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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER EM SÃO BERNARDO, DE GRACILIANO RAMOS

Lígia Paschoal Belon1
Marlene Durigan2
Resumo: O objetivo deste trabalho é analisar representações de gênero e relações de poder e suas imbricações em São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos. Focalizam-se escolhas léxico-gramaticais e enunciativas em alguns recortes significativos do texto, interpretando-os com base no contexto em que se constroem as representações da experiência humana. Destaca-se a assimetria das relações de poder entre masculino e feminino como simulacro de práticas patriarcais e capitalistas representativas do contexto histórico de produção da obra.
Palavras-chave: Palavras-chave: relações de gênero, Graciliano Ramos, capitalismo e poder.
Abstract: The purpose of this work is to analyze representations of gender and power relationships and their interchangings in São Bernardo (1934), by Graciliano Ramos. We focus lexical, grammatical and enunciative chooses on some meaning fragments of the text, interpreting them according to the context in which the human experience representations are built. We emphasize the non symmetrical power relashionships between masculine and feminine universes as a simulacrum of patriarchal and capitalistic practices that represents the historic context in which the work was produced.
Keywords: gender relationships, Graciliano Ramos, capitalism and power.

1. Introdução
Derivam, da literatura – “gênero” hegemônico –, certas práticas e valores sociais, evidenciando posições ideológicas representadas pelos personagens (geralmente simulacro de relações políticas). Conforme destacava Gramsci, a hegemonia é a construção de alianças, mediante concessões ou meios ideológicos para ganhar seu consentimento; é um foco de constante luta para construir, manter ou romper alianças e relações de dominação/subordinação.
A fecundidade da criação literária, por sua vez, está geralmente relacionada com os momentos históricos mais intensos e a radicalização político-ideológica impregna a atividade cultural, o que, segundo Benjamin (1985, p.187-88), obriga o escritor a “decidir a serviço de quem ele quer colocar a sua atividade”. Assim, entre História e a Literatura há uma aliança: ou a Literatura é, ela própria, um fenômeno histórico (“o valor de uma obra é o seu lugar na História”, como destacava Picon, 1979), ou o fato histórico pode ser captado dentro da Literatura, imanente ao texto. Além disso, as obras literárias representam um poder intelectual e “moral” obtido por meio do consenso social (hegemônico, portanto): pela sociedade que consome as obras e pela crítica.
Articulando a história contada e “o modo como o narrador nos faz conhecê-la” (Todorov, 1970) – discurso, portanto –, bem como as vozes que se interenunciam (Bakhtin, 1993) no romance, e sem subordinar-se a uma teoria ou método, o objetivo deste trabalho é analisar representações de gênero e relações de poder e suas imbricações em São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos. Focalizam-se escolhas léxico-gramaticais e enunciativas em alguns recortes significativos do texto3, procurando-se interpretá-los com base no contexto em que se constroem as representações da experiência humana, uma das funções da literatura. Analisam-se relações assimétricas de poder entre os gêneros, entremeadas a práticas patriarcais e capitalistas representativas do contexto histórico de produção da obra.

2. Fios teóricos
Segundo Bakhtin (1988), não é possível representar o mundo ideológico do outro sem lhe dar sua própria ressonância, sem deixar fluírem suas palavras, signos ideológicos por excelência. Para o pensador russo, o signo é um fragmento material da realidade que, além de refratá-la, representa-a e a constitui, de modo a instaurar, sustentar ou superar formas de dominação na esfera social. E essa esfera social, lugar em que os enunciados são gerados, é representada, quer quanto à temática, quer quanto ao estilo, quer quanto ao todo composicional, em gêneros discursivos. (cf. Bakhtin, 2002, p.94 et passim).
O discurso literário contribui para a construção de identidades sociais, de relações sociais e de sistemas de conhecimento e crença, cuja reprodução e cujas transformações (possíveis) cabem às práticas discursivas, de que o romance é um veículo. Quanto às ideologias, “[...] são significações/construções da realidade (o mundo físico, as relações sociais, as identidades sociais), que são construídas em várias dimensões das formas/sentidos das práticas discursivas e que contribuem para a produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação” (Fairclough, 2001, p.117 et passim).
Graciliano Ramos cultivava os valores culturais da região em que vivia, o que vai legitimá-lo em seu discurso ficcional, em que se evidenciam, além das imagens construídas nas relações sociais e das redes de poder presentes na sociedade, representações de uma região estigmatizada pela seca e pelo sistema (quase) feudal e autoritário que caracterizava as relações humanas e políticas à época da escritura do romance. Tanto a fazenda São Bernardo, espaço em que se movem os personagens, quanto o livro São Bernardo “localizam-se” no Nordeste, região cujas referências culturais contribuíram para a construção de imagens das relações de autoritarismo e poder na historiografia brasileira.
Como afirma Bakhtin (1993, p.118-9),
o autor se realiza e realiza o seu ponto de vista não só no narrador, no seu discurso e na sua linguagem [...], mas também no objeto de narração e também realiza o ponto de vista do narrador. Por trás do relato do narrador nós lemos [...] o relato do autor sobre o que narra o narrador, e [...] sobre o próprio narrador. Percebemos nitidamente cada momento da narração em dois planos: o plano do narrador, na sua perspectiva expressiva e semântico-objetal, e no plano do autor que fala de modo refratado nessa narração e através dela. [...]
Inscrita na Geração de 30, produtora de obras voltadas para a denúncia social e para relações humanas conduzidas em um alto grau de tensão entre o “eu” do escritor e a sociedade que o formou, na obra “os fatos assumem uma significação menos ‘ingênua’ e servem para revelar as graves lesões que a vida em sociedade produz no tecido da pessoa humana: logram por isso alcançar uma densidade moral e uma verdade histórica muito mais profunda” (Bosi, 1994, p.393).
No imaginário brasileiro, as divergências econômicas e político-sociais, os conflitos interregionais, as questões sociais do Nordeste, como a seca e a miséria, (ainda) são elementos primordiais para a elaboração imagético-discursiva da Região: um lugar da periferia, de discriminação nas relações econômicas e políticas do país. (Albuquerque Júnior, 1999). Na História, a produção de São Bernardo é contemporânea à Revolução de 30, movimento militar e político que destituiu a República Velha e conduziu ao poder Getúlio Vargas, mobilizando a oposição e acentuando os conflitos gerados pelo rompimento do acordo de revezamento no poder pertinente à “política do café com leite”.
É nesse período que surge uma literatura regionalista fundada numa lógica discursiva que busca defender a região da “supremacia do centro - sul e as suas influências sobre os valores morais do Nordeste” (Buriti, 1997, p.84) e legitimar a lógica de pertencimento do ser nordestino, ainda que o discurso oficial tivesse produzido a primeira imagem do termo “nordeste”: a imagem de seca, da calamidade, do chão tórrido, que iria servir como argumento do discurso que a elite nordestina (inicialmente) usará para conseguir recursos e a atenção dos políticos. (Albuquerque Júnior, 1999, p. 68). A imagem da seca ganha força e expressa-se na literatura e em outras artes, como produto discursivo em "defesa" desse recorte chamado Nordeste.
Em São Bernardo, a seca já não surgirá, no entanto, como o grande problema do protagonista (e, por extensão, do autor), porque o seu espaço extrapola o espaço nordestino, abarcando problemas de ordem humana e estabelecendo um diálogo com o homem e com o Estado. Ele não vai tornar visíveis os problemas do nordeste; estes são ali suprimidos ou ocultados, assim como falas e tipos regionais, em favor de uma representação do mundo capitalista (que desconhece regiões ou o local), que luta por manter seus territórios tradicionais, os quais sobrevivem em seu imaginário, mesmo necessitando construir novos territórios (interiores). (Albuquerque Júnior, 1999, p.159).
