Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo | Índice de Revistas | Normas para Publicação | |
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação ISSN 1679-849X | Revista nº 14  |
COMPREENDER A CULTURA EM SEU DEVIR: PROCESSOS DE LEITURA E FORMAÇÃOResumo: Este trabalho repercute o processo de formação cultural e a inserção de sujeitos-leitores em um contexto no qual as transformações históricas e sociais estão cada vez mais dinâmicas. Essas mudanças carregam um clima de incerteza que, ao oportunizarem várias possibilidades interpretativas, também geram uma busca por definições facilitadoras que – de maneira cada vez mais frequente – dogmatizam e simplificam sobremaneira a atividade infindável de compreensão do mundo. Dessa forma, o reconhecimento de novas perspectivas de leitura das produções culturais e das experiências vividas carece de uma compreensão hermenêutica no sentido de viabilizar um processo constante de crítica e intercâmbio entre vida e razão.
Palavras-chave: Formação cultural – sujeitos-leitores – interpretação – compreensão – Teoria Crítica
Abstract: This work affects the process of cultural formation and the insertion of subject-readers in a context in which the historical and social changes are increasingly dynamic. These changes carry a climate of uncertainty that in providing several possible interpretations, they also generate a search for definitions facilitate that - an increasingly frequent - dogmatize and greatly simplify the endless activity of understanding the world. Thus, recognition of new possibilities for interpreting the cultural productions and experiences requires a hermeneutic understanding in order to enable a constant process of criticism and exchange between life and reason.
Keywords: Cultural formation - subject-readers - interpretation - comprehension - Critical Theory
Ao propormos uma interpretação da cultura – com base em duas produções temporalmente distantes, quais sejam, Soneto 11 de Camões (Século XVI) e a composição musical Asas do grupo Maskavo (início dos anos 2000) – intentamos compreender o devir histórico das produções culturais como um processo formativo (Bildung) par excellence. Neste sentido, chamamos a atenção para a medida que as interpretações cotidianas podem modificar nossa forma de elaborar tanto o passado quanto a “realidade”. Dessas transformações advêm certas situações que interferem tanto no processo de construção e elaboração da obra quanto da sua recepção, voltada para a sua contemporaneidade e também para sua leitura e inserção em outros contextos históricos e sociais.
Walter Benjamin já alertava para o processo de inserção crítica e engajada do intelectual e do artista – ambos vistos como produtores da cultura e responsáveis pelas formas interpretativas do mundo. Assim, ao abordar essa questão, Benjamin afirma que “abastecer um aparelho produtivo sem ao mesmo tempo modificá-lo, na medida do possível, seria um procedimento altamente questionável mesmo que os materiais fornecidos tivessem uma aparência revolucionária” (BENJAMIN, 1985, p. 128).
Como representante da Teoria Crítica, Benjamin está a nos lembrar das armadilhas que o paradigma representacional construiu. Evidencia que, se continuarmos com os mesmos questionamentos epistemológicos em torno da “autoconsciência” e subjetividade daquele modelo, poderemos apenas perceber a imanência das produções culturais, sem estabelecermos compreensões mais profundas sobre as relações éticas e estéticas que as mesmas ancoram.
Lembramos aqui que a possibilidade de representações e o ideal de progresso mostram toda sua vulnerabilidade ao relegar a natureza e as múltiplas facetas manifestas no mundo da vida. O entendimento de que o esclarecimento estruturou-se como força de contrapeso ao mito é desacreditado por Theodor Adorno e Max Horkheimer já no prefácio do livro Dialética do Esclarecimento, quando afirmam que o mito é já iluminismo e o iluminismo recai no mito. Adorno aprofunda essa crítica ao mito do progresso – relação direta com a preocupação de Benjamin de que é possível abastecer um aparelho produtivo sem modificá-lo – ao afirmar que a “arrogante teoria do conhecimento que insiste na exatidão ali onde a impossibilidade de um saber é inerente à coisa mesma, desencontra-se com esta, sabota a intelecção e serve à conservação do ruim” (ADORNO, 1995, p. 37).
