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Literatura e Autoritarismo

Literatura: Compreensão Crítica

Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 14 

REPRESENTAÇÕES ACERCA DO ESTRANGEIRO E DA CIDADE INTERIORANA EM LIMITE BRANCO, DE CAIO FERNANDO ABREU

Ana Paula Cantarelli1
Resumo: Limite branco foi o primeiro romance escrito por Caio Fernando Abreu. Nessa obra, é estabelecida uma relação entre a mudança de cidade e a passagem de tempo para o protagonista. A passagem da infância para a adolescência está relacionada com a mudança de Passo da Guanxuma para Porto Alegre. A ruptura com a cidade pequena, associada ao abandono do ambiente familiar, permite o ingresso em outra atmosfera, menos ingênua e, pretensamente, adulta marcada pela ida para a cidade grande. A idade adulta, assim, está vinculada ao ingresso na grande metrópole: o Rio de Janeiro, destacando mais uma fase de amadurecimento do protagonista. Nesse trabalho, abordou-se a questão do estrangeiro, daquele que se desloca de um lugar para outro e que apresenta dificuldades para adaptar-se ao novo espaço, e a representação que a cidade de Passo da Guanxuma assume no romance analisado, enquanto cidade pequena associada à infância.
Palavras-chave: Caio Fernando Abreu; estrangeiro; metrópole; Passo da Guanxuma
Abstract: Limite branco fue la primera novela de Caio Fernando Abreu. En ese libro, es establecida una relación entre el cambio de ciudad y el pasaje de tiempo para el protagonista. El pasaje de la infancia para la adolescencia está relacionada con el cambio de Passo da Guanxuma para Porto Alegre. La ruptura con la ciudad pequeña, asociada al abandono del ambiente familiar, permite el ingreso en otra atmosfera, menos ingenua y, preteñidamente, adulta marcada por la ida para la ciudad grande. La mayoridad, así, está vinculada al ingreso en la gran metrópoli: el Rio de Janeiro, destacando más una fase de maduración del protagonista. En ese estudio, fue abordada la temática del extranjero, de aquel que se desplaza de un lugar para otro y que presenta dificultades para adaptarse al nuevo espacio, y la representación que la ciudad de Passo da Guanxuma asume en la novela analizada, como ciudad pequeña asociada a la infancia.
Keywords: Caio Fernando Abreu; extranjero; metrópoli; Passo da Guanxuma

1 INTRODUÇÃO
Caio Fernando Abreu nasceu na cidade interiorana de Santiago do Boqueirão em 1948. Com dezessete anos, em 1965, saiu da casa dos pais para estudar, como aluno interno, em Porto Alegre. A partir de então, o autor alternou sua residência entre Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro e Europa, até a sua morte em 1996. Durante todo esse tempo, poucas foram as vezes em que retornou a sua cidade natal. Essa condição de sujeito que parte de uma cidade interiorana rumo a outro lugar, comumente à metrópole, está presente em muitos textos de Abreu, nos quais o individuo que partiu sente-se como um estrangeiro no novo entorno.
Limite branco, objeto deste estudo, foi escrito em 1967, quando Abreu estava com apenas dezenove anos, configurando-se em uma obra que “nasceu”, praticamente, em concomitância com as experiências vivenciadas pelo adolescente Caio Fernando Abreu. A mudança de cidade surge associada com a passagem do tempo para o protagonista: infância – adolescência – idade adulta, esta última apenas insinuada ao final da obra. Maurício, o protagonista, vivencia o estranhamento causado pela nova cidade, sendo este potencializado pelas mudanças físicas e psicológicas decorrentes do ingresso na adolescência.
Assim, nesse texto, pretende-se realizar algumas considerações sobre como a mudança espacial está associada à mudança etária na constituição da sensação de estrangeiro que é vivenciada pelo protagonista de Limite branco. Também, o papel da cidade interiorana de Passo da Guanxuma será enfatizado, enquanto município ficcional que está associado à infância, à inocência, à subjetividade, compondo uma espécie de “mundo perdido” em oposição à grande cidade que surge fragmentada, associada à objetividade capitalista.

