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Literatura e Autoritarismo

Literatura: Compreensão Crítica

Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 14 

LETRAS DISSECADAS:
A CRÔNICA CLARICEANA COMO EXERCÍCIO DA INTROSPECÇÃO

Gizele Cristiana Carneiro1
Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira2
Resumo: A pesquisa tem como meta a análise dos escritos cronísticos de Clarice Lispector. Sobre este aspecto, far-se-á uma reflexão que busque compreender de que forma a escritora, a partir das ‘revoluções’ ocorridas no interior do ser humano, retira a matéria-prima para suas crônicas, gerando de certa forma uma situação paradoxal, já que a gênese da crônica são os fatos cotidianos exteriores ao sujeito. Não obstante, haverá uma breve recuperação das características do romance clariceano, bem como do modo peculiar como a autora trabalha a linguagem na tentativa de atenuar a distância que há entre palavra e sentimento.
Palavras-chave: crônica, introspecção, Clarice Lispector
Abstract: The research aims to analyze the writings of Clarice Lispector chroniclers. In this respect, will be a reflection that seeks to understand how the writer from the 'revolution' occurring within the human being, cut the raw material for their chronic, leading to a somewhat paradoxical situation as the genesis of chronic daily facts are external to the subject. Nevertheless, a brief recovery of the characteristics of the novel clariceano, and the peculiar way the author works as a language in an attempt to diminish the distance that exists between word and feeling.
Keywords: chronic, introspection, Clarice Lispector
“Tem gente que cose para fora, eu coso para dentro.”
Clarice Lispector
INTRODUÇÃO
“[...] Parece que me mitificaram. Eu sou uma mulher simples. Não tenho nada de sofisticação. As entrevistas que eu dou são para explicar que não sou um mito. Sou uma pessoa como outra qualquer [...]” afirma Clarice Lispector em trecho de entrevista, que faz parte da edição especial de Cadernos de Literatura Brasileira (2004), dedicada à escritora. Embora tal afirmativa provenha da própria Clarice, não há como concordar de forma plena com a assertiva, ao menos quando se trata de sua obra.
Inicialmente, ao atentarmos para a significação do termo ‘mito’ como sendo uma maneira de expressar aquelas verdades inexprimíveis e/ou incompreensíveis racionalmente, podemos ser levados a conceber Clarice como um ‘ser mitológico’. Para tanto, a magia própria do misticismo não está necessariamente ligada à pessoa de Clarice, e sim a seus escritos.
A obscuridade que ronda o interior humano foi-nos apresentado por Lispector em forma de palavras e construções frasais que comportam a essência do mito, ou seja, a explicação do inexplicável. Por esse motivo, muitos julgaram sua obra ‘alienante’ afirmando faltar-lhe elementos verificáveis na realidade, entretanto, sabe-se que não há como separar o exterior do interior, uma vez que, como a própria Clarice constatou, o que há no interior humano é reflexo dos acontecimentos exteriores. Devido a isso, a mitificação atribuída a Clarice concretiza-se em seus escritos, em seu modo de trazer à tona aquilo que foge às explicações lógicas e racionais, transfigurando o indizível em palavras. O indizível tomará corpo na própria palavra, sendo essa translúcida, exigindo de nós leitores uma visão desautomatizada o que nos levará ao ápice da compreensão.
Sobre este aspecto, far-se-á uma reflexão que busque compreender de que forma a escritora, a partir das ‘revoluções’ ocorridas no interior do ser humano, retira a matéria-prima para suas crônicas, gerando de certa forma uma situação paradoxal, já que a gênese da crônica são os fatos cotidianos exteriores ao sujeito. Não obstante, haverá uma breve recuperação das características do romance clariceano, bem como do modo peculiar como a autora trabalha a linguagem na tentativa de atenuar a distância que há entre palavra e sentimento.