Situando esta discussão sob o viés linguístico, pretendemos refletir sobre o caráter factível da cultura e as diferentes formas que os sujeitos empreendem para atualizá-la. Hans-Georg Gadamer afirma que a “relação essencial entre o caráter de linguagem e a compreensão se mostra de imediato no fato de que é essencial para a tradição existir no médium da linguagem, de tal modo que o objeto primordial da interpretação possui a natureza própria da linguagem” (GADAMER, 2005, p. 504). Dessa forma, temos a preocupação em discutir o processo mesmo de recepção das obras – não limitado a leituras e reflexões descomprometidas com o contexto social – através de sua inserção na Lebenswelt marcada principalmente pela certeza das incertezas constantes.
Nesse aspecto, ainda que enfatizemos que a Estética da Recepção muitas vezes considere um leitor ideal distante do conjunto das ações do mundo cotidiano – paradoxalmente a seus embasamentos -, é importante destacarmos a contribuição que Hans Robert Jauss trouxe ao questionar o status de uma literatura “elevada” em oposição à literatura “de consumo”. A principal contribuição dessa teoria para os propósitos aqui discutidos pode ser resumida no caráter prescritivo, normativo, pedagógico na abordagem benjaminiana, mas sem a sua restrição impositiva, através das palavras de Jauss:
Quanto à pergunta como a arte poderá negar o status quo e, não obstante, formar normas; dito doutro modo, como poderá prescrever normas para a ação prática, sem as impor, de modo que sua normatividade só se imponha pelo consenso dos receptores, há, em terceiro lugar, a fórmula de um iluminista do século XVIII, de indiscutível autoridade. Ela se encontra na explicação de Kant sobre o juízo de gosto: “O juízo de gosto não postula por si mesmo a adesão de cada um (pois só um juízo lógico universal pode fazê-lo, porque pode apresentar razões), ele apenas atribui a cada um esta adesão como um caso da regra, em vista do qual espera a confirmação, não a partir dos conceitos, mas pelo acordo dos outros”. Por conseguinte, a experiência estética não se distingue apenas do lado de sua produtividade, como criação através da liberdade, mas também do lado de sua receptividade, como “aceitação em liberdade”. À medida que o julgamento estético pode representar tanto o modelo de um julgamento desinteressado, não imposto por uma necessidade, quanto o modelo de um consenso aberto, não determinado a priori por conceitos e regras, a conduta estética ganha, indiretamente, significação para a práxis da ação (JAUSS, 2005, p. 83). Discutir a tradição no seu conflito entre permanência e renovação pode ser um caminho viável para que certas estruturas sejam discutidas e evidenciadas nessa preocupação com o ambiente formativo. A passagem de um leitor do texto para um sujeito-leitor da cultura não é uma tarefa fácil. Ao considerarmos essa barreira, podemos entender que aquilo que está em jogo não é um conceito em substituição a outros, mas a capacidade de os conceitos – entendidos especialmente como as metanarrativas que consolidam as estruturas e os modos de pensar – serem discutidos em um processo constante de crítica e intercâmbio entre vida e razão.
Nessa perspectiva, consideramos o confronto - o clima de tensão existente no âmbito das relações sociais - elemento necessário por estabelecer certos parâmetros de reflexão. Enfatizamos, também, que, para além do reconhecimento de novas possibilidades de leitura e compreensão da experiência, uma compreensão hermenêutica das produções culturais pode evidenciar as possíveis cristalizações de mitos ou preconceitos.
