela Idade Média:
[...] Fantástica Idade Média. “Nós” – judeus ameaçados. De fato, sinto mais vergonha do que medo, vergonha pela Alemanha. Verdadeiramente, sempre me senti alemão. Sempre imaginei: século XX e Europa Central são coisas bem diferentes de século XIV e Romênia. Errado. Dember prognostica as conseqüências econômicas: Bolsa de Valores, repercussão na indústria cristã – e tudo isso “nós” é que iremos pagar com nosso sangue. [...] (Klemperer, 1999, p.19)9
Na passagem em questão, nota-se a discussão em torno da identidade. O pronome wir – ”nós” – aparece entre aspas numa marca de relativização generalizada do pertencimento e mesmo da identidade coletiva que seria atribuída a judeus, uma vez que o próprio Klemperer se via, até então, como alemão. Além disso, como havia acontecido no exemplo anterior em relação ao relato das srta. Wiechmann sobre o episódio na escola, Klemperer menciona a opinião de Dember sobre o perigo que corria a comunidade judaica na Alemanha. Pois o apontamento feito no diário, datado de 30 de março de 1933, relata justamente sobre um jantar na casa da família Blumenfeld, juntamente com o casal Dember, amigos dos Klemperer.
Os Diários de Victor Klemperer documentam também a perseguição e o confinamento gradativo que foi sendo imposto pelo Estado totalitário aos judeus-alemães. A primeira ação pública instrumentalizada pelo Estado enquanto parte da encenação do poder ocorreu quando Joseph Goebbels decidiu por em prática um “boicote aos estabelecimentos judaicos” (Boykott jüdischer Geschäfte), que, a exemplo das razias da polícia, acontecidas anteriormente em bairros judeus, também foi acompanhado por jornalistas e fotógrafos, e por soldados das SA postados diante dos principais estabelecimentos comerciais, como, por exemplo, da famosa loja de departamentos Wertheim em Berlim (Grube e Richter, 1982, p.271)10. Para a execução da primeira ação anti-semita, conduzida publicamente pela cúpula nazista, foi formado o “Comitê Central para Defesa contra Difamações de Atrocidades e Boicote pelos Judeus” (Zentralkomitee zur Abwehr der jüdischen Greuel- und Boykotthetze), sob a direção do dirigente do distrito da Francônia, o fanático anti-semita Julius Streicher (1885-1946). Por toda a Alemanha, no dia 1º de abril de 1933, a população foi conclamada para um boicote aos estabelecimentos pertencentes a judeus. Naquele sábado, dia normalmente intenso para o comércio, soldados da SA postaram-se diante das lojas e ameaçaram os proprietários e os fregueses que não queriam observar o boicote (Informationen zur politischen Bildung, 2003, p.52-53). Tal medida de boicote significou “o prelúdio para a aniquilação econômica e física dos judeus na Alemanha e na Europa” (Informationen zur politischen Bildung, 1991, p.34). Num apontamento de 03 de abril de 1933, Victor Klemperer relata sobre o boicote:
No sábado, avisos vermelhos nas lojas: “Empresa reconhecidamente cristã-alemã”. Separando uma das outras, lojas fechadas, gente da SA postada diante delas com cartazes triangulares: “Quem compra do judeu estimula o boicote internacional e destrói a economia alemã”. Pessoas passando em massa pela Prager Strasse, observando tudo aquilo. O boicote. “Por enquanto somente aos sábados – depois, uma pausa até quarta feira.” Fora os bancos, advogados e médicos inclusive. Suspenso depois de um dia – foi um sucesso e a Alemanha é “magnânima”. Na verdade uma manobra absurda. Evidentemente resistência dentro e fora da Alemanha e evidentemente, do outro lado, pressão da massa nacional-socialista. Tenho a impressão de que vamos rapidamente rumo à catástrofe. [...] (Klemperer, 1999, p.19-20)11
Por sua vez, num apontamento datado de 17 de setembro de 1935, Viktor Klemperer se refere às chamadas Nürnberger Rassengesetze (“Leis Raciais de Nuremberg”), leis promulgadas pelo Reichstag durante a convenção anual do partido nazista, realizada na cidade de Nuremberg:
Enquanto escrevia ontem, o Reichstag já tinha aceitado em Nuremberg as leis relativas ao sangue alemão e à honra alemã: cadeia para casamentos ou relações extraconjugais entre judeus e “alemães”, proibição de se manter empregadas “alemãs” com menos de quarenta e cinco anos, permissão de expor a “bandeira judia”, cassação do direito à cidadania. E com que motivos e com que ameaças! A repulsa me faz ficar doente. À noite, veio Gusti Wieghardt, chorar as mágoas, disse: “fazer schiwe”. Mas os judeus não a interessam. Hitler ameaçou a Lituânia, a Alemanha, aliada à Inglaterra, vai derrotar os russos, aniquilar o comunismo. (Klemperer, 1999, p.134)12
