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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

HIGIENISMO NA FICÇÃO CIENTÍFICA BRASILEIRA: DA UTOPIA À DISTOPIA

Ramiro Giroldo 1

Resumo: O presente ensaio pretende mensurar o alcance e a influência exercida pelo movimento higienista brasileiro e pelo pensamento eugênico em obras literárias de determinado gênero, produzidas em momentos históricos distintos. Os objetos da discussão são O Presidente Negro (1926), de Monteiro Lobato, 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro e Fazenda Modelo (1974), de Chico Buarque, romances categorizados como ficção científica utópica ou distópica. Para empreender seu objetivo, o artigo articula proposições acerca do Higienismo no Brasil à noção da ficção científica como gênero literário.
Palavras-chave: Higienismo, utopia, ficção científica.
Abstract: This paper intends to measure the reach and the influence exercised by the hygienist social movement and by the eugenics in literary works of a determined genre, works produced in distinct historical moments. O Presidente Negro (1926), by Monteiro Lobato, 3 Meses no Século 81 (1947), by Jeronymo Monteiro and Fazenda Modelo (1974), by Chico Buarque, objects of the study, are categorized as utopian or dystopian science fiction. To undertake its objective, the paper articulates proposals about Hygienism in Brazil to the notion of science fiction as literary genre.
Keywords: Hygienism, utopy, science fiction.

1. Higienismo
O presente texto tem como objetivo mensurar o alcance e a influência exercida pelo chamado movimento higienista e pelo pensamento eugênico em obras literárias de determinado gênero, produzidas em momentos históricos distintos. Pretendemos discutir, também, de que forma a exploração ficcional do higienismo pôde reassumir relevância em contextos diversos do original. Tratando-se de um objetivo algo amplo para os limites deste texto, as proposições a serem traçadas não devem ser estendidas de forma irrestrita e generalizante a outros textos que não aqueles selecionados no presente recorte.
Os textos cuja relação com o pensamento higienista e eugênico discutiremos são: O Presidente Negro (1926), de Monteiro Lobato; 3 Meses no Século 81 (1947), de Jeronymo Monteiro; e Fazenda Modelo (1974), de Chico Buarque. Conforme veremos adiante, a distância entre cada um dos textos, mínima de onze anos, possibilitou diferentes abordagens de uma temática comum, bem como a expressão de diferentes perspectivas críticas.
O movimento higienista, que no Brasil teve lugar no fim do século XIX e início do XX, almejava uma alteração comportamental na população brasileira. Por meio da mudança direcionada dos hábitos, a meta declarada dos higienistas era melhorar as condições de saúde coletiva. Como apontam Maria Lúcia Boarini e Oswaldo H. Yamamoto no artigo “Higienismo e Eugenia: discursos que não envelhecem”, o movimento higienista não possuía caráter popular, muito antes pelo contrário2; tanto o movimento higienista quanto o eugenista “[...] não foram gerados no seio da população em geral. Tratava-se de um pequeno grupo, em termos numéricos, formado por médicos em sua maioria e, a considerar os padrões da época, grandes eruditos dentre eles” (Boarini; Yamamoto, 2004, acessado em 16/02/2008)3.
A respeito da eugenia, outro tópico importante para este texto, e sua relação com o higienismo, podemos nos servir da definição proposta por Renato Kehl4, citada por Boarini e Yamamoto:
[...] a higiene, por exemplo, procura melhorar as condições do meio e as individuais, para tornar os homens em melhor estado físico. A eugenia, intermediária entre a higiene social e a medicina prática, favorecendo os fatores sociais de tendência seletiva, se esforça pelo constante e progressivo multiplicar de indivíduos “bem dotados” ou eugenizados (Boarini; Yamamoto, 2004, acessado em 16/02/2008).
Como propôs Edivaldo Góis Junior, contudo, o movimento higienista não apresentava um discurso homogêneo, e nem todos aqueles a integrá-lo encaravam as proposições eugênicas da mesma forma. Discutindo o ensaio “Habitação e vizinhança: limites da privacidade no surgimento das metrópoles brasileiras”, de Paulo César Garcez Marins, Góis afirma que o autor
[...] atribuiu uma homogeneidade ao discurso higienista, caracterizando-o como movimento social orientado pelos interesses das classes dirigentes. Nos seus estudos sobre a urbanização, o autor considera o discurso higienista um reflexo do pensamento das elites, que pretendiam perseguir o povo em suas próprias habitações (Góis, [s.d.], acessado em 18/02/2008).5
A crítica de Góis não nos parece pertinente, posto que o texto de Marins não se propõe a fazer uma análise pormenorizada do higienismo, mas discutir como a elite brasileira se valeu do discurso higienista para fins de exclusão social. Na perspectiva adotada por Marins, o higienismo forneceu uma espécie de endosso científico às classes dirigentes, a fim de excluir do convívio da elite as “patologias” sanitárias, sociais e espaciais. Discutindo a tentativa carioca de implantar padrões europeus à configuração da então capital brasileira, no último decênio do século XIX, Marins propõe que a
[...] ambição de arrancar do seio da capital as habitações e moradores indesejados pelas elites dirigentes começou a se materializar com as medidas visando a demolição dos numerosos cortiços e estalagens, espalhados por todas as freguesias centrais do Rio de Janeiro, o que se processou sob a legitimação conferida pelo sanitarismo. A inauguração das medidas de exclusão habitacional e social na capital da República permite entrever, no entanto, as muitas dificuldades na implantação das referências urbanizadoras estrangeiras que se repetiriam nas décadas seguintes, e que fariam naufragar os anseios de homogeneizar vizinhanças e politizar os âmbitos privados à revelia das mazelas sociais (Marins, 2004, p.141).
Nicolau Sevcenko também parece assinalar o vínculo entre o discurso higienista e práticas autoritárias. Rodrigues Alves, em seu período na presidência do País (de 1902 a 1906), conferiu poderes ilimitados para que o médico sanitarista Oswaldo Cruz e os engenheiros Lauro Muller e Pereira Passos pudessem resolver os problemas de saneamento e urbanização do Rio de Janeiro. Sevcenko, ao abordar a circunstância, observa que a ação dos três se concentrou nos casarões da área central,
[...] que congregavam o grosso da população pobre. Porque eles cerceavam o acesso ao porto, porque comprometiam a segurança sanitária, porque bloqueavam o livre fluxo indispensável para a circulação numa cidade moderna. Iniciou-se então o processo de demolição das residências da área central, que a grande imprensa saudou denominando-o com simpatia de a “Regeneração”. Para os atingidos pelo ato era a ditadura do “bota-abaixo”, já que não estavam previstas quaisquer indenizações para os despejados e suas famílias, nem se tomou qualquer providência para realocá-los (Sevcenko, 2004, p.23).