Ao relacionarmos imagem e metáfora, o fazemos em função do aspecto cultural – imagens culturais evidenciam a necessidade de leitura das metáforas construídas culturalmente. Segundo Aristóteles, em Arte poética, a metáfora “é a transposição do nome de uma coisa para outra, transposição do gênero para espécie, ou de uma espécie para o gênero, ou de uma espécie para outra, por via de analogia” (1964, p. 304). Antonio Candido, por sua vez, salienta que tanto na imagem quanto na metáfora o fundamental é “a alteração de sentido pela comparação, explícita ou implícita, de dois termos” (2006, p. 135).
Jorge Luis Borges no texto A metáfora (2000), afirma que “o importante sobre a metáfora é ser sentida pelo leitor ou pelo ouvinte como uma metáfora” (Grifo do autor, p. 31). Esse primeiro elemento tem como fundamento a metáfora de sentido complexo e não aquelas que já se tornaram usuais e não surpreende o leitor. Para que o leitor sinta o efeito metafórico é necessária a surpresa na abstração. Embora vários tipos de imagens sejam repetidas em conversas e/ou leituras, Borges salienta que mesmo poucos modelos “são capazes de variações quase infindas” (p. 41).
Aspectos que empobrecem a perspectiva de compreensão podem ser percebidos ao discutirmos as imagens reducionistas que circulam em vários ambientes – na contemporaneidade, a rede mundial de computadores se constitui como um espaço de destaque. Apresentamos, como uma tentativa de estabelecer uma discussão, um comentário, que circulou por meio de mensagem eletrônica – e-mail -, a respeito de uma vestibulanda3 que respondeu a uma solicitação de interpretação sobre a primeira estrofe do famoso Soneto 11 de Camões4 da seguinte forma
Ah Camões! Apesar do caráter cômico empregado e da capacidade de argumentação da candidata, a frase que encerra a mensagem é preocupante: “A candidata foi aprovada com nota 10. Foi a primeira vez que, ao longo de mais de 500 anos, alguém desconfiou que o problema de Camões era falta de mulher...”. Preocupante pelo fato de os professores – na suposição de que de fato isso tenha ocorrido – terem lhe atribuído o grau de excelência para a criativa resposta. No entanto, a “descoberta” referida à candidata – não se pode aferir a credibilidade e exatidão do texto – evidencia uma despreocupação evidente com os critérios de leitura e de interpretação inerentes à formação cultural e social do indivíduo. Sua inserção em uma contemporaneidade que aceita as expressões mais diversas – ponto positivo – não deve sucumbir à mediocridade geral em acreditar que basta argumentar sob apenas uma ótica – ponto negativo – para que o intuito interpretativo – e, no caso, também formativo – seja alcançado.
Entendemos que em um ambiente no qual a escrita e a leitura – ainda mais referentes a textos literários – é tão limitada, a recepção, a criatividade e a originalidade sejam tão bem-vidas para que ela pudesse ter obtido a nota integral. Mesmo assim, não podemos fechar os olhos para o fato de que o poema trata exatamente das questões ligadas ao próprio sexo, mas que não se limita a sua não realização, a sua falta, e sim se relaciona com o sentimento que decorre das contradições humanas e de suas limitações. Atualizar tão descomprometidamente o poema clássico com o contexto presente não evidencia um grau de excelência de leitura, ao contrário, estabelece uma incapacidade de compreensão dos contextos históricos abordados.
Ao reconhecermos que a obra deve circular e que a leitura deve ter um papel formador, propomos uma reflexão, confrontando o texto clássico de Camões – Soneto 11 - com uma composição mais atual – Asas, do grupo Maskavo, autoria de Tato. Visamos, dessa forma, articular várias possibilidades interpretativas e discutir o papel formador das imagens culturais – incorporando o conceito de metáfora - presentes nas obras.