Mais uma vez, Victor Klemperer complementa uma informação a respeito de um dado acontecimento com as palavras de outra pessoa, no caso, de uma visita. A segunda ação pública contra a população judia foi executada em setembro de 1935 através da proclamação das chamadas “Leis de Nuremberg” (Nürnberger Gesetze) – “Lei de proteção do sangue alemão e da honra alemã” (Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre), título indicado no próprio texto de Klemperer – que determinaram juridicamente a discriminação contra judeus. Com isso, todos os judeus-alemães foram privados dos seus direitos de “cidadãos do Reich” (Reichsbürger) e excluídos da “comunidade do povo” (Volksgemeinschaft) (Kammer e Bartsch, 1992, p.39-40).
Os Diários de Viktor Klemperer contêm também passagens em que seu autor presta testemunho da violência pessoalmente sofrida, que vão desde a exposição à violência da população na rua, ao ser identificado como judeu por estar usando a estrela amarela, até as batidas inesperadas da Gestapo. Numa delas, datada de 24 de junho de 1943, um grupo de adolescentes o insulta:
Vox populi: um grupo de rapazes de bicicleta, de catorze e quinze anos, às dez horas da noite na Wormser Strasse. Eles passam por mim, gritam alto, esperam, deixam-me passar. “Esse aí vai levar um tiro na nuca... eu aperto o gatilho... Esse aí vai parar na forca – agiota...” e mais alguns insultos. Isso me amargurou e me fez duvidar mais profundamente e de maneira muito mais duradoura das palavras do velho trabalhador na noite anterior. [...] (Klemperer, 1999, p.621)13
A vida segregada e confinada no “prédio de judeus” também estava longe de ser um “recanto seguro”. Pois, a qualquer momento, a Gestapo podia fazer uma de suas “razias surpresa”, como é o caso relatado por Viktor Klemperer (1999, p.477), num apontamento de 11 de junho de 1942:
Depois de um clímax num dia pavoroso, uma piora constante da situação. Ontem à tarde, por volta da uma e meia – tinha colocado as batatas para cozinhar – de novo a Gestapo, a quarta vez em duas semanas. [...] Eu já pensava ter me livrado do perigo quando o Mito do século XX e minha folha de anotações a respeito provocaram a catástrofe. Da última vez, o livro e as anotações mal tinham causado protesto do funcionário, evidentemente de escalão um pouco mais alto. Desta vez esta leitura foi imputada a mim como um crime pavoroso. O livro foi socado em minha cabeça, fui estapeado, enfiaram-me um ridículo chapéu de palha de Kätchen na cabeça: “Como você está bonitinho!”. Quando afirmei, depois de suas perguntas, ter estado em meu cargo até 1935, fui cuspido no rosto, entre os olhos, por dois sujeitos já conhecidos por mim. Nisso, Eva voltou das compras. A cesta lhe foi imediatamente arrancada das mãos, xingaram-na por conta do livro. Quis correr em sua ajuda, fui estapeado no rosto e, aos pontapés, empurrado para a cozinha. (Os tapas e os pontapés desta vez também foram suportáveis – meu pobre coração, porém, e o medo de outros desdobramentos!) [...]14 (destaques no original)
Embora em seu apontamento Viktor Klemperer deixe implícito o significado do livro Mito do século XX para despertar a ira dos agentes da Gestapo, isso fica evidente para o leitor familiarizado com o contexto. Junto com o livro Mein Kampf (1925/1927), de Hitler, Der Mythos des 20. Jahrhunderts (1930), de autoria de Alfred Rosenberg (1893-1946), forma a “base ideológica” do nazismo. Considerado o “ideólogo” do partido nazista, Rosenberg pertencia a suas fileiras desde o início dos anos 20, desempenhando a função de editor-chefe do jornal Völkischer Beobachter, órgão de imprensa do partido, desde 1923. Durante o período nazista, assumiu as funções de “Delegado do Führer para a vigilância de toda a instrução e educação intelectual e ideológica do NSDAP” (“Beauftragter des Führers für die Überwachung der gesamten geistigen und weltanschaulichen Schulung und Erziehung der NSDAP”) e, de 1941 a 1945, de Ministro do Reich para as regiões ocupadas da Europa Oriental. Durante os Processos de Nuremberg, foi condenado à morte e executado em 16 de outubro de 1946. O relato de Klemperer revela tanto a arbitrariedade entre os agentes da Gestapo que, numa outra razia, não haviam considerado a posse do livro um “crime”, e estes da cena, quanto a violência com que agiam.
