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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

LIMA BARRETO E A MULHER

Carlos Erivany Fantinati1
Abstract: The objective of this paper is to delineate the conception of woman in Lima Barreto’s work, and to understand the “inexplicable contradiction” of author about women and your deficiency to create feminine types.
Keywords: Lima Barreto, woman, feminism
Resumo: O objetivo deste trabalho é delinear a concepção de mulher nos textos de Lima Barreto e tentar, a partir dela, compreender a “contradição inexplicável” do autor em relação às mulheres, bem como sua deficiência na criação de tipos femininos.
Palavras-chave: Lima Barreto, mulher, feminismo

1. Duas leituras
Na bibliografia de artigos e ensaios que Otto Maria Carpeaux arrolou sobre a obra de Lima Barreto, encontra-se somente uma publicação que aborda o problema da mulher. Trata-se do artigo de Luís Martins, “Lima Barreto e o Feminismo”, no qual este autor assinala uma contradição no criador de Numa e a Ninfa ao dizer que, se de um lado, ele defende a mulher contra o direito mais ou menos consuetudinário de o marido matá-la em caso de adultério, de outro, coloca-se numa posição agressivamente antifeminista quando ao fim dos anos dez surgem movimentos de reivindicação dos direitos da mulher. A essa “incompreensível contradição” Luís Martins dá explicações que, se podem ser considerada satisfatórias, do ângulo que estuda a questão, não aclaram, todavia, o problema fulcral: a concepção que o autor de Clara dos Anjos tinha sobre mulher, através da qual se compreende melhor as atitudes tomadas por ele.
Francisco de Assis Barbosa em sua biografia de Lima Barreto aborda também, agora já do ponto da criação artística, a galeria de personagens femininas para afirmar que, “ao contrário dos personagens masculinos, de traços vigorosos, gente viva de carne e osso, as mulheres que transitam em seus romances são apenas desenhadas, vagas, imprecisas, faltando-lhes a densidade, por culpa talvez desse desconhecimento (ele próprio havia de reconhecer que a sua experiência nesse particular-mulher era nula) da alma feminina”. Essa biografia é também insuficiente, pois as personagens femininas de Lima Barreto, bem ou mal logradas, exprimem na verdade uma concepção da mulher, manifestada em mais de um artigo e também na sua produção ficcional.
Ambas as explicações, nos parecem assim, insatisfatórias por não chegarem a captar o ponto de vista, mediante o qual a mulher é concebida e abordada em seus textos. Buscará o nosso trabalho, portanto, nesse primeiro momento, delinear a concepção de mulher nos textos de Lima Barreto e tentará, a partir dela, compreender a chamada “contradição inexplicável”, bem como a reclamada deficiência na criação de tipos femininos em sua obra.

2. O papel da mulher junto ao homem
Desconsiderando por ora algumas referências rápidas que encontramos no Diário Íntimo, o primeiro artigo de Lima Barreto sobre a mulher surge em 27/04/1911. Sob o título “A mulher brasileira”, publicado na “Gazeta da Tarde”. Nele, após troçar dos oradores que tomam a palavra ao fim dos banquetes familiares e públicos para exaltar as qualidades da mulher brasileira, pergunta se seriam elas merecedoras de “tantos gabos” e põe-se, a seguir, a examinar o problema. Coloca em confronto a mulher européia e a brasileira tirando uma série de conclusões em que sobressai a primeira em detrimento da segunda. Baseando-se em suas leituras na observação, aponta na mulher européia qualidades várias que vão desde a sua atuação no lar junto aos filhos até a influência marcante na formação dos grandes homens. Seu ponto de partida é o livro de Mme. D’Epinay, Memórias, no qual ela relata sua ascendência sobre Grim, Diderot e Rousseau. O que, segundo Lima Barreto, muito contribuiu para o desenvolvimento desses homens. Ao lado dessa autora, elenca outras como Mme. Houdedot, a Marechala de Luxemburgo, Mme de Warens, que, no convívio com homens notáveis do seu tempo, intervieram favoravelmente no aprimoramento deles. “Há mesmo – diz ele – um pululamneto de mulheres superiores [no século XVIII francês] que influem, animam, encaminham homens superiores do seu tempo [delas]” (Barreto, 1961a, p.50).
Essa comunhão nas idéias e nos anseios entre mulheres e homens, benéfica para estes, registra ainda na intimidade espiritual – “perfeitamente espiritual” (Barreto, 1961a, p.51) – de que gozou Balzac com sua irmã Laura Sanille, nos seus duvidosos e tenebrosos anos de aprendizagem.
A partir de leituras e de observações, Lima Barreto cria uma certa representação da mulher européia como um ser em permanente contacto espiritual com o homem, influindo sobre sua formação enquanto criança, em intimidade com ele quando adulto, e que, no papel de mãe, irmã, esposa e mesmo amante, o protege e o consola durante toda a vida.
A admiração e o respeito que tem por essa mulher européia patenteia-se no epíteto “superior” com que a qualifica, epíteto este tão caro ao autor e de reduzido emprego em sua obra, constituindo-se de fato um verdadeiro parâmetro, por meio do qual exterioriza sua opinião positiva sobre a espécie humana, dividindo-a em entes superiores, merecedores de sua admiração, e os que aí não se enquadram, sendo por ele depreciados. O papel das mulheres, concernente aos influxos sentimentais sobre o homem, não só se faz notável em qualquer homem, mas em especial junto ao “homem superior”, aquele que tem na vida por móvel um ideal elevado, altruísta e que por isso sofre profundamente as frustrações advindas do choque das suas idéias com a sociedade, opositora aos esforços de concretização dos seus sonhos.
Mais de uma vez o escritor tece considerações sobre tal modelo humano. Em artigo de 06/01/1915, comenta sua admiração pelo Dr. Honório Meneleque, cujos projetos e idéias convergem para a realização de um ideal. Sobre essa fidelidade e apego ao ideal como motivador da atuação na vida prática assim se manifesta em outra parte: “Gosto dos homens de uma única paixão” (Barreto, 1961b). Arrola como exemplo de tal categoria “os sonhadores, os grandes poetas, os grandes filósofos e sábios e acrescente – todos esses malucos como são chamados por essa gente prudente que lhes aproveita os estudos, as descobertas, as invenções regaladamente, sem o saber...” (Barreto, 1961c).