Faz-se necessário esclarecer que, escapando às concepções da Linguística, os termos ‘linguagem’, ‘palavra’ e ‘signo lingüístico’ serão aqui utilizadas como sinônimos.

1 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE O ROMANCE CLARICEANO
Ian Watt em A ascensão do romance (1996) desenvolve algumas reflexões acerca das transformações ocorridas na prosa de ficção a partir do século XVIII, tendo em vista as crescentes transformações pelas quais passavam as sociedades da época, devido às descobertas técnico-científicas e o contínuo processo de industrialização. A herança deixada pela literatura clássica, embora de valor inestimável para todos os que vieram posterior a ela, já não era passível de imitação, pois mitologia, deuses e batalhas, que por muito ecoaram em estrofes e tramas na busca de representar e se fazer compreender o mundo, não condiziam com a sociedade emergente.
O primeiro grande desafio a esse tradicionalismo partiu do romance, cujo critério fundamental era a fidelidade à experiência individual – a qual é sempre única, e, portanto, nova. Assim, o romance é o veículo literário lógico de uma cultura que, nos últimos séculos, conferiu um valor sem precedentes à originalidade, à novidade (Watt, 1996, p.5).
Não havia, assim, como conceber o mundo por meio s de experiências coletivas tendo os sentidos aguçados pelas torrentes mutações de um mundo moderno; a solução plausível era a busca de novos meios de representação da realidade. Com isso, surgem correntes literárias que prezam ora pelas impressões sentidas, ora pela possibilidade de perceber sob diversos ângulos uma mesma situação, o que levou a pensar na inviabilidade da representação universal quando considerado a particularidade de percepção de cada individuo.
Como reflexo disso, os elementos constitutivos da prosa de ficção também passam por mutações; personagens, tempo e espaço perdem o formato pré-estabelecido e o objetivismo linear comumente desenvolvido para dar lugar ao subjetivismo das sensações, em que a cronologia científica e o espaço mundano são substituídos pela vivência e apreensão particularizada do escritor, à cada um destes; o narrador com sua voz distinta das personagens que compõe uma narrativa, em alguns momentos, é calada para que o próprio personagem conduza sua história. É o que constata Rosenfeld em Reflexões sobre o Romance Moderno (1996):
A consciência da personagem passa a manifestar-se na sua atualidade imediata, em pleno ato presente, como um Eu que ocupa totalmente a tela imaginária do romance. Ao desaparecer o intermediário, substituído pela presença direta do fluxo psíquico, desaparece também a ordem lógica da oração e a coerência da estrutura que o narrador clássico imprimia à seqüência dos acontecimentos (ROSENFELD, 1996, p.84).
Para tanto, ressalta-se que estas modificações se deram de forma gradual no decorrer dos séculos, na medida em que a evolução das sociedades ocidentais exigia um novo modo de se fazer literatura. E como não poderia deixar de ser, em meio a tantas mudanças, nota-se significativa a postura tomada pelos escritores frente ao seu instrumento de trabalho: a palavra.
Tem-se aí um constante embate entre escritor e signo, pois a necessidade de expressar fidedignamente aquilo apreendido pelos sentidos faz surgir a necessidade de forjar o que podemos chamar de palavras-sensações. O papel designado a esta seria o de imprimir em seu ‘corpo físico’ o sentimento/sensação tal qual experimentou o escritor de modo que, quando em contato com o leitor, este pudesse contemplar do mesmo sentimento.
Na literatura brasileira, percebe-se em escritores, situados cronologicamente como pertencentes à escola modernista, as transformações brevemente acima recuperadas sobre o romance moderno, em que o monólogo narrativo misturado ao fluxo da consciência, bem como construções neológicas e a linguagem figurativa, ganharam ampla repercussão. É nesse ínterim que Clarice Lispector estréia como romancista na década de 40, mais especificamente no ano de 1944 com a obra Perto do Coração Selvagem.
