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Literatura e Autoritarismo
Contextos Históricos e Produção Literária
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 12 

E SE HITLER ESCREVESSE UMA FICÇÃO CIENTÍFICA?: UMA ANÁLISE DE O SONHO DE FERRO, DE NORMAN SPINRAD

Rodolfo Rorato Londero1

Resumo: O objetivo deste artigo é analisar o romance de ficção científica O sonho de ferro (1971), de Norman Spinrad, a partir do conceito de metaficção historiográfica elaborado por Linda Hutcheon. Além de definir o conceito de Hutcheon, juntamente com seu oposto, o pastiche, e problematizar acerca dos estudos da cultura de massa, a proposta principal deste trabalho é discutir a paródia de Spinrad a respeito das idéias autoritárias e racistas identificadas nas pulp fictions norte-americanas da primeira metade do século XX.
Palavras-chave: Ficção científica, pós-modernismo, crítica social.
Abstract: The objective of this article is to analyze the Norman Spinrad’s science fiction novel The iron dream (1971) from the concept of historiography metafiction elaborated by Linda Hutcheon. Further to define the Hutcheon’s concept, jointly with your oppose, the pastiche, and to conjecture about the mass culture studies, the main propose of this paper is to argue the Spinrad’s parody about the authoritarian and racist ideas identified in the North American first half twenty century pulp fictions.
Keywords: Science fiction, post-modernism, social criticism.

1. Introdução
Quais são as relações entre autoritarismo, racismo e as “inocentes” histórias de ficção científica (doravante FC) publicadas nas antigas pulp fictions norte-americanas2? Poderíamos recorrer às obras teóricas para responder esta pergunta, mas optaremos por uma obra de FC – mais precisamente, O sonho de ferro (1971), de Norman Spinrad –, por mais paradoxal que isto pareça.
O sonho de ferro é, na verdade, um romance que contém outro romance: O senhor da suástica, uma história violenta e racista escrita em 1953 por um Adolf Hitler que imigrou para Nova Iorque em 1919. Estas datas, oferecidas por uma nota “sobre o autor” que antecede o romance de Hitler, logo indicam que estamos diante de uma história alternativa, subgênero da FC também conhecido como ucronia3. Entretanto, se O sonho de ferro é uma história alternativa, O senhor da suástica é uma fantasia científica4, outro subgênero da FC cuja origem remete às aventuras espaciais do astronauta John Carter iniciadas em A princess of Mars (1912), de Edgar Rice Burroughs, e posteriormente, mas principalmente, às de Flash Gordon (1934), do desenhista Alex Raymond. Não citamos este último por acaso, pois “Flash Gordon encarna o protótipo do mito ariano. Dotado de um corpo perfeito, musculatura invejável, possui todos os atributos de uma super-raça” (Luyten, 1985, p. 27). É através do diálogo paródico, realizado por Spinrad, entre essas obras de fantasia científica e as idéias autoritárias e racistas da primeira metade do século XX que notamos uma resposta para a pergunta acima.
Num artigo anterior, já indicamos como as histórias alternativas oferecem “[...] um espaço privilegiado para refletirmos sobre as poéticas do pós-modernismo, principalmente aquela denominada por Linda Hutcheon como ‘metaficção historiográfica’” (Londero, 2007, p. 171). Considerando esta afirmação, o objetivo deste artigo é analisar O sonho de ferro a partir do conceito de Hutcheon. Na verdade, além de metaficcional, o romance de Spinrad é metacrítico, pois apresenta comentários ao romance de Hitler através de um “posfácio à segunda edição”, assinado por um fictício professor da Universidade de Nova Iorque e redigido num estilo que lembra a crítica reacionária norte-americana da década de 19505. Desde que atentemos para estas marcas da época inseridas pelo autor, o “posfácio à segunda edição” elenca algumas questões pertinentes que pretendemos abordar ao longo deste artigo.
Como percebemos nesta rápida descrição do romance, os “elementos paratextuais” – entre aspas, pois, como se vinculam ao romance-dentro-do-romance, tais elementos são textuais – revelam-se indispensáveis para o entendimento da obra, pois situam os subgêneros dos romances (O sonho de ferro e O senhor da suástica) e, principalmente, emprestam verossimilhança para o jogo de Spinrad. Neste sentido, o autor lista, inclusive, uma relação de “outros romances de ficção científica escrito por Adolf Hitler”, cujos títulos remetem aos títulos grandiloqüentes das primeiras fantasias científicas, mas também os parodiam: “A raça dominante”, “O triunfo da vontade”, “Amanhã o mundo”, etc. Portanto, além do “posfácio à segunda edição”, também nos valeremos da nota “sobre o autor” e da apresentação que a antecede.