2 ORGANIZAÇÃO DO ROMANCE
Limite branco foi o primeiro romance escrito por Abreu. Produzido em 1967 quando o autor já morava em Porto Alegre, foi publicado pela primeira vez apenas em 1970 pela Editora Expressão e Cultura. Em 1994, esse romance foi reeditado pela Editora Siciliano. Tal reedição contou com a reescritura, em 1992, de algumas passagens da obra, como informa o autor no trecho de uma carta escrita, em São Paulo, no dia 27 de janeiro de 1992, para a pintora Maria Lídia Magliani: “estou reescrevendo Limite branco para ser reeditado, é uma viagem doida: o original é de 1967” (ABREU in MORICONI, 2002, p. 228-229). Essa reescrita alterou alguns elementos do texto, entre os quais está a inserção da cidade de Passo da Guanxuma como espaço ficcional. Devido a isso, optou-se por considerar a reedição de 1994, revisada e alterada pelo próprio Abreu.
Ambientado no final da década de 1960, esse romance tem como principal temática a adolescência e tudo que envolvia ser adolescente nesse período. Pode-se dizer que é um texto sobre a adolescência escrito por um pós-adolescente, um texto de despedida dessa fase da vida, sendo que a literatura, então, “nasce” praticamente em contiguidade com as vivências do autor de apenas dezenove anos.
Esse texto está estruturado a partir de duas vozes narrativas que apresentam pontos de vista distintos, mas que se somam: a primeira de um narrador onisciente em terceira pessoa que relata a vida de Maurício, recorrendo a flashbacks; a segunda estruturada a partir do diário do protagonista escrito na primeira pessoa do singular, configurando-se como uma espécie de segundo narrador, um narrador-protagonista localizado no presente. Ao final do texto, essas duas vozes encontram-se, tornando-se uníssonas.
A narrativa inicia com Maurício, o protagonista, adolescente, vivendo em Porto Alegre, para, em seguida, recorrer a flashbacks e retornar à infância de Maurício, quando ele ainda vivia na cidade interiorana de Passo da Guanxuma com seus pais. No decorrer do texto, surgem outras personagens relacionadas, principalmente, ao ambiente familiar: a tia Violeta com seu fascínio por morangos; a avó com um álbum de retratos simbolizando a tradição familiar; o tio Pedro casado com a tia Mariazinha, pais de Eduardo; tia Clotilde, mãe de Maria Lúcia, as duas moradoras do Rio de Janeiro. Além dessas, outras personagens também assumem participações importantes ao longo do romance: Luciana a empregada que se suicida por não ter coragem de revelar seu amor por Eduardo, pois a diferença social entre eles a intimidava; Laurinda e Zeca, vizinhos da família; Bruno, vindo do Rio de Janeiro, tornou-se colega de escola de Maurício, na capital; e a amiga Marlene, também moradora da capital.
O reconhecimento da morte e a sensação de perda desde cedo se instalaram na vida do protagonista, primeiro com a morte de Luciana, depois com o falecimento da avó, e, ao final da narrativa, com a morte da mãe e do bebê que ela esperava: uma menina que se chamaria Virginia. A morte da empregada e da avó contribuíram para aumentar a introspecção na qual Maurício mergulha gradualmente ao longo da narrativa. A fase de mudanças que é inaugurada com o início da adolescência, quando não se é mais criança, mas ainda não se é adulto, promove um entre-lugar que é acentuado pela falta de diálogo entre o protagonista e sua família, culminando em um maior isolamento: “Não tive nenhuma orientação, nenhuma educação nesse sentido. O que aprendi foi através da boca não muito limpa dos colegas de aula, dos livros de anatomia folheados na biblioteca” (ABREU, 1994, p. 82-83).