Dessa forma, podemos entender que o processo contínuo de mudanças e transformações - uma postura contemporânea frente aos desafios cotidianos do homem, numa sociedade em que nada parece se apresentar em caráter permanente, exceto a mudança - é uma das características que podem iludir a relação direta com o poema de Camões, que antecipa a estética do período Barroco. Ainda assim, essa possibilidade de relacionar a dúvida e as antíteses do período e da obra em questão com os problemas mais presentes não abarca o dinamismo que se estabeleceu ao longo do tempo. As dúvidas atuais são mais amplas e estão tão presentes no nosso cotidiano que a incorporação dessa forma de pensar pode levar ao entendimento apressado de que a totalidade compreensiva possa ser alcançada simplesmente pela assunção do indivíduo e da diferença. Se, por um lado, essa atitude de reconhecimento da pluralidade configura a possibilidade do questionamento constante através da abertura ao outro, do olhar crítico e da não aceitação às explicações dogmáticas, por outro, gera inquietudes, dúvidas e uma necessidade de compreensão muitas vezes não atendida pelo senso comum.
Zygmunt Bauman comenta, ao se referir à condição de mal-estar na pós-modernidade, de que estamos – ou devemos estar – nos preparando “para a vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível” (BAUMAN, 1998, p. 32). Essa reflexão amplia o entendimento de que vivemos em um constante processo de mudança para a incerteza dos caminhos a serem seguidos e de como as transformações irão operar nas nossas vidas e no(s) nosso(s) futuro(s). Bauman, aprofundando a discussão sobre esse mal-estar, afirma que é um problema conviver permanentemente com o problema da identidade não resolvido, pois isso causa um sofrimento ao indivíduo quanto se confronta com a impossibilidade da construção de uma identidade sólida e duradoura.
Ou se pode, porém, ir mais adiante e ressaltar um traço mais inutilizante da situação de sua vida, um genuíno dilema que desafia os mais ardentes esforços para tornar a identidade bem delineada e digna de confiança. Enquanto é uma necessidade intensamente sentida e uma atividade eloqüentemente encorajada por todos os meios de comunicação cultural autorizados a própria pessoa fazer uma identidade, ter uma identidade solidamente fundamentada e resistente a interoscilações, tê-la “pela vida”, revela mais uma desvantagem do que uma qualidade para aquelas pessoas que não controlam suficientemente as circunstâncias do seu itinerário de vida; um fardo que dificulta o movimento, um lastro que elas devem jogar fora pra permanecer à tona. Isso, pode-se dizer, é um traço universal dos nossos tempos e, portanto, a angústia relacionada com os problemas da identidade e com a disposição para se preocupar com toda coisa “estranha” - sobre a qual a angústia possa concentrar-se e, ao se concentrar, dar-lhe sentido -, é potencialmente universal. Mas a gravidade específica desse traço não é a mesma para todo o mundo: ele afeta as diferentes pessoas em diferentes graus e traz conseqüências de significação variável para as procuras de suas vidas (BAUMAN, 1998, p. 38). Imagens, metáforas e identidades se interpenetram para relacionar o amor em conflito proposto por Camões com o amor não realizado, marcado pelo título da composição: Asas5, que simbolizam o voo e o rompimento de barreiras sociais. A primeira estrofe apresenta o distanciamento entre o eu-lírico e o objeto do seu desejo, uma jovem que ainda não tem idade para assumir um compromisso amoroso. As asas simbolizam, na composição, tanto o aspecto da maturidade quanto da independência econômica, distanciando-se de uma visão romântica descomprometida com a realidade presente. Vestir as asas é entendido como sinônimo da realização desse desejo, mas que só poderá ocorrer quando as demais condições tiverem sido cumpridas.
A elevação à categoria de anjo está associada ao caráter mais carnal da condição humana: somos anjos quando satisfazemos nossos desejos, diferentemente da abordagem camoniana, na qual há uma indagação filosófica na última estrofe do soneto6
sobre como pode o amor trazer algo bom se é tão contraditório a si mesmo. A preocupação em pensar essa condição humana tomando por base a antítese proposta pelo sentimento de amor não é mais uma preocupação cotidiana; decidimos viver com essa incompletude, por mais inquietante que ela seja. Decidimos, também, representar os sentimentos das formas mais diversas, acrescendo as experiências ao longo da história e estabelecendo novas formas de nos relacionarmos com as limitações.
