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Capa | Editorial | Sumário | Apresentação ISSN 1679-849X | Revista nº 14  |
LITERATURA DE TESTEMUNHO NO PRIMEIRO VOLUME DE MAUS, DE ART SPIEGELMAN: A IMPOSSIBILIDADE DA NARRATIVA FACTUALEnéias Farias Tavares1
Resumo: Escrito e desenhado pelo cartunista norteamericano Art Spiegelman, Maus – A história de um sobrevivente é um romance gráfico originalmente publicado em dois volumes, entre as décadas de setenta e oitenta. Nela, observamos um diálago entre o próprio autor e seu pai, Vladek Spiegelman, sobre o período em que testemunhou a perseguição nazista contra os judeus. A partir desse relato, Art passa a aprofundar sua percepção do pai, de sua mãe e de outros familiares, muitos deles mortos nos campos. De forma simples e objetiva, a arte e o texto de Spiegelman colocam o leitor não apenas dentro das lembranças de um sobrevivente da perseguição nazista, mas também como observador dos conflitos entre um pai e um filho em suas diferenças, em seus desacordos. Este artigo tem por objetivo refletir sobre a recriação desse cenário repressor e das experiências reais do seu narrador no romance gráfico. Nesse sentido, nossa análise evidenciará as limitações do relato baseado em lembranças de trauma, elemento observado em vários relatos de testemunho.
Palavras-chave: Literatura de testemunho, Narrativa Gráfica, Crítica Literária.
Abstract: Wrote and illustrated by the North-American cartoonist Art Spiegelman, Maus – A survivor’s tale is a graphic novel published originally in two volumes, between the seventies and eighties. In this novel, we observe a dialogue between the author and his father, Vladeck Spiegelman, about the period in which he testifies the Nazis persecution against the Jews. Beginning with this tale, Art go deeper in his perceptions about his father, his mother and about the others families, the majority of them, dead in concentration camps. In a simply and objective way, the art and the text of Spiegelman put the reader not only in the memories of a survivor of the Nazis persecution as also as an observer of the conflicts of a father and a son in their differences, in their dissonant opinions. This paper aims thinks about the recreation of this repressor scenery and the real experiences in the graphic novel narrator. In this way, our study will demonstrate the limitations of the narratives based on traumatic memories, element observed in several examples of literature of testimony.
Keywords: Literature of testimony, Graphic Novel, Literary Criticism.
No decorrer do século vinte, sobretudo após a segunda guerra mundial, o relato de testemunho tem sido escrito e publicado visando dar voz às experiências pertencentes a pessoas que foram perseguidas ou que tiveram seus familiares vitimados sob o poder de regimes totalitários. Tais relatos, quer sejam eles auto-biográficos ou ficcionais ampliam a percepção de outras nações que não vivenciaram as atrocidades de tais regimes. No caso do extermínio dos judeus na segunda guerra, Anne Frank, Primo Levi e Elie Wiesel, com os seus Diário, É isto um homem e A noite, respectivamente, não apenas desvelaram os suplícios vivenciados como também descreveram em detalhes o que Hannah Arendt chamou de a “banalidade do mal”.
No início do século vinte um o interesse pelo tema não diminui, embora os chamados relatos de testemunho comecem a dar lugar a um outro tipo de relato que prima bem mais pelo ficcional do que pelo biográfico. Nesse sentido, os livros de Norman Mailer, O castelo na floresta, de Jonatahn Littell, As benevolentes, e a republicação e versão cinematográfica de O leitor, de Bernhard Schlink, demonstram que novas interpretações do período nacional socialista alemão ainda tem muito a dizer sobre ele. Entretanto, mesmo esses têm sido alvo de críticas que evidenciam a preocupação de que essa ficção, que tem por protagonistas não as vítimas e sim seus algozes, acabe por abrandar o horror óbvio dos assassinatos nos campos. A problemática extremada dessa tendência é o filme de Brian Singer, Operação Valquíria, no qual o interesse de “humanizar” as figuras nazistas chega ao extremo de até mesmo colocar em risco a verossimilhança da história em contraste com o conhecimento histórico do ocorrido.