Para melhor empreender uma análise de O sonho de ferro, basearemos nossas formulações a partir de uma visão alegórica dos elementos da FC. Para Roberts (2000, p. 28), por exemplo, as “novidades” (alienígenas, robôs, etc.) da FC “[...] são mais que apenas macetes, e mais ainda que clichês: elas proporcionam uma gramática simbólica que articula perspectivas de discursos normalmente marginalizados, como o de raça, de gênero sexual, de não-conformismo e de ideologias alternativas”6. Um exemplo oferecido pelo próprio Roberts (2000, p. 119) são os curiosos dreadlocks do alienígena do filme Predador (1987).

2. Metaficção historiográfica, pastiche e cultura de massa
Definir dialeticamente um conceito é apresentar, inicialmente, um conceito oposto, mas complementar: no caso da metaficção historiográfica, o pastiche como elaborado por Fredric Jameson. Na verdade, Jameson e Hutcheon polarizam o debate sobre o pós-modernismo, principalmente a respeito da sua relação com a História. Para Jameson (2006, p. 44-45),
o pastiche, como a paródia, é o imitar de um estilo único, peculiar ou idiossincrático, é o colocar de uma máscara lingüística, é falar em uma linguagem morta. Mas é uma prática neutralizada de tal imitação, sem nenhum dos motivos inconfessos da paródia, sem o riso e sem a convicção de que, ao lado dessa linguagem anormal que se empresta por um momento, ainda existe uma saudável normalidade lingüística. Desse modo, o pastiche é uma paródia branca [...].
Preocupado em “[...] pensar historicamente o presente em uma época que já esqueceu como pensar dessa maneira” (Jameson, 2006, p. 13), o autor observa no pastiche uma nostalgia. Entretanto, ao usar o termo “nostalgia”, Jameson (2006, p. 21) não se refere àquele desejo antigo do romantismo, mas à incapacidade de “[...] chegar à representação estética de nossa própria experiência atual” (Jameson, 1993, p. 33). Ou seja, ao “falar em uma linguagem morta”, o pastiche impede que uma estética da atualidade se configure. Para ilustrar sua definição de pastiche, o autor cita um exemplo interessante para nosso artigo:
Deixem-me expressá-lo de maneira um pouco diferente: uma das mais importantes experiências culturais das gerações que cresceram entre as décadas de 1930 e 1950 foi o seriado das tardes de sábado, do tipo Buck Rogers – vilões alienígenas, verdadeiros heróis norte-americanos, heroínas aflitas, o raio da morte ou a caixa do Juízo Final e, no fim, o emocionante suspense cujo miraculoso desfecho deveria ser visto na tarde do sábado seguinte. Guerra nas estrelas reinventa essa experiência sob a forma de um pastiche, ou seja, já não há nenhum sentido numa paródia desses seriados, uma vez que eles deixaram de existir há muito tempo. Guerra nas estrelas, longe de ser uma sátira desenxabida dessas formas hoje mortas, atende a um anseio profundo (diria eu, até mesmo recalcado?) de voltar a vivenciá-las: é um objeto complexo em que, num nível primário, as crianças e adolescentes podem tomar as aventuras diretamente, enquanto o público adulto tem a possibilidade de satisfazer um desejo mais profundo e mais propriamente nostálgico de retornar àquele antigo período e vivenciar novamente seus estranhos e antigos artefatos estéticos (Jameson, 1993, p. 32).
Entretanto, como pensar nos produtos culturais que recuperam uma “linguagem morta” não para saciar desejos recalcados, mas para obrigá-la a dizer o que ocultava quando viva? Apesar de emprestarem a mesma “linguagem morta”, os objetivos de Guerra nas estrelas e O sonho de ferro são totalmente diferentes. Neste sentido, como veremos adiante, o romance de Spirand não é um pastiche das primeiras fantasias científicas, mas uma metaficção historiográfica.
Para a metaficção historiográfica, “a história passa a ser um texto, um construto discursivo ao qual a ficção recorre tão facilmente como a outros textos da literatura” (Hutcheon, 1991, p. 185); contudo, este tipo de ficção pós-modernista “[...] sugere que houve matérias brutas – personagens e acontecimentos históricos – mas que hoje só as conhecemos como textos” (Hutcheon, 1991, p. 188; grifo da autora), ou seja, para explicarmos através de exemplos, o Holocausto ocorreu, mas só temos acesso a este acontecimento por meio de testemunhos, fotos, edifícios, etc. Mas qual é a finalidade dessa relação intertextual com a História? Segundo Hutcheon (1991, p. 147), “a ficção pós-moderna sugere que reescrever ou reapresentar o passado na ficção e na história é – em ambos os casos – revelá-lo ao presente, impedi-lo de ser conclusivo e teleológico”. Ao contrário de Jameson, Hutcheon observa positivamente as apropriações do passado, pois elas rediscutem a História a partir do presente, ou seja, a partir de novas perspectivas.