Na memória do país, a década de 1930 foi marcada por discussões, no plano político, do voto secreto, do voto feminino, da liberdade de organização e expressão, da reforma do ensino, dos direitos dos trabalhadores.
Paulo Honório, o fazendeiro que quer escrever um livro, narrador-personagem, é o titular do discurso e, pois, manipula e cria a imagem de Madalena no decorrer da diegese. Na condição de narrador, embora onisciente e centralizador, orquestra a polifonia, reconhecendo, assim, no discurso dialógico, as limitações dos personagens em chegar aos “silêncios” do outro oprimido.
O enredo da obra concentra-se na trajetória de Paulo Honório, cuja ambição de (re)conquistar a fazenda São Bernardo – a propriedade privada, e não social – sobrepõe-se aos valores humanos. Movido pelo ideal de posse e lucro, vê tudo como negócio, incluindo-se o casamento: (re)conquista a fazenda e casa-se com Madalena apenas para “preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo”. A mulher recusa-se a ser mais uma propriedade e suicida-se, conduzindo o protagonista à ruína. O “eu” protagonista busca, então, por meio da escrita de um livro, recompor sua vida, sua existência, em forma de um ato memorialista. A narrativa desenvolve-se sobre questões existenciais e políticas, questionamentos de natureza humana no confronto do homem com o meio social.
Estruturado em 36 capítulos, o livro apresenta duas histórias, com dois começos e dois finais. A primeira é a da elaboração de um livro; a segunda, a da trajetória de um herói problemático (Bosi, 1994), inutilizado pelo “modo de vida”: ele não era mau, mas foi corrompido pela sociedade, como declara, fazendo ecoar o discurso determinista e positivista ou a voz de Rousseau, na “teoria” do bom selvagem: “a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste.” (Ramos, 1997, p.100). É como se Graciliano Ramos desculpasse Paulo Honório, atribuindo sua decadência à ignorância e às garras do “capitalismo selvagem”. As histórias não são, todavia, contadas de forma linear; há o tempo do enunciado e o tempo da enunciação, o tempo da história e o tempo da elaboração da história, que compõem um entrecruzar de temporalidades: a do universo representado e a do que instaura essa representação. A seqüência dos acontecimentos é marcada por um tempo cronológico – o narrador começa a contar sua história dois anos após a morte de Madalena –, mas há também um tempo psicológico que marca a dualidade desse narrador-personagem, um ator sincrético que se constrói como um “eu” agente e um “eu” narrante, de cuja tensão emerge a dramaticidade do romance.
A narrativa tem como tema a ascensão e decadência de Paulo Honório, marcado por um posicionamento político de reificação e de ser-para-ter e por um movimento centrípeto: ações, tempos e espaços são praticamente os mesmos, exceto em raros momentos em que o mundo “aqui” é afetado pelo mundo “lá fora” (o outro). Não há dramas paralelos; o cenário em si não se altera. Também o narrador não pode intervir no curso da história porque o tempo do narrado não coincide com o tempo da narração. Enquanto na primeira parte opta-se pela ação em detrimento da psicologia, na segunda, a introspecção predomina. Na primeira parte, o econômico ofusca dramas pessoais; na segunda, o drama humano sobressai-se, aliado à finalidade (sociopolítica) de fazer sobressair o processo de transformação que caracteriza a contemporaneidade: aqui e ali cintilam o discurso de gênero e o político.
Quanto ao título da obra, corresponde ao nome da fazenda (São Bernardo), o primeiro objeto de desejo do protagonista e o espaço físico e social das situações dramáticas, em que subjaz a “barbárie do latifúndio”: a riqueza construída à custa da miséria e do estado de servidão dos empregados. Mas a fazenda não é o eixo central do romance, e sim o personagem, pois tudo em São Bernardo (e em São Bernardo) é subordinado a ele. Como afirma Candido (2006, p.25-30), “[...]São Bernardo é centralizado pela irrupção de um personagem forte, e este, a seu turno, pela tirania de um sentimento dominante. [...]”.

3. Nem só de capital vive a obra: das relações de gênero (e poder)
Graciliano Ramos parece buscar, no romance, uma valorização moral e intelectual do sujeito feminino e lança-o na tarefa de mudar o pequeno mundo do sujeito personagem masculino. O personagem feminino, identificado ironicamente na narrativa como Madalena, nome que remete ao discurso bíblico da pecadora que se arrepende, é uma professora atenta às injustiças sociais e que surge empunhando uma bandeira humanista: representa o líder político e solidário que defende homens, mulheres e crianças marcados pelo estigma da despersonalização. Enquanto o personagem bíblico é exaltado por sua submissão e arrependimento, Madalena busca, pela ação, abolir as injustiças sociais e a diferenciação de papéis entre homens e mulheres, entre patrão e empregado, desigualdades proporcionadas pela sociedade, historicamente constituídas e dela constitutivas. Ela também se confronta com a preocupação com a honra – outra ironia proporcionada por Graciliano Ramos, que é marcada pelo nome que este atribui ao personagem masculino – e, enquanto suporta, resiste contras as formas de opressão instaladas na fazenda.
As relações desiguais entre homens e mulheres constituem-se como um problema secular, que, em meados dos anos 60 e 70 do século XX – cerca de 30 anos após a publicação de São Bernardo –, com o surgimento dos movimentos feministas, passaria a ser objeto de estudo em diferentes campos do saber: as relações de gênero. Não há, porém, no romance, exatamente (ou não só) uma luta entre sexos, pois Madalena representa o repúdio às injustiças sociais e ao atraso econômico do país, bem como mostra a fraqueza organizacional dos trabalhadores. Podemos arriscar-nos a afirmar que se insinuam, na obra, ainda que timidamente, pela voz feminina, os levantes do Partido Comunista contra o (quase) feudalismo das oligarquias rurais nordestinas e contra o capitalismo industrial.
Graciliano Ramos faz de São Bernardo um lugar em que a mulher se insinua como sujeito e em que o privilégio do masculino é derrubado na linguagem. Com a criação de um personagem feminino – mulher de características incomuns para a época –, oferece-nos, no romance, a possibilidade de análise da representação feminina na literatura contemporânea. Considerando-se o confronto da mulher com o protagonista masculino, o romance elabora um discurso de alteridade, enquanto estratégia narrativa de um narrador masculino que não quer ceder o lugar central da enunciação ao sujeito feminino.
Assim, não se trata mais de superar as dicotomias homem versus mulher ou feminista versus não-feminista, mas sim de desarticular o caráter fixo e permanente dessas oposições binárias, de desconstruir a lógica dos sistemas tradicionais de pensamento e de pôr em relevo o fato de que as oposições são históricas e lingüisticamente construídas. Trata-se, pois, de refletir sobre práticas discursivas atravessadas por relações de poder e de sentido, usadas a favor ou contra um determinado objeto, numa determinada situação (estrategicamente, portanto) (Buriti, 2000, p.11).
A partir do primeiro parágrafo da obra, já se esboçam alguns traços identitários do personagem principal: o autoritarismo, a determinação, a pressa de conquista, o desejo de poder. Da primeira idéia do narrador-personagem – construir um livro pela divisão do trabalho – até o início da composição, o percurso é curto, prejudicado por problemas de comunicação, rapidamente solucionados (Lafetá, 1978): "Afastei-o da combinação e concentrei as minhas esperanças em Lúcio Gomes de Azevedo Gondim, periodista de boa índole e que escreve o que lhe mandam" (Ramos, 1997, p.8).
Marcando a intervenção da história na vida cotidiana (para lembrar Lukács), Graciliano Ramos sintetiza, na trajetória (e no destino) de Paulo Honório, fases do processo histórico vivido no processo de avanço do capitalismo: o trabalhador que quer elevar-se materialmente, que, de “alugado” passa a proprietário, porque “ganha” a terra. A crise histórica de 1929 que afeta a economia mundial (do país e da região) é metaforizada pela crise pessoal, em que os acontecimentos “externos” abatem-se sobre o protagonista, que é lançado de volta ao ponto de partida, sugerindo que a ética capitalista do trabalho como origem da riqueza é uma mentira, uma ilusão.
Aos sucessos narrados na primeira parte, seguem o fracasso pessoal e a decadência econômica, que vão constituir o núcleo dramático da segunda. A queda do proprietário (como ser humano, social, econômico e político) é representada no próprio ritmo da narração. Mas há também o polissêmico suicídio de Madalena, que é, sobretudo, político: ela não consegue vencer a força do patriarcalismo e do capitalismo e submete-se (eis a hegemonia), evidenciando os insucessos da utopia socialista e a fraqueza organizacional dos trabalhadores e oprimidos. Por outro lado, ao suicidar-se, derrota seu oponente, que não tem mais a quem oprimir: eis a “pedagogia da insubmissão”, um dos temas da literatura produzida à época.
A história desenvolve-se com acentuada rapidez até o sexto capítulo, interrompe-se no sétimo, para retornar, em ritmo acelerado, no oitavo, e o texto reproduz, pelo modo como se constrói, o dinamismo, a objetividade, a determinação do protagonista, “movendo o discurso para a frente” (Hopper, 1979): “Na pedreira perdi um [...] Deixou viúva e órfãos miúdos. Sumiram-se: um dos meninos caiu no fogo, as lombrigas comeram o segundo, o último teve angina e a mulher enforcou-se. [...] Para diminuir a mortalidade e aumentar a produção, proibi a aguardente” (Ramos, 1997, p.36).
O relato frio dos acontecimentos evidencia a falta de emoção com que Paulo Honório, sob o signo do capital, assiste à desgraça alheia e encara o elemento humano, naturalizando as relações, o que se vai acentuar na construção reflexiva (“sumiram-se”). Atribuindo aos próprios "pacientes" o seu destino, o personagem não se apresenta como responsável pela falta de assistência aos empregados. No segundo segmento, a responsabilidade pelas mortes recai sobre a aguardente. No lexema de “proibi”, prevalece a noção modal de ordem, que revela o poder do patrão sobre o empregado; no sentido e na anteposição das orações finais, entrevê-se a preocupação do personagem em privilegiar os fins em detrimento dos meios, legitimando a prática social capitalista. Com a mesma segurança com que proíbe a aguardente para afastar o problema da diminuição dos lucros (gerado pela mortalidade), o narrador-personagem elimina, pelo sumário narrativo, vários anos de sua vida (Durigan, 1995): “Aqui existe um salto de cinco anos e em cinco anos o mundo dá um bando de voltas. [...] Fui feliz nas primeiras tentativas e obriguei a fortuna a ser-me favorável nas seguintes” (Ramos, 1997, p.37-38).
No décimo-primeiro capítulo, inicia-se a segunda fase do plano da conquista: a fase da conquista "amorosa": “Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. [...] o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo” (Ramos, 1997, p.57). Aqui, a voz de Paulo Honório dialoga com o pensamento marxista, segundo o qual o homem, com o intuito de preservação da propriedade, desejou a sua função paternal, pois só assim transformaria a sociedade em um sistema patriarcal, em que os homens exerceriam papéis importantes e acabariam sendo os chefes ou mantedores das famílias, como também da propriedade. À mulher, caberia cuidar dos filhos, o que Madalena não faz: “O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória e Madalena : Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa, e pode o mundo vir abaixo. A criança esgoelando-se ! [...] Madalena tinha tido menino” (Ramos, 1997, p.124).
Perpassa esse conjunto discursivo tradicionalista a noção de definição de direitos e deveres e com eles os valores morais: o espaço da família, do lar, onde a mulher desenvolve docilidade, obediência, submissão e realiza o mito do amor materno.
Importa acrescentar ao conjunto a crítica à prática social da “diferenciação” de gênero que compunha a sociedade da época, manifesta pelo discurso do senso comum, e evocada em capítulo anterior: “Necessitando pensar, pensei que é esquisito este costume de viverem os machos apartados as fêmeas. Quando se entendem, quase sempre são levados por motivos que se referem ao sexo. [...] Dirijo-me a uma senhora, e ela se encolhe e se arrepia toda. Se não se encolhe nem se arrepia, um sujeito que está de fora jura que há safadeza no caso.” (Ramos, 1997, p.64). Conforme destaca Lagazzi (1988, p. 46), “o senso comum tenta afastar o perigo do novo, do diferente, para que as relações de poder se mantenham inalteradas. A ilusão do sujeito, que se coloca como centro de decisão, camufla a força coercitiva do senso comum e sustenta as relações de poder entre as pessoas” e faz que ele acredite “na autonomia da sua vontade”.
A frieza do conquistador ressurge no texto e, pela primeira vez, Paulo Honório permitirá que os personagens se expressem livremente. O predomínio dos diálogos sobre o discurso indireto faz emergirem das situações os personagens, tornando-os "vivos" para o leitor. Mas é Paulo Honório quem fala mais:
– Está aí. Resolvi escolher uma companheira. E como a senhora me quadra... [...]
– D. Glória, comunico-lhe que eu e sua sobrinha dentro de uma semana estaremos embirados: Para usar a linguagem mais correta, vamos casar. A senhora, está claro, acompanha a gente (Ramos, 1997, p.81).
A recorrência à modalidade obrigativa, imperativa, confere ao discurso do personagem Paulo Honório um tom autoritário, que conduz os seus interlocutores “reais” (D. Glória e Madalena) a aderirem a ele. Sua intenção de impor argumentos evidencia-se pelo emprego do operador argumentativo "está aí", com o qual é introduzida a pressuposição de que não há o que discutir, pois é ele quem manda. Reproduz-se, ali, a subordinação da mulher ao jogo de um poder ideológico e, sob certos aspectos, à confirmação dos “aparelhos” desse poder. O desejo de posse institui o objeto de uma posse virtual como um valor: Madalena representa, para Paulo Honório, o conhecimento. Apossar-se dela significa apossar-se do saber, um atributo que ainda lhe falta, a sua carência de base. No segundo enunciado, além do "está claro", que não deixa a D. Glória a possibilidade de rejeitar a "proposta", o uso do presente e do performativo demonstra-se também uma manobra discursiva: enuncia-se uma decisão que não admite recusa ou discussão, efeito que se confirma em "vamos casar" e "acompanha": atos modais que asseguram o poder do protagonista.
Nas palavras iniciais do décimo-sétimo capítulo, parece completar-se o plano da conquista: "Casou-nos o Padre Silvestre [...]" (Ramos, 1997, p.86). Consolida-se o casamento como prática social legítima, institucionalizada, circundada pelos valores da ascensão social e de uma possível realização. A forma sintética, a anteposição do verbo, a flexão temporal vêm atestar a objetividade e a frieza de Paulo Honório. A anteposição do verbo chama a atenção para o processo em si, deixando os sujeitos envolvidos para segundo plano e confirmando a posse.
A partir desse ponto, as alterações no curso da narrativa começam a acentuar-se, encontrando manifestações em vários recursos, dentre os quais a alteração aspectual e modal das formas verbais que, antes predominantemente perfectivas e imperativas ou veredictórias, vão-se caracterizando mais pela imperfectividade e pela modalidade dubitativa (Durigan, 1995). Com as primeiras palavras de Madalena após o casamento, a narrativa ganha outro impulso: "– Vamos começar vida nova, hem?" (Ramos, 1997, p.87).
O ator homem, que, até então, dominara, passa a disputar lugar com Madalena, mulher, como se pode inferir da perífrase modal sobre a qual se estrutura a fala dela. Em "vamos começar", entra em jogo outra determinação, outra autoridade, outro poder. Observa-se que Madalena pergunta afirmando, fazendo sobressair de seu discurso o desejo de evitar o autoritarismo do marido e a sua convicção de que as coisas vão mudar. O operador "hem", além de criar a expectativa de confirmação, pode fazer predominar uma argumentação baseada no crer (eu acho; portanto é possível), fazendo emergir um “nós” inclusivo, representativo de um pensar coletivo (homem e mulher), ou, então, caracterizar o enunciado como uma advertência, como uma questão provocante, com reservas reveladoras, em que o “nós” é exclusivo, marca de uma nova autoridade e um novo poder. E é exatamente nessa ambigüidade que a figura feminina, historicamente marcada pela equivocidade, assume um (outro) lugar de “poder”. É a primeira vez que o “eu” cede lugar ao “nós”, desconstruindo o servilismo feminino. Ali se confundem enunciados, modos de falar, linguagens, perspectivas semânticas e axiológicas entre os quais as fronteiras formais desaparecem, e as palavras da mulher instalam em Paulo Honório as sementes do conflito: "Desde então comecei a fazer nela algumas descobertas que me surpreenderam" (Ramos, 1997, p.87).
As “descobertas” do protagonista concentrar-se-ão nos conhecimentos (o saber) e no caráter humanitário da esposa (que se apieda dos empregados e lhe questiona os métodos), o que o faz sentir uma ameaça à hierarquia fundamental da propriedade e deflagra as primeiras rupturas, marcadas pelos articuladores de disjunção "mas" e “e”. A partir dali, passa a desenhar-se um novo espaço, um novo território no imaginário-discursivo, rompendo, assim, com a lógica de um locus oligárquico-conservador, para ser construída discursivamente a lógica da incerteza, da instabilidade, valores fundantes da modernidade.
Paulo Honório começa por atribuir a si a culpa pelo fato de Madalena não se haver revelado inteiramente e, em seguida, questiona a validade de sua história. Pela primeira vez, admite haver falhado, submetendo-se a uma força ainda indefinida: "Com efeito, se me escapa o retrato moral de minha mulher, para que serve esta narrativa? Para nada, mas sou forçado a escrever” (Ramos, 1997, p.92). O personagem declara seu desejo reprimido de influir nos rumos da história e reduz-se “a mera figura de papel, personagem de personagem”, insinuando-se como “desdobramento metafórico dos outros personagens”. A modalidade dubitativa, que perpassa o enunciado, aliada à construção em voz passiva, opõe o personagem decidido e objetivo ao personagem cheio de incertezas, cujo querer transfere-se para o plano das modalidades deônticas (ser obrigado a). (cf. Durigan, 1995)
O servilismo feminino começa a ser posto em xeque, porém a dominação masculina assume sutilmente um outro discurso, a partir de outro ponto de referência:
[...] ela nasce no interior do consentimento, quando a incorporação da linguagem da dominação é reempregada para marcar uma resistência. Assim, definir os poderes femininos permitidos por uma situação de sujeição e de inferioridade significa entendê-los como uma reapropriação e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação masculina, contra o seu próprio dominador. (Samara, 1997, p.72)
A mulher conquista o território da fala, da expressão, o que ainda não significa, todavia, romper com a dominação masculina; pelo contrário esta acontece pelo convencimento, pelo argumento e pela auto-permissão por parte das mulheres. Madalena ganha voz no texto:
– O seu oferecimento é vantajoso para mim, seu Paulo Honório, murmurou Madalena. Muito vantajoso. [...]
– Não fale assim, menina, E a instrução, a sua pessoa, isso não vale nada? [...] Se chegarmos acordo, que faz um negócio supimpa sou eu. [...] Madalena soltou o bordado. (15, 89)
Parece que nos entendemos. Sempre desejei viver no campo, acordar cedo, cuidar de um jardim. Há lá um jardim, não? Mas por que não espera mais um pouco? Para ser franca, não sinto amor. [...] Imaginei-a uma boneca da escola normal. Engano (Ramos, 1997, p.95).
Os posicionamentos de Madalena nesse momento da obra condizem com os padrões comportamentais da época, naturalizando e generalizando a “crença”: o casamento surge, também para ela, como um negócio, sinônimo de estabilidade financeira e segurança, “oferecidas” pelo homem provedor. Há, pois, o reconhecimento do poder do outro, reforçando-se práticas sociais burguesas, o que, no entanto, vai ser alterado: “Conheci que Madalena era boa em demasia, mas não conheci tudo de uma vez. Ela se revelou pouco a pouco, e nunca se revelou inteiramente. A culpa foi minha, ou antes, a culpa foi desta vida agreste, que me deu uma alma agreste” (Ramos, 1997, p.100).
O poder hegemônico, aquele “equilíbrio instável”, vai trazer, para o confronto com Paulo Honório, uma mulher não serviçal do lar, do marido e do filho; uma mulher cuja identidade (político-feminina) vai começar a projetar-se como (outra) autoridade, desmantelando as identidades femininas coletivas, que negavam a transformação e formação da condição humana, particularmente da mulher. A “identidade” de Madalena não era comum às mulheres da época, na visão de Paulo Honório:
As amabilidades de Madalena surpreenderam –me . Esmola grande. [...] Paciência. Eu não devia esperar esses sobejos – e o que viesse era lucro.
[...] – Com certeza, disse ela bastante perturbada. Esqueci que os dois eram empregados e deixei escapar aquela inconveniência. [...]
[...] Madalena ouviu atenta, aprovando, com modos de menina bem-educada [...].
Por insistência dela , dei-lhe ocupação:
– Faça a correspondência. Quer ordenado? Perfeitamente, depois combinaremos isso (Ramos, 1997, p.104-6).
Nesses fragmentos, notamos que a bondade humanitária de Madalena já não é vista por Paulo Honório como um bom atributo, mas sim como uma “esmola grande”, expressão que remete ao dito popular “Quando a esmola é demais, o santo desconfia”, antecipando imagens que se vão produzir no desenvolvimento do romance. Ele a vê, agora, “com modos de menina bem educada”, capaz de obedecer e de reconhecer a superioridade masculina.
Ocorre, neste ponto do romance, a “mitigação” ou “ocultamento”, meios pelos quais também se exerce algum grau de dominação (Abril, 2007, p.122). Produz-se, no fragmento, a ilusão de que os atores sociais saem do contexto comunicativo de confronto para o de cooperação: de combatentes, passam a reguladores e mediadores. Na escolha do item lexical “ocupação” – e não “profissão” –, ressurge, porém, o mito da inferioridade feminina e o discurso da superioridade masculina: é ele quem lhe dá uma “ocupação” – o que evoca “desocupada” – para evitar o ócio. Não se trata de oferecer-lhe um emprego (pelo qual ela teria direito a um salário), porque ele não a reconhece (não quer fazê-lo) como profissional; não se trata de pagar-lhe um salário, mas de “combinar” um “ordenado”, cujo valor será decidido e ordenado por ele, garantindo-lhe a soberania. Uma concessão do homem à mulher, com a qual ela concorda.
No conjunto discursivo que segue, é visível que a preservação dos costumes, da divisão de tarefas e com eles a definição dos papéis para os homens e mulheres nos afazeres domésticos sofre mudanças. Parece haver uma queda da imagem do ser masculino como o provedor, o racional: a família é fragmentada; a economia familiar não é mais sustentada apenas pelo homem, pois a mulher também é provedora economicamente, alterando assim as relações de poder/saber, compondo um novo quadro imagético-discursivo. Por alguns instantes, o narrador (con)cede o espaço de enunciação à mulher:
Pela manhã Madalena trabalhava no escritório, mas à tarde saía a passear, percorria as casas dos moradores. [...].
[...] Foi à escola, criticou o método de ensino do Padilha e entrou a amolar-me reclamando um globo, mapas [...] Seis contos de folhetos cartões e pedacinhos de tábua para os filhos dos trabalhadores. [...] Calculem. Uma dinheirama tão grande gasta por um homem que aprendeu leitura na cadeia, em carta de ABC, em almanaques, numa bíblia de capa preta, dos bodes. Mas contive-me [...] porque tinha feito tenção de evitar dissidências com minha mulher e porque imaginei mostrar aquelas complicações ao governador quando ele aparecesse aqui. Em todo o caso era despesa supérflua (Ramos, 1997, p.106-107).
Ocultando o ator, pela estratégia discursiva do discurso indireto, o narrador mostra, da perspectiva de Paulo Honório, as “coisas” da educação: despesas supérfluas, conflitantes com o ideal de lucro. E novamente surge a imagem do homem capaz de fazer concessões em favor da “harmonia”, legitimando seu poder. Na estratégia narrativa do diálogo com o narratário, evidencia-se a busca de cumplicidade (“Calculem”), num jogo de manipulação e de “naturalização” de sua crença. Acrescente-se que ele procura justificar e legitimar seu discurso pelo argumento de que a falta de formação intelectual não lhe compromete o saber e o poder. Esse saber-poder que ele “possui”, prático, imediatista, provém das experiências vividas, deslocando-se a questão da aprendizagem para o universo das classes populares, afastadas da educação convencional. Os almanaques, produtos vazios, fúteis, representam a “democratização” da literatura e põem à mostra a falta de instrução formal do protagonista; a Bíblia surge como fonte da visão da mulher como submissa ao marido; os ABC, por seu turno, insinuam as ambíguas relações de poder e dominação que se constroem no romance, pois se trata de “epopéias caboclas” cujos personagens são homens insubmissos ao mandonismo nordestino, mas que, quase sempre, ocultavam sua vinculação às próprias oligarquias.
Na seqüência, a voz feminina emerge no confronto com o proceder de Paulo Honório:
– É horrível! Bradou Madalena.
Horrível! Insistiu.
– O seu procedimento. Que barbaridade! Despropósito. [...]
– Como tem coragem de espancar uma criatura daquela forma? [...]
– Ninharia, filha. Está você aí se afogando em pouca água. Essa gente faz o que se manda, mas não vai sem pancada. E Marciano não é propriamente um homem.
[...] – Eu sei lá. Foi vontade de Deus. É um molambo.
– Claro. Você vive a humilhá-lo.
– Protesto! Exclamei alterando-me. Quando o conheci, já ele era molambo.
– Provavelmente porque sempre foi tratado a pontapés.
– Qual nada! É molambo porque nasceu molambo. [...]
– Fiz aquilo porque achei que devia fazer aquilo. E não estou habituado a justificar-me, está ouvindo? [...]
– Ora por que apanhando flores, homem! Olhe o relógio.
– Foi a d. Madalena que mandou tirar umas rosas.
– Você é jardineiro? A d. Madalena não dá ordens. Você anda gastando o tempo com falatórios!
O pequeno berrava como bezerro desmamado. Não me contive: voltei e gritei para d. Glória e Madalena :
– Vão ver aquele infeliz. Isso tem jeito? Aí na prosa, e pode o mundo vir abaixo. A criança esgoelando-se!
Madalena tinha tido menino.
Representa-se, na seqüência, a assunção, por Madalena, de um lugar no discurso e de uma voz, de um novo ethos, de que decorre seu “esquecimento” do papel de mãe, confrontando-se com a “ordem”. Por outro lado, evidencia-se o sistema capitalista (questionado e não legitimado por ela), que, à medida que aperfeiçoa o processo de obtenção de lucro, estabelece novos valores sociais – mas não humanos.
Nas falas de Paulo Honório, é possível constatar os mitos da identificação, da “quantificação da qualidade” e da constatação mencionados por Barthes (2003, p.243-8). Ali, o pequeno-burguês (figurativizado por Paulo Honório) é incapaz de imaginar o outro e, quando este se lhe apresenta, aquele o ignora ou o nega. Além disso, se o mito é econômico, toda qualidade é reduzida a uma quantidade, culminando na recusa de explicações.
Nos últimos enunciados, emerge a formação ideológico-discursiva da divisão do trabalho, porém, à mulher, além da responsabilidade doméstica e da educação dos filhos, é atribuída mais uma “obrigação”: calar-se e obedecer ao homem. Ecoam, aqui, fios do discurso marxista, segundo o qual a opressão surgiu com o sistema da propriedade privada, em que se instaura a relação patrão e empregado, senhor e escravo, aquele que tem e aquele que não tem. O capitalismo determina os papéis sociais e mantém uma divisão sexual do trabalho, reservando à mulher uma posição inferior.
Importa acrescentar que a “nova” mulher ocupa o espaço público, saindo “de casa”. Não é mais o masculino/exterior/ligado à inteligência e à tecnologia que tem o acesso simbólico à filosofia e à sabedoria, antes exclusivamente do homem, e sim o feminino/essência/interioridade. É como se, em uma pirâmide marxista invertida, os fatores econômicos, que implicam a formação das diferenças de classes, compusessem a superestrutura, no vértice.
Há, na seqüência, símbolos que, ao serem assumidos pelo protagonista como comportamentos de sua mulher, desvirilizam-no, pondo em evidência um sistema de referência que historicamente reforçou as divisões de gênero. Os enunciados acima constituem as imagens, as falas e comportamentos do ser masculino e do ser feminino. Segundo Guattari; Rolnik (1994, p.31-32), essa "subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro social” e é “adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais” e a “mutações de universos de valor e de universos históricos". Tal constatação remete às palavras de Bourdieu (2000, p.23): a "ordem masculina está, portanto, inscrita tanto nas instituições quanto nos agentes, tanto nas posições quanto nos dispositivos, nas coisas (e palavras), por um lado, e nos corpos, por outro lado".
No vigésimo-quarto capítulo, concentra-se um outro ponto nevrálgico da narrativa. A tensão que se vai instaurando em Paulo Honório conhece, em seguida, uma atenuação, Essa estabilidade exterior contrapõe-se, porém, àquilo que há no íntimo de Paulo Honório e que se revela no discurso do narrador-personagem, intercalado aos diálogos e presente na narração de fatos exteriores: "Sim senhor! Conluiada com Padilha e tentando afastar os empregados sérios do bom caminho. Sim senhor, comunista! Eu construindo e ela desmanchando." (Ramos, 1997, p.119). Madalena seria uma ameaça à hierarquia fundamental da propriedade, formação ideológica que encontra eco na voz dos amigos, a que intercala seus “pensamentos”:
– É a corrupção, a dissolução da família, teimava Padre Silvestre.
[...]
Qual seria a opinião de Madalena?
– Aí Padre Silvestre tem razão, concordou Gondim. A religião é um freio.
[...]
Qual seria a religião de Madalena? Materialista.