Entre esses dois extremos, o do relato de testemunho enquanto relato real, vivido e reorganizado de acordo com as lembranças das vítimas, e os relatos ficcionais em que vítimas e algozes são personagens imaginários, temos Maus, de Art Spiegelman, um romance gráfico que problematiza em sua estrutura e em seu enredo duas possibilidades textuais. Essa composição é tanto o relato real de um sobrevivente da perseguição e dos campos nazistas quanto uma obra visualmente ficcional em que o autor se apropria de um gênero um tanto depreciado, o das histórias em quadrinhos, para ambientar os relatos de seu pai.
Prova dessa incapacidade de facilmente relacionar a obra a um gênero específico é ela estar sempre nas listas das maiores histórias em quadrinhos já publicadas. Entretanto, tal visão de Maus como romance gráfico não o impediu de receber um Pulitzer, famoso prêmio literário dado apenas a obras literárias. A discussão persistiu por meses, sendo ela colocada na lista das maiores obras de ficção do The New York Times Review. Spiegelman escreveu ao editor agradecendo a menção, porém discordando da classificação, especialmente por a obra tratar das experiências pessoais de seus familiares em campos de concentração nazista. O que levaria Maus a receber tão contrastantes classificações? Refletindo sobre o caráter narrativo múltiplo do romance, Aires Pontes, no artigo Mauschwitz: deslocamentos imaginários, afirma:
O caráter verídico e testemunhal de seu livro não pode ser negado; o que pode ser problematizado é justamente a distinção entre ficção e não-ficção, que, em sua estreita definição, não permite uma localização adequada para Maus. Essa obra não se trata obviamente de uma tentativa de representação fiel ou imparcial das vivências de seu pai, mas de uma narrativa híbrida que agrega dados históricos, recordações paternas, pesquisa etnográfica e os comentários do autor, o qual está implicado diretamente na narrativa, perfazendo uma multiplicidade de enredos. (2007, s/ p.) Essa natureza híbrida de Maus, que nos faz pensar na obra ora como narrativa testemunhal ora como relato ficcional, também pode ser resultante do trabalho de arte que Spiegelman criou. Ao representar os judeus como ratos, os nazistas como gatos, os americanos como cachorros e os poloneses como porcos, Spiegelman não apenas usou a convenção das histórias infantis, cuja origem pode ser conectada não apenas aos personagens de Walt Disney como às Fábulas de Esopo. Entretanto, essa mescla de elementos temáticos reais com estilização infantil, longe de ser uma visão cômica de um episódio histórico, o que resultaria numa paródia, é um relato pujante e aterrador de um século que perseguiu, aprisionou e assassinou sistematicamente mais de seis milhões de judeus, além de ciganos, homossexuais, doentes mentais e partidários de organizações religiosas que se recusaram a aceitar o regime nazista. Não apenas isso, o visual antropomórfico dos personagens do romance também é uma crítica direta à propaganda nazista que comumente relacionava judeus à ratos e poloneses à porcos. Desse modo, em Maus, realidade e ficção se mesclam e se interconectam de forma que os relatos dos sobreviventes se misturam a reconstrução memorial dos mesmos.
Este artigo tem por objetivo refletir sobre a recriação desse cenário real no romance gráfico de Art Spiegelman. Nesse sentido, faremos alusão não apenas aos estudos relacionados às memórias de trauma, como também a autores que escreveram a respeito da literatura de testemunho. Entretanto, antes de iniciarmos nossa análise da obra de Spiegelman, se faz necessário uma rápida articulação do sentido da escrita de testemunho proposto em nosso texto.