Colocar em evidência o uso que as classes dirigentes fizeram do discurso higienista não equivale a voltar um olhar maniqueísta para esse movimento e seus objetivos, retratando-o como responsável por perseguir a camada pobre da população brasileira. Dessa forma, a heterogeneidade do discurso higienista não nos parece negada por Sevcenko e nem por Marins, como quer Góis.
A respeito dos conflitos internos do movimento higienista, Góis aponta que, dentro de um amálgama de diferentes propostas, métodos e referenciais teóricos, o higienismo brasileiro era homogêneo apenas em seu objetivo declarado, a melhora das condições físicas e mentais da população. Segundo o autor, “as normas sobre a higiene da Escola, do trabalho, das ruas, do asseio corporal não se contradiziam. Com exceção de um tema: a Higiene da Raça, ou Eugenia (Góis, [s.d.], acessado em 18/02/2008).
A eugenia, assim, era adotada de forma diversa para cada uma das correntes higienistas nacionais. Estas eram a etnológico-biológica, a darwinista social, a galtoniana e a intervencionista social.
A etnológico-biológica, já em desuso no início do século XX no Brasil, era “baseada no estudo das características físicas das raças” (Góis, [s.d.], acessado em 18/02/2008). Já a darwinista social, também marcada pelo determinismo, era amparada em uma interpretação da teoria de Charles Darwin e foi responsável pela campanha brasileira de embranquecimento da população. Segundo a corrente, “as raças superiores teriam uma melhor adaptação ao meio em que viviam, e sobreviveriam, o que não aconteceria com as raças inferiores, condenadas ao desaparecimento” (GÓIS, [s.d.], acessado em 18/02/2008). A corrente galtoniana, por sua vez, se alicerçava na teoria de que a evolução natural, proposta por Darwin, podia ser potencializada pela intervenção médica. Defendia o favorecimento do casamento entre os mais aptos e a esterilização dos portadores de determinadas doenças. Já os interventores sociais, por fim,
[...] viam na Eugenia uma forma de melhorar o homem brasileiro, mas despiam-se de qualquer idéia de características raciais superiores ou inferiores. (...) [Roquete Pinto] deixava claro que não adiantavam os casamentos entre indivíduos mais aptos, se estes não tivessem condições sociais favoráveis. Por outro lado, dizia que não só o aspecto social deveria ser observado, mas também o biológico. Era preciso que o povo adquirisse características positivas, que seriam transmitidas aos filhos – precisávamos melhorar as condições sociais para melhorar a raça (Góis, [s.d.], acessado em 18/02/2008).
Notemos que a corrente menos tradicional, a dos intervencionistas sociais, é a que não possuía um discurso marcadamente determinista. Importante notar, também, que a concepção eugenista foi acolhida, ainda que de formas distintas, por todas as correntes higienistas enumeradas.

2. Ficção científica e utopia
Os romances aqui em discussão levantam questões que podem ser proveitosamente articuladas ao movimento higienista brasileiro. Em suas extrapolações do discurso científico higienista, provocam um efeito e assumem procedimentos característicos da “ficção científica”. Algumas palavras preliminares sobre esse gênero, portanto, se fazem necessárias.
A perspectiva que nos parece mais produtiva é aquela proposta por Darko Suvin em sua coletânea de ensaios Pour une Poétique de la Science-Fiction. O autor propõe uma distinção entre dois grandes grupos ficcionais: a ficção “realista”, que almeja passar a impressão de um quadro imaginário similar ao mundo do autor, e a ficção distanciada, que apresenta um mundo radical e claramente distinto do empírico. Tanto a ficção “realista” quanto a distanciada podem, por sua vez, se apresentar de forma cognitiva ou não-cognitiva, sendo a ficção científica um exemplo “distanciado cognitivo”.
Assim, a ficção científica é “um gênero no qual as condições necessárias e suficientes são a presença e a interação de distanciamento e conhecimento, e no qual a principal convenção formal é um quadro imaginário, diferente do mundo empírico do autor6”. Responsáveis pela diferença entre o mundo do autor e o imaginário são os chamados nova, as “novidades estranhas” apresentadas por um texto de ficção científica.
É importante ressaltar que a parcela cognitiva do efeito provocado pelo gênero remete mais ao método científico do que à ciência factual. Como observa Adam Roberts,
[n]ós podemos, de fato, enxergar a ficção científica como uma forma de experimento intelectual (thought experiment), um elaborado jogo de “e se?”, no decorrer do qual as conseqüências de um ou outro novum são trabalhadas. Em outras palavras, não é a “verdade” científica que é importante para a ficção científica; é o método científico, o trabalho lógico sobre uma premissa particular. Isso é precisamente o que Suvin afirma: “a ficção científica é distinguida pela dominância ou hegemonia narrativa de um ‘novum’ ficcional validado por lógica cognitiva”7.
A utopia é outra categoria que será pertinente à discussão aqui empreendida. Para Suvin, a utopia é a construção verbal que, calcada em uma alternativa à História empírica, configura uma sociedade que é mostrada como ideal. Embora tenha surgido anteriormente à popularização do termo “ficção científica”8, foi retrospectivamente avaliada por Suvin da forma que segue:
Estritamente falando, a utopia não é um gênero, mas o subgênero sócio-político da ficção científica. Paradoxalmente, isso é verificável devido ao desenvolvimento moderno da ficção científica, que redefiniu retrospectivamente a utopia e a englobou na ficção científica. Além disso, esse desenvolvimento é uma continuação por vezes indireta da literatura utópica clássica e daquela do século XIX.9
Tal categorização genérica é justificável por meio da observância de que a utopia, ao apresentar um distanciamento calcado na cognição (já que desenvolvido a partir de uma alternativa à História), provoca o efeito que, de acordo com Suvin, é “suficiente e necessário” para um texto ser chamado de “ficção científica”, o distanciamento cognitivo.
Dentre as obras a serem discutidas neste texto, O Presidente Negro é o que pode ser adequadamente categorizado como utopia. Mais precisamente, como veremos adiante, o romance narra o surgimento de uma utopia. Já Fazenda Modelo e 3 Meses no Século 81 são uma espécie negativa de utopia, a chamada “distopia”. Segundo Daniel Derrel Santee,
[...] uma das principais diferenças entre a literatura utópica e a distópica se encontra na impressão do autor: se ele acredita que está descrevendo uma sociedade melhor, ele está criando utopia. Neste caso, as qualidades distópicas que aparecerem são involuntárias; contudo, se ele acredita que está descrevendo uma sociedade repulsiva, o que ele está criando é uma sociedade distópica. Neste caso, ele força as situações e os aspectos a serem repulsivos, então eles não são de forma alguma acidentais. Em ambos os casos, a crítica da sociedade é um elemento central.10
O momento histórico acabará por esclarecer porque ora a utopia, ora a distopia se mostraram sugestivas na exploração ficcional de questões postas em cena pelo movimento higienista brasileiro.