O surgimento de Clarice nas letras brasileiras causou a muitos críticos uma espécie de repulsa primária, devido ao modo peculiar que apresentava seus textos. Ainda que pertencente ao Modernismo brasileiro, Lispector demonstrou um estilo totalmente inovador de se fazer romance tanto pela linguagem utilizada como pela estrutura narrativa, o que rendeu a ela inúmeras críticas. Destas, encontramos as mais significativas na obra de Olga de Sá intitulada A escritura de Clarice Lispector (1993), onde a autora traça o percurso da crítica clariceana desde o sua aparição na década de 40.
O levantamento feito por Sá faz-nos entrar em contato com o tortuoso e, por vezes, mordaz caminho enfrentado pela escritora, a começar pela constatação feita pelo crítico Alceu Amoroso Lima – citado por Olga – para quem Clarice Lispector encontrava-se sozinha em meio à literatura brasileira. Todavia, afirma a escritora, que esta constatação se deu pelo fato de a crítica não conseguir ‘enquadrar’ a estreante em nenhum dos paradigmas já existentes. A isto diz que “pode-se compreender, à distância, o dilema enfrentado por uma crítica impressionista, que percebe a originalidade, mas não consegue situá-la” (SÁ: 1993, p.34).
Para tanto, houve aqueles que transgrediram as regras e lançaram-se libertos de qualquer dogma para uma escrita dotada de originalidade. Antonio Candido, um dos críticos presentes na obra de Olga de Sá, louva a coragem de Clarice em aventurar-se por caminhos ainda não percorridos que levaram-na “a um novo ritmo de ficção, numa pesquisa de linguagem para transmitir sua pessoal interpretação do mundo, por meio de um vocabulário, imagens e torneios que se amoldem às necessidades de uma expressão sutil e tensa, de tal maneira que a língua adquira o mesmo caráter dramático do entrecho” (SÁ: 1993, p.25).
A esta altura é notória a atenção dispensada à escrita de Clarice Lispector, ou seja, ao modo como a escritora utiliza-se da linguagem para descrever suas impressões. Alguns a consideraram hermética, outros classificaram-na como própria de uma escrita feminina com toda a carga semântica negativa que esta classificação possuía em sua época, mas é ponto comum a toda essa crítica “a capacidade que tem a escritora de dar vida própria às palavras, emprestando-lhes um conteúdo inesperado” (SÁ: 1993, p.27).

2 A PALAVRA EM CLARICE LISPECTOR
Em Clarice Lispector: seleta (1975) obra que tem Renato Cordeiro Gomes responsável pela escolha dos textos nela compilados, e Amariles Guimarães Hill pelas notas/comentários e estudo final da mesma, encontramos um artigo intitulado A experiência do existir narrando em que Hill busca demonstrar o narrar clariceano, partindo de questionamentos que embora implícitos, respondam a: o que narrar e de que modo narrar, enfocando o diferencial que há entre as obras de Clarice Lispector e as demais narrativas já consagradas, no que diz respeito a linguagem e a temática. Uma escritora que segundo ela, descortinou o cotidiano com o intuito de fazer-nos perceber o ocultismo que há por detrás do óbvio torna-se motivo de estranhamento, principalmente quando o que ainda impera na literatura é a redescoberta do Brasil feita pelos modernistas de 22, a seca, os retirantes nordestinos e o cenário agreste.
Fugindo à regra – sem alienar-se da realidade, como já mencionado – Clarice torna-se, segundo Hill, uma perceptora privilegiada por apreender o real sem o automatismo comum a todos; e labiríntica por transfundir essa percepção densamente em suas obras através da linguagem.