Para Márcio Seligmann-Silva, no artigo Testemunhos da Barbárie, o termo relato ou literatura de testemunho deve ser completamente relativizado. Contrastando o conceito freudiano de Trauma e as considerações de Walter Benjamin em Passagens, sobre o historiador como coletor de restos e fragmentos, o autor afirma que os relatos de testemunho devem ser vistos não como relatos indiscutivelmente reais, passíveis de absoluta crença, e sim sob a ótica relativista de que tais relatos são resultantes da organização das lembranças das vítimas. Nesse caso, essas lembranças, sobretudo quando resultantes de contextos de repressão e perseguição, seriam, em sua maioria, relatos advindos de traumas pessoais, familiares ou coletivos. Sobre isso, o autor escreve:
Benjamin e Freud são as duas grandes figuras daquele século que nos falaram deste colapso na narrativa da história quando esta passa a ser sentida como destruição, catástrofe e trauma. Mas esta concepção da história como uma espécie de “real” que desafia a imaginação e sua simbolização permite uma nova abordagem do fato literário. Não se trata mais de ver na literatura um reflexo do real, mas antes de aprender a ler nela as marcas de um real pensado não mais como algo passível de ser representado, mas sim que, pelo contrário, desafia a representação. Pensar a literatura como uma escrita marcada pelo real significa aprender a levar em conta o seu teor testemunhal. (2007, p. 34) Essa relativização não apenas do conceito de História como também da própria confiabilidade irresoluta do relato de testemunho é o que aproxima tanto a literatura biográfica da ficcional. Ambas são perpassadas por visões de mundo, por uma soma de experiências, coerentes ou não, que montam a própria subjetividade dos sujeitos autores. Assim ao invés de falsear o relato de testemunho, colocando-o ao lado do texto ficcional, se destacaria as particularidades inerentes aos dois: a importância dada à linguagem e a ordenação temporal na constituição mesma dessas histórias. Ao contrário de ver o texto de memória como “reflexo do real” passa-se a compreendê-lo como recorte subjetivo dessa, o que resulta numa narrativa mais ou menos linear.
Figura 1. Edições brasileiras de Maus Em Maus, originalmente publicado entre as décadas de setenta e oitenta - no Brasil a obra foi publicada na década de noventa pela Brasiliense e em volume único pela Cia das Letras -, Spiegelman narra a entrevista com seu pai, Vladeck Spiegelman, judeu polonês, durante a perseguição nazista entre os anos de 1938 e 1945. Aprofundando não apenas as lembranças de seu pai como também o efeito de suas experiências nos campos sobre toda a sua família, Spiegelman conseguiu representar textual e pictoricamente um dos maiores traumas sociais do século vinte. Será, precisamente, do ponto de vista da fragmentação e da imperfeição proposital desse relato que concentraremos nossa análise, visando demonstrar a validade da mesma tanto na reflexão sobre o holocausto quanto na discussao sobre os limites e o potencial do meio literário e gráfico que a obra apresenta.
Quando o personagem Artie, versão do próprio autor dentro do romance, procurar seu pai para uma série de entrevistas que resultariam num livro sobre suas experiências no holocausto, Vladeck diz que sua história iria “precisar de muitos livros” (2006, p. 14). Nesse sentido, tanto a proposital fala cuja estrutura sintática marca a origem imigrante da personagem quanto o conteúdo da mesma, expressando uma auto-elevação das lembranças da personagem que exige uma série de livros para contá-la, revelam uma discordância entre as intenções narrativas do filho em contraste com as lembranças do pai. Já no início do romance, pode-se perceber um nítido trabalhado de “edição”, aqui usado em seu sentido de seleção de partes e organização dessas partes, entre o que o Vladeck conta ao filho e o que ele acha que deveria estar no livro. É como se o pai, mesmo em seu cinismo e ingenuidade tentasse preservar uma parte de vivência particular que não necessariamente tivesse relação com a guerra. Contrariamente, Artie ainda mantém, no início da obra, a ilusão de que o relato narrativo possa realmente relatar os fatos em sua veracidade.
Figura 2. Spiegelman, Art. Maus, p. 88, painel 8-10. Essa vontade de contar, de narrar a história de seu pai “do jeito que realmente aconteceu” é uma menção de Spiegelman às suas próprias ilusões iniciais de que poderia de fato usar a literatura como uma veículo imparcial, transparente e seguro da realidade histórica e também subjetiva vivenciada por Vladeck. Em contrapartida, o que vemos demonstrado em Maus é a impossibilidade da concretização desse desejo, concluindo-se que toda narrativa passa necessariamente por um trabalho de edição por parte de seu narrador. Essa constatação chega à percepção de Artie, assim como a do leitor, por vários modos: pode resultar da não concordância de Vladeck em narrar determinados detalhes do que ele viveu no campo; da necessidade do próprio Art de escolher o material que deveria ou não estar na versão final de seu relato; e também pode simplesmente advir de uma interrupção no próprio momento do relato.