Por tratar-se de uma narrativa intimista, há poucas descrições espaciais, sendo apresentadas somente as que são essenciais para o andamento do texto. Em decorrência dessas parcas descrições, a cidade na qual Maurício vivia é nomeada apenas no momento da partida do protagonista:
A plataforma oscilava, os solavancos do vagão faziam as três imagens saltarem como bolas de pingue-pongue. Ergueu a mão, abanando. Mas sabia que ninguém conseguiria vê-lo. As árvores interpunham seus galhos entre ele e o Passo da Guanxuma, cada vez mais parecida com um presépio esquecido entre dois montes. 2 (ABREU, 1994, p. 72)
Além do caráter interiorano que pode ser inferido a partir das poucas características apresentadas e a partir da fala de algumas personagens (“De repente o pai dizendo à mãe: ‘Não tem mais nada que prenda a gente aqui neste fim de mundo. A gente precisa pensar é no futuro do guri’” – ABREU, 1994, p. 73; “Seria diferente, agora. Só voltaria ali nas férias, e seria olhado com aquele misto de desprezo, inveja e respeito com que eram encarados os ‘guris da cidade grande’” – ABREU, 1994, p. 75; “Eu também não sou daqui — explicou Maurício. — Sou do interior. Viemos faz pouco tempo de lá, não conheço ninguém” – ABREU, 1994, p. 100) é possível delinear algum resquício sobre sua localização geográfica. Quando a família do protagonista muda-se do Passo, o destino é a capital.
Da mesma forma que são escassos os dados para a identificação do Passo da Guanxuma, também o são para identificar a capital. Entretanto, em uma passagem, Abreu permite que o leitor confirme suas suspeitas, e associe a capital a Porto Alegre, localizando, então, o Passo da Guanxuma no Rio Grande do Sul: “Fui até a minha praça, na volta do Gasômetro, e é só lá que eu encontro céu e rio à vontade, azuis, quase fundidos um com o outro” (ABREU, 1994, p. 137).
Essa menção é uma raridade em Limite branco, pois a falta de referências espaciais específicas pretende que o texto ganhe um caráter que transcenda o regional, estendendo-se para além do localismo. Todavia, o emprego excessivo de regionalismos, reproduzindo a fala gaúcha, possibilita que o Passo da Guanxuma e a capital sejam associados ao Rio Grande do Sul, minimizando, assim, uma real possibilidade de transcendência.
Além de Passo da Guanxuma, outra cidade apresenta referências explícitas no texto: Rio de Janeiro. Essa cidade é caracterizada primeiramente, de forma implícita, pela forma de falar de Maria Lúcia: “Depois vinha uma pena muito grande da menina, coitadinha dela, com aquele chiado gozado no final das palavras, os olhos de quem já viu muita coisa diferente, tão burrinha — coitada dela” (ABREU, 1994, p. 48), e, em segundo lugar, pela referência explícita: “- Tudo vai sair bem, eu sei. Tu vens passar as férias lá na estância de vez em quando. Eu já estou muito velho pra andar viajando pro tal de Rio de Janeiro” (ABREU, 1994, p. 150).
A cidade do Rio de Janeiro é apresentada como oposta ao Passo da Guanxuma e à capital gaúcha, em uma visão depreciativa por parte de Maurício em virtude do sotaque, e por parte do pai do protagonista em relação aos costumes:
Quando entrou na sala de jantar, a primeira pessoa que viu foi o pai, na cabeceira da mesa. Olhou para ele com ironia, imaginando que deveria estar caprichando em gestos e palavras para impressionar bem “os parentes que vinham do Rio”. Para o pai, o Rio era uma terra estranha, onde as mulheres andavam quase nuas e dormiam com os maridos das outras mulheres, enquanto estas dormiam com os maridos delas. E os maridos também não se importavam, andavam também meio nus e falavam daquele jeito que não era jeito de macho que se preza. Uma terra estranha, onde ninguém trabalhava e todo mundo só procurava o prazer. Uma terra onde se pronunciava — pior ainda, praticava-se — sem o menor pudor a palavra sexo. Na cabeceira da mesa, o pai era um gaúcho sólido desprezando aquelas depravações, mas, ao mesmo tempo, empenhado numa luta difícil com as palavras. (ABREU, 1994, p. 117-118)
Essa depreciação do Rio de Janeiro pelo pai do protagonista reforça o pertencimento e a identificação deste com o interior, com a cidade Passo da Guanxuma, com sua cultura. Esse pertencimento fortifica-se ainda mais quanto ao jeito de falar, pois a “luta com as palavras” destaca a rusticidade e reforça a interioraneidade dessa personagem.