A palavra é o meio concreto utilizado pelo escritor para expressar-se artisticamente, todavia nem sempre há entre escritor e signo lingüístico um relacionamento harmonioso. Embora se mostrasse uma ávida leitora e, em alguns momentos, escritora desde a infância, Clarice Lispector era consciente quanto a problemática enfrentada por seus pares na utilização da linguagem, uma vez que ela mesmo afirma ser árduo este contato:
Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de alerteza. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a capa de superficialismo (NUNES in Cadernos de Literatura Brasileira: 2004, p.83)
Se pensarmos a palavra como um símbolo que representa sinteticamente aquilo que percebemos pelos nossos sentidos, é possível compartilhar desta dificuldade apresentada por Clarice, pois, uma vez sendo representação, não há como esperar da palavra a vivacidade e a ação que comporta um sentimento. Todavia, essa não ação da palavra torna-se contraditória se consideramos que os fatos e objetos só possuem existência e se concretizam através da linguagem. É o que afirma Marilena Chauí em Convite à Filosofia (2000):
De fato, basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras, não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas os envolvem e os englobam [...]a linguagem é o corpo do pensamento. (CHAUÍ: 2000, p.181-2)
Entretanto, no caso de Clarice Lispector o que faz falhar a ação é o esgotamento da palavra quando colocada frente a situações indizíveis e irretratáveis por elas, a saber, os reflexos causados no interior do ser humano pela dinâmica do ‘relacionar-se com o mundo’, tendo em vista que, a recepção das coisas mundanas difere de sujeito para sujeito. Como, então, representar por meio de símbolos gráficos sentimentos e sensações sendo estes tão particulares e abstratos? Será que palavras como ‘angústia’, ‘solidão’, ‘desorganização’ comportam todo o sentimento de angústia, solidão ou desorganização experimentada pelo sujeito? Com estas indagações chega-se ao tocante no que se refere a problemática da linguagem clariceana: o de “ ‘encostar’ a palavra à coisa e atingir o além do signo” (BRANCO e BRANDÃO, 1989, p.113).
Cabe nesse momento recorrer a um importante trabalho desenvolvido por Lúcia Castelo Branco e Ruth Silviano Brandão, intitulado A mulher escrita (1989), que busca demonstrar como a escrita feminina se define ante a masculina. Todavia, evitaremos enfatizar tais diferenças por não ser esse nosso objetivo, ainda que sejam plausíveis as considerações feitas pelas pesquisadoras. O que buscaremos demonstrar é como essa linguagem está intrinsecamente ligada ao corpo físico e as sensações promovidos por esse. Assim, as pesquisadoras tomam para análise o romance Água Viva e o conto Lucas, Naim respectivamente das escritoras Clarice Lispector e Hilda Hilst, onde deles procuram içar aspectos caracterizantes da escrita feminina, e que concebem por escrita do ‘indizível’ e do ‘impossível’.
Metaforicamente, esta escrita do indizível e impossível traduz-se, segundo as escritoras, como o singelo toque da mãe que dispensa a linguagem verbal, tanto pela intensa significação que possui quanto pela incapacidade lingüística de ser expressa, tendo em vista ser este ato sensação. Sentindo desafiada por isso, a escritora ‘destece’ a malha que cobre a palavra original e a toca como faz a mãe, aproximando-se dela ‘corporalmente’ para que esta sinta-se envolta de vida e só assim possa dizer o que não se diz pelo objetivismo do signo lingüístico. Por isso, afirma Branco e Brandão, ser este um:
[...] processo de “dessimbolização” da linguagem, onde outro registro se insinua, o corpo feminino ocupa lugar privilegiado, a palavra busca afirmar-se não apenas como coisa, mas como uma coisa que é o corpo do narrador, desafiando o corpo anônimo do leitor a também ingressar neste projeto delirante [...] (BRANCO e BRANDÃO, 1989, p.13).
Percebemos aqui que a dessimbolização da linguagem está intrinsecamente ligada ao corpo feminino, em que este torna-se receptor de fatos concretos e transforma-os através dos sentidos, em sensações a serem transmitidas por uma linguagem peculiar. No contexto, em que se insere tal fragmento, as escritoras fazem uma citação de Clarice Lispector em que, segundo a romancista, a utilização de determinados signos em sua narrativa, muitas vezes, não condizem com seu significado primeiro, mas sim na maneira com que através da audição tal palavra é impregnada nos leitores.