Como exemplificação dessa última possibilidade, temos a cena em que Vladeck narra ao filho sua experiência como soldado do exército polonês. Inadvertidamente, a narrativa é interrompida quando o próprio Vladeck deixa cair um dos potes de remédios que havia contado e etiquetado. A cena, entre outras sutilezas de Spiegelman, serve para ilustrar o ato de interrupção imprevisível que pode acontecer em qualquer ato de rememoração do passado. Ao juntar os remédios, Vladeck começa uma longa digressão sobre a sua doença e a perda da visão. Ao final da fala, Vladeck menciona não querer mais retomar o relato por precisar terminar a organização de seus remédios. Em contrapartida, Artie diz estar com o braço doendo por anotar a história do pai (p. 42). Esse exemplo é uma evidência da não perfectibilidade do trabalho testemunhal, em que a história surge entre pausas, entre não ditos, entre silêncios e interrupções no relato. Assim, o que de fato chega aos ouvidos do entrevistador, e por conseqüência à versão final do romance, são recortes imprecisos, sensações esparsas, memórias fragmentadas, falsamente lógicas unicamente unidas pela relativa ordenação temporal imposta ao gênero literário.
Esse falseamento da lógica da narrativa advém também do caráter flexível que a temporalidade apresenta quando em poder daquele que narra a experiência do passado. Em Maus, o relato de Vladeck segue em vários momentos a ordem temporal, chegando até a mencionar os anos de determinados acontecimentos. Entretanto, mesmo nesse aspecto, Art continua sendo o direcionador desse fluxo de lembranças, que regularmente parece apressar ou desviar dos fatos que narra. No quarto capítulo do romance, Vladeck narra os alistamentos de judeus em 1942 e os planos de algumas famílias de esconderem suas crianças no período da guerra. Inadvertidamente, Vladeck pula a narrativa para 1944, já nos campos, quando é censurando por Art, que diz: “Espere! Por favor, pai. Se você não contar em ordem cronológica, eu nunca vou conseguir me achar. Fale mais de 1941 e 42” (p. 84, painel 1). Assim, tanto o narrador quanto o compilador da narrativa tentam manter a ordem temporal em sua lógica cronológica, embora o fluxo de memórias, lembranças e imagens nem sempre respeite tal ordem.
Quando criticado por Art por ora aludir ao período de Auschwitz como dez meses ora como doze meses, Vladeck apenas resume a questão dizendo que “lá nós não usa relógio...” (p. 228, painél 8). É interessante que muitas das falas de Vladeck remetem verbalmente ao passado, mesmo que sua estrutura gramatical contenha erros se contrastada com a norma gramatical. Mas aqui, a personagem usa o tempo presente. Essa falta de relógios que alude à incapacidade da marcação da contagem temporal não acompanha apenas as reflexões das personagens no passado. Antes remetem diretamente a mesma incapacidade no que diz respeito às lembranças no tempo presente. Para Spiegelman, autor e personagem, as certezas temporais, frutos da nossa insistência em objetivar a experiência humana, se perdem em meio ao fluxo de lembranças que se desconstroem, que se perdem na protuberância de recordações e relatos e de seu pai. Essa desorganização temporal presente também ficará evidente, como veremos, no capítulo em que o próprio autor se insere dentro da narrativa.
O aspecto subjetivo fragmentado de Maus também está presente no modo como Vladeck organiza suas lembranças do passado. Ora aludindo ao que testemunhou, ora ao que escutou de outros sobreviventes, colocamos em xeque a total veracidade de todos esses relatos. Um exemplo disso no romance é a passagem em que Vladeck admite – após contar como os nazistas silenciavam as crianças judias que não paravam de gritar – “isso eu não vi com meus olhos, mas me contaram no dia seguinte” (p. 110, painel 8). Nem tudo o que é relato a Artie por seu pai foi testemunhado ou observado por Vladeck. Esse receber a história de segunda mão, aspecto ressaltado por Spiegelman em todo o romance, é o que também reforça os limites dos relatos ditos reais. Se a experiência vivenciada passa pela lente da própria consciência no momento em que é lida e interpretada, ela também passa, como vimos, pela edição da memória quando é relembrada. Acrescentar uma terceira lente, nesse caso, daquilo que não foi conhecido como vivência, mas ouvido como relato de outrem, problematiza ainda mais a capacidade do relato testemunhal de ser totalmente verídico. Assim, mesmo em face de uma testemunha ocular, nunca temos acesso aos fatos tal qual eles aconteceram.