Ao final do texto, com a morte da mãe, e a eminente mudança para o Rio de Janeiro, a cidade de Passo da Guanxuma tende a tornar-se apenas uma lembrança distante para Maurício, uma recordação nostálgica talvez.

3 O ESTRANGEIRO E A CIDADE PEQUENA
Há vários pontos no romance Limite branco que permitem aproximações entre a narrativa e as experiências autobiográficas do escritor como, por exemplo, a mudança de cidade: Abreu saiu da pequena Santiago do Boqueirão ainda adolescente e mudou-se para Porto Alegre. Na obra, a sensação de deslocamento causada pela troca de município é potencializada devido às alterações provocadas pela adolescência. Alterações essas que também foram vivenciadas pelo autor no período em que estava escrevendo Limite branco, encontrando reflexo em suas personagens, principalmente, no protagonista Maurício.
Nesse romance, a cidade interiorana, não nomeada na primeira edição em 1970, surge como Passo da Guanxuma na reescritura de 1992. Nesse período, Passo da Guanxuma já figurava como cidade ficcional em outras obras de Abreu, ganhando contornos que a particularizavam.
Em uma edição da série Autores Gaúchos destinada a apresentar a biografia e a obra de Caio Fernando Abreu, publicada pelo Instituto Estadual do Livro (IEL), datada de 1988, há uma entrevista concedida pelo autor, na qual consta o seguinte:
Em várias histórias aparece uma cidade ficcional chamada Passo da Guanxuma, que é também um símbolo da volta às origens, de uma reestruturação para mim muito importante, já que estou na curva dos 40. E acho que este é o momento em que você tem que não só se projetar para o futuro, como também recuperar o teu passado. A gente começa a perceber que a origem é muito mais forte do que se imaginava. (...) Pensei muito em encontrar um nome para a cidade ficcional. Então, lembrei de uma planta comum na fronteira do Rio Grande do Sul, chamada guanxuma, e que serve para vassouras e chá estomacal. Acho estranho que estas duas funções sejam de limpeza depois da poluição, meio Eldorado, um lugar assim onde a felicidade e a integridade são possíveis. (ABREU, 1988, p. 04)
Nesse trecho da entrevista, Abreu fala da criação da cidade ficcional de Passo da Guanxuma, referindo-se a primeira vez que ela esteve presente em um texto seu: em 1984, no conto Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira da sanga, publicado em 1988 no livro Os dragões não conhecem o paraíso. Nessa obra há outros três textos nos quais Passo da Guanxuma surge como espaço ficcional, configurando-se como uma cidade interiorana em oposição às metrópoles que figuram nos contos. Embora, essa passagem esteja relacionada com os textos presentes em Os dragões não conhecem o paraíso, as características atribuídas ao Passo podem facilmente ser reconhecidas na obra aqui analisada, pois, como apontado na apresentação do romance, a cidade está localizada na geografia ficcional do Rio Grande do Sul, mantém seu caráter de interioraneidade, e, no caso de Limite branco, está associada com a infância, com as origens.
A falta de individualidade e a poluição das grandes cidades produzem a necessidade da criação de uma cidade ficcional interiorana com características distintas. Esse município, que está presente em vários textos e que é inserido na reescritura de muitas obras, surge como um contraponto que se opõe à turbulência da metrópole. Em Limite branco, ao contrário da maioria dos contos presentes em Os dragões não conhecem o paraíso em que o Passo da Guanxuma figura como espaço ficcional, o protagonista adolescente está percorrendo o caminho de partida dessa cidade, deixando para trás a infância e a inocência, na tentativa de alcançar um amadurecimento.