Como Jameson a respeito do pastiche, Hutcheon também observa o motivo da paródia na metafição historiográfica, mas não aquela “paródia branca” citada anteriormente, e sim uma paródia que visa “[...] sacralizar o passado e questioná-lo ao mesmo tempo” (Hutcheon, 1991, p. 165). Estamos aqui distante da paródia modernista que, calcada na busca pelo novo, promove a destruição do antigo7 – para os pós-modernistas, esta busca pelo novo torna-se irrelevante. É neste ponto que as conceituações de Jameson e Hutcheon aproximam-se, pois ambos concordam a respeito do descrédito pelo novo, apesar de apresentarem conclusões diferentes: incapacidade de representar o presente (Jameson) / vontade de questionar o passado (Hutcheon). A metaficção historiográfica e o pastiche são, portanto, as duas faces, positiva e negativa respectivamente, da moda retrô, uma das principais características da pós-modernidade.
Se Guerra nas estrelas ilustra o conceito de pastiche, “O contínuo de Gernsback” (1981), primeiro conto do escritor cyberpunk William Gibson, elucida o de metaficção historiográfica: o narrador-protagonista, um fotógrafo que sofre de estranhas alucinações – visões do “futuro” imaginado pelos autores de FC das décadas de 1920 e 1930 (daí a referência a Hugo Gernsback, fundador de Amazing Stories em 1926, a primeira revista de FC) –, conclui, diante destes “fantasmas semióticos”, que “tinha tudo o cheiro sinistro de propaganda da Juventude Hitleriana” (Gibson, 1988, p. 25). Isto se deve, “pois o futuro conforme imaginado por Gernsback e seus pares era um futuro WASP: White, Anglo-Saxan, Protestant (Branco, Anglo-Saxão e Protestante). Quem não se enquadrasse nesse futuro não figuraria nele” (Fernandes, 2006, p. 57). Temos aqui uma reapresentação do passado a partir do presente: na verdade, Spinrad (1989, p. 183), também crítico de FC, define o movimento cyberpunk como “[...] uma reexaminação das origens tradicionais e materiais da ficção científica a partir de uma perspectiva alterada dos anos 1980”8. Esta afirmação serve para a própria obra de Spinrad, pois O sonho de ferro também reexamina as origens da FC, mas a partir de uma perspectiva dos anos 19709: na nota “sobre o autor”, por exemplo, lemos que, antes de tornar-se escritor, Hitler trabalhou como desenhista e “ilustrou seu primeiro texto para a revista de ficção científica Amazing [Stories], em 1930” (Spinrad, 1976, p. 7). Como o conteúdo, as capas da revista fundada por Gernsback também revelam um futuro WASP (ver Fig. 1).

Figura 1 (Lawrence, 1951, Amazing Stories vol. 26, n. 5)
Esta visão do futuro não se limitou apenas à Era Gernsback ou Era Pulp, como os historiadores da FC denominam o período entre 1926 e 1938, mas também a notamos na Era Campbell ou Era de Ouro, entre 1938 e 1950. Segundo Tavares (1992, p. 76-78),
defeitos e qualidades dessa fc se devem em grande parte ao editor John W. Campbell Jr., que durante 34 anos esteve à frente da revista Astounding SF (mais tarde chamada Analog). A liderança de Campbell a partir de 1938, quando assumiu a editoria dessa revista, marcou de forma indelével a fc americana. Ele revelou toda uma geração de jovens autores: Asimov, Robert Heinlein, Theodore Sturgeon, A. E. Van Vogt, Clifford Simak, etc. – ou seja, o primeiro time da fc clássica americana. (...)
Campbell era um WASP (branco, anglosaxão e protestante) e partia do princípio de que os leitores de fc também o eram, com o dado adicional de serem adolescentes. Frederik Pohl, que considera Campbell “o maior editor de fc de todos os tempos”, reconhece que ele tinha recebido a típica formação americana que leva a achar os judeus “um tanto ridículos” e os negros “sem talento”. Campbell se preocupava em não desagradar o público e em não se afastar muito dos “valores estabelecidos”.
Mas como esta imposição se realiza nos textos de FC? Tavares (1992, p. 13) afirma que “um tema comum a todos esses tipos de narrativa é o do Outro/Eu, ou a justaposição do conhecido (o Eu) e do estranho (o Outro)”. Portanto, é na valorização do Eu em detrimento do Outro que percebemos a construção do futuro WASP nos textos de FC. Sodré (1973, p. 121; grifos do autor) explica isto com as seguintes palavras:
É possível que a principal oposição mítica da FC seja do tipo nós/os outros, na qual é negada a alteridade (tudo aquilo que não se ajusta à imagem ideológica que fazemos de nós mesmos). Nas narrativas da Era Gernsback, o outro era negado por um truque: a Terra era apresentada como um lugar tranqüilo, e as outras formas de vida como perturbadoras ou indesejáveis. “Não havia mundos estranhos”, diz J. Gattégno, “mas formas estranhas de mundo”. Mais tarde, na Era Campbell, o outro foi admitido, porém sob um prisma extremamente negativo: eram principalmente os soviéticos ou as formas coletivizadas de vida.
Em Flash Gordon, por exemplo, o vilão é o Outro, o orientalismo representado pelo tirano Ming, do planeta Mongo. Segundo Cirne (1974, p. 48), “sem dúvida, a complexidade do universo raymondiano está implicitamente ligada à ideologia norte-americana dos anos 30 e 40. Dos 30, pela necessidade de fantasia alienante; dos 40, pela necessidade de salvar a democracia ocidental e cristã das ameaças orientais e pagãs”. Este xenofobismo não transparece apenas na FC desse período: alguns contos de H. P. Lovecraft, famoso escritor de horror, também revelam uma repulsa pelo Outro. Em “O horror em Red Hook” (1925), por exemplo, a multidão de imigrantes parece constituir o verdadeiro elemento assustador do conto:
A população é uma mistura e um enigma irremediáveis: elementos sírios, espanhóis, italianos e negros, chocando-se uns com os outros, e fragmentos dos cinturões escandinavo e norte-americano não muito distantes. É uma babel de sons e sujeira, lançando gritos estranhos em resposta ao marulhar das ondas oleosas em seus píeres encardidos e às colossais litanias de órgão dos apitos no porto. (...)
Dessa mescla de putrefação material e espiritual, as blasfêmias de uma centena de dialetos assalta o céu (Lovecraft, 2000, p. 69-70).
Entretanto, não são todos os textos de FC (e de horror) que negam a alteridade, como nos faz entender a afirmação de Sodré. Em 1961, doze anos antes dos escritos de Sodré, Os amantes do ano 2050, de Philip José Farmer, já retratava relações sexuais entre humanos e alienígenas, sendo um grande exemplo de aceitação da alteridade, principalmente se considerarmos a sociedade norte-americana, que sempre desprezou relações inter-raciais.
Outro ponto que devemos refletir a respeito da afirmação de Sodré e mesmo de outras citadas ao longo deste artigo refere-se ao modelo “agulha hipodérmica”10 adotado por estas interpretações, pois
parece que são essas as concepções que estão no fundo de grande parte dos estudos da literatura de massa, orientados pelo pensamento da Escola de Frankfurt, e que tomam os leitores como consumidores, vítimas da competência técnica homogeneizante da indústria cultural. Ecléa Bosi, por exemplo, diz que na literatura açucarada “reduz-se o leitor ao nível da aceitação passiva” (Fernandes, 1997, p. 64).
Horkheimer e Adorno (2002, p. 31), por exemplo, afirmam que “o espectador não deve trabalhar com a própria cabeça; o produto prescreve toda e qualquer reação: não pelo seu contexto objetivo – que desaparece tão logo se dirige à faculdade pensante – mas por meio de sinais”. Ao negar o papel ativo ocupado pelo receptor, e não apenas pelo emissor, notamos a fraqueza de algumas análises da Escola de Frankfurt. Um leitor negro de Flash Gordon, por exemplo, consegue perfeitamente se projetar no “herói ariano” e viver suas aventuras e, ainda assim, descartar os mitos veiculados pela história ou se posicionar criticamente diante deles. Entretanto, pensar assim não invalida as investidas do emissor, tão bem descritas pela Escola de Frankfurt: aqui, como em vários lugares, o termo “jogo” melhor define a relação entre emissor e receptor.
Para não abandonarmos tão depressa esta discussão, importante para os estudos que abordam a cultura de massa, citemos um trecho da nota escrita por Barthes (1980, p. 181) em 1970 a respeito das suas Mitologias (1957), obra que revela um uso refinado do modelo “agulha hipodérmica”:
Os dois gestos que estão na origem deste livro não poderiam mais hoje, evidentemente, ser executados da mesma forma (pelo que renuncio a corrigi-lo); não que a matéria que o constitui tenha desaparecido; mas, ao mesmo tempo que ressurgiu bruscamente (em maio de 1968) a necessidade de uma crítica ideológica, esta sutilizou-se, ou pelo menos deveria ter-se sutilizado, e a análise semiológica inaugurada, no que me diz respeito, pelo texto final das Mitologias, desenvolveu-se, precisou-se, complicou-se, dividiu-se. Tornou-se o lugar teórico onde se pode realizar, neste século e no nosso Ocidente, uma certa libertação do significante. Não poderia, portanto, escrever novas mitologias, na sua forma passada (aqui presente).
Esta “libertação do significante”, esta abertura da obra pelo leitor, desarma a interpretação fechada da antiga crítica ideológica que extraía, dos produtos da cultura de massa, exemplos de dominação. “Marte não é apenas a Terra, é a Terra pequeno-burguesa, é o pequeno domínio de mentalidade cultivado (ou expresso) pela imprensa ilustrada” (Barthes, 1980, p. 34) – interpretações/imposições como esta, retirada das Mitologias, não mais se sustentam, e Barthes já reconhecia isto no fim da década de 1960.
Atento para estas questões, o próprio Spinrad (1976, p. 240-241), através do “posfácio à segunda edição”, parodia tais teorias ao empregar expressões como “leitor não sofisticado” ou, mais redundante, “leitor médio não sofisticado”. Como o mitólogo de Barthes11, somente o fictício professor que assina o posfácio (ou seja, a crítica) é capaz de decodificar o texto, nunca o leitor: “Não há dúvida de que grande parte da atração de O Senhor da Suástica para o leitor não sofisticado vem do exuberante simbolismo fálico que domina inteiramente o livro” (Spinrad, 1976, p. 240). Sendo assim, Spinrad também parodia esta imagem do crítico-mitólogo como único detentor do código de interpretação.

3. Uma análise de O sonho de ferro
Antes de qualquer palavra a respeito do romance de Spinrad (ou melhor, de Hitler), citemos seus parágrafos iniciais para mostrar como esta FC traça, de fato, as relações entre autoritarismo, racismo e as pulp fictions:
Com um grande gemido de metal fatigado e um sibilar de vapor escapando, o transporte de Gormond fez uma parada no pátio sujo da estação de Pormi, com apenas três horas de atraso: uma façanha bastante respeitável, nos padrões borgravianos. Uma miscelânea de criaturas vagamente humanóides desceu do vapor, exibindo a habitual variedade borgraviana de peles, membros e maneiras de andar diferentes. Restos de comida do piquenique mais ou menos permanente que aqueles mutantes haviam feito durante a viagem de doze horas, prendiam-se às suas roupas grosseiras e, na maioria, puídas. Um odor azedo de mofo acompanhava aquele grupo palrador de espécimes heterogêneos, que atravessava às pressas o pátio enlameado, dirigindo-se para o abrigo de cimento aparente que servia como terminal.
Finalmente, surgiu no vagão do vapor uma figura de surpreendente e inesperada nobreza: um humano verdadeiro, na plenitude de sua virilidade, alto, poderosamente construído. Seu cabelo era louro, a pele clara e os olhos azuis e brilhantes. Sua musculatura, estrutura óssea e presença eram perfeitas em todos os detalhes e a túnica azul justa estava limpa e em bom estado.
Feric Jaggar mostrava em cada centímetro o genótipo humano puro que de fato era. Só por isso suportou aquele contato íntimo e prolongado com o populacho de Borgravia: os quase-humanos não tinham outro remédio a não ser reconhecer sua pureza genética. O olhar de Feric colocou os mutantes e híbridos nos seus respectivos lugares, onde se mantiveram (Spinrad, 1976, p. 11).
O último parágrafo, ao destacar expressões típicas da retórica nazista (“genótipo humano puro” e “pureza genética”), redimensiona os dois parágrafos anteriores, que apresentam descrições facilmente identificáveis nas pulp fictions: a escória alienígena/mutante (primeiro parágrafo) e o herói épico (segundo parágrafo).
Na verdade, se lermos atentamente os dois primeiros parágrafos, já notamos essas articulações:
No primeiro parágrafo, “uma miscelânea de criaturas vagamente humanóides desceu do vapor, exibindo a habitual variedade borgraviana de peles, membros e maneiras de andar diferentes”: esta atenção dada às características físicas do Outro, especialmente à pele – “a pele do populacho das ruas de Pormi, como em Gormond, era uma incrível colcha de retalhos de mutações híbridas. Peles Azuis, Homens Lagartos, Arlequins e Rostos Vermelhos [...]” (Spinrad, 1976, p. 12) –, nos remete à seguinte observação de Roberts (2000, p. 132):
O que, por um instante, distingue primariamente ‘o alienígena espacial’ do ser humano? Nós podemos dizer um número de coisas (tentáculos, olhos de inseto, muitos braços, substância viscosa e assim por diante), mas as chances são que concordemos numa coisa: cor da pele. Alienígenas, como a consciência popular sabe, possuem cores diferentes – pele verde, pele azul, ou (mais tardiamente) pele cinza. A cor da pele, em outras palavras, é refletida pela FC como a chave vetorial da diferença12.
Para contextualizar esta observação de Roberts, devemos lembrar que as origens populares da FC encontram-se nos Estados Unidos, país marcado por conflitos raciais. Portanto, consciente dessa “norma” implícita da FC – a cor da pele como principal diferença entre humanos e alienígenas/mutantes –, Spinrad vale-se dela para ressaltar o diálogo paródico entre racismo e as pulp fictions.
Curiosamente, o “posfácio à segunda edição” descarta estas relações ao afirmar meramente que “talvez a descrição que Hitler faz dos descendentes geneticamente deformados de nossa própria era, seja simplesmente uma nota de advertência [à guerra atômica]” (Spinrad, 1976, p. 246). Sendo o posfácio “escrito” em 1959, é compreensível que as questões raciais sejam escamoteadas pelo grande temor norte-americano da época: “Todavia, apesar da confusão de detalhes, a alegoria política fundamental de O Senhor da Suástica é bastante cristalina: Heldon, representando a Alemanha ou o mundo não comunista, aniquila Zind totalmente, que é a representação da Grande União Soviética” (Spinrad, 1976, p. 246). Como veremos nas considerações finais, essa ocultação revela, na primeira metade do século XX, uma sintonia entre as idéias autoritárias e racistas e o “espírito do tempo” ocidental.
No segundo parágrafo, “seu cabelo era louro, a pele clara e os olhos azuis e brilhantes. Sua musculatura, estrutura óssea e presença eram perfeitas em todos os detalhes [...]”: eis uma transcrição literária de Flash Gordon (ver Fig. 2).

Figura 2 (Alex Raymond, 1936, Flash Gordon)
O emprego do termo “virilidade”, ainda no segundo parágrafo, parodia o ambiente exclusivamente masculino que dominou a FC até a década de 1960. Segundo Tavares (1992, p. 78),
a fc [na Era Campbell] era como o western: um gênero masculino, cavalheiresco e casto. Havia batalhas por toda parte, menos nos lençóis; planetas inteiros eram pulverizados, impérios malignos lutavam até a derradeira explosão – e no final o cowboy subia ao trono da Confederação Galáctica e casava com a professorinha do vilarejo.
Esta observação também se encontra no “posfácio à segunda edição”, comprovando a qualidade metacrítica do romance:
E se isto não for bastante, considere-se o fato espantoso de não aparecer uma única mulher como personagem no livro. Tem sido abundantemente dito que a assexualidade é a marca registrada do romance de ficção científica típico. As mulheres só aparecem como castas figuras de reserva, símbolo de interesse romântico para o herói, prêmios a serem ganhos. Todavia, O Senhor da Suástica não só não tem esse interesse tradicional, como vai até incrivelmente longe para negar seja verdadeira a necessidade da mulher como metade da raça humana. Finalmente, toda a reprodução é obtida pelo enxerto dos PS [Pelotões da Suástica] totalmente masculinos, uma estranha espécie de partenogênese masculina (Spinrad, 1976, p. 243).
O “posfácio à segunda edição” também vincula o romance de Hitler ao subgênero Espada & Feitiçaria13, conhecido mundialmente pela personagem de Robert E. Howard, Conan, o bárbaro (1932). Esta vinculação realiza-se não no nível temático, mas no nível simbólico: “Tais romances são escritos de acordo com uma fórmula simples, na qual essa figura super-masculina, ajudada pela sua poderosa arma fora do comum, com a qual ele tem uma evidente identificação fálica, supera grandes obstáculos para obter uma vitória inevitável” (Spinrad, 1976, p. 241)14 – em O senhor da suástica, o herói também porta uma “poderosa arma fora do comum”, o Malho de Aço. Entretanto, ambos também compartilham uma preferência ideológica pela violência ao invés do debate, pela coerção ao invés da discussão. Numa das aventuras de Conan, “A rainha da Costa Negra” (1934), lemos a seguinte fala do bárbaro:
Quero experimentar os ricos sucos da carne vermelha e o vinho picante, o aperto quente de braços brancos como o marfim, a loucura do triunfo na batalha, quando as lâminas azuladas queimam e se tingem de vermelho. Isto basta para me alegrar. Que os mestres, os sacerdotes e os filósofos meditem sobre as questões de realidade e ilusão! De uma coisa eu sei. Se a vida é ilusão, também sou uma: a ilusão é real para mim. Eu vivo, estou cheio de vida, eu amo, eu mato, eu sou feliz assim (Howard, 2006, p. 135).
Esta citação denota o pensamento de alguém que “vive para o momento, saboreando cada instante” (Louinet, 2006, p. 21), mas, da forma como é construída, também revela um desprezo pela reflexão intelectual a favor dos prazeres materiais e da violência. Certamente, em O senhor da suástica, isto é mais evidente, pois vejamos a seguinte fala do protagonista Feric Jaggar: “Não vim a esta reunião para trocar gentilezas ou discutir pontos do protocolo, pois tais passatempos devem ser o divertimento de gente como os senhores [do Conselho]” (Spinrad, 1976, p. 116) – ameaça que se mostra verdadeira quando Jaggar obriga os Conselheiros, através da violência, a lhe outorgar o título de Comandante Supremo do Domínio de Heldon (Spinrad, 1976, p. 123-126).