Dessa forma, Castelo Branco e Brandão, apoiadas nos estudos de Béatrice Didier (1981), dizem ser os escritos femininos próprios para serem ouvidos e não lidos tendo em vista que, a oralidade/sonoridade está ligada a um dos sentidos responsáveis pelas sensações: a fala. Sobre isto, Cixous e Clément – citadas por Castelo Branco e Brandão, no texto aqui abordado – afirmam que ao falar em público “é toda inteira que ela (a mulher) se coloca através da sua voz, é com seu corpo que ela sustenta vitalmente a ‘lógica’ de seu discurso” (p.113) assim que Clarice, por meio da narradora de Água Viva, convida-nos a acompanhá-la sendo que para isso deixemos de raciocinar e nos entreguemos a sua narrativa sem lutar.
Assim, ao percorrer os escritos cronísticos de Clarice Lispector perecebe-se que esta não era uma atividade vislumbrada pela escritora. Ainda assim, tal prática esteve presente em sua vida entre os fins da década de 60 e início da década de 70 – quando atuava no Jornal do Brasil - totalizando seis anos de trabalho.
Clarice não considerava suas crônicas como tipicamente crônicas, preferia que estas fossem concebidas como ‘impressões’, daí nossa busca pela introspecção, neste gênero textual, que tradicionalmente se constrói por fatos ocorridos exteriormente.

3 A CONSTRUÇÃO INTROSPECTIVA NA CRONÍSTICA CLARICEANA
O gênero crônica, em sentido lato, tem sua gênese ligada ao período medieval português. Utilizada como um meio de registrar situações vivenciadas pela realeza bem como os feitos ultramarinos desta nação, a crônica assume, também, neste período um caráter pedagógico por imprimir em seus escritos os ditos ‘atos exemplares’ a serem seguidos pelos futuros membros da corte, como relata Paulo Konzen (2002) em Caminhos da crônica brasileira. Além disso diz, o escritor, ser este gênero “uma forma preliminar da historiografia moderna” justamente pelo fato de perpetuar em suas linhas a realidade social de uma determinada população.
Para tanto, no decorrer de sua formação, a crônica foi se desvencilhando deste caráter pedagógico bem como o do científico-histórico para forjar-se como um gênero que ora figura-se aos moldes do jornalístico – sem, contudo, submeter-se completamente a seriedade e objetividade deste –, ora aos moldes do poético – com toda a lírica e a subjetividade que lhe é próprio.
Ao assumir esta nova roupagem podemos, afirma Konzen (2002), verificar traços do ensaio inglês e do folhetim francês neste gênero que começa a ganhar forças com o surgimento da imprensa no século XVIII. Do primeiro, diz ele, a crônica herda a idéia de uma breve dissertação com ressalvas para uma linguagem informal, já do segundo, a efemeridade por ter sido o folhetim um texto de consumo imediato, e quanto a temática, de um modo geral, ela se ocupa tanto da notícia que encontra-se em evidencia no jornal – abordando-a sob a perspectiva particularizada do cronista –, quanto de algo ocorrido no cotidiano, mas que aos olhos do jornalista, não rende uma notícia.
Feita a recuperação genética da crônica, Paulo Konzen (2002) busca, em um outro momento de seu trabalho, içar dos principais cronistas brasileiros aquilo que levou tal escrito a constituir-se como gênero literário.
Encontrando-se em um momento onde a busca pela nacionalidade brasileira era intensa, José de Alencar destaca-se, segundo Konzen (2002), por desenvolver em suas crônicas temas ligados a realidade de seu país assim como um “relato sociocultural da sociedade carioca”. Entretanto, o autor afirma não ser Alencar o escritor que deu a crônica características de texto literário uma vez que, mesmo utilizando recursos como a fantasia e o humor, nota-se marcadamente em seus escritos o predomínio da função primeira destinada ao folhetim: discorrer sobre acontecimentos da semana ligados a apreciação de espetáculos, bailes e festividades. Com efeito, ao eleger situações particularizadas em seus relatos – como no caso supracitado – que só terão significância naquele determinado momento, o cronista deixa de propiciar perenidade ao seu texto e, por conseguinte, poderá sentenciá-lo ao esfacelamento.