Nesse romance, a mudança de cidade estabelece uma relação entre as fases da vida do protagonista e os municípios para onde ele se desloca, relacionando-se com o desejo de partida. Primeiramente, o Passo da Guanxuma está associado à inocência, ao convívio com a família, à infância, sendo o palco das primeiras descobertas, portanto já conhecida. Porto Alegre surge como uma cidade intermediária, um ambiente híbrido, entre a pequena Passo da Guanxuma e o Rio de Janeiro. A capital gaúcha convive de um lado com a manutenção de tradições e de outro com a urgência da objetividade imposta pela urbanização, e está associada à adolescência de Maurício, ao presente, ao período de transição entre a infância e a idade adulta, período esse em que o desejo de conhecer o novo aumenta, bem como a vontade de relegar a infância ao passado. O Rio de Janeiro simboliza a urbanização, a grande metrópole, onde não há espaço para a subjetividade. Essa cidade está associada à projeção de futuro do protagonista, e, por consequência, a sua idade adulta.
Apesar de o Passo da Guanxuma ser percebido de forma diferente em Limite branco e em Os dragões não conhecem o paraíso, esse município desperta, em ambas as obras, o sentimento de deslocamento, tornando as personagens que dele partiram estrangeiras. A condição de estrangeiro produz um desgarramento, um não apego a nenhum lugar, criando um espaço de liberdade indispensável para a sobrevivência na nova cidade. Ser estrangeiro é ser diferente desde o princípio, é não pertencer ao lugar onde se está, é assumir o papel do “outro” desde o início. Quando a liberdade é conquistada no novo lugar, passa-se a não mais detestar o local onde se está, mas sim a percebê-lo como inevitável naquele momento, e, por conseguinte, aceitá-lo, apreendendo-o como menos ofensivo, como no caso do protagonista Maurício quando passa a viver em Porto Alegre.
Vale destacar que a liberdade obtida não é uma liberdade plena e alegre, pois a sensação de não pertencimento continua existindo como um mal-estar que faz questão de lembrar que algo está faltando, que algo ficou para trás. De acordo com Kristeva (1994, p.19), “livre de qualquer laço com os seus, o estrangeiro sente-se ‘completamente livre’. O absoluto dessa liberdade, no entanto, chama-se solidão. (...) Disponível, liberado de tudo, o estrangeiro nada tem, não é nada”.
A solidão decorrente dessa liberdade produz, então, a necessidade do encontro com o semelhante, daquele que também é estrangeiro, que também está só. Esse encontro, no romance, ocorre quando Maurício, em Porto Alegre, aproxima-se de Bruno, seu colega de aula vindo do Rio de Janeiro, e os dois tornam-se amigos, diminuindo a sensação de deslocamento que é vivenciada por ambos. Entretanto, Bruno muda de município mais uma vez e Maurício volta a ficar sozinho.
Além da condição de estrangeiro fora do seu espaço de origem, Maurício também é um estrangeiro consigo mesmo. As mudanças provocadas pela adolescência hiperbolizam a sensação de deslocamento pela qual o protagonista está passando, fazendo com que se isole na tentativa de encontrar-se consigo mesmo. De acordo com Kristeva (1994, p. 15), o indivíduo que se percebe como um estrangeiro para si mesmo “não pertence a nenhum lugar, nenhum tempo, nenhum amor. A origem perdida, o enraizamento impossível, a memória imergente, o presente em suspenso”. Nos momentos de reclusão, Maurício mantinha o tempo presente em suspenso e ingressava em considerações tão íntimas que o abstraíam do contexto que o rodeava. O leitor tem um ponto de observação privilegiado nesse caso, pois, através do diário escrito pelo protagonista, é possível ingressar em suas considerações particulares.
Após a saída de Passo da Guanxuma, Maurício mudou-se para Porto Alegre e teve sua mudança para o Rio de Janeiro anunciada no final do romance. Ambas as cidades, Porto Alegre e o Rio de Janeiro, são cidades grandes, o que torna a condição de estrangeiro algo particular. A metrópole, como aponta Walter Benjamin (1989), é o palco da multidão, do tráfego da turba anônima no uso do espaço público comum. Na condição de palco da multidão, a metrópole, de acordo com Simmel (1979), passa a sediar o conflito enfrentado pelo sujeito em seu processo de individualização, pois, segundo esse autor, nesse espaço urbano singular, o indivíduo se percebe ao mesmo tempo estimulado e embaraçado com seu processo de individualização. Em meio à aglomeração, o anonimato impõe-se como um imperativo que é fortalecido pela indiferença e pela impessoalidade que estão associadas à objetividade imperante da sociedade capitalista.