Obviamente, Spiegelman tem consciência desses limites do relato testemunhal e sua obra também refle o próprio ato de narrar uma experiência pessoal. Mas sua reflexão também pretende nos mostrar que ao tratar-se de memórias traumáticas, nem sempre o experimentado está, na consciência do narrador, dissociado do imaginado ou do interpretado. No exemplo citado, Vladeck pode não ter visto as crianças tendo suas cabeças esmagadas contra as paredes de concreto, mas a visualização imaginária do ato, enquanto escuta o relato de alguém que viu “com os próprios olhos” não é menos chocante. Essa mesma experiência é vivenciada pelo narrador e pelos leitores do romance.
Ao abordar a temática da rememoração de experiências traumáticas ou de horror, podemos tratar dessa rememoração, que anteriormente chamamos de “edição” das lembranças narradas, como um ato de “reescrita”, para usarmos o termo de Harald Welzer. Refletindo sobre o conceito de “reescritura” de experiências vividas em tempos de repressão, Helmut Galle afirma que
Quando alguém se senta para “reescrever”, de forma não metafórica, sua história de vida, a escritura conserva as lembranças contraditórias, e o sujeito passa a ter ciência de cada alteração feita nas versões anteriores dessas memórias (diários, cartas etc.). Dependendo do seu grau de honestidade, suprime do ou integra no texto final os elementos incômodos e perturbadores. Portanto a decisão de encontrar a verdade de sua vida significa uma atitude diferente da cotidiana, para a qual cabem as afirmações de Welzer. (2008, p. 29) É exatamente devido a essa “honestidade” enquanto narrador, que Spiegelman aprofunda em sua obra a própria angústia de seu personagem narrador no que diz respeito à veracidade do relato de seu pai – daí sua insistência na busca dos diários da mãe ou nas cartas de outros sobreviventes –, e também quanto à sua própria capacidade artística ao tratar de um tema tão problemático e delicado quanto o Holocausto. Tanto obra biográfica quanto auto-biográfica, Maus se divide entre as percepções de Vladeck e de Artie, nunca privilegiando uma visão ou outra, mas justapondo-as justamente naquilo que elas tem de contrastantes.
Também podemos argumentar que o projeto autobiográfico presente em Maus é arriscado por não ser planejado voluntariamente pela testemunha, mas por seu filho, que insiste em entrevistar o pai para recolher dele seu testemunho. Tal relato evidentemente forçado em alguns momentos, a contragosto, é o que aumenta a distância entre a narrativa testemunhal e o realmente factual, sendo esse último, impossível de ser recriado em sua totalidade. Sendo sempre resultante dos acréscimos, deturpações e censuras da própria consciência, o factual se perde no vulto de lembranças que se mesclam. Sobre essa diferença entre o factual e o lembrado, Galle continua
O projeto autobiográfico, geralmente levado a cabo numa idade avançada, pressupõe que o sujeito se afaste da vida ativa rumo ao seu passado, se entregue à lógica das lembranças – também às involuntárias – e esteja preparado para encontrar surpresas e contrariedades que implicam uma “reescritura” consciente e responsável da sua vida. Enfrentar-se com vestígios materiais (fotos, cartas, objetos), procurar os lugares da infância, vasculhar documentos e arquivos são atitudes capazes de estabelecer um esqueleto material que proíbe ignorar as dissonâncias entre a memória subjetiva e a realidade histórica. (2008, p. 29) Ironicamente, o mesmo personagem, Vladeck, que retoma suas lembranças da guerra evita essa entrega até mesmo “surpresas e contrariedades” presentes nos diários e nas cartas que destruiu. Essa incapacidade de receber das lembranças aspectos que o surpreenderiam ou contrariariam, para usar as expressões de Galle, é o que se apresenta na narrativa de Vladeck. Voltemos então a nossa análise do ponto de vista da reescrita dessas lembranças da personagem, ressaltando mesmo o que elas têm de dicotômicas e, portanto, verossímeis.