Outra peculiaridade de tal expoente da espécie humana é a sua marginalidade: (...) “o homem superior não se adapta” (Barreto, 1961d). E é sobre este que fala a epígrafe de Ernest colocada em Triste Fim de Policarpo Quaresma: “Lê grand incovéniet de la réelle et ce qui la end insuportable á 1’homme supérieur, c’est que, si 1’ on y transporte des príncipes ideal, les qualites deviennent dês defauts, si bien que fort souvent 1’homme accompli y réussit que celui qui a pour móbiles 1’egoisme ou la routine vulgar” (Barreto, 1959, p.23). Esse atributo vai servir-lhe como aferidor da obra de José Saturnino de Brito, na qual, encontramos poucas qualidades intrínsecas, louva a atitude fundamental a partir da qual é escrita: “não do egoísmo, mas sim do altruísmo” (Barreto, 1961e) – atributo que, pelo seu caráter social, considera fundamental no “homem superior”. A caracterização mais clara desse tipo humano ele a faz ao tratar do livro de Enéias Ferraz, História de João Crispim, em que a superioridade grandeza da personagem é a fonte de seus sofrimentos:
Há nessas almas, nessas almas homens alanceados muito orgulho e muito sofrimento. Orgulho que lhes vem da consciência da sua superioridade intrínseca comparada com os demais semelhantes que os cercam; e sofrimento por perceber que essa superioridade não se pode manifestar plenamente, completamente, pois há, para eles, nas nossas sociedades democraticamente niveladas, limites tacitamente impostos e intransponíveis para a sua expansão em qualquer sentido (Barreto, 1961f).
Marcado por essas qualidades excepcionais, originárias de sua aspiração voltada para o social e nunca para si, o homem superior, na sua luta pela promoção e aperfeiçoamento da humanidade, tem necessidade do amparo e apoio da mulher – entre por natureza sensível – nas decepções, quedas, desilusões e tristezas pelas quais passa na vida. Com ela ao seu lado desde a infância, “a alegria de viver vem e o sorumbatismo, o mazombo, a melancolia, o pessimismo e a fuga do real vão-se” (Barreto, 1961a, p.50).
Em sua obra de ficção, mais de um exemplo testemunha essas considerações. No conto O Filho de Gabriela, de 1906, o menino Horácio, depois da morte da mãe, por não poder mais entregar-se aos “abandonos de amizade, efusões de carícias e abraços” na sua nova vida em casa de madrinha, D. Laura, com a qual só é possível uma “respectiva e a distante amizade, raramente aproximada por um a carícia, por um afago”, cultiva cada vez mais a introspectiva e a evasão na natureza e na fantasia, acabando por ter uma crise psicológica em que se patenteia a cisão de sua personalidade. D. Laura, se, por um lado, não lhe fornece o total amparo, afetivo de que necessita, por outro lado, tange, com alguns predicados, a categoria de superioridade pelo apoio que lhe dá e pela crença no seu talento de superdotado, que procura desenvolver propicionando-lhe educação adequada, lutando por isso contra as objeções do abjeto marido, Conselheiro Calaça, padrinho de Honório.
Mulher e homem superiores são Olga – de origem italiana – e Policarpo Quaresma do romance Triste Fim de Policarpo Quaresma. Aquela é, em todo o romance, a personagem que, ao contrário das demais, tem simpatia pelas estranhas empresas de Quaresma, e sente nele “alguma coisa de superior, uma ânsia de ideal, uma tenacidade em seguir um sonho, uma idéia, um vôo enfim para as altas regiões que ela não estava habituada a ver em ninguém no mundo que freqüentava” (Barreto, 1959, p.58; grifo nosso). Unidos por grande afeição, embora contida, é a mesma Olga que, em oposição às outras figuras do romance, mostra-se com disposição para tentar compreender os motivos que levam Policarpo Quaresma a escrever o requerimento sobre a institucionalização da língua tupi como língua nacional, tão cheio de repercussões hilariantes e sofridas.
Não concordando com a visão estreita do pai, Olga compreende a atitude de Policarpo Quaresma naquele momento. Não só como afilhada, aberta sentimentalmente para tentar entender os atos audazes do padrinho e para revelar o seu idealismo ingênuo e grandioso, transita Olga pelo romance. Essa mulher, com razoável nível de educação, amante da literatura de Goncourt, Anatole France, Daudet, Maupassant, picada também pelo idealismo, é quem vai perceber com maior agudeza as causas que bloqueiam o desenvolvimento agrário do país e explicar a miséria em que vive a população rural: “E todas essas questões [existentes no campo] desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber e também a sua piedade e simpatia por aqueles parias maltrapilhos mal alojados, talvez com fome, sorumbáticos!...” (Barreto, 1961g, p.137).
Afora as figuras já enumeradas, podem ser mencionadas ainda, em Clara dos Anjos, D. Margarida Weber Pestana, de ascendência alemã, viúva de um mulato, amparando o filho Esequiel, com o “temperamento de heroína doméstica”; e no inacabado O Cemitério dos Vivos, Efigênia, a mais perfeita realização do ideal limado de mulher. Efigênia aparece no romance constantemente a pedir livros de literatura, romance, poesias ao tímido Vicente Mascarenhas, que até então só lera as grandes obras dos mestres recomendadas pelos positivistas. É por sua mão que descobre a literatura do seu tempo:
Como ia dizendo, porém, continue a emprestar livros a Dona Efigênia e mesmo lia alguns dos que emprestava, para saber conversar com ela sobre as suas leituras. Assim, pouco a pouco, fui vencendo o fingido desprezo que tinha pela literatura; e, quase, sem sentir, dei em me interessar pelas suas cousas. Deixei aquela falsa e tola atitude positivista de só falar em Shakespeare, Dante e Milton; e falei sem fingido pudor em outros autores, alguns menores, mas alguns tão grandes quanto aqueles. De há muito eu percebia, mas minha toleima infantil não queria dar o braço a torcer, confessá-la.A convivência com a moça tirou-me afinal desse empacamento de muar letrado (Barreto, 1961a, p.51).