3. O Presidente Negro: utopia higienista
O Presidente Negro, primeiramente publicado em 1926, é das obras menos referenciadas de Monteiro Lobato. Ao simular uma extrapolação11 utópica de concepções higienistas, a obra efetivamente demanda cuidado à análise crítica dedicada a compreendê-la dentro dos parâmetros por ela impostos. Em outras palavras, embora o romance de fato possa ser lido, hoje, como um libelo racista, a preocupação, aqui, é abranger a circunstância contextual e sua transfiguração science fictional.
O protagonista do romance, Ayrton Lobo, é empregado de uma firma chamada Sá, Pato & Cia.12 Insatisfeito com o emprego e com a vida vazia que leva, encontra certa satisfação ao adquirir um automóvel. Trata-se, em sua concepção, de uma forma de ascender socialmente, passando de “pedestre” para “rodante”. Assume uma postura de superioridade com relação aos pedestres, incorporando atitudes similares às de seus patrões na Sá, Pato & Cia. Ou seja, uma vez em posse de um efêmero poder, o protagonista deixa que ele lhe “suba à cabeça”. A circunstância não perdura; a personagem sofre um acidente e é salva da morte pelo idoso professor Benson, um cientista que acaba por acolhê-lo em sua mansão. Temendo voltar à vida de pedestre, Lobo acaba aceito por Benson, com a função de confidente.
O protagonista trava contato, então, com o estranho laboratório do cientista e com seu maior invento, o “porviroscópio” – máquina que mostra “cortes anatômicos” do futuro. Tal maravilha tecnológica, contudo, não impressiona Lobo mais do que a filha de Benson, Miss Jane, por quem se apaixona. Benson, antes de falecer, destrói seu invento, para o qual a humanidade não estaria pronta. Sua filha pondera, em dado momento: “– Bem razão tinha meu pai em não tornar pública a sua descoberta. Só mesmo um espírito de eleição como o dele poderia resistir ás tentações resultantes, concluiu Miss Jane” (Lobato, 1951, p.198)13 .
Miss Jane, então, é quem sacia a curiosidade de Lobo acerca dos eventos futuros mostrados pelo porviroscópio, narrando-lhe uma cadeia de eventos transcorridos em 2228.
O professor Benson, em sua longa exposição teórica a Ayrton Lobo, logo nos primeiros capítulos do romance, compara o tempo a um livro: o presente é a página que estamos lendo, o passado, as que já lemos, e o futuro, as que ainda não lemos. O futuro, portanto, já está escrito – uma noção determinista que é prolongada no decorrer da obra.
O novum de Lobato, observemos, também implica passividade. Como observou Roberto de Sousa Causo em Ficção Científica, Fantasia e Horror no Brasil – 1875 a 1950, a máquina do tempo de O Presidente Negro14, “[...] ao contrário da de Wells, permite apenas a visualização do passado ou do futuro” (Causo, 2003a, p.139). A passividade é potencializada, já que o porviroscópio é destruído por Benson, e Lobo toma conhecimento dos eventos futuros apenas graças a Jane, que anteriormente os contemplara no invento do pai.
Significativamente, a narração de Jane se volta para eventos transcorridos nos Estados Unidos da América. O protagonista, assim, pode ser encarado como uma representação do brasileiro que, nativo de um país culturalmente periférico, apenas observa e nunca interage com a História. O romance, embora ponha a questão em cena, não a problematiza; o fato de a História ser escrita por uma potência mundial não é explicitamente referido, e a questão parece reproduzida, na narrativa, de forma algo acrítica, como observa Jane, após algumas palavras sobre o Brasil do futuro: “Mas voltemos á América do Norte. O nosso caso é o americano” (Lobato, 1951, p.216).
Segundo a Nota dos Editores presente na edição de O Presidente Negro aqui utilizada, “[e]ste romance de Monteiro Lobato, escrito em tres semanas para o rodapé d’A Manhã de Mario Rodrigues, no ano de 1926, antes da partida do autor para os Estados Unidos, constitue uma verdadeira curiosidade literária” (1951, p.125). De acordo com Fausto Cunha, “[o] próprio Lobato depositava esperanças no êxito do romance e, numa carta a Godofredo Rangel, antecipa o livro como um bestseller – um milhão de exemplares! – nos Estados Unidos” (Cunha, [s.d.], p.7). Pode-se especular que o romance tenha sido escrito para o leitor norte-americano, dados os elogios nele traçados aos Estados Unidos e, também, o próprio enfoque que o enredo concede àquele país. André Carneiro, a esse respeito, cita uma crítica de Lobato a um falso moralismo norte-americano:
Meu romance [em tradução americana] não encontrou editor [nos Estados Unidos]. Acham-no ofensivo à dignidade americana, visto admitir que depois de tantos séculos de progresso moral, possa este povo, coletivamente, cometer a sangue frio o belo crime que sugeri. Devia ter vindo no tempo em que eles linchavam os negros! (Carneiro, [s.d.], p.45)
A história contada por Miss Jane é recorrentemente entremeada com observações, dúvidas e vislumbres do dia-a-dia de Ayrton Lobo, o que remete ao modelo narrativo tradicional da utopia. À primeira vista, a narrativa utópica se apresenta dialógica. Para Chris Ferns, em sua abordagem da narrativa utópica, trata-se apenas de uma impressão superficial:
[...] certos críticos inferiram (...) que a narrativa utópica, graças a suas origens, é inerentemente dialógica, até mesmo dialética, convidando os leitores a participar ativamente do texto, ao invés de relegá-los à condição de observadores passivos. Ainda que seja certamente verdadeiro que certas ficções utópicas recentes convidem a tal interação, uma avaliação das convenções do diálogo renascentista, no qual a narrativa utópica tradicional é assentada, pode sugerir que ela é geralmente construída para ter o efeito completamente oposto – produzir uma ilusão, ao invés da realidade de um diálogo. Funcionando primariamente como um artifício retórico, ela serve mais para reforçar a autoridade de um ponto de vista único do que para refletir um genuíno processo de debate.15
A figura do guia, típica da utopia e personificada, em O Presidente Negro, por Miss Jane, pode servir a essa ilusão de diálogo. O protagonista se considera um homem inculto, muito distante dos conhecimentos eruditos de sua interlocutora, e as objeções que oferece são seguidamente refutadas por ela; não há diálogo propriamente dito, mas a defesa de um único ponto de vista.
Para Daphne Patai, citada por Causo, as personagens de O Presidente Negro são pobremente desenhadas e “pouco mais do que microfone para certas idéias” (Causo, 2003a, p.138). Contudo, a obra parece nos fornecer um exemplo de que, “como gênero, a ficção utópica é intensa e particularmente influenciada pela percepção de sua própria tradição específica – pela consciência, por parte do autor, do que veio antes”16. Em outras palavras, pode não ser a opção mais adequada reclamar desenvolvimento romanesco de personagens em um texto que dialoga com uma forma de exposição (o diálogo renascentista) anterior à fixação do romance como modelo narrativo dominante17.