Todavia, quando ele se detém em temas universais que transcendem o tempo devido a sua inesgotável atualidade, este cronista provavelmente promoverá seu escrito à gênero literário. Para tanto, deve-se ressaltar que a permanência deste texto bem como o seu caráter literário se faz não apenas pela temática escolhida, mas principalmente pelo modo como o escritor desenvolverá as características específicas da literariedade.
É nesta categoria que, para Paulo Konzen (2002), encontra-se Machado de Assis, pois desenredando do puro relato do cotidiano sem, contudo, deixá-lo de lado, afirma o escritor ter Machado impregnado em seus registros uma interpretação particular/subjetiva da realidade enfocada, desencadeando assim a passagem do fato ocorrido para um segundo plano:
Machado de Assis, apesar de ter como requisito primordial o comentário dos fatos semanais, investe suas impressões sobre esses fatos de uma literariedade mais expressiva na medida em que [...] o fato fica em segundo plano e o que prevalece é a interpretação dada ao mesmo. Neste sentindo as crônicas de Machado procuram desvencilhar-se da obrigatoriedade de retratar as semanas, qualidade que evita que se tornem datadas e situadas, já que este pode ser compreendido como um dos empecilhos para a permanência da crônica. (KONZEN, 2002, p. 5-6)
Outrossim, vemos que, embora habite o universo jornalístico onde a objetividade e a imparcialidade muitas vezes imperam, a crônica consegue dentro deste veículo, manter certo lirismo e subjetivismo capaz de promover uma intimidade com o leitor, podendo este ser um atributo da permanência de determinadas crônicas no campo literário. Pois, a partir do momento em que o escritor interfere no fato narrado com incursões subjetivas, proporcionando muitas vezes a universalidade dos assuntos, tal escrito pode ser dimensionado para qualquer época sem perder a atualidade dos fatos sociais ou emocionais.
Sinteticamente, podemos compreender toda essa dinâmica que acompanha o gênero, com a descrição feita desta, por Carlos Drummond de Andrade, e citada por Paulo Konzen:
A crônica é fruto do jornal, onde aparece entre notícias efêmeras. Trata-se de um gênero literário que se caracteriza por estar perto do dia-a-dia, seja nos temas ligados à vida cotidiana, seja na linguagem despojada e coloquial do jornalismo. Mais do que isso, surge inesperadamente como um instante de pausa para o leitor fatigado com a frieza da objetividade jornalística. De extensão limitada, essa pausa se caracteriza exatamente por ir contra as tendências fundamentais do meio em que aparece [...]. Se a noticia deve ser sempre objetiva e impessoal, a crônica é subjetiva e pessoal. Se a linguagem jornalística deve ser precisa e enxuta, a crônica é impressionista e lírica. Se o jornalista deve ser metódico e claro, o cronista costuma escrever pelo método da conversa fiada, do assunto-puxa-assunto, estabelecendo uma atmosfera de intimidade com o leitor (DRUMMOND in KONZEN, 2002, p.10)
Atentos a todas essas características que circundam o gênero cronístico, verificamos que, em alguns textos desta linhagem a escritora aqui pesquisada, desenvolve um acentuado apreço pela impressão subjetiva.
Esta é uma característica marcada na literatura clariceana, e certamente não seria diferente em seus escritos para jornal. Para tanto, o que nos propusemos observar neste trabalho é como Clarice constrói suas crônicas utilizando-se do material comum a todos os cronistas – o cotidiano – porém, dando ênfase ao que causa no interior do sujeito, a situação abordada.