Como visto, os acontecimentos que são editados ou reescritos na memória apresentam limitações intrínsecas. No último capítulo do primeiro volume do romance, Art mostra ao pai e a Mala, sua atual esposa, os primeiros esboços do seu romance. Vladeck se diz interessado na obra, “apesar” de tratar de uma história em quadrinhos, “apesar” de saber sua história pessoal “de cor” (p. 135, painel 4). Esse saber “de cor” é desmistificado no romance quando assistimos ao próprio personagem montar, reorganizar, apressar, retroceder seu relato concomitantemente ao momento em que narra essa história ao filho. Na mesma página, a cena termina com Art saindo para pegar papel e caneta. “Preciso anotar esta nossa conversa antes que eu esqueça” (ibidem, painel 8), diz ele. Diferente do pai, que tem a falsa idéia de conhecer a história pessoal “de cor”, exata, podendo voltar a ela quando bem entender, Art é mostrado anotando as palavras ou gravando os trechos da narrativa paterna num visível esforço de registrar o que na memória se perderia. Por isso seu descontentamento com o desaparecimento dos escritos da mãe, que dariam a narrativa, segundo ele, um equilíbrio maior. Não tendo acesso ao diário, o material com que Artie conta é unicamente as desorganizadas memórias do pai. Sobre esse caráter fragmentado do relato e da memória, Spiegelman disse em entrevista de divulgação do último livro Breakdowns ao jornal Le Monde: “Isso tem a ver com o meu pai. Eu nunca consegui fazer com que ele me relatasse a sua vida de maneira linear. Ele falava de Auschwitz, passava para uma anedota ocorrida em 1950, e voltava a abordar o gueto antes da deportação" (2007).
Em contrapartida, se podemos relativizar a organização das lembranças de Vladeck narradas ao filho, podemos refletir sobre a representação gráfica do romance e sobre a construção do casal protagonista. Nesse sentido, a narrativa gráfica permite a visibilidade imediata da experiência narrada. Em vários momentos do romance, temos rápidas menções aos esconderijos das vítimas. O que na fala de Vladeck é apenas “... fizemos esconderijo na quintal, uma bunker...”, no quadrinho resulta na ilustração pictórica exata, em corte detalhado e legendado, do tipo de ambiente em que pessoas ficavam semanas, talvez meses, esperando o fim de uma guerra que ainda levaria anos.
Figura 3. Spiegelman, Art. Maus, p. 88, painéis 8-10. Mais adiante, no capítulo cinco do romance, Vladeck mencionará outro bunker, nesse caso um esconderijo que ficava abaixo de uma caixa de carvão, no subsolo. Incapaz de explicar verbalmente como funcionava o esconderijo, Vladeck pede ao filho papel e caneta e faz um desenho do lugar. “Esses coisas é bom saber exatamente como era...” (p. 112, painel 6), diz Vladeck. Tal menção, e a própria representação do bloco de desenho entre os painéis da página, é uma alusão direta ao poder da imagem em sua visualização do objeto narrado. O que no romance é dito, também é na mesma página ilustrado, exemplificado pela representação pictórica da condição sub-humana vivenciada pelas vítimas. O que para o leitor poderia significar uma perda no processo de visualização do cenário narrado, fato usado pelos detratores da mídia gráfica para diminuir seu valor, em Maus potencializa ainda mais a experiência de leitura que resulta mais forte e impressionante, também pela concisão do texto, também pelo poder referencial da imagem.