Se a letra da música tematiza o amor ou apenas a envolvimento sem maiores consequências não podemos afirmar com absoluta certeza, mas o fato de podermos relacionar a amizade – tanto com sua conotação sexual como afetiva – presente no soneto, com o convite feito para a menina, já aponta para o questionamento sobre as estruturas sociais e a ocupação desses mesmos espaços pelos indivíduos. Essas delimitações são responsáveis por abrirem um leque de expectativas. O problema está em que essa dimensão sucumbe a um reducionismo contrário à própria arte e a sua constituição reflexiva/formativa.
Antes de serem estabelecidos parâmetros/normas de entendimento, a reflexão e o processo de interpretação passam, necessariamente, pela construção de questionamentos, ou seja, as questões suscitadas são o início do processo hermenêutico.
Quando se ouve alguém ou quando se empreende uma leitura, não é necessário que se esqueçam todas as opiniões prévias sobre seu conteúdo e todas as opiniões próprias. O que se exige é simplesmente a abertura para a opinião do outro ou para a opinião do texto. Mas essa abertura implica sempre colocar a opinião do outro em alguma relação com o conjunto das opiniões próprias, ou que a gente se ponha em certa relação com elas (GADAMER, 2004, p. 358). Tradição e contemporaneidade: a busca pelo entendimento de como a sociedade mantém seus valores e como os descarta deve passar pela dúvida que coloca em suspenso as nossas certezas sem, no entanto, esquecê-las a priori. Nesse caso, apontamos algumas questões que podem indicar um caminho reflexivo consistente:
- De que maneira o amor é expresso ou sentido nas duas produções?
- Que imagem sobre o amor se destaca em cada obra?
- Que características histórico-culturais podemos inferir do contexto da produção das duas obras?
- O que pode acontecer quando tentamos conceituar, generalizar ou induzir o entendimento de situações, coisas ou sentimentos, por exemplo?
- O que pode acontecer quando tentamos restringir, particularizar ou deduzir o entendimento de situações, coisas ou sentimentos, por exemplo?
As problematizações feitas partem da temática sobre os sentimentos entre as pessoas como uma dimensão não sujeita a sistematizações e universalizações na tentativa de perceber algumas mudanças importantes que ocorrem com a virada linguística. O sujeito já não é mais linear, unitário, solipsista, agente racional – apenas. Assim, se num primeiro momento bastava comparar o amor sentido pelo outro à imensidão do mar ou ao “fogo que arde sem se ver”, por exemplo, hoje, é preciso pesar a situação econômica para garantir à pessoa amada condições mínimas de sobrevivência (representada pela imagem da casa da música Asas) ou pensar na liberdade (na música, a imagem das asas) que esta tem para se encontrar com o outro.
No paradigma da linguagem, conforme expõe Habermas (1990), a racionalidade e a construção de um telos compreensivo não estão tão ligados à posse de saberes, mas ao modo como estes sujeitos se relacionam com tais saberes. Na segunda narrativa apresentada ao grupo, não basta apenas entender e explicar ao outro o sentimento de afeto existente, mas observar as possibilidades que se tem para cultivá-lo.