De acordo com Miss Jane, apenas em 2228 os Estados Unidos resolveram o “problema racial”. A solução brasileira para o conflito entre brancos e negros é, pela guia, referida como “medíocre”, já que
[e]stragou as duas raças, fundindo-as. O negro perdeu suas admiraveis físicas de selvagem e o branco sofreu a inevitável peora de carater, consequente a todos os cruzamentos entre raças dispares. Carater racial é uma cristalização que ás lentas se vai operando através dos seculos. O cruzamento perturba essa cristalização, liquefa-la, torna-a instavel. A nossa solução deu mau resultado (Lobato, 1951, p. 206).
A solução norte-americana, por outro lado, foi cristalizar as duas raças, por meio de uma “barreira de ódio” que é elogiada por Miss Jane: “O amor matou no Brasil a possibilidade de uma suprema expressão biológica. O odio criou na America a gloria do eugenismo humano...” (Lobato, 1951, p.207). Ayrton Lobo, ao ouvir tais palavras, fornece um exemplo da ilusão de diálogo estendida a boa parte da obra: “Como era forte o pensamento de Miss Jane! (...) Poderia vir a amar-me uma criatura assim, tão alta de cérebro?” (Lobato, 1951, p.207).
A despeito da cristalização racial, em 2228 acontece o inevitável choque entre as raças. Graças a uma cisão do eleitorado branco norte-americano (homens e mulheres viram-se ideologicamente separados), é eleito o presidente negro do título do romance. A circunstância é mostrada como inconcebível, e mulheres e homens (brancos) se unem para derrubar o presidente negro. Na chamada Convenção da Raça Branca, tomam decisões.
É apresentado, então, um novo procedimento tecnológico, capaz de tornar os cabelos crespos dos negros em lisos. Todos os negros dos Estados Unidos se submetem ao procedimento que é, na verdade, uma faca de dois gumes: alisa os cabelos, mas também esteriliza quem se submete a ele. Trata-se do fim da raça negra em 2228.
De acordo com a Nota dos Editores de O Presidente Negro,
[e]mbora aparentemente uma “brincadeira de talento”, [o romance] encerra um quadro do que realmente seria o mundo de amanhã, se fosse Lobato o reformador – e em muitos pontos havemos de concordar que sob aparencias brincalhonas brilha um pensamento de grande penetração psicologica e social (1951, p.125).
O pensamento que parece nortear o romance, como veremos, deve ser compreendido dentro de seu contexto sócio histórico – a obra muito expressa o pensamento higienista em voga à época.
Causo parece evitar uma análise maniqueísta do romance e de seus traços, por assim dizer, racistas:
Para a sensibilidade atual, a destruição do modo de vida de um grupo é inaceitável, mas tal destruição cabia muito bem na sensibilidade da época, que via com naturalidade o conceito do desaparecimento de espécies ou organizações sociais tidas como “atrasadas” ou “primitivas”, dentro da chave de luta pela sobrevivência do mais apto, própria do Darwinismo Social (CAUSO, 2003a, p.140).
Lembremos que, a despeito da heterogeneidade discursiva, o movimento higienista brasileiro pode ser definido por um objetivo comum às suas quatro correntes, ou seja, “o estabelecimento de normas e hábitos para conservar e aprimorar a saúde coletiva e individual” (Góis, [s.d.], acessado em 18/02/2008). O Presidente Negro, ao apresentar o surgimento de uma utopia18 por meio da higiene e da eugenia, extrapola ficcionalmente as metas almejadas pelos higienistas à época.
Curiosamente, a concepção de higiene e eugenia transparecida pelo romance não é aquela mais em voga à época da escritura, a intervencionista social. A corrente, segundo Góis, foi a única a conseguir aplicar suas propostas, com o Estado Novo em 1930, e não se pautava em idéias de superioridade ou inferioridade de determinada raça em relação à outra.
A corrente do movimento higienista chamada de darwinista social, no Brasil, acreditava
[...] que a mistura de raças com tendência de embranquecimento faria o elemento negro desaparecer do país. Afrânio Peixoto, por exemplo, era um dos defensores dessa tese. Por outro lado, não poderíamos dizer que este autor e outros eram darwinistas sociais stricto sensu, pois apostavam na mistura de raças, o que era condenado pelos darwinistas sociais (Góis, [s.d.], acessado em 18/02/2008).
A concepção de eugenia transparecida em O Presidente Negro se aproxima do darwinismo social propriamente dito e refuta a proposta dos “darwinistas sociais” do movimento higienista brasileiro. A solução brasileira, a mistura das raças, afinal, é a “medíocre”, no futuro narrado no romance.
Pode-se dizer, assim, que o romance não reflete, ponto a ponto, nenhuma das difusas tendências assumidas pelo movimento higienista nacional. O que há de comum, graças ao espírito da época, é o desejo utópico de atingir a perfeição por meio da higiene e da eugenia.

4. 3 Meses no Século 81: distopia higienista
Jeronymo Monteiro, a quem já foi atribuído o título de “Pai da Ficção Científica Brasileira”19, publicou, em 1947, a distopia 3 Meses no Século. A articulação entre o romance e o já então desvanecido movimento higienista e suas propostas e seus métodos pode ser produtiva na compreensão da crítica traçada por Monteiro.
3 Meses no Século 81, assim como o romance de Lobato aqui discutido, se apresenta como um texto de ficção científica do subgênero utopia. Nesse caso, contudo, o retrato do mundo futuro é voltado mais para a distopia, a variedade subversiva da utopia. Também há, no desfecho da obra, o surgimento de um mundo melhor, mas este é cunhado na esperança da completa dissolução do modo de vida distópico, enquanto na conclusão de O Presidente Negro, temos a “solução” para um problema, o conflito racial, posto como já contemporâneo à escritura. Em outras palavras, em Lobato não é o fim de uma distopia que sinaliza a possibilidade de melhora; em Monteiro, sim.
Em 3 Meses no Século 81, o protagonista conferencia com um ficcionalizado H. G. Wells sobre a possibilidade prática de uma máquina capaz de viajar no tempo. Nativo de um país sem grande desenvolvimento tecnológico e industrial, questão implícita na obra, realiza sua viagem não por meio de uma máquina, mas de uma projeção astral rumo ao futuro. Com a ajuda de “meia dúzia de bons médiuns” (Monteiro, 1947, p.26), seu espírito é enviado para o ano 8000 (século 80, portanto).
No futuro, o protagonista encontra um mundo que, a seus olhos, é um pesadelo. Encarnado em um corpo com morte cerebral, descobre que a constituição física do homem mudou – pele azulada e fragilíssima constituição física. Fria e massificada, carente de individualidade, a humanidade desse futuro extirpou as emoções graças a intervenções cirúrgicas; é fisicamente incapaz de se emocionar. O sexto capítulo do romance, onde tal circunstância é apresentada, é intitulado “E o Homem atingiu a Perfeição da Máquina” – há uma ironia, observemos, revestindo a palavra “perfeição”. O que mais incomoda o protagonista é o fato de que o homem conscientemente baniu o amor de sua vida, tornando-se um “aleijão”.
O protagonista, ao continuamente demonstrar horror ao mundo futuro, bem como ignorância a respeito de sua organização básica, atrai atenções. É designado, então, um professor para instruí-lo nos costumes e na história futura, bem como para espionar seu comportamento aberrante. Esse professor, Mui, cumpre o papel do guia em 3 Meses no Século 81 - é ele quem apresenta a organização social “perfeita” ao protagonista. Tratando-se de um mundo distópico, a ilusão de diálogo típica da utopia é, em um certo sentido, posta às avessas: as palavras de Mui servem não como uma defesa da organização do ano 8000, mas para que o protagonista narrador possa, a cada momento, reafirmar seu ponto de vista contrário. O trecho que segue é um de muitos possíveis exemplos:
- Ah... suponho que êsses raios se destinam a extinguir insetos, ou fertilizar a terra, ou talvez melhorar a qualidade da água, ou do ar... Hein?
- Não. É um aparelho que aproveita a desintegração dos átomos e lança um feixe de raios capazes de destruir seja o que fôr, em linha reta, a grande distância. É o Raio Vonde, ou o Raio Azul, como alguns o chamam.
Senti-me tão desanimado, tão esmagado por aquela revelação, que me abati numa poltrona e fiquei como se tivesse sido atingido pelo raio Vonde.
- Que foi? – perguntou Mui, assustado. – Que está sentindo?
- Asco! – respondi. – Asco! De vocês, do mundo, da humanidade! Isto é infame! Era a única coisa que eu não esperava encontrar entre vocês, depois de tantos séculos! Será possível que o homem através das idades, desde que se desligou do macaco, não pense senão em destruir, guerrear e matar? (Monteiro, 1947, p.95).
No romance, contudo, o paradigma narrativo utópico é estabelecido de forma insipiente. Afinal, o caráter expositivo e estático da narração utópica encontra paralelo na própria configuração de um mundo pretensamente ideal, ao qual nenhuma oposição justa pode ser levantada. O futuro apresentado em 3 Meses no Século 81, por outro lado, é mostrado como odioso e avesso à natureza do homem, e a oposição às características daquele são encontradas repetidamente nas palavras do narrador. Para Ferns,
Embora [a ficção distópica] também postule a existência de uma ordem social estática, os elementos paródicos servem para implicar um sistema de valor alternativo, à luz do qual a sociedade utópica é julgada. (...) Além disso, o abandono da noção de que a utopia é desejável torna possível aquele elemento de interação dramática de que a narrativa utópica tradicional tão marcadamente carece. Já que o ideal utópico não é mais visto como positivo, a oposição a ele não é mais impensável.20
Dessa forma, a apropriação do modelo narrativo utópico em uma distopia como 3 Meses no Século 81 é problemática. O desfecho do romance coloca a questão em evidência. Junto com seu interesse amoroso, a mulher do futuro Ilá, o protagonista comanda os revoltosos que há tempos se organizavam nos subterrâneos. Os últimos capítulos do romance, assim, abandonam bruscamente a narrativa antes estabelecida – estática e falsamente dialógica – e partem para um relato de peripécias. A transição não é efetuada de forma eficiente, e em poucas páginas rui a organização social sobre a qual a maior parte do romance é uma dissertação.
O interesse que 3 Meses no Século 81 tem para nossa discussão, assim, fica mais restrito ao plano das idéias21 e à forma particular com que seu enredo retoma e questiona proposições do movimento higienista e da eugenia por este defendida. No ano 8000, a meta higienista foi alcançada:
- Não existem problemas de higiene, Loi.
- Não há doenças, então?
- Não.
- Nem essas epidemias que periòdicamente costumavam assaltar os grandes aglomerados humanos?
- Não há nada disso. Em primeiro lugar, note que não temos aglomerados humanos. As nossas residências, como as Usinas, Fábricas e tôdas as instituições, são semeadas de maneira a evitar qualquer coisa parecida com a promiscuidade. Cada indivíduo dispõe de espaço suficiente para exercer tôdas as suas funções vitais com absoluta segurança. Além disso, não temos nada que prejudique a pureza atmosférica, como havia nos tempos passados. Suponho que o céu naqueles tempos, andava carregado de fumaça, fuligem, poeira, gases de tôda espécie. (...) Creia, porém, que a fumaça, a poeira, a falta de higiene em geral é que servia de veículo aos germes das moléstias. Nós acabamos completamente com isso. Só o fato de têrmos as nossas ruas pavimentadas como o são, e não têrmos escapamento de gases para a atmosféra, diminuiria de 60 por cento a possibilidade de doenças. Mas chegamos a uma perfeição maior. Extinguimos totalmente tôda a classe de germes e micróbios. Não resta em todo o globo um único gênero de microorganismo, e, assim, não temos nenhuma classe de moléstias, contagiosa ou não (MONTEIRO, 1947, p.160-161).
A utopia higienista de 8000, contudo, é negativa: “- Descobrimos, tarde demais, que a perfeita higiene é fatal para o homem. Eliminando tôdas as espécies de micróbios, tiramos do corpo humano a capacidade de resistência à luta. E o organismo se torna, a cada século, mais fraco” (Monteiro, 1947, p.161). Assim, a Higiene, ou o excesso de higiene, é passível de exterminar o homem. Significativamente, as armas que os revoltosos usam contra a ordem vigente são germes.
Nota-se a tradicional oposição distópica entre o “natural” e o “artificial”, presente em, por exemplo, Brave New World, de Aldous Huxley. Em Monteiro, a base dos revoltosos é, sintomaticamente, a Floresta Amazônica, uma clara representação da natureza protetora e benéfica ao homem.
Para Ginway, a oposição entre natureza e tecnologia pode ser interpretada como “um aviso aos brasileiros, de que a dependência da tecnologia pode a longo prazo enfraquecê-los física, econômica e culturalmente” (Ginway, 2005, p.71). A assertiva da crítica, observemos, toma o texto de Monteiro como um “conto cautelar”, ou seja, escrito para alertar o leitor a respeito de um mal vindouro. Também é a visada privilegiada neste texto: 3 Meses no Século 81 parece sinalizar os erros que podem ocorrer mesmo nas intenções louváveis, remetendo aos higienistas que, com a intenção de melhorar as condições de saúde da população brasileira, propuseram, por exemplo, a esterilização dos menos aptos e o “embranquecimento” do brasileiro.
Se O Presidente Negro parece nos apresentar, em dados momentos, um elogio às concepções e à prática eugênica, o romance de Jeronymo Monteiro, publicado em outro momento histórico, o pós-guerra, oferece um olhar distinto. É justificável e natural a crítica traçada em 3 Meses no Século 81, já que escrito em 1947, após o advento da doutrina eugênica mais incisiva, o arianismo – perspectiva que dificilmente poderia ser alcançada por um observador da década de 1920, como Lobato.

5. Fazenda Modelo: eugenia como representação alegórica
A relação entre Fazenda Modelo, primeiro romance de Chico Buarque, e a ficção científica não é tão imediata quanto nos outros textos literários aqui discutidos. Enquanto O Presidente Negro e 3 Meses no Século 81 recorrem a uma temática prontamente identificável com o gênero, o futuro hiper-tecnológico, Fazenda Modelo possui marcas fabulares que remeteriam, à primeira vista, ao que Darko Suvin chama de gêneros não-cognitivos. O distanciamento cognitivo, nesse caso, é especialmente significativo para a categorização proposta.
Ao chamarmos de ficção científica o romance de Buarque e atribuirmos a ele o efeito de distanciamento cognitivo, é posto em relevo o sentido da obra, e não é obstáculo a tal percepção, que os animais falem – algo, por assim dizer, nada “cognitivo” ou “científico”. A apreensão da realidade que encontra eco em Fazenda Modelo, afinal, é sistematizada e cognitiva; a humanização dos animais, por exemplo, é um artifício alegórico e como tal não deve ser prontamente relacionado ao não-cognitivo, já que provoca, como quer Suvin, a articulação crítica entre o imaginário e o empírico.
Outro dado que embasa a categorização proposta é a emulação do discurso pecuarista (científico e não ficcional, portanto) em inúmeros trechos do romance – emulação que, como veremos adiante, também serve ao propósito alegórico. O Prefácio, que recomenda o livro “a todos os pecuaristas do mundo” (Buarque, [s.d.], p.12), e a Bibliografia Técnica ao final são os exemplos mais claros.
O quadro imaginário apresentado em Fazenda Modelo pode ser chamado de distópico. Configura, afinal, um mundo onde as ordens vigentes buscam o próprio benefício e o fim dos conflitos sociais, por meio da extirpação da liberdade popular. Buarque, ao contrário de Monteiro, faz uso pleno da maleabilidade narrativa que a distopia, como sinalizara Ferns, é passível de proporcionar. O romance fornece um exemplo de que
[...] enquanto algumas das primeiras tentativas de escrever ficção utópica por meio de uma perspectiva libertária (News from Nowhere, Island) podem ter lutado para alcançar uma forma apropriada, trabalhos posteriores se beneficiaram claramente do experimento narrativo modernista e pós-modernista, bem como da ampla reavaliação da fantasia e da ficção especulativa nos anos recentes.22.
Se a experimentação formal de Fazenda Modelo responde à narrativa modernista23, o estabelecimento de uma “fábula cognitiva” responde à “ampla reavaliação da fantasia e da ficção especulativa nos anos recentes”.
Também pode ser chamada de fábula cognitiva A Revolução dos Bichos (Animal Farm, no original), de George Orwell. Distópico, é ambientado em uma granja e mostra a revolta dos animais contra o proprietário do estabelecimento, que é expulso, a fim de que uma sociedade pretensamente ideal seja instaurada. A opressão, contudo, ressurge nas mãos dos novos dirigentes, animais – em suma, o poder é particularmente passível de corromper o indivíduo. Em uma marca fabular, os animais representam alegoricamente as fraquezas humanas. Quanto ao sentido alegórico, “[...] o livro foi imediatamente visto como crítica áspera ao stalinismo” (Causo, 2003b, p.50).
Quanto ao diálogo travado entre A Revolução dos Bichos e Fazenda Modelo, Causo observa que a
[...] fábula de Orwell parece convidar respostas ou continuações semelhantes, que possam recorrer ao mesmo banco de tradições formadoras. Exemplos são Fazenda Modelo (1975), de Chico Buarque, que usa o esquema alegórico contra o regime militar brasileiro, e mais recentemente Snowball’s Chance (2002), de John Reed (CAUSO, 2003b, p.50)
Tal leitura da alegoria de Fazenda Modelo é natural. O título do romance já é bastante sugestivo: a fazenda é chamada de “Modelo” tanto por ser dissimuladamente apresentada como ideal, um exemplo a ser seguido por qualquer pecuarista, quanto por alegoricamente representar, em uma escala menor, o regime ditatorial e o cerceamento do indivíduo contemporâneos à escritura. Conforme é sugerido, a atividade do pecuarista Juvenal, proprietário da Fazenda Modelo, remete aos mandos e aos desmandos governamentais, enquanto ao povo, o gado, não é dada alternativa além da submissão. Como observa Ginway,
[o] recurso de Buarque ao mito, característico de suas composições musicais, também está presente em Fazenda Modelo, na forma de uma paisagem idealizada , luxuriante e tropical habitada por um “gado” natural, sexualmente não-reprimido. Antes do advento do regime de Juvenal, vacas e touros associavam-se livremente e desfrutavam de sua liberdade para vagar, e a espontaneidade e a sensualidade estavam na ordem do dia (Ginway, 2005, p.100)
Assim, o regime de Juvenal, responsável por roubar a liberdade dos touros e das vacas, pode ser satisfatoriamente associado ao regime ditatorial e à sua política de cerceamento do indivíduo.
A concretização da empresa eugênica é apresentada como o maior dos duvidosos trunfos da Fazenda Modelo. Ginway assinalou as implicações raciais da questão, o que nos leva a identificar no romance ecos das propostas higienistas de fins do século XIX e princípio do XX:
Esse programa de modernização é baseado no branqueamento racial e na perda da distinta mistura racial que dá aos brasileiros o seu senso de identidade. Esse paradigma de branqueamento era questionado por pesquisadores brasileiros e norte-americanos da década de 1960, e a afirmativa de Buarque de que a mistura racial poderia ser vista como uma homenagem prestada aos elementos afro-brasileiros que são imprescindíveis para a cultura brasileira. Aqui Buarque também goza o regime militar por sua reverência cega a modelos estrangeiros de industrialização e beleza, que em sua essência destroem ou negam o senso brasileiro de singularidade racial (Ginway, 2003, p.102).
O reprodutor perfeito, Abá, bem como seus numerosos filhos, encarnam o ideal de perfeição da raça. No capítulo VIII, intitulado “Ouro Branco”, são descritos os processos para a coleta do sêmen de Abá: coleta de sêmen da vagina, vagina artificial, coleta por massagem retal e, o mais bem-sucedido, eletroejaculação. O segmento parece alegorizar o processo de submissão do indivíduo ao Estado e, embora violento, é narrado de forma desconfortavelmente metódica ou “científica”.
Abá é virtualmente destruído pelo programa da Fazenda Modelo, e nem sua virilidade, antes notória, se sustenta por muito:
Tal Abá, para Aurora, é um que ultimamente andava com o gozo frouxo. Contasse Juvenal as noites em que Abá como que urinava o copioso ouro branco, sem ereção. De como o assaltavam pesadelos espantosos, os esperneios, os espasmos e as espermatorréias que balançavam as cercas e encharcavam o pasto. Que obrigavam Juvenal a se levantar resmungando:
- Um garanhão desse tamanho molhando a cama (Buarque, [s.d.]. p.121)
A própria Fazenda Modelo acaba por ruir; o gado que a sustenta fica triste e insatisfeito, levando à dissolução do estabelecimento. Na conclusão,
Juvenal mandou liquidar o gado restante, ele compreendido, decretando o fim da experiência pecuária, na Fazenda Modelo, e destinando seus pastos, a partir deste momento histórico, à plantação de soja tão-somente, porque resulta mais barato, mais tratável e contém mais proteínas (Buarque, [s.d.], p.129).
Para que possamos articular o romance à eugenia como o Brasil a conheceu, por meio do movimento higienista, são necessárias algumas palavras acerca da constituição alegórica da obra. Como nos lembra Todorov,
[p]rimeiramente, a alegoria implica na existência de pelo menos dois sentidos para as mesmas palavras; diz-se às vezes que o sentido primeiro deve desaparecer, outras vezes que os dois devem estar presentes juntos. Em segundo lugar, este duplo-sentido é indicado na obra de maneira explícita: não depende da interpretação (arbitrária ou não) de um leitor qualquer (Todorov, 1975, p.71).
Assim, a alegoria pura seria aquela em que o sentido primeiro das palavras tende a desaparecer. Na alegoria pura, “o nível do sentido literal tem pouca importância; as inverossimilhanças que aí se encontram não desconcertam, estando toda a atenção dirigida para a alegoria” (Todorov, 1975, p.74). Outra espécie de alegoria seria aquela em que o primeiro sentido das palavras se mantém, lado a lado com o alegórico. O fantástico seria um exemplo desse segundo tipo, já que, “[s]e o que lemos descreve um acontecimento sobrenatural, e que exige no entanto que as palavras sejam tomadas não no sentido literal mas em um outro sentido que não remeta a nada de sobrenatural, não há mais espaço para o fantástico (Todorov, 1975, p.71).
Parece-nos o caso tanto de O Presidente Negro quanto de 3 Meses no Século 81. Nos romances há um sentido alegórico, já que ambos falam do presente, por meio de mundos futuros imaginários, e a relativa preservação de um sentido literal. Este é mantido, ou o contraponto entre presente e futuro se veria despido de seu caráter “sobrenatural” ou, em se tratando de ficção científica, do equivalente cognitivo ao que difere do empírico, o novum.
Fazenda Modelo, por outro lado, é configurado de forma distinta. Para Todorov, a “fábula é o gênero que mais se aproxima da alegoria pura, onde o sentido primeiro das palavras tende a desaparecer completamente” (Todorov, 1975, p.71). É o caso do romance de Buarque, no qual certos elementos “distanciados”, como a humanização dos bois, são mostrados sem sobressaltos e desconcertos, e não se configuram, portanto, como os nova suvinianos. Dessa forma, o sentido primeiro serve apenas ao propósito do sentido alegórico.
Retornemos ao ponto que interessa particularmente a este texto, a relevância que, em dados momentos históricos, pôde assumir a exploração ficcional de propostas no Brasil introduzidas pelos higienistas.
A adoção da alegoria em Fazenda Modelo, escrito durante o regime autoritário ao qual volta sua crítica, segundo Ginway, “permitiu a Buarque expressar suas frustrações sobre as conseqüências da modernização e da repressão sem se meter em dificuldades com a censura” (Ginway, 2003, p.103). Dessa forma, e lembrando-nos de que o romance se apresenta como uma alegoria pura, a retomada do discurso higienista pela boca da personagem Juvenal não deve ser entendida, propriamente, como uma crítica ao higienismo e nem mesmo à eugenia. Alegoricamente, higienismo e eugenia incorporam, em Fazenda Modelo, a repressão e a decorrente perda de liberdade e da identidade individual experimentada, à época, pelos brasileiros.

6. Ordem e Excesso de Ordem
Os três romances discutidos neste texto oferecem perspectivas bastante distintas em suas abordagens ficcionais do higienismo e da eugenia. A escolha entre utopia ou distopia, bem como de diferentes níveis alegóricos, não é condicionada pelo momento histórico, apresentando-se antes como a adoção, por parte dos narradores, da forma mais adequada para potencializar o questionamento crítico de questões em pauta na circunstância empírica.
A ficção utópica, desde A Utopia, de Thomas More, retrata a organização social perfeita que foi alcançada por meio da ordem. A privação da liberdade decorrente, que salta aos olhos do fruidor contemporâneo, não é mostrada, na utopia, como negativa. Trata-se, de acordo com a proposta de Santee, de uma característica distópica involuntária, ou seja, não problematizada no texto.
O Presidente Negro, em sua narração do surgimento de uma utopia higienista, pode se mostrar distópico ao leitor que não esteja atento às circunstâncias histórico-sociais da época. A esterilização completa da raça negra, apresentada como a solução definitiva (e utópica, ideal) para os conflitos raciais, é um exemplo de característica distópica involuntária, que demanda uma maior compreensão do momento da escritura para ser lida como utópica. Assim, embora tal solução possa parecer odiosa contemporaneamente, apenas ecoava a agitação cultural provocada pelos higienistas, colocando-se, em um certo sentido, ao lado destes no que concerne às expectativas e às metas para um futuro pretensamente melhor.
3 Meses no Século 81 se valeu de uma perspectiva histórica privilegiada, e já pôde chamar de enganosa a perspectiva higiênica24. A Higiene e a Eugenia são os verdadeiros vilões desse livro, responsáveis não apenas por descaracterizar a natureza humana, como também por conduzir o homem a uma hipotética extinção.
Fazenda Modelo, escrito décadas após o desvanecimento da influência prática do movimento higienista brasileiro, recorre ao discurso da eugenia apenas pela significação alegórica a ele atribuída. O que de fato está em pauta, e isso pode ser observado na leitura da alegoria apresentada, é a crítica à ditadura militar brasileira, não ao higienismo propriamente dito.
Se a utopia é um “sonho de ordem”, é natural que a distopia, a utopia negativa, configure uma espécie de “pesadelo da ordem”. Sobre um dos impulsos para a escrita de sua distopia Brave New World, Aldous Huxley observou:
Organização é indispensável, pois a liberdade surge e tem significado apenas dentro de uma comunidade auto-reguladora de indivíduos livremente cooperativos. Mas, embora indispensável, organização pode também ser fatal. Muita organização transforma homens e mulheres em autômatos, sufoca o espírito criativo e abole a mera possibilidade de liberdade. Como usualmente, a única opção segura é no meio, entre os extremos do laissez-faire por um lado e do controle total por outro25.
Os romances tratados no decorrer deste texto lidam com a questão. O projeto eugênico, quando transfigurado ficcionalmente pela ficção utópica, representa a organização plena, que ordena até mesmo o organismo do indivíduo, no intuito de atingir determinado ideal de perfeição.
Frente às calamitosas condições de saúde pública brasileiras de fins do século XIX e princípio do século XX, o movimento higienista se apresentou como alternativa para estabelecer ordem em uma situação caótica. O Presidente Negro expressa a circunstância e parece defender a idéia de que a ordem, mesmo em excesso, é preferível ao caos. Já o romance de Jeronymo Monteiro equipara a “ordem em excesso” à “higiene em excesso”, configurando de forma particular a tradicional ojeriza distópica à organização excessiva. Mas é em Fazenda Modelo, graças à representação plenamente alegórica de uma distopia, que os discursos higienista e eugenista são por fim igualados à prática autoritária. Isso porque o sentido literal, o aprimoramento da raça, cede pleno lugar, no sentido alegórico, ao cerceamento da liberdade e aos perigos da organização em excesso.

Referências bibliográficas

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1 Ramiro Giroldo possui graduação em Letras-Inglês pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2005) e mestrado em Estudos de Linguagens pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (2008) financiado pela CAPES. Atua principalmente nos seguintes temas: André Carneiro, Utopia, Ficção Científica.
2 O episódio conhecido como Revolta da Vacina apenas reafirma a assertiva de Boarini e Yamamoto, ao evidenciar quão parca era a articulação entre o movimento e as camadas mais populares.
3 Consultado em versão eletrônica, o texto foi publicado em Psicologia Revista, São Paulo, Educ, vol. 13, n. 1, p. 59-72, 2004.
4 Renato Kehl fundou, em 1917, a Sociedade Eugênica de São Paulo, responsável por institucionalizar no País o movimento higienista e eugenista.
5 Consultado em versão eletrônica, o texto foi publicado em ConSCIENTIAE SAÚDE. Rev. Cient., Uninove – São Paulo, v. 1, p. 47-52.
6 Tradução de “un genre littéraire dont les conditions nécessaires et suffisantes sont la présence et la interaction de la distanciation et de la connaissance, et dont le principal procédé formel est un cadre imaginaire, different du monde empirique de l’auteur” (Suvin, 1977, p.15).
7 Tradução de “We might indeed see SF as a form of thought experiment, an elaborate ‘what if?’ game, where the consequences of some or other novum are worked through of a particular premise. This is precisely what Suvin asserts: ‘SF is distinguished by the narrative dominance or hegemony of a fictional novum validated by cognitive logic’” (Roberts, 2006, p.9).
8 O termo science fiction, cunhado originalmente por William Watson, foi popularizado e associado a um gênero literário específico na década de 1920, por Hugo Gernsback.
9 Tradução de “Strictement parlant, l’utopie n’est pás um genre,. Mais lê sous-genre sócio-politique de la science-fiction. Paradoxalement, cela n’aparaît qu’à la faveur du développement moderne de la science-fiction, qui redéfinit rétrospectivement l’utopie em l’englobant dans ce genre. En outre, ce développement est une continuation parfois indirecte de la literature utopique classique et de celle du 19° siècle” (Suvin, 1977. p.69).
10 Tradução de “one of the main differences between utopian and dystopian literature lies in the author’s impression: if he himself believes he is describing a better society, he is creating utopia. In this case the dystopian qualities which might appear are involuntary; however, if he believes he is describing a repulsive society, what he is creating is a dystopian society. In this case he forces situations and aspects to be repulsive, so they are by no means accidental. In both cases criticism of society is a central feature” (Santee, 1988, acessado em 14/12/2005).
11 A rubrica “extrapolação simulada” foi proposta por Darko Suvin, segundo o qual a ficção científica pode apenas simular uma extrapolação científica, nunca extrapolar de fato.
12 “Sapato”, talvez, por pisarem nos que se subordinam a eles.
13 A grafia da época foi mantida nas citações de O Presidente Negro e de 3 Meses no Século 81.
14 E a de Viagem à Aurora do Mundo, de Érico Veríssimo.
15 Tradução de “[...] a number of critics have adduced (...) that utopian narrative, by virtue of its origins, is inherently dialogic, even dialectical, inviting readers into active participation in the text, rather than relegating them to the status of passive observers. Yet while it is certainly true that a number of recent utopian fictions invite such interaction, a consideration of the conventions of the Renaissance dialogue, in which the traditional utopian narrative is rooted, might suggest that it is more often designed to have precisely the opposite effect – to produce the illusion, rather than the reality of dialogue. Functioning primarily as a rhetorical device, it serves rather to reinforce the authority of a single viewpoint that to reflect a genuine process of debate” (Ferns, 1999, p.23).
16 Tradução de “as a genre, utopian fiction is particularly strongly influenced by a sense of its own specific tradition – by the writer’s consciousness of what has gone before” (Ferns, 1999, p.16-17).
17 A Utopia, texto matriz da literatura utópica, foi escrito em 1516.
18 A esse respeito, cabe lembrar que, de acordo com Santee (1988), o que define a utopia é a intenção do autor transparecida pelo texto. Assim, ainda que a esterilização de uma raça pareça, hoje, odiosa, deve-se ressaltar que o romance de Lobato apresenta-a como a solução para um problema. Daí a narração do surgimento de uma utopia, não de uma distopia.
19 Isso por ter sido, supostamente, o primeiro escritor brasileiro a se dedicar extensivamente à produção de ficção científica. Causo, contudo, mostrou em Ficção científica, fantasia e horror no Brasil – 1875 a 1950 que Berilo Neves, décadas antes, já o teria feito.
20 Tradução de “Although it too posits the existence of a static social order, its parodic elements serve to imply an alternative value system in the light of which utopian society is judged. (...) In addiction, the abandonment of the notion that utopia is desirable make possible that very element of dramatic interaction which the traditional utopian narrative so signally lacks. Since the utopian ideal is no longer seen as positive, the concept of opposition to it is no longer unthinkable” (Ferns, 1999, p.22).
21 Curiosamente, para Farrah Mendlesohn, na ficção científica “a idéia” é o herói, conforme expresso na Introdução de sua autoria para o volume The Cambridge Companion to Science Fiction.
22 Tradução de “[...] while some of the earlier efforts at writing utopian fiction from a libertarian perspective (News from Nowhere, Island) may struggle to find an appropriate form, later works have clearly benefited from the exemplo of modernist and postmodernist narrative experiment, as well as from the broader revaluation of fantasy and speculative fiction in recent years” (FERNS, 1999, p.16).
23 Ferns fala em narrativa modernista e pós-modernista. Incorporamos ao nosso texto apenas a referência ao experimento narrativo modernista, para evitar o uso en passant de um conceito de certa complexidade.
24 Tanto no romance quanto no discurso higienista empírico, higiene e eugenia são postas lado a lado.
25 Tradução de “Organization is indispensable, for liberty arises and hás meaning only within a self-regulating community of freely co-operating individuals. But, though indispensable, organization transforms men and women into automata, suffocates the creative spirit and abolishes the very possibility of freedom. As usual, the only safe course is in the middle, between the extremes of laissez-faire at one end of the scale and of total control at the other” (Huxley, 2000, p.22).

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