A opção de Spiegelman de retratar as personagens de seu romance como animais, além de ironizar a imagem apregoada pela mídia às culturas perseguidas também é uma forma de amenizar uma narrativa, em essência, crua, assustadora e perturbadoramente real, do ponto de vista histórico. Quando abrimos um livro sobre a segunda guerra mundial ou lemos uma narrativa que trata de experiências nos campos, seja ela declaradamente ficcional ou testemunhal, a força emocional de tal texto é inerente. Seja por ter acontecido há poucas décadas, seja pela ênfase muitas vezes exagerada na mídia aos relatos, tais textos sempre tem o peso do horror vivenciado pelo homem sob o domínio de outros homens. Mas em Maus, os “animais” exemplificam não apenas um determinado primitivismo comportamental de ambos os lados do conflito, a fuga dos ratos, a perseguição pelos gatos, como também o próprio espírito de caça e extermínio do período. Quando contrastada com a história dentro da história, Prisioneiro do planeta inferno – história de um caso (p. 102-104), história cuja arte tem a influência direta dO Grito de Munch, percebemos que a escolha de Spiegelman pelos ratos, gatos e cães, entre outros, foi acertada. Sem escurecer muito o tom e o traço da arte do seu romance, o autor nos oferece uma imagem simples, equilibrada do que aconteceu, tentando atenuar o próprio horror da história. Em contraste, Prisioneiro, história publicada anos antes por Spiegelman, apresenta um traço que beira o grotesco, narrando naquele caso a experiência do filho ao vivenciar o suicídio da mãe. O resultado da leitura dessa história é demonstrado na página seguinte a ela, quando Artie percebe que a leitura do conto perturbou o pai.
Figura 4. Spiegelman, Art. Maus, p. 106, painéis 1-3 Primeiramente, o próprio narrador menciona que a história tocou até mesmo o pai, nunca antes interessado pela narrativa gráfica, numa alusão ao efeito que o próprio romance teria, anos mais tarde, ao ser considerado uma das obras precursoras da respeitabilidade que a mídia adquiriria. Em resposta, Mala diz que o conto Prisioneiro não era como os outros que ele havia feito, esse era “pessoal”. Essa centralidade no caráter autobiográfico, pessoal, da obra de Spiegelman também é a responsável pela própria interpretação que fazemos dela. Diferente de um relato apenas ficcional, a alusão ao texto como algo pessoal, subjetivo, realmente vivenciado é um dos grandes aportes do relato de testemunho. Na mesma página, Vladeck comentando o efeito que a história teve sobre ele, diz ser “bom que você tira isso de você. Mas para mim traz tantas lembranças...” (idem). Para o narrador de Maus, o relato é citado como um “tirar” da memória o próprio trauma da experiência com o suicídio da mãe. Já para ele, tal relato não tem esse caráter catártico, purificador, e sim memorial aterrador, de trazer de volta a memória e a própria experiência subjetiva presente um acontecimento já perdido no passado.
Corajosamente, o retrato irônico que Art faz de seu pai nos mostra um homem crível, tanto em sofrimento quanto em nítidas imperfeições. Irritadiço, sovina, auto-indulgente, insensível no tempo presente, quando conta sua história ao filho, Vladeck resulta numa personagem crível que, se de um lado nos parece antipático por outro nos permite a interpretação de que o endurecimento foi a via de escape encontrada por ele para manter sua sanidade. Segundo Mala, “Vladeck é mais apegado a coisas do que a pessoas!” (p. 95, painel 8). Ilustração disso é número de catálogos, panfletos, revistas e outros papéis que a personagem colecionou ao passar dos anos, em detrimento dos cadernos de memórias de sua esposa. Nesse sentido a busca pelos diários de sua mãe, Anja, é uma constante no primeiro volume de Maus, numa clara tentativa de também fazer viver a narrativa dela como está fazendo com seu pai.