Por fim, cabe destacar, mais uma vez, a construção discursiva do relato de testemunho em forma de diário. Como pudemos constatar, Viktor Klemperer presta testemunho de si – enquanto superstes, como na cena anterior – e de outros, ao reproduzir seus relatos. Além das características comuns a relatos feitos em forma de diário, como, por exemplo, a datação, a seqüência cronológica, a forte presença do cotidiano, Os Diários de Viktor Klemperer apresentam a variação narrativa entre primeira pessoa – enquanto supertes, quando a violência recai sobre si próprio – e terceira pessoa do singular – enquanto testis, que testemunha a violência cometida a outros. Um aspecto específico de seus relatos diz respeito ao sentimento aguçado de filólogo ao desmascarar o jargão nazista e, em determinadas passagens, ao empregá-lo de modo irônico, desconstruindo-o. Sem dúvida, Os Diários de Viktor Klemperer documentam “o testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista”, como sinaliza o subtítulo da tradução brasileira, testemunho não só da luta diária por sobrevivência no “Terceiro Reich”, como também da derrocada gradativa de uma sociedade e de um país até as profundezas da destruição concreta e moral.

Referências Bibliográficas

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Informationen zur politischen Bildung, Caderno 251: „Nationalsozialismus I. Von den Anfängen bis zur Festigung der Macht“, Bundeszentrale für politische Bildung (Org.), Bonn, 2° quadrimestre 2003.
KAMMER, Hilde/BARTSCH, Elisabet. Nationalsozialismus. Begriffe aus der Zeit der Gewaltherrschaft 1933-1945. Reinbek bei Hamburg: Rowohlt, 1992.
KLEMPERER, Victor. Das Tagebuch 1933-1945. 2ª ed., Berlin: Aufbau Taschenbuch Verlag, 1997.
_____. LTI. Notizbuch eines Philologen. 16ª ed., Leipzig: Reclam, 1996.
_____. Os Diários de Victor Klemperer. Testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista. tradução de Irene Aron, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
NESTROVSKI, Arthur. “Vozes de crianças”. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Marcio (Orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p.185-205.
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SELIGMANN-SILVA, Márcio. “A história como trauma”. In: NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (Orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p.73-98.
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SENKMAN, Leonardo. “Simja Sneh y los límites de la representación testimonial de la Shoah”. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (Org.). História, Memória, Literatura. O testemunho na Era das Catástrofes. Campinas: Ed. Unicamp, 2003, p.247-297.

1 Professor de Língua e Literatura Alemã (graduação) e de Teoria da Literatura e Literatura Comparada (pós-graduação) na Faculdade de Letras da UFMG; membro do Grupo Integrado de Pesquisa “Literatura e Autoritarismo” desde 2000; e-mail: cornelsen@letras.ufmg.br
2 […] Insuficiência das palavras para nomear os fantasmas do horror; representação do sujeito reduzido ao puro nada de corpos dispersos na fumaça; necessidade da imaginação criadora de socorrer a memória: eis aqui os três paradigmas fundamentais do cânone da narrativa testemunhal e da desobjetivação. (tradução própria)
3 O título da tradução brasileira é: Os Diários de Victor Klemperer. Testemunho clandestino de um judeu na Alemanha nazista, tradução de Irene Aron, São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
4 Wie erlebten die Zeitgenossen den Holocaust? Was konnten sie wissen, sehen, hören? Klemperers Tagebuch beantwortet solche Fragen, die von jeder Generation neu gestellt werden. Er, der als Jude geborene, zwangsemeretierte Professor, löste mit seinen täglichen Notizen, deren Entdeckung den sicheren Tod bedeutet hätte, eine selbstgesetzte Chronistenpflicht ein: Er wollte der Geschichtsschreiber der Katastrophe sein und Zeugnis ablegen für die Zeit danach. Tag für Tag hielt er im „Judenhaus“ fest, was er beobachtete und erlebte: den täglichen Terror mit Razzien, ständig neuen Verboten und Schikanen, gelegentlich auch Gesten der Solidarität von Unbekannten, und er schrieb auf, was ihm zugetragen wurde: Gerüchte, politische Witze, Berichte von Frontsoldaten. Sein minutiöser Bericht ist ein einmaliges Dokument über den Alltag der Judenverfolgung – mitten in einer deutschen Großstadt.
5 Immer das gleiche Auf und Ab. Die Angst, meine Schreiberei könnte mich ins Konzentrationslager bringen. Das Gefühl der Pflicht zu schreiben, es ist meine Lebensaufgabe, mein Beruf. Das Gefühl der Vanitas vanitatum, des Unwertes meiner Schreiberei. Zum Schluß schreibe ich doch weiter, am Tagebuch, am Curriculum. (Klemperer, 1997, p.133).
6 – Fräulein Wiechmann bei uns. Sie erzählt, wie in ihrer Meißener Schule alles vor dem Hakenkreuz kriecht, um seine Stellung zittert, sich gegenseitig beobachtet und mißtraut. Ein junger Mensch mit dem Hakenkreuz kommt in irgendeinem Auftrag in die Schule. Sogleich beginnt eine Klasse von Vierzehnjährigen das Horts-Wessel-Lied zu singen. Singen auf dem Korridor ist verboten. Fräulein Wiechmann hat die Aufsicht. „Sie müssen das Grölen verbieten“, drängen die Kolleginnen. – „Tun Sie das doch! Wenn ich dies Grölen verbiete, heißt es, ich sei gegen ein nationales Lied eingeschritten, und ich fliege!“ Die Mädel grölen weiter. – In einer Apotheke irgendeine Zahnpasta mit dem Hakenkreuz. – Eine Stimmung der Angst, wie sie in Frankreich unter den Jakobinern geherrscht haben muß. Noch zittert man nicht um sein Leben – aber um Brot und Freiheit. (Klemperer, 1997, p.13-14).
7 Na época, Joseph Goebbels, então Reichsleiter für Propaganda der NSDAP (“Dirigente do Reich para Propaganda do NSDAP”) fez com que fosse espalhado o boato de que Horst Wessel teria sido assassinado por comunistas. Com isso, Horst Wessel tornou-se, ao mesmo tempo, herói e mártir para o partido nazista (cf. Kammer e Bartsch, 1992, p.96-97).
8 A “Juventude Hitlerista” foi fundada em 1926, enquanto a “Liga das Jovens Alemãs” é de 1930 (cf. Kammer e Bartsch, 1992, p.29 e p.95).
9 [...] Phantastisches Mittelalter: “Wir” – die bedrohte Judenheit. Ich empfinde eigentlich mehr Scham als Angst, Scham um Deutschland. Ich habe mich wahrhaftig immer als Deutscher gefühlt. Und ich habe mir immer eingebildet: 20. Jahrhundert und Mitteleuropa sei etwas anderes als 14. Jahrhundert und Rumänien. Irrtum. – Dember malte die geschäftlichen Folgen aus: Börse, Rückschläge auf christliche Industrie – und alles dies würden dann „wir“ mit unserem Blut bezahlen. [...] (Klemperer, 1997, p.14).
10 Cf. também Informationen zur politischen Bildung (1991, p. 34-35).
11 Am Sonnabend rote Zettel an den Geschäften: „Anerkannt deutschchristliches Unternehmen“. Dazwischen geschlossene Läden, SA-Leute davor mit dreieckigen Schildern: „Wer beim Juden kauft, fördert den Auslandboykott und zerstört die deutsche Wirtschaft.“ – Die Menschen strömten durch die Prager Straße und sahen sich das an. Das war der Boykott. „Vorläufig nur Sonnabend – dann Pause bis Mittwoch.“ Banken ausgenommen. Anwälte, Ärzte einbegriffen. Nach einem Tage abgeblasen – der Erfolg sei da und Deutschland „großmütig“. Aber in Wahrheit ein unsinniges Schwenken. Offenbar Widerstand im Aus- und Inland, und offenbar von der anderen Seite Druck der nationalsozialistischen Straße. Ich habe den Eindruck, daß man rasch der Katastrophe zutreibt. (Klemperer, 1997, p.15).
12 Während ich gestern schrieb, hatte der “Reichstag” in Nürnberg schon die Gesetze für das deutsche Blut und die deutsche Ehre angenommen: Zuchthaus auf Ehe und außerehelichen Verkehr zwischen Juden und „Deutschen“. Verbot „deutscher“ Dienstmädchen unter 45 Jahren, Erlaubnis, die „jüdische Flagge“ zu zeigen, Entziehung des Bürgerrechtes. Und mit welcher Begründung und welchen Drohungen! Der Ekel macht einen krank. Abends kam Gusti Wieghardt zu uns, sich ausklagen, sie sagte: „Schiwe sitzen“. Aber die Juden interessierten sie nicht. Hitler habe Litauen bedroht, Deutschland werde im Bunde mit England die Russen schlagen, den Kommunismus vernichten. – (Klemperer, 1997, p.43)
13 Vox populi: Eine rupe radelnder Jungen, vierzehn bis fünfzehn Jahre, um zehn abends in der Wormser Straße. Sie überholen mich, rufen zurück, warten, lassen mich passieren. „Der kriegt einen Genickschuß... ich drück’ab... Er wird an den Galgen gehängt – Börsenschieber...“ und irgendwelch Gemauschel. Es hat mich tiefer und nachhaltiger verbittert und schwankend gemacht, als mich den Abend vorher die Worte des alten Arbeiters erfreuten. [...] (Klemperer, 1997, p.185).
14 Nach einem gipfelhaft furchtbaren Tag eine dauernde weitere Verschlimmerung der Situation. Gestern mittag gegen halb zwei – ich hatte die Kartoffeln auf dem Feuer – wieder Gestapo, das vierte Mal in vierzehn Tagen. [...] Ich glaubte schon, aus der Gefahr zu sein, als „Der Mythus des 20. Jahrhunderts“ und mein Notizblatt daneben zur Katastrophe führten. Das vorige Mal, bei einem offenbar etwas höheren Beamten, hatten Buch und Notizen kaum Widerspruch erregt. Diesmal wurde mir diese Lektüre als furchtbares Verbrechen angerechnet. Das Buch wurde mir auf den Schädel gehauen, ich wurde geohrfeigt, man drückte mir einen lächerlichen Strohhut Kätchens auf: „Schön siehst du aus!“ Als ich auf Befragen angab, bis 1935 im Amt gewesen zu sein, wurde ich von zwei mir schon bekannten Kerlen zwischen die Augen gespuckt. Indem erschien Eva vom Einkauf. Die Tasche wurde ihr sofort abgenommen, man schimpfte auch auf sie wegen des Buches ein. Ich wollte ihr zu Hilfe kommen, wurde geohrfeigt und mit Fußtritten in die Küche gestoßen. (Ohrfeigen und Tritte waren auch diesmal erträglich – aber mein armes Herz und die Angst um die wietere Etwicklung!) [...] (Klemperer, 1997, p.149-150).

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