A mesma Efigênia tomará a liberdade de convidá-lo para que se ela, cabendo-lhe, assim, a iniciativa que o introspectivo Vicente Mascarenhas, inábil com as mulheres, não teria. Depois de casados, o personagem-escritor continua com suas preocupações e projetos intelectuais sem saber que sua mulher os acompanha à revelia dele. Vez por outra ela interfere e faz-lhe admoestações e críticas que lhe captam o fundo das insatisfações de homem superior e, portanto, infeliz. É uma surpresa para ele, quando ela lhe fala claramente sobre o conhecimento dos seus esforços para realizar-se como escritor ou escritor ou quando lhe pergunta sobre o abandono de sua obra.
Eis aí a mulher superior, que, embora colocada à margem das inquietações literárias do marido, interessa-se por suas tentativas de criação, lendo-as, apoiando-as, julgando-as e mesmo propondo, em outro momento, que ele financie a publicação de sua obra por não ter editor. A morte da mulher consiste-se no momento de tomada de consciência da grandeza dela, que, desde o primeiro contato, só teve olhos para o grande homem que era Vicente Mascarenhas. Guiada em todas as suas ações pelo desejo de torná-lo realizado, Efigênia, coloca sua dedicação a esse homem superior, acima dos compromissos filiais e maternais. Após sua morte o compreende, enfim o quanto perdeu em não ter usufruído mais intensamente dessa influência benéfica, consagra só a ele.
Essas personagens femininas não só exprimem a concepção de mulher superior em Lima Barreto, essas também revelar aspecto fundamental da obra liniana: a importância que o romancista confere à inferência da mulher na infância do Ximem superior. Tal fato pode ser observado, no centro O filho de Gabriela, no amparo dado pela madrinha Laura ao afilhado Horácio, principalmente no plano educacional, e de D. Escolástica à criança mulata, Aleixo Manuel, em Vida e Morte de M.J.Gonzaga de Sá. No primeiro caso, não se evita, porém, o fracasso do menino. E, no segundo, há também a probabilidade de que este ocorra, apesar de o romance não desenvolver os anos de adolescência do personagem, ficando, porém, sugerido por via da similaridade tal possibilidade.
A influência feminina é fundamental não só na infância mas também durante toda a vida, pois, uma vez ausente o apoio afetivo e efetivo da mulher, o homem superior torna-se sentimental e psicologicamente “doente”, com a imaginação desenfreada, evadindo-se, em sucedâneos como o álcool e chegando mesmo a suicídio.Exemplifica tal fato Raul Pompéia, cujos suicídios e agressividade da obra, Lima Barreto explica hipoteticamente pela falta de influência feminina: “Não há em Raul Pompéia influência da mulher; e cito só esse exemplo que vale por legião. Se houvesse quem sabe se as suas qualidades intrínsecas de pensador e artista não nos poderiam ter dado uma obra mais humana, mais ampla, menos atormentada, fluindo mais suavemente por entre as belezas da vida?” (Barreto, 1961a, p.51).
A concepção positiva da mulher defendida por Lima Barreto parece ter como fonte mais suas leituras de obras estrangeiras do que a observação do meio brasileiro. Não é por acaso que Olga e Dona Margarida são na verdade de origem italiana e alemã as demais, embora brasileiras, são na verdade projeções ficcionais dos desejos do autor, “pois se nas obras dos nossos poetas e pensadores passa uma alusão dessa ordem, se nas obras dos nossos poetas e pensadores passa uma alusão dessa ordem, sentimentos que a coisa não é perfeitamente esta, antes o poeta quer criar uma ilusão necessária do que exprimir uma convicção bem estabelecida” (Barreto, 1961h, p.76; grifo nosso). Entende-se, então, de modo claro as razões, por exemplo, da não comunicação adequada entre Vicente Mascarenhas e Efigênia, bem como entre outros pares criados: o artista não podia conceber ter encontrado uma mulher superior na realidade nacional.
O esclarecimento desses pontos sobre a mulher parece que criam condições para se compreender melhor certos aspectos do homem Lima Barreto. Que tinha ele uma concepção elevada e superior de si não paira dúvidas, já que, em mais de uma passagem de sua obra jornalística e ficcional, isto aparece. Julga-se inicialmente superior aos seus no meio familiar e em especial às pessoas de cor. Nesse sentido, uma passagem do Diário Intimo, de 3 de janeiro de 1905, confessa simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor, mas não me é possível transformar essa simpatia literária, artística por assim dizer, em vida comum com eles, pelo menos com os que vivo, que sem reconhecerem a minha superioridade, absolutamente não tem por mim nenhum respeito e nenhum amor que lhes fizesse obedecer cegamente” (Barreto, 1961i; grifo nosso).
Durante toda a sua vida, o escritor fará confissões desse teor, reivindicando principalmente sua superioridade intelectual sobre os literatos e artistas do período em que escreveu. Ao estar próximo sua aposentadoria na Secretaria de Guerra, deixa publicar na “Revista Souza Cruz” de 29/12/1918, no qual exalta sua grandeza em relação à mediocridade do meio burocrata em que viveu durante quinze anos. Nessa publicação os seus predicados de homem superior são acentuados:
Quem fez nas primeiras idades uma representação de vida cheia de justiça, de respeito religioso pelos direitos dos outros, deveres morais, de supremacia do saber, de independência de pensar e agir tudo isto de acordo com as lições dos mestres e dos livros; e choca-se com a brutalidade do nosso viver atual, não pode deixar de sofrer até o mais profundo do seu ser e ficar abalado com esse choque para toda a vida, desconjuntado, desarticulado, vivendo dos trambolhões sem norte, sem rumo, sem esperança (Barreto, 1961a, p.50).
Esse artigo, bastante iluminador da alta concepção que esse “mulato genial” possuía de si, mostra que pautava sua vida pela não abdicação em nenhum momento dos ideais cultivados, o que o fazia colocar-se em constante atrito e mesmo embates com o mundo que o cercava, onde triunfavam, na vida burocrática e política, a platitude dos doutores; na literatura, o “helenismo de pacotilha” de Coelho Neto, o “Kitsch” de Paulo de Gardênia, e o “sorriso da sociedade” petropolitana e botafoguense de Afrânio Peixoto; e, na divulgação de nossa cultura no estrangeiro, seus desajetores Miguel Calmom e Hélio Lobo. Sente-se, porém, em toda a sua ausência da mulher que amenizasse as agruras e dores pelas quais passava.