No sexto capítulo do primeiro volume do romance, Art testemunha as reclamações mútuas entre seu pai e Mala. Essa, diz que Vladeck não é apenas pragmático, como Art suspeita, mas “Pão-duro, isso sim!! Sente dor física quando gasta uma moeda!” (p. 133, painel 4). Diante dessa acusação, Art começa a refletir que talvez o comportamento do pai possa ser explicado pelas experiências de guerra, o que é negado por Mala, que diz que “amigos passaram pelos campos. E nenhum é como ele” (ibidem, painel 6). A partir da opinião da madrasta, Art menciona que essa representação de seu pai é o que mais o aflige no seu romance. “De algum modo, ele é como a caricatura racista do judeu miserável” (ibidem, painel 8), diz Art, aflito, para mais tarde mencionar que a única coisa ele intentou foi fazer uma retrato “fiel” de seu pai. Nesse caso, fidelidade biográfica, como o próprio autor admite, é uma impossibilidade narrativa, na medida em que escolhas são feitas, fatos são diminuídos, detalhes são aumentadas, resultando sempre numa visão muito particular, fiel à realidade primeira do narrador, mas nunca aos objetos retratos. Sobre Vladeck, Pontes afirma
Vladek não é o herói-sobrevivente; de certa forma, ele não sobreviveu e passou os anos seguintes de sua vida repetindo o que havia aprendido em Auschwitz: economizar objetos aparentemente inúteis, não deixar restos de comida no prato, desconfiar de todos, enganar, mentir... Seu “aprendizado” se faz presente no convívio com o filho, Artie, em uma relação atormentada na qual as acusações e expectativas se sobrepõem. (2007, s/ p.) Sobre essa caracterização imperfeita, não idealizada de seus pais, Spiegelman demonstra a base dessas “acusações e expectativas” que conflitam a relação entre pai e filho no romance. No final do primeiro volume, Vladeck narra ao filho a captura e o envio dele e de Anja, após mais de três anos de fugas, esconderijos, prisões e mortes, para Auschwitz, tendo diante deles apenas a visão da suástica nazista. Se em 1938, o símbolo do nazismo encontrava-se nas praças e nas ruas das cidades conquistadas, em 1943 ele constituía o próprio caminho de todos os europeus, sejam eles alemães, judeus ou de qualquer outra nacionalidade que estivesse ou não envolvida na guerra. Para os partidários, o símbolo prometia uma libertação do regime e da decadência alemã vivenciado nas duas décadas anteriores. Para os perseguidos, a suástica pavimentava um caminho aterrador e sem esperança.
Figura 5 e 6. Spiegelman, Art. Maus, p. 34, painel 4, e p. 127, painel 5 Embora a busca pela memória da mãe, simbolizado pelos diários perdidos, seja central no primeiro volume do romance, o mesmo termina com a confissão de Vladeck de ter, anos antes, queimado os diários de sua esposa. A justificativa de Vladeck é que os “papéis tinha memória demais” (p. 161, painel 1). A reação de Artie, que havia projetado nas descrições de sua mãe sobre o mesmo período uma esperança de objetividade que um outro ponto de vista poderia permitir, é chamar o pai de assassino, por ter matado as lembranças, as memórias de sua mãe. Indiferente do extremismo das palavras de Art, o fato simbólico de queimar os diários, ou de assassinar a memória, é uma constante no romance de Spiegelman, que também trabalha com a incapacidade mesmo da narrativa de ordenar a experiência em uma ordem cronológica exata. Mesmo que tivesse acesso aos diários, Art dificilmente teria uma narrativa mais “confiável” do que aquela que lhe estava sendo ofertada por seu pai. Desse modo, o matar a memória do registro é exatamente o oposto do que Spiegelman faz em Maus, no qual as memórias, as lembranças, mesmo em seus paradoxos, mesmo em seus recortes imperfeitos, ainda são a única via de acesso ao passado.
Referências bibliográficas GALLE, Helmut. Juventude no estado totalitário: as autobiografias de J. Fest, G. Grass, L. Harig, G. de Bruyn e Chr. Wolf. In: UMBACH, Rosani Ketzer (org). Memórias da Repressão. Santa Maria: UFSM, PPGL-Editores, 2008. PONTES, Suely Aires. Mauschwitz: deslocamentos imaginários. Imaginario v.13 n.14 São Paulo jun. 2007. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Testemunhos da barbárie. In: EntreLivros Volume 28. São Paulo: Editora Duetto, 2007. SPIEGELMAN, Art. Maus. São Paulo: Cia das Letras, 2005. UMBACH, Rosani Ketzer (org). Memórias da Repressão. Santa Maria: UFSM, PPGL-Editores, 2008. Referências Eletrônicas SPIEGELMAN, Art. Entrevista ao jornal Le Monde. Tradução Jean-Yves de Neufville. http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/lemonde/2008/03/15/ult580u2964.jhtm (acessado em 10 de Maio de 2009) 1 Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM.
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