[...]
Mas mulher sem religião é horrível. Comunista, materialista. Bonito casamento! Amizade com Padilha, aquele imbecil. Palestras amenas e variadas. Que haveria nas palestras? Reformas sociais, ou coisa pior. Sei lá! mulher sem religião é capaz de tudo (Ramos, 1997, p.119/20).
O espaço público daquele momento histórico é, pela visão de Paulo Honório, vivido por mulheres transgressoras de determinados valores, que desafiam os dispositivos de poder dos homens. Enquanto estereótipo, o feminino é visto e dito como um ser traiçoeiro, que divide, separa, desestrutura, provoca o caos, desordena, enquanto o homem, o masculino, seria a força ordenadora, estável, construtiva. (Albuquerque Júnior, 1998, p.12). O emprego modal do futuro do pretérito, exprimindo dúvida, vem denunciar um Paulo Honório completamente diferente daquele que enfrentava com segurança todos os empecilhos, dados que se vão acentuar gradativamente no desenvolvimento do texto: “Confio em mim. Mas exagerei os olhos bonitos do Nogueira [...]. Pensei [...] neste rosto vermelho de sobrancelhas espessas. Cruzei descontente as mãos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura. Misturei tudo ao materialismo e ao comunismo de Madalena - e comecei a sentir ciúmes” (Ramos, 1997, p.121).
Nesse ponto da história há, explicitamente, um conjunto de motivos dinâmicos que destroem o equilíbrio da situação inicial e provocam a ação em direção ao clímax, determinando o desenrolar da história. A “visualidade” presente no texto tem mais o propósito de tornar palpáveis as imagens, do que de apresentar uma proposta descritiva. Os processos de natureza distinta que se interpõem entre "Confio em mim" e "comecei a sentir ciúmes" apenas fornecem elementos para a síntese em "e comecei a sentir ciúmes". Observe-se que há um confronto físico inicial entre ele e Nogueira. Do confronto físico passa à reflexão ("pensei"), que vem explicar o "exagerei"; da reflexão passa a uma atitude que revela sua inquietação de espírito ("cruzei descontente as mãos") e, ao mesmo tempo, um confronto com Nogueira ("mãos enormes, cabeludas, endurecidas em muitos anos de lavoura").
A relevância desse começo do sentimento e a noção do caráter ininterrupto do "sentir ciúmes" vão refletir-se no discurso do narrador, que inicia o vigésimo-quinto capítulo com a frase que encerra o anterior: "Comecei a sentir ciúmes" (Ramos, 1997, p.121). O ciúme progredirá acentuadamente, enquanto a monotonia das coisas exteriores fará o "pano de fundo". A narração dos fatos que constroem, pelo imperfeito (durativo), o quadro monótono, é interrompida por uma frase exclamativa, a que seguem construções com verbos no presente: “Madalena contava fatos da escola normal. [...] A escola normal! Na opinião do Silveira, as normalistas pintam o bode [...]. As moças aprendem muito na escola normal. [...]Não gosto de mulheres sabidas. [...] Tenho visto algumas que [...] conduzem um marido ou coisa que o valha.[...] Madalena, propriamente, não era uma intelectual. Mas descuidava-se da religião, lia os telegramas estrangeiros" (Ramos, 1997, p.122-123).
Ao registro dos acontecimentos, como um passado, sob forma de discurso indireto (desenvolvido pelo narrador), segue-se, sem qualquer mediação, a enunciação de fatos pelo próprio personagem, como um presente e sob a forma de indireto livre. O sentimento de posse malogrado agora se volta para o passado de Madalena, intelectualmente superior a ele (Paulo Honório), instalando o receio de que se inverta a posição de mando. O efeito de naturalização das crenças retorna ao texto, e a identidade social de Paulo Honório imbrica-se com as representações da realidade criadas por ele e com as relações sociais que se articulam.
As formas verbais imperfectivas, a modalidade dubitativa e o discurso indireto-livre vão imitar a maneira como a mulher lhe surge aos olhos e às representações: “Até com o Padilha! [...] A questão social. [...] Eu tinha razão para confiar em semelhante mulher? Mulher intelectual. [...] Há lá marido que saiba nada?” (Ramos, 1997, p.123-124). “[...] Mulher de escola normal!” (Ramos 1997, p.126). O mal-estar que causa em Paulo Honório a superioridade intelectual de Madalena é uma constante que lhe assalta o espírito, anunciada lá no segundo capítulo “Ora vejam. Se eu possuísse metade da instrução de Madalena, encoivarava isto brincando. Reconheço finalmente que aquela papelada tinha préstimo” (Ramos, 1997, p.10). A frase exclamativa e irônica “Mulher de escola normal” introduz mais um “motivo”, ancorado no senso comum. Importa destacar que, pela primeira vez, Madalena confronta-se com ele no mesmo “nível”, pondo à mostra outros traços identitários: a não-submissão, o poder de luta, resistência e enfrentamento, uma tentativa de simetria de poderes, de que vai derivar a autoavaliação de Paulo Honório: “Acariciar uma fêmea com semelhantes mãos! Que sobrancelhas! [...] Sem me barbear! Que desleixo!” (Ramos, 1997, p.127).
Paulo Honório parece ver-se em espelho, centralizando sua preocupação em detalhes que lhe desvalorizam os caracteres físicos apresentados com orgulho no início do romance. A fixação do protagonista no objeto "mãos" adquire uma relevância até impressiva no contexto. O pormenor carrega sobre si a totalidade da significação física e moral dela derivada: as mãos enormes e grosseiras são uma espécie de substituto daquele para quem o fazer e o ter eram os valores essenciais. Também o rosto é objeto de análise, pois que elemento de identificação do ser por si mesmo e pelo outro. (Durigan, 1995)
Logo após essas digressões, Paulo Honório relata o desentendimento mais sério entre si e Madalena (ela o chama de “assassino”), ocasionado por uma carta que a mulher não lhe permite ler. É possível visualizar, novamente, imagens que identificam ou rotulam as mulheres que transitam na obra, “espaço” diferente daquele vivido pelas mulheres “do lar”, como se verificou em passagens anteriores. As relações que se estabelecem entre a palavra "assassino", a referência às mãos e ao caso do Jaqueira, a princípio incompreensíveis para o leitor, parecem explicar-se na história encaixada que o narrador resume: a mulher do Jaqueira traía-o, Jaqueira fez "justiça" com as próprias mãos e foi considerado assassino.
O vigésimo-oitavo capítulo é construído, integralmente, por manifestações interiores de Paulo Honório, estruturadas em discurso indireto livre, revelando desconfianças ou dúvidas que se instalam nele. Por trás dos vários choques que vêm suscitando tensão, interagem os vários motivos (comunismo, materialismo, intelectualidade), por meio dos quais se filtram elementos sócio-culturais e ideológicos estabelecidos ao longo da narrativa e associados por uma relação de causalidade interna. Nesses momentos intermediários da história, o padrão estrutural de períodos tensos acarreta, no nível lingüístico, o contraste com a narração rápida dos primeiros capítulos, particularizados por uma linguagem mais estável, sem variação afetiva e de maior objetividade informativa, representando o contraste entre o Paulo Honório dos capítulos iniciais e o que ora se apresenta ao leitor.
No trigésimo capítulo, o texto vai realçar a distância entre o observador e o "objeto" observado: o narrador-personagem exagera na paisagem e na grandiosidade dele próprio e faz de Madalena um detalhe. Ele se posta no alto, como um deus, e se projeta como dono de tudo. O seu olhar como que faz as vezes de correlato da voz narrativa, impregnando o texto de sua sensação de domínio, da recuperação do poder:
“[...] Quinze metros acima do solo, experimentamos a vaga sensação de ter crescido quinze metros. E quando, assim agigantados, vemos rebanhos numerosos nossos pés, plantações estirando-se por terras largas, tudo nosso, e avistamos a fumaça que se eleva de casas nossas, onde vive gente que nos teme, respeita e talvez até nos ame, porque depende de nós, uma grande serenidade nos envolve.
[...] E se há ali perto inimigos morrendo, sejam embora inimigos de pouca monta [...], a convicção que temos da nossa fortaleza torna-se estável e aumenta. Diante disto, uma boneca traçando linhas invisíveis num papel apenas visível merece pequena consideração.” [...] (Ramos, 1997,142/3).
O fragmento encerra uma série de elementos modalizadores que adquirem valor argumentativo. Adjetivos, substantivos, advérbios, formas verbais, pronomes possessivos – alguns pospostos, o que lhes acentua o valor de posse –,todos os elementos lingüísticos, unidos no conjunto de relações sintagmáticas, vêm apontar para a pretensa superioridade e para o domínio que Paulo Honório voltaria a exercer sobre tudo e sobre todos. Observe-se, porém, que tudo é apenas aparente porque as impressões que vai tendo, enquanto contempla a paisagem, decorrem, única e exclusivamente, da perspectiva em que se coloca: ele só se vê "agigantado" porque se posta "a quinze metros do solo"; Madalena só é minimizada porque é menor (em termos físicos) do que o mundo que a cerca. A partir dali, a narrativa ora avança rapidamente, ora se retém, acompanhando os movimentos do protagonista masculino.
Configura-se, na seqüência, a montagem de um processo gradual de concretização das dúvidas sobre a infidelidade da mulher. O aparente desinteresse pela folha de prosa que encontra e que julga ser “carta a homem” oculta a verdadeira função que desempenha a carta (a de um leit motiv) que, como o pio da coruja, participa da trama. Ambos esses "objetos intradiegéticos" são elementos nucleares que asseguram a integridade da fábula, a sucessão cronológica e causal dos elementos narrados (Rissi, 1978), trazendo de volta ao texto o Paulo Honório violento. Ao pensar na "folha de prosa", o protagonista põe à mostra sua frustração diante da impossibilidade da posse do saber.
Na seqüência, o narrador compõe um quadro narrativo-descritivo em que se superpõem vários elementos exteriores: a vela, o luar, a porta, o vento, as folhas secas, os ladrilhos, o relógio parado, os galos, as imagens do oratório, bem como detalhes das ações de Paulo Honório. A paisagem aparece como um meio de dissolver a linearidade do tempo diegético, retardando a ocorrência do momento culminante e enfatizando o exterior-objetivo (Reis; Lopes, 1988). A tensão é, aparentemente, mínima. Repentinamente, por meio de uma seqüência de formas perfectivas, surge o ponto culminante (do capítulo e da história): “[...] Madalena estava estirada na cama [...]. Aproximei-me, tomei-lhe as mãos, duras e frias, toquei-lhe o coração, parado. Parado” (Ramos, 1997, p.151).
O relato que encerra o capítulo e esclarece ao leitor o teor da carta é, no entanto, um relato frio: “[...] Era uma carta extensa em que se despedia de mim. Li-a, saltando pedaços e naturalmente compreendendo pela metade, porque topava a cada passo aqueles palavrões que a minha ignorância evita. Faltava uma página: exatamente a que eu trazia na carteira, entre faturas de cimento [...]” (Ramos, 1997, p.152).
Ao representar eventos relativamente distantes, fazendo-os passar pelo filtro do relato, o imperfeito faz que os processos descritos percam muito de sua força. Não há aquela característica de atitude tensa; não há um discurso dramático, pois o parecer do personagem leva-nos a crer que os fatos relatados não o afetam diretamente; antes deixa transparecer uma espécie de indiferença (ou decepção) diante da confirmação do infundado de suas dúvidas.
Essa noção de indiferença é mantida nos períodos iniciais do capítulo seguinte: "Enterrou-se debaixo do mosaico da capela-mor. Vesti-me de preto; encomendei uma lápida [...]. Deixei a cama de casal e mudei-me para um quarto pequeno" (Ramos, 1997, p.152). A opção pela passiva pronominal (sintética) e a flexão de perfeito são recursos que reforçam o sintetismo do relato e põem em evidência o processo e não os seres, denunciando a ênfase ao exterior e à objetividade do protagonista, naturalizando a morte e causando, por instantes, a impressão de que o personagem vai retomar o mesmo ritmo de vida que os primeiros capítulos da obra caracterizaram. Ele ainda tenta fazê-lo, mas fracassa. E seu fracasso é efeito da autonomia da mulher, de sua capacidade de escolher o “fim” (ou começo?) de sua história: ao constituir-se, ao longo do romance, como não condicionada aos modelos patriarcais (morais ou simbólicos) de feminilidade, desmitifica-os; ao suicidar-se, posta-se como “dona” de sua vida, como artífice de seu destino, libertando-se do jugo masculino e des(cons)truindo o poder do outro. A morte da mulher (objeto, exterior) metaforiza a morte do saber do outro, de que ele queria apossar-se.
As ações não se alinham mais com regularidade. O narrador-personagem passa, então, a relatar seu declínio, tão vertiginoso quanto foi vertiginosa a ascensão: primeiro, D. Glória: “– E o senhor me prende? [...] Vou. [...]”; depois, Seu Ribeiro: "Passados alguns dias, Seu Ribeiro demitiu-se"; finalmente, Padilha e Padre Silvestre: “Enfim, quando a onda vermelha inundou o Estado, [Padilha] desapareceu subitamente. João Nogueira elucidou o caso: Padilha e Padre Silvestre incorporaram-se às tropas revolucionárias" (Ramos, 1997, p.158).
No trigésimo-quarto capítulo, o homem que vivera para executar, rápida e objetivamente, projetos definidos, com propósitos também definidos, (res)surge derrotado, passivo, levando uma vida sem objetivo: “O mundo que me cercava ia-se tornando um horrível estrupício. E o outro, grande, uma balbúrdia, uma confusão dos demônios, estrupício muito maior (Ramos, 1997, p.159).
Observa-se uma comparação entre o limitado mundo dele e o restante da sociedade. Nesses dois mundos, operam-se transformações que o afetam, mas contra as quais não tem capacidade para reagir, porque seu declínio não se liga apenas à situação dele, à solidão que impregna o mundo em que se enclausurou, mas também à situação de crise social provocada pela Revolução. A crise sócio-econômica do mundo que está além de sua propriedade vem repercutir sobre a sua propriedade, sobre os seus bens, num momento em que atravessa uma situação interior dramática que o impede de esboçar qualquer reação.
No trigésimo-quinto capítulo, apresenta-se, sintética e rapidamente, a decadência financeira do personagem. A junção da crise social com a sua crise particular vai conduzir Paulo Honório a abandonar a ação: "E cruzei os braços." (Ramos, 1997, p.163). O lema "trabalho", que simbolizava o seu vínculo com a vida – porque não extrovertia sentimentos –, desaparece. A falta de estímulo interior (provocada pela perda do poder e do saber) e a convulsão social (provocada pela Revolução) não lhe permitem mais apegar-se à vida pelo trabalho.
No último capítulo, podemos perceber a curva que caracteriza o percurso de Paulo Honório. Imitando, estruturalmente, a trajetória do personagem, o narrador reconta a história da composição: “Faz dois anos que Madalena morreu, dois anos difíceis. E quando os amigos deixaram de vir discutir política, isto se tornou insuportável. [...] Foi aí que me surgiu a idéia esquisita de, com o auxílio de pessoas mais entendidas que eu compor esta história. [...]” (Ramos, 1997, p.164).
Esse segundo início preenche os vazios intencionalmente deixados no segundo capítulo, evidenciando a curva que caracteriza a trajetória de Paulo Honório. Como no segundo capítulo (e no décimo-nono), aqui também aparece o "lugar narrativo", como uma espécie de "refrão interior" (Santos, 1984): "Desde então procuro descascar fatos, aqui sentado à mesa da sala de jantar, fumando cachimbo e bebendo café, à hora em que os grilos cantam e a folhagem das laranjeiras se tinge de preto" (Ramos, 1997, p.165). O homem dinâmico que não era "acostumado a pensar" (segundo capítulo), que não era afeito às sensibilidades (vigésimo capítulo), agora pára e reflete. Toma consciência da decadência física, moral e econômica e vê-se um monstro de corpo e alma, acabando por reprovar seus conhecimentos e características que, inicialmente, apresentara com tanto orgulho: “Sou um homem arrasado. Doença? [...] O que estou é velho. [...] Cinqüenta anos perdidos [...]. O resultado é que endureci, calejei [...] Cinqüenta anos!. Quantas horas inúteis!” (Ramos, 1997, p.165).
A ação anula-se para ceder lugar às interpretações subjetivas e à avaliação do passado, elaboradas agora no presente, que faz coincidirem o momento da enunciação e o momento do enunciado, trazendo à tona os processos existenciais. Aqui, o enunciador-narrador desmitifica o homem, à medida que lhe concede coragem para analisar-se, para despir-se dos traços que o afastam dos outros e de si mesmo, apontando para a necessidade de rever o mundo e de dialogar com ele. A auto-análise (crítica) e a observação do ambiente (que ocorrerá logo adiante) revela a “verdade” ao narrador-enunciador: o ser humano, se impelido e obcecado pelo material, está condenado ao fracasso, assim como a obra literária voltada essencialmente para o exterior-objetivo (Kandinsky, 1987).
É pertinente, aqui, uma observação de Bosi (1988, p.44): "o sujeito se encolhe e se apassiva, torna-se objeto de uma construção em que o agente não é mais sua pessoa, mas o olhar do outro, causa de uma ação interna que tudo avassala." A passividade e a carência de poder e de saber encontram uma representação visualizável no jogo de aspectos verbais que se opera numa das passagens mais expressivas da obra, em que o enunciador olha para as coisas exteriores e mostra o espaço exterior despojado de qualidades duradouras e inalteráveis: "O jardim, a horta, o pomar - abandonados; os marrecos de Pequim - mortos; o algodão e a mamona - secando. E as cercas dos vizinhos, inimigos ferozes, avançam" (Ramos, 1997, p.166).
Esse segmento representa a decadência econômica e a perda do poder; reflete o espaço exterior subjetivamente integrado na ação e no interior do protagonista; por outro lado, mostra-nos, no jogo com os processos materiais e relacionais, o avesso: o personagem apresenta-se, agora, como um mero observador, incapaz de mudar o rumo dos fatos consumados e de conter a degradação do espaço exterior, que lhe afeta a existência.
O narrador controla a imagem por meio da palavra, sugerindo um mundo fragmentado, imagem das condições sociais do homem massacrado pelo modo de produção capitalista. Ao lado do sentido de fragmentaridade, o texto detém, ainda, um tom impressionista, à medida que apresenta um sujeito receptivo e contemplativo, com um ponto de vista de expectativa e não de participação: “Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo. [...]. Foi este modo de vida que me inutilizou” (Ramos, 1997, p.170-1).
Na incessante procura de alguém que, solidário, pudesse ajudá-lo a desvendar os enigmas de seu "eu", Paulo Honório constata que apenas em si mesmo suas indagações terão resposta. Metaforicamente, ressoa ali, também a voz do autor: o capital destrói o lado humano do ser, e a obra literária é (naquele momento histórico, em especial) o meio de expressão do homem, paradigma dos homens. Esses enunciados denunciam claramente a desconstrução de imagens anteriores, formando subjetividades, definindo as relações de gênero e rompendo com o silêncio ou a negação do ser mulher.
Embora não se encontrem, explícitos no texto, enunciados de cunho eminentemente político, pode-se entrever o Estado como formação discursiva institucional, ou seja, como lugar da subserviência, da submissão do indivíduo ao poder, com o predomínio do sistema moralista (representado por Paulo Honório); como organização coercitiva (representada por Paulo Honório), caracterizada pela liberdade decretada (e não pela liberdade compartilhada, como a que desejava Graciliano), em que a obediência é vista como alienação (os empregados da fazenda) e em que não existe liberdade individual (os empregados dependem de Paulo Honório, e Madalena busca a libertação pelo suicídio).
Contrastando-se com os capítulos iniciais da obra, o desfecho é lento: "E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos" (Ramos, 1997, p.171).

4. Considerações finais
Partindo do mundo das relações (personagem versus mundo circundante), o narrador de São Bernardo procura chegar à sua "verdade" e à "justificação" da condição humana diante da vida, denunciando o processo de desumanização do homem provocado pelas relações de produção semi-feudais e capitalistas executadas no universo microcósmico da fazenda São Bernardo e representadas no romance.
No nível textual, focalizamos as ações e falas dos “atores” principais – Paulo Honório e Madalena –, que constroem, como sujeitos sociais, imagens de si mesmos, do outro e da realidade, formando redes de significados e, pois, participando de uma prática social ativa, materializada no discurso em contextos comunicativos de confronto (oponentes) e de cooperação (como reguladores ou até mediadores). A aparente “guerra de sexos”, ou a aparente luta de gêneros, desliza para uma dialética de oposição e consenso, pois a tônica do conflito recai mais nas relações de poder do que na presumida rivalidade de grupos sociais homogeneamente definidos. Assim, no texto de São Bernardo, a criação literária elabora-se onde se mesclam palavras e ser, onde a palavra "fala" e "liberta", articulando-se ao inevitável conflito do homem angustiado, permitindo que o leitor identifique, na "abertura" do texto (apresentada no presente da escritura), diversos elementos que vão governar o drama (ou tragédia?).
Paulo Honório, por suas características etnográfico-culturais, define-se como um tipo tradicional, em defesa de um passado também tradicional, patriarcal, versus o moderno, numa sociedade em que a mulher já começava a insinuar-se como sujeito. Em todo o processo de construção da fazenda e do indivíduo (ambos situados no Nordeste) que habita esse espaço, identificamos imagens e valores que caracterizam um universo sempre rural, tradicional-masculino, opondo-se à imposição do urbano, moderno-industrial e feminino. A segunda parte do romance traz uma nova construção discursiva: trata-se da lógica da instabilidade, de um (novo) mundo, pautado pelos valores da modernidade: desfazem-se princípios, regras, valores, práticas, realidades, identidades. O nordeste desaparece, para ceder lugar às influências externas, aos valores da modernidade, aos cruzamentos das relações de poder e saber que se produzem e se reproduzem a cada momento histórico e para dar visibilidade (e dizibilidade) às relações de gênero. São efeitos produzidos no cruzamento das relações poder/saber, agenciando comportamentos e imprimindo subjetividade em cada momento histórico e em lugares e regiões que vão perdendo suas fronteiras, produzindo rupturas nas imagens, nas falas do ser homem e do ser mulher que até então habitavam o Nordeste e o país.

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3 Cada fragmento citado é seguido do número do capítulo e da página (entre parênteses) de onde foi extraído na edição consultada.
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