A metrópole, enquanto lugar de possibilidades de desenvolvimento, não pode ceder lugar à subjetividade, pois seu intuito é primar pelo anonimato, e, de acordo com Leal (2002), converter os indivíduos em números, em estatísticas, lidando com homens, mulheres e objetos de forma limitada, fragmentada e impessoal. Em oposição à impessoalidade e a fragmentação impostas pela metrópole está a subjetividade, a individualidade, criando um espaço complexo com relações divergentes que, simultaneamente, apresenta o tradicional e o urbano, o passado e o presente, o infantil e o adulto, o privado e o público, o subjetivo e o objetivo, obrigando o indivíduo a atuar sobre essas esferas.
Contrária à metrópole está a pequena cidade, a cidade interiorana. Esse local, nos textos de Abreu, na maioria das vezes, está associado à infância, à adolescência, à inocência, compondo uma espécie de “mundo perdido”, afastado das personagens pelo tempo, pela impossibilidade de retorno, em oposição à grande cidade que surge como sinônimo de urbanidade, de trânsito contínuo, de vida adulta, de vida presente. Esses dois ambientes quando confrontados, no romance, criam sentimentos de angústia e de impossibilidade nas personagens que vivem como estrangeiras nas grandes metrópoles.

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao sair de Passo da Guanxuma, o protagonista de Limite branco assume o papel de estrangeiro nas grandes cidades para as quais se mudou. Esse papel é acompanhado pelos sentimentos de desgarramento, de não pertencimento que caracterizam a condição de estrangeiro. Esses sentimentos são potencializados pelas mudanças físicas e psicológicas pelas quais Maurício está passando em decorrência do ingresso na adolescência, o que é reforçado pelo caráter intimista assumido pela narrativa.
A mudança para Porto Alegre e o anúncio da ida para o Rio de Janeiro associam as fases da vida do protagonista à troca de municípios. A infância associada à interiorana Passo da Guanxuma, às brincadeiras, à ingenuidade. A adolescência associada ao ambiente híbrido da capital gaúcha, ao período de transição, de transformação. A idade adulta associada à promessa de ingresso no Rio de Janeiro, à perda da ingenuidade e da subjetividade.
Essa relação entre as alterações etárias e as espaciais permite que a cidade interiorana assuma um importante papel, sendo considerada o ponto de partida, o palco das primeiras descobertas, e, por isso, vinculada às lembranças, à memória. Passo da Guanxuma opõe-se à metrópole, produzindo sentimentos complexos nas personagens que dela partiram, pois contrapõe a infância e a idade adulta; a subjetividade e a objetividade; a unicidade e a fragmentação. Contudo, em Limite branco, o regresso já não é mais possível, pois o Rio de Janeiro e a idade adulta aguardam Maurício, e não é possível parar o tempo nem desfazer as experiências vividas.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Caio Fernando. Limite Branco. 1ª. ed. Rio de Janeiro: Expressão e Cultura, 1970.
______. Limite branco. 2. ed. São Paulo: Siciliano, 1994.
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas III: Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. Tradução de José Carlos Martins Barbosa e de Hemerson Alves Baptista. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.
KRISTEVA, Júlia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
LEAL, Bruno Souza. Caio Fernando Abreu, a metrópole e a paixão do estrangeiro: contos, identidade e sexualidade em trânsito. São Paulo: Annablume, 2002.
MORICONI, Ítalo (org.). Caio Fernando Abreu: Cartas. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.
SIMMEL, Georg. Metrópole e vida mental. Tradução de Sérgio Marques dos Reis. In: VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1979.


1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria, UFSM.
2 Na obra publicada em 1970, essa passagem estava grafada assim: “A plataforma oscilava, e os solavancos do vagão faziam as três imagens saltarem como bolas de pingue-pongue. Ergueu a mão também, correspondendo ao aceno. Mas já sabia que ninguém veria. Árvores interpunham seus galhos entre ele e a cidadezinha, que cada vez parecia-se mais com um presépio esquecido entre dois montes”. (ABREU, 1970, p. 87-88)
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