Existe uma ação recíproca entre a existência do sujeito e a significação da realidade. Com a virada linguística, o sujeito não é um ser pré-social, cuja soberania lhe é dada por uma racionalidade cartesiana, nem a realidade é condicionante da formação do sujeito:
Se, para a Psicanálise, o sujeito não é quem ele pensa que é, para Foucault, o sujeito não é nada mais do que aquilo que dele se diz. O “sujeito”, mais do que originário e soberano, é derivado e dependente. O “sujeito” que conhecemos como base e fundamento da ação é, na verdade, um produto da história (SILVA, 2000, p. 15). A construção do conhecimento humano dá-se justamente nesta interação entre elementos subjetivos e mediações intersubjetivas. No entanto, Habermas (2004) adverte sobre a impossibilidade de separarmos a descoberta “passiva” de fenômenos e seus movimentos da ativa construção, interpretação e justificação daqueles. O sujeito está inserido no mundo dos interesses práticos e seu conhecimento depende, em grande medida, do círculo da linguagem de vivência, dos valores, tradições e práticas que lhe fazem sentido, que lhe são justificáveis e, por conseguinte, também lhe justificam.
O sujeito, ao comunicar-se com vistas ao entendimento, pode tanto manter e reproduzir a tradição cultural quanto renovar esse saber cultural. Unidos pelas estruturas da língua, os sujeitos buscam o entendimento nas relações que estabelecem uns com os outros. A cultura, diferente de ser produzida por alguns e estar em posse de um grupo, é construída e significada por todos que se envolvem comunicativamente.
Das ações orientadas pela consciência, volta-se o olhar para as objetivações do agir e do falar. Neste momento, a função cognitiva da consciência é vista como uma possibilidade de conhecer, válida no agir instrumental no mundo, mas não a única forma de conhecer e participar da cultura. Também a linguagem não tem unicamente a função de representar e entender a realidade:
As dimensões do agir e do falar não devem ser simplesmente pré-ordenadas à cognição. Ao contrário, a prática finalizada e a comunicação lingüística assumem um outro papel conceitual-estratégico, muito diferente do que tocara à auto-reflexão na filosofia da consciência. Elas só continuam a ter função de fundamentação na medida em que é com a ajuda delas que se deve rejeitar como injustificada a necessidade do conhecimento de fundamentos (HABERMAS, 1989, p. 25). Em Habermas, existe um transcendental fraco, garantido pelas pretensões de validade - inteligibilidade, verdade, validade e veracidade – na busca de consensos – feitos pelos homens, na intersubjetividade de uma cultura – e pelos elementos sistêmicos e culturais já estabelecidos. O sujeito monológico e cartesiano também se vê constituído por uma intersubjetividade dialógica, em que a formação de vontades se faz justamente no exercício de empatia com relação às diferenças recíprocas, vislumbrado formas cooperativas de conviver.
Ao tratarmos da busca do entendimento consensual, o sujeito se individualiza pela socialização, entendendo a subjetividade “como uma realização das relações epistêmicas e práticas da pessoa consigo mesma, relações essas que nascem das relações da pessoa com os outros e encaixam-se no quadro destas” (HABERMAS, 2004, p. 12). Neste sentido, o autodesenvolvimento do indivíduo só é possível numa relação intersubjetiva. Tal intersubjetividade não é, como no paradigma da consciência, resposta a uma fraqueza ou debilidade humana. Explica Hermann: “Enquanto a intersubjetividade for considerada uma ajuda para que o homem possa realizar sua autonomia sempre será passível de tornar-se um instrumento” (HABERMAS, 2004, p. 103).
Como na virada linguística o sujeito não é mais soberano, só faz sentido falar em autonomia enquanto possibilidade de participar de uma prática discursiva. Neste encontro dialógico, todos os participantes necessitam expor suas crenças, desejos, valores e princípios num jogo de descentralização e cooperação em que as soluções construídas são racionalmente aceitas por todos os envolvidos. Assim, a autonomia na participação e expressão do processo comunicativo vem sempre acompanhada da busca pelo melhor argumento para o estabelecimento de vínculos sociais.