Lima Barreto não encontrou apoio nas mulheres do seu meio familiar – em sua irmã, e na velha Prisciliana que toma o lugar da mãe-e não vê também qualidades de dedicação em nenhuma mulher daquelas que conhece. Seus textos, jornalísticos e literários, denunciam na verdade, o distanciamento nas relações entre homem e mulher. No plano literário, também isso acontece. Com exceção da relação entre Efigênia e Vicente Mascarenhas, no Cemitério dos Vivos, que não chega à comunhão plena de idéias e sonhos por culpa do ceticismo do último, as demais relações malogram, ou não se realizam plenamente, pela incapacidade das personagens femininas de superarem os obstáculos que impedem a aproximação.
A forma mais enfática de distanciamento entre a mulher brasileira e o homem superior ocorre no primeiro romance em que a convivência entre marido e mulher é a antítese da de Efigênia e Vicente. Nas Recordações, enquanto Isaías, no capítulo VI, empreende a “luta pela expressão” para conseguir realizar sua obra, a mulher interfere para gritar-lhe do quarto ”– Vem dormir, Isaías! Deixa esse relatório para amanhã” (Barreto, 1961j, p.121), demonstrando total alheamento do trabalho e das veleidades intelectuais do marido. Formas amenizadas de comunhão ocorrem entre D.Escolástica e Aleixo Manuel na Vida e Morte D. Laura e Horácio em O filho de Gabriela, Olga e Quaresma em Triste fim de Policarpo Quaresma resultantes dos travamentos gerados por convenções inibidoras, cultivadas pela sociedade familiar brasileira e transmutadas nas obras de ficção.
Se Lima Barreto confessa, como em citação já se evidenciou, que sua concepção elevada da mulher tem como fonte a leitura dos mestres estrangeiros, a concepção negativa do sexo feminino origina-se dos olhos atentos com que observa a realidade brasileira da época. Sua fidelidade a essa realidade constitui preocupação permanente, daí estar ele sempre atento a tudo que o rodeava. No Diário Íntimo e em alguns artigos vemo-lo a observar o meio nacional, a captá-lo pelos sentidos e transfigurá-lo em ficção e algumas vezes até a metê-lo brutamente na sua obra com prejuízos da própria composição como é o caso da “História do mestre Simão” em Triste Fim de Policarpo Quaresma. Como prova desse papel de observador atento e cuidadoso, alerta para a realidade, temos o fato de aproximar-se de um colega de secretaria que se mostrava estranho, para “observá-lo no interior” (Barreto, 1961i, p.53). Nas viagens, nos trens de subúrbios é todo atento para o que se lhe põe diante dos olhos e, na ida à Mirassol em 1921, acompanha as pessoas que ocupam o seu vagão, observando-lhes as discussões, os tiques, físicos, as reações e mentalidade.
A atenção dedicada à mulher da sociedade de sua época já se faz notar claramente no artigo de 1911. E é a partir desse conhecimento emanado da experiência, que vai traçando todo o perfil negativo da mulher brasileira, já que esta, em lugar de colocar-se no papel de confidente, de consolo e de incentivadora do homem revela-se, no plano da ação e atuação, muitas vezes uma edição piorada dos homens medíocres que compõem o sistema.
A sua birra e implicância com o anel dos formados constitui um motivo que se repete em muitos dos seus textos e que estende à mulher. No artigo “O Anel das Musicistas”, em que critica o desejo das moças em ter um anel de formatura, “de extremar-se do vulgo feminino”, recomenda ironicamente que o meio mais conveniente seria a tatuagem. O que aí, porém, constitui o cerne de sua atenção é a situação da música entre nós, em virtude de ser um campo da arte quase do domínio exclusivo do sexo feminino.
A música, entre nós é a única arte em que raramente aparece uma tentativa de criação. Entregue como está a moças, melhor, às mulheres, que em geral nunca em arte foram criadoras – estudam unicamente para o professorado – a arte musical em nossa cidade não dá nenhuma demonstração superior de nossa emoção, dos anseios e sonhos peculiares a nós. Limita-se a repetir trilhando os caminhos já batidos. Não há invento não há novidade (Barreto, 1961k).
Essa sua crença na incapacidade do espírito feminino de criar algo novo, de meramente repetir o consagrado, o consabido e o já existente, sem que se manifeste numa expressão que discrepe do rotineiro, é que constituirá o prisma através do qual verá principalmente a mulher brasileira. Sobre a mesma música, em 1914, e estendendo a outras áreas a que a mulher se dedica, assim se exterioriza: “As mulheres são extraordinariamente aptas para essas coisas de reprodução, de execução, de invenção, de ousadia intelectual fraqueiam” (Barreto, 1961l).
Para ele, portanto, a mulher brasileira não só falha no seu papel junto ao homem superior, a quem não dá o necessário apoio e proteção durante a vida, como também é, em geral, a manifestação mais inequívoca da incapacidade mental e intelectual do sexo feminino para realizar alguma coisa de grande no terreno da criação. Não teria ela nenhuma grandeza no terreno sentimental e nem no da originalidade. Isto, porém, não exaure a abordagem do problema feminino, nas produções de Lima Barreto.

3. As Relações Afetivas
Outros tópicos que com reiterada freqüência surgem na concepção limana sobre a mulher, e que se fazem necessário examinar, são o casamento, o adultério e o divórcio.
Quando se examinou a questão da mulher superior, destacou-se como parte mais enfatizada pelo romancista carioca a relevância dada ao papel da mulher como ente de sensibilidade a influir positivamente desde a infância na vida do homem, influência essa reputada indispensável, imprescindível para que o homem atingisse uma maturidade equilibrada e não se sentisse oscilante e se extremasse na fuga, na imaginação e no cultivo à evasão. Embora já no artigo de 1911, que nos serve sempre como ponto de referência, não se veja necessariamente como indispensável que esse papel só possa ser desempenhado pela mulher na condição de casada, e mesmo defenda, em casos excepcionais, a amante como capaz de assim atuar-portanto, uma mulher a influir sobre o homem superior fora da convenção social do casamento-, Lima Barreto respeita o casamento, e o entende como o meio quase único de realização plena do sexo feminino. Tal crença ele a exprime através de uma frase de Krafft-Ebbing – “a profissão da mulher é o casamento” –, no artigo “A amanuense” (Barreto, 1961m). Ora, sendo para ele o casamento o fim principal da vida feminina faz-se necessário examinar como ele é concebido pela sociedade do período, consoante sua perspectiva.
Conforme reiteradas afirmações, o casamento é entendido, segundo ele, como o meio através do qual o homem medíocre busca ascender socialmente. Transformado em mera “transação comercial”, reduz a mulher, em última instância, a uma “escala para subir”. Em radical oposição a esse modo masculino e social de encará-lo, está a concepção que, segundo Lima Barreto, a mulher teria dele: aí procuraria encontrar sua realização e principalmente um homem superior a quem pudesse dedicar-se. A sociedade cultua como ser superior o doutor e a mulher se deixa levar por essa equivocada opinião, advindo, por conseguindo, após o casamento, a decepção, conforme expõe claramente em um artigo de 1918. Nele conta a história de uma moça crente na superioridade, na grandeza do doutor nacional, (sem experiência de vida antes do matrimônio para contraditar tal concepção que lhe é imposta) casa com um deles e vem descobrir posteriormente ser ele um medíocre, um mero “caçador de dotes”. Ela o mata e Lima Barreto a defende nos seguintes termos: “Essa moça não se casaria com esse moço, senão o visse armado de um “anel” ela não daria seu corpo, se a ambiência social não dissesse que com tal carta, ele valia muitas coisas” (Barreto, 1961m).
O caso mais comum, entretanto, não é a mulher frustrada após o casamento matar o marido. O que constitui a regra, na sua obra ficcional, é o adultério. A mulher, ao ter a revelação da face real do marido, desiludida no casamento, procura através de buscas extra-conjugais, encontrar um homem com qualidade a quem possa dedicar-se. É o que faz D. Laura em O filho de Gabriela que, casada com o conselheiro Calaça, “genial nas aprovações e nos prêmios”,
(...) não encontrando no casamento nada que sonhara nem mesmo o marido, sentiu o vazio da existência, a inanidade dos seus sonhos, o pouco alcance da nossa vontade, e por uma reviravolta muito comum, começou a compreender confusamente todas as vidas e almas, a compadecer-se e a amar tudo, sem amar bem coisas alguma. Era uma parada de sentimento e a corrente que se leito natural extravasara e inundara tudo.
Tinha um amante e já tivera outros, mas não era bem a parte mística do amor que procurava neles. Essa ela tinha certeza que jamais podia encontrar; era a parte dos sentidos tão exuberantes e exaltadas depois das suas contrariedades morais (Barreto, 1961n).
Em igual saída pensa Olga, após sua decepção matrimonial com o Dr. Armando Borges, florianista por oportunismo e tradutor em linguagem dos clássicos dos mal alinhavados escritos sobre temas leves de medicina. Mas ela abandona esse intento resignando-se antes da experiência. “Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quase indignidade?... Todos os homens deviam ser iguais, era inútil mudar deste para aquele...” (Barreto, 1959, p.58). Ao fim do romance Triste fim de Policarpo Quaresma, Olga, “aquele bibelot” segundo o marido, se insurge contra este na defesa do padrinho preso (Policarpo Quaresma) e da sua (dela) identidade e personagens feminina de igual têmpera e que, ao contrário de D. Laura e Olga, vai encontrar no amante o homem superior que não há no marido, é Edgarda a de Numa e a Ninfa. Aceitando o casamento com o Dr. Numa Pompílio de Castro, D. Edgarda Cogominho percebe, após a vida matrimonial, que ele só se casara com ela poder ascender na carreira política, já que o pai dela era um dos proeminentes políticos no meio nacional. Encontra no amante e primo, Dr. Benevenuto, “o que lhe exigiram a imaginação e a inteligência” (Barreto, 1961e, p.198) e o marido não lhe dava. O Dr. Benevenuto funciona, no universo de Numa e a Ninfa, como uma voz discordante e crítica naquele mundo político, no qual predominam os interesses, os favores, o nepotismo, e os pistolões que amolentam as mediocridades. Tido pelo tio, o pai de Edgarda, como “boêmio e extravagante” Benevenuto tem por Floriano a mesma opinião do narrador de Triste fim de Policarpo Quaresma e vê na candidatura do General Bentes (Hermes da Fonseca) a possibilidade de retorno das mesmas arbitrariedades perpetradas pelo “Consolidador da República” durante a Revolta da Armada, em 1893:
Benevenuto era desses que aos doze anos viram as maravilhas do Marechal de Ferro, o regímen de irresponsabilidade; e não podia esquecer pequenos episódios características do espírito de sua governança, todos eles brutais, todos eles intolerantes, além do acompanhamento de gritaria dos energúmenos dos cafés (Barreto, 1961o, p.109).
Traz água para o nosso moinho o fato de Lima Barreto defender Edgarda, quando ao que ele afirma ser uma errônea compreensão de sua personagem por parte de João Ribeiro ao tacha-la de “velhaca”.
Não costumo discutir as críticas aos meus livros nem devo. Mas permita, como todo romancista que se preza, eu tenho amor e ódio pelos meus personagens.
Por isso eu pedia licença para protestar contra o qualificativo de velhaca que o senhor após a minha Edgarda. Eu não a quis assim. Ela é vitima de uma porção de influências sociais, de terrores em tradições, quando aceita o casamento com o Numa. Depois... Nós dado a fraqueza do nosso caráter, não podemos ter uma heroína a Ibsen e, se eu fizesse assim, teria fugido daquilo que o senhor tato gabou em mim: o senso da vida e da realidade circunstante... (Barreto, 1961o, p.79)
Confirma-se aqui que a defesa da personagem e o amor dedicado a ela pelo autor advêm do fato de exprimir, com o adultério, uma desilusão profunda por não encontrar no marido o ideal de homem almejado. Decepcionada, procura fora do matrimônio alguém superior a quem possa dedicar sua natureza sentimental e intelectual insatisfeita.
O adultério, portanto, na obra de ficção de Lima Barreto é uma forma de revolta da mulher contra a sociedade que lhe apresenta um homem como dotado de predicados excepcionais, mas que na realidade é deles carente. Não só. É também uma forma de contestar o casamento, como está estabelecido: o contrato efetuado como meio para o homem ampliar os seus bens e, entre estes, inclui-se o “objetivo” mulher.
Em oposição a essa concepção vigente, Lima Barreto apresenta a sua noção de casamento, em que delineia claramente a relação franca e elevada que deve regular a vida matrimonial: “entre os dois só deve haver a máxima lealdade. Todos os dois devem entrar na sociedade conjugal com a máxima boa vontade e admiração um pelo outro” (Barreto, 1956, p.33). E acrescenta, logo mais, o que lhe causa repulsa: “o que eu não posso compreender é que um homem ambicioso transforme a sua mulher, o que maior amigo, sua própria filha em um instrumento de ambição” (Barreto, 1961n). Volta a sugerir e a repisar suas idéias, propondo a desreificação das relações humanas, em prol dos valores que caminham para o desaparecimento ou são reduzidos ao implícito na sociedade burguesa da época. E mais explicitamente sobre a mulher diz: “A mulher não é um instrumento de ambição; a mulher é um consolo, é um conforto para os nossos vícios e desgraças” (Barreto, 1961n).
Só a partir daqui se poderá então compreender a série de artigos em que Lima Barreto faz a defesa da mulher contra os maridos que as matam, quando as descobrem em adultério. Este não provém de uma motivação física, sexual. Sua origem reside na concepção que a sociedade tem do casamento e da qual a única vítima é a mulher que não pode realizar nele a sua natureza sentimental, vendo-se, portanto, obrigada, fora dos canais convencionais, a procura o homem que deseja e a realize.
A defesa da mulher não se limita, porém, à explicação da raiz do adultério. Vai mais além, propondo a instituição do divórcio, em artigo de 11/05/1918, chamado “No ajuste de contas”. Entre as medidas de caráter social, reconhece como uma das mais urgentes a mudança plena na concepção do casamento. Depois de expor suas idéias favoravelmente ao matrimônio, coloca-se na pele do Estado e defende a manutenção da monogamia, porém com os seguintes melhoramentos:
Não haveria nunca a comunhão de bens a mulher poderia soberanamente dispor dos seus.
O divórcio seria completo e podia ser requerido por um dos cônjuges e sempre decretado mesmo que o motivo alegado fosse o amor de um deles por terceiro ou terceira (Barreto, 1961n).
Tais propostas, acreditava, se convertidas em lei, atingiriam no cerne todas as deformações a que estava sujeito o matrimônio, propiciariam a libertação da mulher do estado degradante em que se achava e eliminariam o direito consuetudinário e quase legal contra o qual sempre batalhou: o do marido poder praticar o uxoricídio em caso de adultério.
Em síntese: se, em nossa realidade, lima Barreto por um lado, encontra em geral no sexo feminino aqueles atributos que admira e exalta na mulher estrangeira e o vê como intelectualmente inferior, por outro, aponta casos em que essa superioridade se manifesta, e indica os motivos que impedem a sua realização, em especial o casamento como estava estatuído na sociedade brasileira. Ainda: se, por um lado, as mulheres superiores que aparecem em sua obra são de inspiração européia, por outro, contaminam-se elas de elementos de nossa realidade, como no caso do adultério, no qual detecta uma atitude de grandeza: a de rebelião, contra a situação degradante a que a vê reduzida entre nós. Com esta situação aviltada não estão de acordo os grandes espíritos femininos que aparecem em suas obras. Por estar em sintonia com tais inquietações é que ele se põe a investir contra o assassínio de mulheres pelos maridos e a lutar pela reformulação do casamento através do divórcio e da união conjugal com separação de bens. Sua posição é, portanto, de defesa de uma ligação matrimonial não aviltante e desreificada.

4. Lima Barreto e o Feminismo
Estabelecidos esses pressupostos, a chamada posição anti-feminista de Lima Barreto poderá agora ser convenientemente examinada e compreendida, e não simplesmente considerada como uma “contradição inexplicável” em sua obra.
O movimento feminista brasileiro, iniciado no fim da década de dez séculos, antes de surgir como um bloco coeso, dividiu-se já em suas origens em algumas ramificações cada uma delas com líderes próprios e com algumas reivindicações idênticas e outras particulares, verdadeiras bandeiras das facções ou, como quer Lima Barreto, das “igrejas” ou “seitas”. São estas, segundo ele, em número de quatro: a de Mme Chrysanthème que “quer, para a mulher, a plena liberdade do seu coração, dos seus afetos, enfim dos seus sentimentos” (Barreto, 1961p), a liderada por Dona Deolinda Daltro, denominada “Partido Republicano Feminino”, propugnando pelo direito da mulher; a de Dona Berta Lutz, sob o nome de”Liga pela Emancipação intelectual da mulher Brasileira” que tinha como bandeira a luta pelo ingresso da mulher na burocracia; e a facção conhecida por “Legião da Mulher Brasileira” que nomeara como presidente de honra a esposa do Presidente da República, D. Mary Saião Pessoa, contando também com o apoio da Igreja Católica. A principal reivindicação que as unia era a extensão do direito de voto à mulher. Lima Barreto reduz as facções a duas: o feminismo sufragista e o feminismo burocrático; o primeiro de “propriedade” de D. Deolina Daltro e o segundo de D.Berta Lutz. À entidade de Mme Chrysanthème não dá muita importância e à Legião da Mulher Brasileira se restringe a ironizar o caráter oficial da entidade. São matérias mais constantes dos ataques de seus artigos as entidades mais dinâmicas, a de D. Deolina Daltro (feminismo sufragista), e a D. Berta Lutz (feminismo birocrático), a primeira por razões “históricas” se assim se pode chamar e a segunda por razões de comprometimento pleno com o sistema vigente.
D. Deolinda Daltro é velha conhecida do autor. Por voltar de 1902, quando fazia parte da Federação dos Estudantes, D. Deolinda vai à procura do presidente da entidade (Barreto Dantas) para que ele e sua entidade “se empenhassem junto ao Prefeito Passos a fim de que (D. Deolinda Daltro) fosse reintegrada no magistério municipal” (Barreto, 1961q). Utilizando tal meio, inaceitável, para ele, ganha ela já então a sua antipatia. Expediente idêntico-cavação-utilizará ela mais tarde, em 1909, para ganhar as graças dos poderosos: participa agora, defensora dos índios, da campanha republicana ao lado de Hermes da Fonseca, desfilando com seus botocudos a favor deste. Atacada da “mania do cabloco”, anti-civilista por sua adesão a Hermes, será retratada no livro Numa e a Ninfa, na personagem Florinda Seixas, que criara a “Sociedade Comemorativa do Falecimento do Constâncio”, da qual é presidente, e cujos fins eram, além do expresso no nome, o do ensino do guarani e o das aclamações às pessoas de destaque (Barreto, 1961r).
Claro se torna que, com tal modo de agir, tinha ela tudo para se tornar uma daquelas pessoas “preferidas” do autor, contra as quais lançava suas troças e ironias. Não contente com essas “vinganças” Lima Barreto, espicaça-a ainda em artigo de 14/02/1920 publicado na “Careta”, denominado “O D. Frontim e o Feminismo” (Barreto, 1961o, p.219). Sendo lhe D. Deolinda Daltro, conhecida de muito tempo, pautava-se ela em seu agir por interesses e ambições contra quais o autor não perdia oportunidades de investir, quer em seus artigos de jornais, quer em digressões que enxameiam sua obra de ficção. Com tal líder, as reivindicações feministas de sua entidade não estavam a propugnar por uma elevação da mulher, mas meramente a pleitear o direito de voto, para que uma faixa da elite pudesse usufruir das vantagens que estavam limitadas à cúpula política masculina. Suas investidas contra ala feminista liderada por D. Deolinda Daltro, se advêm de idiossincrasia pessoal, crescem pelo fato de ser uma iniciativa que se limitava a mera acomodação ao sistema montado, contra o qual ele nunca deixou de batalhar. Além do mais, Lima Barreto não via no voto um elemento através do qual pudesse ser reformada a situação na “Republica Velha”. Isto que era pleiteado pouco significava para ele.
Suas mais freqüentes cutildas são, porém, destinadas ao feminismo burocrático de Dona Berta Lutz. Sem ter tido o “privilégio” de ser uma velha conhecida do autor, para merecer um ataque “histórico” essa líder feminista merece dele um em que transforma a sigla de sua entidade LMB em “Liga pela Manumissão da Mulher Branca”, em um artigo “O feminismo invasor” (Barreto, 1961s). Nele ironiza e satiriza uma reunião da entidade, na qual aparece uma ubíqua “Adalberta Luz” a ser presidente, secretária, relações públicas, público, etc. A nova rotulação dada à entidade já conta o caráter desse e dos outros movimentos feminista: movimentos de elite, a defender os interesses de uma minoria, “os interesses das transparentes e melindrosas, que são afinal a quintessência do feminismo moderno” (Barreto, 1961s), esquecendo-se totalmente da mulher de cor. Nesse sentido, mostra ele que esta e mais as brancas pobres já conquistaram um lugar de operária, sem movimentos feminista, nas fábricas de tecidos e nas livrarias como empacotadoras de livros. E põe a questão: “Pergunto: esta mulher (uma velha negra) precisou do feminismo burocrata para trabalhar, e não trabalha ainda, apesar de sua adiantada velhice?” (Barreto, 1961r).
Ao lado desse caráter de troca de favores mútuos na elite para melhor dividir o bolo burocrático entre ambos os sexos da camada dominante, menciona ainda outros pontos nos quais se baseia para refutar o aspirado acesso à burocracia, dentre eles a falta de apoio legal, constitucional, para as nomeações e os impedimentos de ordem social. Neste último caso, seus argumentos têm como fonte Spencer, que, na sua Introdução à ciência Social, alertava para os perigos provenientes para a espécie, caso a mulher passe a exercer os cargos naturalmente reservados aos homens. “Desde que os lugares públicos mesmo os que não o são, mas que naturalmente são destinados aos homens sejam invadidos pelas mulheres, tal fato irá prejudicar a regularidade de nossa raça (Barreto, 1961t). No próprio Spencer diz encontrar pesquisas francesas comprobatórias de tal prejuízo.
Os obstáculos de ordem constitucional são, porém, os mais evocados para opor-se à entrada da mulher na burocracia. Em artigo de 26/07/1921 pergunta sobre a base legal das nomeações que ocorrem, sem que a Constituição as facultasse, pois, segundo a interpretação dele, mulher não é cidadão (Barreto, 1961t).
Foi apontada por Francisco de Assis Barbosa como contradição em Lima Barreto o fato de ele, maximalista, pregar respeito à lei burguesa. Não vejo na verdade aqui uma contradição. O romancista carioca nada mais faz do que utilizar os próprios recursos burgueses para atacar a burguesia, manejando-os com habilidade para mostrar que, mesmo em face das leis elaboradas pelos que estavam no poder, não havia e indignação em Lima Barreto é o caráter de arranjo nas nomeações, os abusos perpetrados pelos donos do poder, a fim de dar cobertura aos seus apaniguados, independente do sexo deles. Tanto isto é verdade que o escritor não só acata a profissionalização da mulher, como também chega a propor o aumento do número de “Escolas Normais” para que as mulheres tenham melhor educação e com isso possam desempenhar papel importante na formação da criança, quer na escola, quer em casa, “As (normalista) que não fossem escolhidas (para o magistério primário) poderiam procurar o professorado particular, mesmo como mães, a sua instrução seria utilíssima” (Barreto, 1961t).
Uma visão simplista da posição de Lima Barreto em face da profissionalização da mulher, tem conduzido estudiosos a afirmar que o autor de Clara dos Anjos se coloca numa atitude intransigente contra ela. Não é verdade. Aceita a profissionalização da mulher, mas o que lhe causa aversão é ser ela realizada com intuitos interesseiros, circunscrita a benefícios para poucos, ferindo a própria ordem criada pelos que estão a violá-la, no desejo de proteger os já privilegiados.
Contudo, isso não tem como resultante um abdicar de suas posições anti-movimentos feministas. Esses movimentos com as suas proposições profissionalizantes e eleitoreiras só tinham, segundo ele, por escopo dar possibilidades de realização aos atributos mesmo importantes da mulher: a sua natural capacidade mental limitada e de memorização, a sal falta de criatividade, etc.
As mulheres têm tanta vocação para os cargos públicos que as suas letras não só se parecem, mas quase são iguais. Indivíduos que têm semelhantes predicados não podem deixar de ser amanuenses ideais (...). De resto, não é boa recomendação para ser bom escriturário ou ótimo oficial de secretaria, a posse de uma individualidade, de um temperamento e, raramente a mulher é dona dessas coisas (Barreto, 1961u).
As reivindicações feministas pecavam, portanto, conforme sua opinião, por terem como bandeira a aspiração de menos elevado. Com isto a mulher simplesmente obteria igualdade aos medíocres que compõem o sistema. Ora, para Lima Barreto que tinha uma concepção tão elevada da mulher e que a queria atuando junto ao homem, as exigências do feminismo só podiam ser encaradas como rebaixamento da mulher e, portanto, censuráveis. E não só. Indicando a degradação do casamento como motivo do envilecimento da mulher, só reconheceria grandeza no movimento se atacasse esse problema central. Não é o que faz. Ignora, na verdade, essa questão e as dela decorrentes como o adultério e o uxoricídio conforme mais de uma vez ele indignadamente faz ver:
(...) contra tão desgraçada situação de nossa mulher, edificada com a estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem os borra-botas feministas que há por aí. Elas só tratam de arranjar manhosamente empregos públicos sem ser hábil para tal permuta. É um partido de “cavação” como qualquer outro masculino (Barreto, 1961r).
A mesma veemência encontramos no seguinte passo:
O liberal e socialista Evaristo, quase anarquista, está me parecendo uma dessas engraçadas feministas do Brasil, gênero professora Daltro. Que querem a emancipação da mulher para exercer sinecuras do governo e rendosos cargos políticos; mas que, quando se trata desse absurdo costume nosso de perdoar os maridos assassinos i ficam na moita (Barreto, 1961v).
Pondo à parte a argumentação discutível dos perigos que possa causar à continuidade da espécie humana o sedentarismo burocrático – argumento aliás não muito enfatizado e de origem spenceriana –, Lima Barreto, no tratamento do movimento feminista, não vê nada de grandioso, de heróico, de superior, - o que lhe é sempre caro- mas sim uma articulação feminina burguesa para meramente conseguir, por meios não legais, cargos públicos, onde a mulher, em lugar de realizar a sua, considerada por ele, natureza mais nobre, vai ter a possibilidade de exercitar o seu lado, ainda segundo ele, mais vulgar. Vê o movimento como eminentemente elitista, que nada mais busca além de estender às mulheres os privilégios de que gozam os medíocres que compõem o sistema. Desvinculado dos problemas da mulher brasileira, não se porá o feminismo na arena para libertá-la da degradação do casamento que, pelo seu caráter aviltante, conduz ao adultério e por vez quase ao direito legal de o marido matar a esposa. Utilizando argumentos legais do próprio sistema que não aceita como um todo Lima Barreto denuncia os procedimentos embusteiros utilizados para promover a profissionalização. Considerá-lo como um anti-emancipacionista de mulher é ver o problema de um modo equivocado, pois na verdade visa ele mais “desmontar as máquinas de embuste” que compõem o sistema institucionalizado do que realmente a obstaculizar certas concessões que a própria realidade social vai ampliando. Comprova sua predisposição em aceitar a ascensão da mulher – sua emancipação e profissionalização – com estas palavras sobre Kólontai e Vera Zassúlitch.
Entre eles (os revolucionários russos) há mulheres. Há até uma madame Kólontai, que é ou foi ministro do Bem Público; não é de hoje, porém, que as mulheres russas, moças em geral, se envolvem nesses movimentos, altruísticamente subversivos, do império dos Românoffs (Barreto, 1961w).
No movimento feminista, a exigir direito a voto e a cargos públicos, não encontra Lima Barreto aquele caráter “altruísticamente subversivo” que lhe é tão caro, por ser, segundo ele, o atributo fundamental das ações grandiosas, heróicas e superiores. Não vê mesmo nem sequer o mínimo pendor social, não se voltando para a realidade próxima, para o problema que dizia respeito mais diretamente à mulher. Limitado aos grupos sociais dominantes, o movimento, nesta fase inicial, é uma mera aglutinação para tentar obter a extensão às mulheres das regalias de que gozam os membros masculinos dos grupos dominantes e que monopolizam o sistema.
Permanece, ainda, nas suas atitudes em face do incipiente feminismo brasileiro, uma percepção daquilo que uma socióloga moderna detectou como lhe sendo posteriormente peculiar “a simples imitação de similares ocidentais, transpostos para a realidade subdesenvolvida do país. Neste sentido o movimento feminista induziu à elaboração de uma legislação não reclamada por extensas áreas de população feminina” (Barreto, 1961x).
Impossibilitado pela morte, em 1922, não pôde Lima Barreto acompanhar as fases ulteriores das batalhas feministas. Percebeu porém, no seu nascedouro no Brasil o caráter de movimento importante e dissociado da realidade local e, o que era por ele mais enfatizado, atestado pelo comportamento da líder feminista que mais vai se destacar nos anos seguintes, D. Berta Lutz, a qual encontra-se em 1922 nos Estados Unidos “devido a manificiência do Governo Federal, a fazer propaganda da Exposição do Centenário” (Bongnovanni, s/d, p.322-323). Nisso e mais no aspecto elitista do movimento, antecipa pontos do que a mesma socióloga diz ao fazer um balanço integral da luta feminista no Brasil:
A consciência de que o desenvolvimento econômico e social do país se faz parcialmente às expensas do enorme contingente feminino de padrão doméstico não chegou, entretanto a formar-se no cenário nacional. Ao contrário, as próprias associações femininas de ideologia não negadora do status quo capitalistas, via, na expansão estrutural da sociedade brasileira, enquanto sociedade de economia capitalista, a via através da qual se processaria a profissionalização feminina em larga escala e, portanto, a modernização da atuação social da mulher (Bongnovanni, s/d, p.318).

Referências bibliográficas

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1 Doutor em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho. Professor do Programa de Pós-Graduação em Letras, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus Três Lagoas.
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