No primeiro número da revista acadêmica Science fiction studies (primavera de 1973), a escritora de FC e fantasia Ursula K. LeGuin observa que, além da Espada & Feitiçaria,
existe outro tipo de livro onde O sonho de ferro pode ser visto como uma paródia ou crítica indireta, e este tipo de livro é a “aventura heterossexual de FC inverossímil”, como é chamada em desaprovação pela modéstia varonil por haver qualquer mensagem filosófica/intelectual pomposa, embora, de fato, contenha freqüentemente uma forte dose de ideologia concentrada. Este é o tipo de história melhor exemplificado por Robert Heinlein, que acredita no Macho Alfa, no papel do homem superior (geneticamente) inato, nas virtudes heróicas do militarismo, no desejável e necessário controle autoritário, etc., e que possui um argumento muito persuasivo para todas essas coisas15.
LeGuin refere-se aqui, principalmente, ao romance Tropas estelares (1959), de Heinlein. Até hoje este romance gera debates polêmicos, pois não é claro se Heinlein apresenta uma paródia ou uma glorificação dos regimes fascistas (no filme homônimo de 1998, por exemplo, o diretor Paul Verhoeven “interpreta” o romance como paródia). Sobre o romance de Heinlein, Sodré (1988, p. 50) afirma que “[...] ele projeta uma sociedade em que apenas veteranos do serviço militar podem votar. Nem sempre seus textos obtinham os efeitos desejados pelo autor”.

4. Considerações finais
Veja você mesmo por que tantas pessoas viraram-se para este romance de fantasia científica como um farol de esperanças nestes tempos sombrios e terríveis (Spinrad, 1976, p. 5).
Como muitos se voltaram para O senhor da suástica no universo alternativo de Spinrad, também muitos se voltaram para as idéias autoritárias e racistas na primeira metade do século XX. Se enfatizamos tão pouco a figura de Hitler ao longo deste artigo – poderíamos perfeitamente traçar analogias entre Mein Kampf (1924) e O senhor da suástica –, é por que ela serve apenas como estandarte do autoritarismo e do racismo do seu tempo. Perspicazmente, LeGuin (1973) observa que
somos forçados, até onde continuamos a ler seriamente o livro, a pensar, não sobre Adolf Hitler e seus crimes históricos – Hitler é simplesmente o meio distanciado – mas a pensar sobre nós mesmos: nossas presunções morais, nossas idéias de heroísmo, nossos desejos de liderar ou ser liderado, nossas guerras por direito. O que Spinrad está tentando nos dizer é que isso está acontecendo aqui16.
Muitas pulp fictions provaram que as idéias autoritárias e racistas não se limitavam à Alemanha nazista. Aliás, elas também não se limitaram aos Estados Unidos: em Ficção científica, fantasia e horror no Brasil (2003), Causo lista algumas FCs brasileiras que pregavam abertamente utopias eugênicas: O reino de Kiato (1922), de Rodolpho Theophilo; Sua Excia. a Presidente da República no ano 2500 (1929), de Adalzira Bittencourt; e, relançado recentemente, O presidente negro (1926), de Monteiro Lobato17.
Através da metaficção historiográfica, Spinrad revela, a partir dos produtos culturais da primeira metade do século XX, um mundo que ultrapassou as fronteiras da ficção científica para, infelizmente, desembocar na realidade.

Referências

ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. Trad. Antonio Alexandre Faccioli; Gregório Pelegi Toloy. São Paulo: Summus, s/d.
BARTHES, Roland. Mitologias. Trad. Rita Buongermino; Pedro de Souza. São Paulo: DIFEL, 1980.
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1 Doutorando em Estudos Literários na UFSM. E-mail: rodolfolondero@bol.com.br
2 Revistas publicadas entre as décadas de 1920 e 1950, impressas em papel barato feito da polpa da madeira e dedicadas a diversos gêneros: fantasia, horror, FC, policial, espionagem, etc.
3 Eco (1989, p. 186) define a ucronia da seguinte forma: “A utopia pode transformar-se em ucronia, onde o contrafactual assume a seguinte forma: ‘que teria acontecido se o que realmente aconteceu tivesse acontecido de modo diferente – por exemplo, se Júlio César não tivesse sido assassinado nos idos de março?’ Temos ótimos exemplos de historiografia ucrônica usada para melhor entender os acontecimentos que produziram a história atual”. Entretanto, o autor não considera as ucronias como exemplos de FC. Para uma crítica a este posicionamento de Eco, ver Londero (2007, p. 174-176).
4 A fantasia científica, como a FC em geral, é um gênero difícil de definir, mas fácil de identificar: Guerra nas estrelas (1977) e demais aventuras espaciais, Mad Max (1979) e boa parte das ficções que retrata mundos pós-desastre nuclear, como o próprio O senhor da suástica, são exemplos de fantasia científica. Allen (s/d, p. 23) a define da seguinte maneira: “Sob este título estariam aquelas estórias que, pressupondo um universo ordenado com leis naturais constantes e passíveis de descoberta, propõe que as leis naturais são diferentes das que derivamos de nossas ciências atuais”. Entretanto, esta definição, a nosso ver, é insatisfatória, pois, de fato, as histórias de fantasia científica ocorrem num mundo diferente do nosso, mas seu enfoque não reside tanto na explicação deste mundo, mas principalmente no desenvolvimento de uma aventura épica, valendo-se deste mundo apenas como cenário.
5 Pensamos aqui naqueles apanhados de psicanálise, elitismo e anti-comunismo tão patentes em obras como The seduction of the innocents (1954), do psiquiatra Frederic Wertham, destinada a desmoralizar as histórias em quadrinhos.
6 Tradução livre do original: “[...] are more than just gimmicks, and much more than clichés: they provide a symbolic grammar for articulating the perspectives of normally marginalized discourses of race, of gender, of non-conformism and alternative ideologies”.
7 Quando Hutcheon (1991, p. 165) afirma que “a paródia não é a destruição do passado”, pensamos numa paródia propriamente pós-modernista, apesar dela não destacar isto.
8 Tradução livre do original: “[…] a re-examination of science fiction’s roots traditional material from an altered 1980s perspective”.
9 Spinrad pertence à geração anterior aos cyberpunks (década de 1980) denominada New Wave (décadas de 1960 e 1970) e, segundo os seis estágios da FC propostos por Jameson (2007, p. 93), interessada em experimentações estéticas. Se os próprios cyberpunks afirmam-se como herdeiros da New Wave (Sterling, 1988, p. 6), então esta reexaminação das origens da FC não é mais um legado da geração anterior?
10 Termo utilizado pelas Teorias da Comunicação para classificar os estudos norte-americanos realizados nas décadas de 1920 e 30. Para estes estudos, somente o emissor é ativo durante o processo de comunicação, daí a metáfora da “agulha hipodérmica” como uma injeção/mensagem eficaz transmitida pelo emissor.
11 Segundo Barthes (1980, p. 145), “só poderei surpreender-me com esta contradição [entre o sentido e a forma] [...] se aplicar ao mito um processo estático de decifração; em suma, se contrariar a sua dinâmica própria; numa palavra, se passar da situação de leitor do mito à situação de mitólogo”. Mas é possível distinguir leitor do mito e mitólogo?
12 Tradução livre do original: “What, for instance, primarily distinguishes ‘the space alien’ from the human being? We might say any number of things (tentacles, bug-eyes, many arms, slime and so on), but the chances are we would agree on one thing: skin colour. Aliens, as popular consciousness knows, are differently coloured – green-skinned, blue-skinned, or (more latterly) grey-skinned. Skin colour, in other words, is reflected by SF as the key vector of difference”.
13 Outro gênero difícil de definir, mas fácil de identificar: segundo Schoereder (2007, p. 6), “[...] em 1961, Michael Moorcock – editor, escritor de ficção científica e fantasia, criador da série com o personagem Elric – procurava um termo para definir o subgênero da fantasia em que surgiam heróis musculosos que entravam em conflito com vilões de vários tipos, feiticeiros, bruxas, espíritos malignos e outras criaturas com poderes sobrenaturais. Foi então que [Fritz] Leiber sugeriu ‘espada e feitiçaria’, termo que pegou”.
14 Contemporâneo de Spinrad, Michael Moorcock (ver nota anterior) realiza uma releitura deste esquema tradicional da Espada & Feitiçaria em A espada diabólica (1965) e outras aventuras de Elric: como observa Schoereder (2007, p. 7-8), “o interessante é que Moorcock, como um escritor com um sentido de ironia e crítica mordaz, apresenta Elric como um herói triste, atormentado e odiando sua arma – que, como objeto semi-senciente, também não gosta muito de Elric –, ainda que eles sejam inseparáveis”.
15 Tradução livre do original: “There is another kind of book of which this can be said to be a parody or oblique criticism, and that is the Straight SF Adventure Yarn, as it is called in manly-modest disclaimer of its having any highfalutin philosophical/intellectual message, though, in fact, it usually contains a strong dose of concentrated ideology. This is the kind of story best exemplified by Robert Heinlein, who believes in the Alpha Male, in the role of the innately (genetically) superior man, in the heroic virtues of militarism, in the desirability and necessity of authoritarian control, etc., and who is a very persuasive arguer for all these things”.
16 Tradução livre do original: “We are forced, in so far as we can continue to read the book seriously, to think, not about Adolf Hitler and his historic crimes – Hitler is simply the distancing medium – but to think about ourselves: our moral assumptions, our ideas of heroism, our desires to, lead or to be led, our righteous wars. What Spinrad is trying to tell us is that it is happening here”.
17 Um pequeno resumo desta obra de Lobato é dado por Cunha (s/d, p. 7): “Eis o tema em linhas gerais: num futuro não muito remoto, os negros assumem o poder na América do Norte. Um cientista inventa um produto que estira o cabelo pixaim. Ora, segundo Lobato, o maior sonho de um negro é ter cabelo liso. O produto, no entanto, esteriliza quem o usa. Dessa forma, é resolvido o problema do negro nos Estados Unidos: pela extinção dessa raça. As peripécias giram em torno disso”.
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