Para Hannah Arendt, em seu ensaio Compreensão e política (2008), esta leitura e intervenção no mundo passam por uma espécie de conciliação com a realidade. A autora afirma que a conciliação é intrínseca à compreensão quando “tentamos sentir o mundo como nossa casa” (ARENDT, 2008, p. 330). Para ela, a importância de compreender está na sua impossibilidade de gerar resultados definitivos, ou seja, é infindável e faz parte do processo de constituição do humano em suas mais diversas singularidades. Assim, cada vez mais se torna indispensável a reflexão como tentativa – sempre nesse caminho, nesse meio-termo entre o questionamento e a resposta final – de compreender a cultura no sentido de evitar a doutrinação.
Referenciais ADORNO, T. Palavras e sinais. Tradução: Maria Helena Ruschel. Petrópolis: Vozes, 1995. ARENDT, Hannah. Compreensão e política. In: _____. Compreender. Formação, exílio e totalitarismo. Tradução: Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora UFMG, 2008. ARISTÓTELES. Arte poética. In: _____. Arte Retórica e Arte Poética. Tradução: Antônio Pinto de Carvalho. São Paulo, Difusão Européia do Livro, 1964. p. 301-309. BENJAMIM, Walter. Magia e técnica, arte e política. Tradução: São Paulo: Brasiliense, 1985. BORGES, Jorge Luis. A metáfora. In: _____. Esse ofício do verso. Tradução: José Marcos Macedo. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 30-49. CAMÕES, Luís Vaz de. Soneto 11. In: _____. 200 sonetos. Porto Alegre: L&PM, 1998. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. 5. ed. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006. GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Tradução: Flávio Paulo Meurer e Enio Paulo Giachini. 7. ed. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Ed. Univ. São Francisco, 2005. HABERMAS, Jürgen. Consciência Moral e Agir Comunicativo. Tradução: Guido A. de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989. ______. Pensamento Pós-Metafísico. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990. ______. A Ética da Discussão e a Questão da Verdade. Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2004. HERMANN, Nadja. Os alcances pedagógicos da crítica habermaniana à filosofia da consciência. In: DALBOSCO, Cláudio Almir; TROMBETTA, Gerson Luís; LONGHI, Solange Maria (Orgs.). Sobre filosofia e educação: subjetividade e intersubjetividade na fundamentação da práxis pedagógica. Passo Fundo: UPF, 2004, p. 92-110. JAUSS, Hans Robert, et al. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Tradução: Luiz Costa Lima. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. TATO. Asas. In: MASKAVO. Transe Acústico. Porto Alegre: Orbeat Music, 2005. 1 CD. Faixa 11. 1 Professor Adjunto do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Pelotas – UFPel/RS.
2 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Educação do Centro de Educação da Universidade Federal de Santa Maria - UFSM/RS.
3 Mensagem eletrônica supostamente atribuída a uma candidata ao vestibular da Universidade da Bahia, com 16 anos. A escolha do conteúdo dessa mensagem eletrônica não ocorreu por conta de sua veracidade, mas pelo fato de que – através de um trabalho realizado em diferentes turmas dos cursos de Letras e Pedagogia das universidades federais de Santa Maria e Pelotas, no Rio Grande do Sul – o público-leitor reconheceu com maior desenvoltura a mensagem em detrimento à íntegra do soneto clássico.
4 “Amor é fogo que arde sem se ver, / é ferida que dói e não se sente, / é um contentamento descontente, / dor que desatina sem doer.” (CAMÕES, 1998).
5 “você parece um anjo / só que não tem asas / ô meu deus quando asas tiver / passe lá em casa // e ao sair pras estrelas eu vou te levar / com ajuda da brisa do mar te mostrar onde ir / e ao chegar apresento-lhe a lua e o sol / e o céu vai ter mais um farol que é a luz do teu olhar // eu não sou moleque / ainda não tenho casa ai ai ai / oh meu deus se um dia eu tiver / visto minhas asas.” (TATO, 2005)
6 “Mas como causar pode seu favor / Nos corações humanos amizade, / Se tão contrário a si é o mesmo amor?” (CAMÕES, 1998)
|
© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak |