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Literatura e Autoritarismo

Literatura: Compreensão Crítica

Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 14 

COMPREENDER A CULTURA EM SEU DEVIR: PROCESSOS DE LEITURA E FORMAÇÃO

João Luis Pereira Ourique1
Maiane Liana Hatschbach Ourique2
Resumo: Este trabalho repercute o processo de formação cultural e a inserção de sujeitos-leitores em um contexto no qual as transformações históricas e sociais estão cada vez mais dinâmicas. Essas mudanças carregam um clima de incerteza que, ao oportunizarem várias possibilidades interpretativas, também geram uma busca por definições facilitadoras que – de maneira cada vez mais frequente – dogmatizam e simplificam sobremaneira a atividade infindável de compreensão do mundo. Dessa forma, o reconhecimento de novas perspectivas de leitura das produções culturais e das experiências vividas carece de uma compreensão hermenêutica no sentido de viabilizar um processo constante de crítica e intercâmbio entre vida e razão.
Palavras-chave: Formação cultural – sujeitos-leitores – interpretação – compreensão – Teoria Crítica
Abstract: This work affects the process of cultural formation and the insertion of subject-readers in a context in which the historical and social changes are increasingly dynamic. These changes carry a climate of uncertainty that in providing several possible interpretations, they also generate a search for definitions facilitate that - an increasingly frequent - dogmatize and greatly simplify the endless activity of understanding the world. Thus, recognition of new possibilities for interpreting the cultural productions and experiences requires a hermeneutic understanding in order to enable a constant process of criticism and exchange between life and reason.
Keywords: Cultural formation - subject-readers - interpretation - comprehension - Critical Theory

Ao propormos uma interpretação da cultura – com base em duas produções temporalmente distantes, quais sejam, Soneto 11 de Camões (Século XVI) e a composição musical Asas do grupo Maskavo (início dos anos 2000) – intentamos compreender o devir histórico das produções culturais como um processo formativo (Bildung) par excellence. Neste sentido, chamamos a atenção para a medida que as interpretações cotidianas podem modificar nossa forma de elaborar tanto o passado quanto a “realidade”. Dessas transformações advêm certas situações que interferem tanto no processo de construção e elaboração da obra quanto da sua recepção, voltada para a sua contemporaneidade e também para sua leitura e inserção em outros contextos históricos e sociais.
Walter Benjamin já alertava para o processo de inserção crítica e engajada do intelectual e do artista – ambos vistos como produtores da cultura e responsáveis pelas formas interpretativas do mundo. Assim, ao abordar essa questão, Benjamin afirma que “abastecer um aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo, na medida do possível, seria um procedimento altamente questionável mesmo que os materiais fornecidos tivessem uma aparência revolucionária” (BENJAMIN, 1985, p. 128).
Como representante da Teoria Crítica, Benjamin está a nos lembrar das armadilhas que o paradigma representacional construiu. Evidencia que, se continuarmos com os mesmos questionamentos epistemológicos em torno da “autoconsciência” e subjetividade daquele modelo, poderemos apenas perceber a imanência das produções culturais, sem estabelecermos compreensões mais profundas sobre as relações éticas e estéticas que as mesmas ancoram.
Lembramos aqui que a possibilidade de representações e o ideal de progresso mostram toda sua vulnerabilidade ao relegar a natureza e as múltiplas facetas manifestas no mundo da vida. O entendimento de que o esclarecimento estruturou-se como força de contrapeso ao mito é desacreditado por Theodor Adorno e Max Horkheimer já no prefácio do livro Dialética do Esclarecimento, quando afirmam que o mito é já iluminismo e o iluminismo recai no mito. Adorno aprofunda essa crítica ao mito do progresso – relação direta com a preocupação de Benjamin de que é possível abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo – ao afirmar que a “arrogante teoria do conhecimento que insiste na exatidão ali onde a impossibilidade de um saber é inerente à coisa mesma, desencontra-se com esta, sabota a intelecção e serve à conservação do ruim” (ADORNO, 1995, p. 37).
Situando esta discussão sob o viés linguístico, pretendemos refletir sobre o caráter factível da cultura e as diferentes formas que os sujeitos empreendem para atualizá-la. Hans-Georg Gadamer afirma que a “relação essencial entre o caráter de linguagem e a compreensão se mostra de imediato no fato de que é essencial para a tradição existir no médium da linguagem, de tal modo que o objeto primordial da interpretação possui a natureza própria da linguagem” (GADAMER, 2005, p. 504). Dessa forma, temos a preocupação em discutir o processo mesmo de recepção das obras – não limitado a leituras e reflexões descomprometidas com o contexto social – através de sua inserção na Lebenswelt marcada principalmente pela certeza das incertezas constantes.
Nesse aspecto, ainda que enfatizemos que a Estética da Recepção muitas vezes considere um leitor ideal distante do conjunto das ações do mundo cotidiano – paradoxalmente a seus embasamentos -, é importante destacarmos a contribuição que Hans Robert Jauss trouxe ao questionar o status de uma literatura “elevada” em oposição à literatura “de consumo”. A principal contribuição dessa teoria para os propósitos aqui discutidos pode ser resumida no caráter prescritivo, normativo, pedagógico na abordagem benjaminiana, mas sem a sua restrição impositiva, através das palavras de Jauss:
Quanto à pergunta como a arte poderá negar o status quo e, não obstante, formar normas; dito doutro modo, como poderá prescrever normas para a ação prática, sem as impor, de modo que sua normatividade só se imponha pelo consenso dos receptores, há, em terceiro lugar, a fórmula de um iluminista do século XVIII, de indiscutível autoridade. Ela se encontra na explicação de Kant sobre o juízo de gosto: “O juízo de gosto não postula por si mesmo a adesão de cada um (pois só um juízo lógico universal pode fazê-lo, porque pode apresentar razões), ele apenas atribui a cada um esta adesão como um caso da regra, em vista do qual espera a confirmação, não a partir dos conceitos, mas pelo acordo dos outros”. Por conseguinte, a experiência estética não se distingue apenas do lado de sua produtividade, como criação através da liberdade, mas também do lado de sua receptividade, como “aceitação em liberdade”. À medida que o julgamento estético pode representar tanto o modelo de um julgamento desinteressado, não imposto por uma necessidade, quanto o modelo de um consenso aberto, não determinado a priori por conceitos e regras, a conduta estética ganha, indiretamente, significação para a práxis da ação (JAUSS, 2005, p. 83).
Discutir a tradição no seu conflito entre permanência e renovação pode ser um caminho viável para que certas estruturas sejam discutidas e evidenciadas nessa preocupação com o ambiente formativo. A passagem de um leitor do texto para um sujeito-leitor da cultura não é uma tarefa fácil. Ao considerarmos essa barreira, podemos entender que aquilo que está em jogo não é um conceito em substituição a outros, mas a capacidade de os conceitos – entendidos especialmente como as metanarrativas que consolidam as estruturas e os modos de pensar – serem discutidos em um processo constante de crítica e intercâmbio entre vida e razão.
Nessa perspectiva, consideramos o confronto - o clima de tensão existente no âmbito das relações sociais - elemento necessário por estabelecer certos parâmetros de reflexão. Enfatizamos, também, que, para além do reconhecimento de novas possibilidades de leitura e compreensão da experiência, uma compreensão hermenêutica das produções culturais pode evidenciar as possíveis cristalizações de mitos ou preconceitos.
Ao relacionarmos imagem e metáfora, o fazemos em função do aspecto cultural – imagens culturais evidenciam a necessidade de leitura das metáforas construídas culturalmente. Segundo Aristóteles, em Arte poética, a metáfora “é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para espécie, ou de uma espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia” (1964, p. 304). Antonio Candido, por sua vez, salienta que tanto na imagem quanto na metáfora o fundamental é “a alteração de sentido pela comparação, explícita ou implícita, de dois termos” (2006, p. 135).
Jorge Luis Borges no texto A metáfora (2000), afirma que “o importante sobre a metáfora é ser sentida pelo leitor ou pelo ouvinte como uma metáfora” (Grifo do autor, p. 31). Esse primeiro elemento tem como fundamento a metáfora de sentido complexo e não aquelas que já se tornaram usuais e não surpreende o leitor. Para que o leitor sinta o efeito metafórico é necessária a surpresa na abstração. Embora vários tipos de imagens sejam repetidas em conversas e/ou leituras, Borges salienta que mesmo poucos modelos “são capazes de variações quase infindas” (p. 41).
Aspectos que empobrecem a perspectiva de compreensão podem ser percebidos ao discutirmos as imagens reducionistas que circulam em vários ambientes – na contemporaneidade, a rede mundial de computadores se constitui como um espaço de destaque. Apresentamos, como uma tentativa de estabelecer uma discussão, um comentário, que circulou por meio de mensagem eletrônica – e-mail -, a respeito de uma vestibulanda3 que respondeu a uma solicitação de interpretação sobre a primeira estrofe do famoso Soneto 11 de Camões4 da seguinte forma
Ah Camões!
Se vivesses hoje em dia,
tomavas uns antipiréticos,
uns quantos analgésicos,
e Prozac para a depressão.
Compravas um computador,
consultavas a internet, e descobririas que
essas dores que sentias,
esses calores que te abrasavam,
essas mudanças de humor repentinas,
esses desatinos sem nexo,
não eram feridas de Amor,
mas somente falta de sexo.
Apesar do caráter cômico empregado e da capacidade de argumentação da candidata, a frase que encerra a mensagem é preocupante: “A candidata foi aprovada com nota 10. Foi a primeira vez que, ao longo de mais de 500 anos, alguém desconfiou que o problema de Camões era falta de mulher...”. Preocupante pelo fato de os professores – na suposição de que de fato isso tenha ocorrido – terem lhe atribuído o grau de excelência para a criativa resposta. No entanto, a “descoberta” referida à candidata – não se pode aferir a credibilidade e exatidão do texto – evidencia uma despreocupação evidente com os critérios de leitura e de interpretação inerentes à formação cultural e social do indivíduo. Sua inserção em uma contemporaneidade que aceita as expressões mais diversas – ponto positivo – não deve sucumbir à mediocridade geral em acreditar que basta argumentar sob apenas uma ótica – ponto negativo – para que o intuito interpretativo – e, no caso, também formativo – seja alcançado.
Entendemos que em um ambiente no qual a escrita e a leitura – ainda mais referentes a textos literários – é tão limitada, a recepção, a criatividade e a originalidade sejam tão bem-vidas para que ela pudesse ter obtido a nota integral. Mesmo assim, não podemos fechar os olhos para o fato de que o poema trata exatamente das questões ligadas ao próprio sexo, mas que não se limita a sua não realização, a sua falta, e sim se relaciona com o sentimento que decorre das contradições humanas e de suas limitações. Atualizar tão descomprometidamente o poema clássico com o contexto presente não evidencia um grau de excelência de leitura, ao contrário, estabelece uma incapacidade de compreensão dos contextos históricos abordados.
Ao reconhecermos que a obra deve circular e que a leitura deve ter um papel formador, propomos uma reflexão, confrontando o texto clássico de Camões – Soneto 11 - com uma composição mais atual – Asas, do grupo Maskavo, autoria de Tato. Visamos, dessa forma, articular várias possibilidades interpretativas e discutir o papel formador das imagens culturais – incorporando o conceito de metáfora - presentes nas obras.
Dessa forma, podemos entender que o processo contínuo de mudanças e transformações - uma postura contemporânea frente aos desafios cotidianos do homem, numa sociedade em que nada parece se apresentar em caráter permanente, exceto a mudança - é uma das características que podem iludir a relação direta com o poema de Camões, que antecipa a estética do período Barroco. Ainda assim, essa possibilidade de relacionar a dúvida e as antíteses do período e da obra em questão com os problemas mais presentes não abarca o dinamismo que se estabeleceu ao longo do tempo. As dúvidas atuais são mais amplas e estão tão presentes no nosso cotidiano que a incorporação dessa forma de pensar pode levar ao entendimento apressado de que a totalidade compreensiva possa ser alcançada simplesmente pela assunção do indivíduo e da diferença. Se, por um lado, essa atitude de reconhecimento da pluralidade configura a possibilidade do questionamento constante através da abertura ao outro, do olhar crítico e da não aceitação às explicações dogmáticas, por outro, gera inquietudes, dúvidas e uma necessidade de compreensão muitas vezes não atendida pelo senso comum.
Zygmunt Bauman comenta, ao se referir à condição de mal-estar na pós-modernidade, de que estamos – ou devemos estar – nos preparando “para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível” (BAUMAN, 1998, p. 32). Essa reflexão amplia o entendimento de que vivemos em um constante processo de mudança para a incerteza dos caminhos a serem seguidos e de como as transformações irão operar nas nossas vidas e no(s) nosso(s) futuro(s). Bauman, aprofundando a discussão sobre esse mal-estar, afirma que é um problema conviver permanentemente com o problema da identidade não resolvido, pois isso causa um sofrimento ao indivíduo quanto se confronta com a impossibilidade da construção de uma identidade sólida e duradoura.
Ou se pode, porém, ir mais adiante e ressaltar um traço mais inutilizante da situação de sua vida, um genuíno dilema que desafia os mais ardentes esforços para tornar a identidade bem delineada e digna de confiança. Enquanto é uma necessidade intensamente sentida e uma atividade eloqüentemente encorajada por todos os meios de comunicação cultural autorizados a própria pessoa fazer uma identidade, ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a interoscilações, tê-la “pela vida”, revela mais uma desvantagem do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente as circunstâncias do seu itinerário de vida; um fardo que dificulta o movimento, um lastro que elas devem jogar fora pra permanecer à tona. Isso, pode-se dizer, é um traço universal dos nossos tempos e, portanto, a angústia relacionada com os problemas da identidade e com a disposição para se preocupar com toda coisa “estranha” - sobre a qual a angústia possa concentrar-se e, ao se concentrar, dar-lhe sentido -, é potencialmente universal. Mas a gravidade específica desse traço não é a mesma para todo o mundo: ele afeta as diferentes pessoas em diferentes graus e traz conseqüências de significação variável para as procuras de suas vidas (BAUMAN, 1998, p. 38).
Imagens, metáforas e identidades se interpenetram para relacionar o amor em conflito proposto por Camões com o amor não realizado, marcado pelo título da composição: Asas5, que simbolizam o voo e o rompimento de barreiras sociais. A primeira estrofe apresenta o distanciamento entre o eu-lírico e o objeto do seu desejo, uma jovem que ainda não tem idade para assumir um compromisso amoroso. As asas simbolizam, na composição, tanto o aspecto da maturidade quanto da independência econômica, distanciando-se de uma visão romântica descomprometida com a realidade presente. Vestir as asas é entendido como sinônimo da realização desse desejo, mas que só poderá ocorrer quando as demais condições tiverem sido cumpridas.
A elevação à categoria de anjo está associada ao caráter mais carnal da condição humana: somos anjos quando satisfazemos nossos desejos, diferentemente da abordagem camoniana, na qual há uma indagação filosófica na última estrofe do soneto6 sobre como pode o amor trazer algo bom se é tão contraditório a si mesmo. A preocupação em pensar essa condição humana tomando por base a antítese proposta pelo sentimento de amor não é mais uma preocupação cotidiana; decidimos viver com essa incompletude, por mais inquietante que ela seja. Decidimos, também, representar os sentimentos das formas mais diversas, acrescendo as experiências ao longo da história e estabelecendo novas formas de nos relacionarmos com as limitações.
Se a letra da música tematiza o amor ou apenas a envolvimento sem maiores consequências não podemos afirmar com absoluta certeza, mas o fato de podermos relacionar a amizade – tanto com sua conotação sexual como afetiva – presente no soneto, com o convite feito para a menina, já aponta para o questionamento sobre as estruturas sociais e a ocupação desses mesmos espaços pelos indivíduos. Essas delimitações são responsáveis por abrirem um leque de expectativas. O problema está em que essa dimensão sucumbe a um reducionismo contrário à própria arte e a sua constituição reflexiva/formativa.
Antes de serem estabelecidos parâmetros/normas de entendimento, a reflexão e o processo de interpretação passam, necessariamente, pela construção de questionamentos, ou seja, as questões suscitadas são o início do processo hermenêutico.
Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura para a opinião do outro ou para a opinião do texto. Mas essa abertura implica sempre colocar a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas (GADAMER, 2004, p. 358).
Tradição e contemporaneidade: a busca pelo entendimento de como a sociedade mantém seus valores e como os descarta deve passar pela dúvida que coloca em suspenso as nossas certezas sem, no entanto, esquecê-las a priori. Nesse caso, apontamos algumas questões que podem indicar um caminho reflexivo consistente:
- De que maneira o amor é expresso ou sentido nas duas produções?
- Que imagem sobre o amor se destaca em cada obra?
- Que características histórico-culturais podemos inferir do contexto da produção das duas obras?
- O que pode acontecer quando tentamos conceituar, generalizar ou induzir o entendimento de situações, coisas ou sentimentos, por exemplo?
- O que pode acontecer quando tentamos restringir, particularizar ou deduzir o entendimento de situações, coisas ou sentimentos, por exemplo?
As problematizações feitas partem da temática sobre os sentimentos entre as pessoas como uma dimensão não sujeita a sistematizações e universalizações na tentativa de perceber algumas mudanças importantes que ocorrem com a virada linguística. O sujeito já não é mais linear, unitário, solipsista, agente racional – apenas. Assim, se num primeiro momento bastava comparar o amor sentido pelo outro à imensidão do mar ou ao “fogo que arde sem se ver”, por exemplo, hoje, é preciso pesar a situação econômica para garantir à pessoa amada condições mínimas de sobrevivência (representada pela imagem da casa da música Asas) ou pensar na liberdade (na música, a imagem das asas) que esta tem para se encontrar com o outro.
No paradigma da linguagem, conforme expõe Habermas (1990), a racionalidade e a construção de um telos compreensivo não estão tão ligados à posse de saberes, mas ao modo como estes sujeitos se relacionam com tais saberes. Na segunda narrativa apresentada ao grupo, não basta apenas entender e explicar ao outro o sentimento de afeto existente, mas observar as possibilidades que se tem para cultivá-lo.
Existe uma ação recíproca entre a existência do sujeito e a significação da realidade. Com a virada linguística, o sujeito não é um ser pré-social, cuja soberania lhe é dada por uma racionalidade cartesiana, nem a realidade é condicionante da formação do sujeito:
Se, para a Psicanálise, o sujeito não é quem ele pensa que é, para Foucault, o sujeito não é nada mais do que aquilo que dele se diz. O “sujeito”, mais do que originário e soberano, é derivado e dependente. O “sujeito” que conhecemos como base e fundamento da ação é, na verdade, um produto da história (SILVA, 2000, p. 15).
A construção do conhecimento humano dá-se justamente nesta interação entre elementos subjetivos e mediações intersubjetivas. No entanto, Habermas (2004) adverte sobre a impossibilidade de separarmos a descoberta “passiva” de fenômenos e seus movimentos da ativa construção, interpretação e justificação daqueles. O sujeito está inserido no mundo dos interesses práticos e seu conhecimento depende, em grande medida, do círculo da linguagem de vivência, dos valores, tradições e práticas que lhe fazem sentido, que lhe são justificáveis e, por conseguinte, também lhe justificam.
O sujeito, ao comunicar-se com vistas ao entendimento, pode tanto manter e reproduzir a tradição cultural quanto renovar esse saber cultural. Unidos pelas estruturas da língua, os sujeitos buscam o entendimento nas relações que estabelecem uns com os outros. A cultura, diferente de ser produzida por alguns e estar em posse de um grupo, é construída e significada por todos que se envolvem comunicativamente.
Das ações orientadas pela consciência, volta-se o olhar para as objetivações do agir e do falar. Neste momento, a função cognitiva da consciência é vista como uma possibilidade de conhecer, válida no agir instrumental no mundo, mas não a única forma de conhecer e participar da cultura. Também a linguagem não tem unicamente a função de representar e entender a realidade:
As dimensões do agir e do falar não devem ser simplesmente pré-ordenadas à cognição. Ao contrário, a prática finalizada e a comunicação lingüística assumem um outro papel conceitual-estratégico, muito diferente do que tocara à auto-reflexão na filosofia da consciência. Elas só continuam a ter função de fundamentação na medida em que é com a ajuda delas que se deve rejeitar como injustificada a necessidade do conhecimento de fundamentos (HABERMAS, 1989, p. 25).
Em Habermas, existe um transcendental fraco, garantido pelas pretensões de validade - inteligibilidade, verdade, validade e veracidade – na busca de consensos – feitos pelos homens, na intersubjetividade de uma cultura – e pelos elementos sistêmicos e culturais já estabelecidos. O sujeito monológico e cartesiano também se vê constituído por uma intersubjetividade dialógica, em que a formação de vontades se faz justamente no exercício de empatia com relação às diferenças recíprocas, vislumbrado formas cooperativas de conviver.
Ao tratarmos da busca do entendimento consensual, o sujeito se individualiza pela socialização, entendendo a subjetividade “como uma realização das relações epistêmicas e práticas da pessoa consigo mesma, relações essas que nascem das relações da pessoa com os outros e encaixam-se no quadro destas” (HABERMAS, 2004, p. 12). Neste sentido, o autodesenvolvimento do indivíduo só é possível numa relação intersubjetiva. Tal intersubjetividade não é, como no paradigma da consciência, resposta a uma fraqueza ou debilidade humana. Explica Hermann: “Enquanto a intersubjetividade for considerada uma ajuda para que o homem possa realizar sua autonomia sempre será passível de tornar-se um instrumento” (HABERMAS, 2004, p. 103).
Como na virada linguística o sujeito não é mais soberano, só faz sentido falar em autonomia enquanto possibilidade de participar de uma prática discursiva. Neste encontro dialógico, todos os participantes necessitam expor suas crenças, desejos, valores e princípios num jogo de descentralização e cooperação em que as soluções construídas são racionalmente aceitas por todos os envolvidos. Assim, a autonomia na participação e expressão do processo comunicativo vem sempre acompanhada da busca pelo melhor argumento para o estabelecimento de vínculos sociais.
Para Hannah Arendt, em seu ensaio Compreensão e política (2008), esta leitura e intervenção no mundo passam por uma espécie de conciliação com a realidade. A autora afirma que a conciliação é intrínseca à compreensão quando “tentamos sentir o mundo como nossa casa” (ARENDT, 2008, p. 330). Para ela, a importância de compreender está na sua impossibilidade de gerar resultados definitivos, ou seja, é infindável e faz parte do processo de constituição do humano em suas mais diversas singularidades. Assim, cada vez mais se torna indispensável a reflexão como tentativa – sempre nesse caminho, nesse meio-termo entre o questionamento e a resposta final – de compreender a cultura no sentido de evitar a doutrinação.

Referenciais

ADORNO, T. Palavras e sinais. Tradução: Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995.
ARENDT, Hannah. Compreensão e política. In: _____. Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008.
ARISTÓTELES. Arte poética. In: _____. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1964. p. 301-309.
BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução: São Paulo: Brasiliense, 1985.
BORGES, Jorge Luis. A metáfora. In: _____. Esse ofício do verso. Tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 30-49.
CAMÕES, Luís Vaz de. Soneto 11. In: _____. 200 sonetos. Porto Alegre: L&PM, 1998.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Tradução: Flávio Paulo Meurer e Enio Paulo Giachini. 7. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Univ. São Francisco, 2005.
HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
______. Pensamento Pós-Metafísico. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990.
______. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
HERMANN, Nadja. Os alcances pedagógicos da crítica habermaniana à filosofia da consciência. In: DALBOSCO, Cláudio Almir; TROMBETTA, Gerson Luís; LONGHI, Solange Maria (Orgs.). Sobre filosofia e educação: subjetividade e intersubjetividade na fundamentação da práxis pedagógica. Passo Fundo: UPF, 2004, p. 92-110.
JAUSS, Hans Robert, et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução: Luiz Costa Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
TATO. Asas. In: MASKAVO. Transe Acústico. Porto Alegre: Orbeat Music, 2005. 1 CD. Faixa 11.


1 Professor Adjunto do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Pelotas – UFPel/RS.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM/RS.
3 Mensagem eletrônica supostamente atribuída a uma candidata ao vestibular da Universidade da Bahia, com 16 anos. A escolha do conteúdo dessa mensagem eletrônica não ocorreu por conta de sua veracidade, mas pelo fato de que – através de um trabalho realizado em diferentes turmas dos cursos de Letras e Pedagogia das universidades federais de Santa Maria e Pelotas, no Rio Grande do Sul – o público-leitor reconheceu com maior desenvoltura a mensagem em detrimento à íntegra do soneto clássico.
4 “Amor é fogo que arde sem se ver, / é ferida que dói e não se sente, / é um contentamento descontente, / dor que desatina sem doer.” (CAMÕES, 1998).
5 “você parece um anjo / só que não tem asas / ô meu deus quando asas tiver / passe lá em casa // e ao sair pras estrelas eu vou te levar / com ajuda da brisa do mar te mostrar onde ir / e ao chegar apresento-lhe a lua e o sol / e o céu vai ter mais um farol que é a luz do teu olhar // eu não sou moleque / ainda não tenho casa ai ai ai / oh meu deus se um dia eu tiver / visto minhas asas.” (TATO, 2005)
6 “Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade, / Se tão contrário a si é o mesmo amor?” (CAMÕES, 1998)
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