Em Mal-estar de um anjo, inserida na coletânea cronística Para não esquecer (1994), que teve sua primeira edição lançada postumamente no ano de 1978, pela Editora Ática, a escritora inicia por relatar em primeira pessoa, algo ocorrido exteriormente:
Ao sair do edifício, o inesperado me tomou. O que antes fora apenas chuva na vidraça, abafado de cortina e aconchego, era na rua a tempestade e a noite. Tudo isso se fizera enquanto eu descera pelo elevador? Dilúvio carioca, sem refúgio possível. Copacabana com água entrando pelas lojas rasas e fechadas, água grossas de lama até o meio da perna, o pé tateando para encontrar calçadas invisíveis. Até movimento de maré já tinha, onde se juntasse o bastante de água começava a atuar a secreta influência da Lua: já havia fluxo e refluxo de maré [...] (LISPECTOR, 1994, p.53).
A utilização da narrativa em primeira pessoa, como no trecho acima, não é um recurso utilizado somente por Clarice. Outros são os cronistas que, desenvolvendo aquilo que Drummond designou por “conversa fiada”, ‘contam’ aos leitores de jornal os fatos presenciados, ou somente sabidos por eles naquele dia. Para tanto, o rumo que esta conversa toma em Lispector, é o que difere seus escritos jornalísticos da crônica tradicionalmente escrita na atualidade. Uma conversa com vistas a discorrer sobre o fora muda sutilmente seu enfoque, e redimensiona o fora para o dentro:
E o pior era o temor ancestral gravado na carne: estou sem abrigo, o mundo me expulsou para o próprio mundo, e eu que só caibo numa casa nunca mais terei casa na vida, esse vestido ensopado sou eu, os cabelos escorridos nunca secarão, e sei que não serei dos escolhidos para a Arca, pois já selecionaram o melhor casal de minha espécie (LISPECTOR, 1994, p.53).
Neste fragmento, há a recuperação bíblica da história de Noé servindo como metáfora à descrição da angústia sentida pelo narrador, quando este depara-se com uma chuva torrencial. Porém, diferentemente do personagem ‘escolhido’ por Deus, o narrador sente-se pertencente ao grupo de humanos que devem ser extintos pela corruptividade de caráter. “O temor ancestral” aludido por Clarice evoca uma sensação que habita o imaginário coletivo, e que vem a tona provocada por um acontecimento exterior.
As imagens que vão se delineando em seguida, apesar de retratarem uma situação concreta, estão tenuamente ligadas às reações internas do sujeito; o sentimento- reflexo que elas tentam encobrir por meio de detalhes minuciosos daquilo que se encontra fora, acaba por ser revelado sorrateiramente nas entrelinhas, revelação esta que exige uma leitura atenta e – como bem observado em A mulher escrita, estudo citado anteriormente –, ‘corporal’ do leitor.
[...] Andei sem rumo ruas e ruas, mais me arrastava que andava, parar é que era o perigo. De minha desmedida desolação eu só conseguia que ela fosse disfarçada. Alguém, radiante sob uma marquise, disse: que coragem, hein, dona! Não era coragem, era exatamente o medo. Porque tudo estava paralisado, eu que tenho medo do instante em que tudo pare tinha que andar.
E eis que nas águas vejo um táxi. Avança cuidadosamente, quase centímetro por centímetro, tateando o chão com as rodas. Como é que eu me apoderaria daquele taxi? Aproximei-me. Não podia me dar o luxo de pedir, lembrei-me de todas as vezes em que, por ter tido a doçura de pedir, não me deram. Contendo o desespero, o que sempre me dá uma aparência de força, disse ao chofer: “o senhor vai me levar para casa! é de noite! tenho filhos pequenos que devem estar assustados com minha demora, é de noite, ouviu?!” Para minha grande surpresa, vai o homem e simplesmente diz que sim. Ainda sem entender, entrei [...]. E daí a pouco era a dona-de-casa de meu táxi [...]. Depois de arrumar minha casa, encostei-me bem confortável no que era meu, e de minha Arca assisti ao mundo acabar-se [...] (LISPECTOR, 1994, p. 53-4).
Neste trecho há por parte do personagem a confissão de seu estado psíquico, desencadeada pela insurgência de uma voz indagadora que não a sua. É neste contraste de vozes que depreendemos traços dos chamados fluxo da consciência e monólogo interior, recursos característicos dos escritos clariceanos que possibilitam, em âmbito literário, que acontecimentos internos materializem-se na linguagem.
O fluxo de consciência e monólogo interior podem ser aqui entendidos genericamente, sob paráfrase de Carvalho em Foco narrativo e o Fluxo da Consciência: questões de teoria literária (1981), como a representação daquilo que se passa no interior do ser humano por meio de palavras.
No caso do fragmento transcrito acima, Clarice Lispector desenvolve o que Carvalho denominou monólogo interior orientado, ou seja, a apresentação do “material não falado” ao mesmo tempo em que são narrados – por meio da fala – os fatos externos. Assim, ao descrever os acontecimentos que perpassam fora de si, enquanto busca meios de apoderar-se do táxi avistado, o personagem nos ‘encosta’ discretamente ao que ocorre concomitantemente em seu interior. Trata-se do sentimento de solidão que irrompe com a atitude desesperada, ainda que contida, da luta pela sobrevivência.
A todo o momento Clarice aponta para o estado interno em que se encontra a personagem por meio da visão que nos dá do exterior. Estilo semelhante demonstrou Auerbach em Mimesis (2004) ao analisar alguns traços estilísticos da escritora inglesa Virginia Woolf. Assim, afirma em A meia marrom que:
No caso de Virginia Woolf, os acontecimentos exteriores perderam por completo o seu domínio; servem para deslanchar e interpretar os interiores, enquanto que, anteriormente e em muitos casos ainda hoje, os movimentos internos serviam preponderantemente para a preparação e a fundamentação dos acontecimentos exteriores importantes (AUERBACH, 2004, p. 485).
Por analogia, vale registrar aqui o que disse Lispector em Clarice por ela mesma, capítulo este integrante de Cadernos:
Os meus livros não se preocupam com os fatos em si, porque para mim o importante não são os fatos em si, mas a repercussão dos fatos no individuo. Isso é que tem muita importância mesmo para mim. É o que eu faço. Acho que sob esse ponto de vista, eu também faço livros comprometidos com o homem e a realidade do homem, porque realidade não é um fenômeno puramente externo (NUNES, 2004, p.62).
Outrossim, os acontecimentos que vão sendo arrolados na crônica em questão, aos poucos perfilam as ocorrências internas do narrador. Este, por um tempo fugaz, demonstra certo equilíbrio de situação, todavia com a insurgência de um novo fator externo somos conduzidos por Clarice à uma nova visão do introspecto:
Uma senhora aproximou-se então do carro. Devagar como este avançava, ela pode acompanhá-lo agarrada em aflição ao trinco da porta. E literalmente me implorava para compartilhar do táxi. Era tarde de mais para mim, e seu itinerário me desviaria de meu caminho. Lembrei-me, porém, de meu desespero de havia cinco minutos, e resolvi que ela não teria o mesmo. Quando eu lhe disse sim, seu tom de imploração imediatamente cessou, substituído por uma voz extremamente prática: “É, mas espere um pouco, vou até aquela transversal buscar na casa da costureira o embrulho do vestido que deixei lá para não molhar” [...].
E começou o meu calvário de anjo – pois aquela mulher, com sua voz autoritária, já tinha começado a me chamar de anjo. Não poderia ser menos comovente o seu caso: aquela era a noite de uma première e, se não fosse eu, o vestido se estragaria na chuva ou ela de atrasaria e perderia a première (LISPECTOR, 1994, p. 54-5).
Os sentimentos de piedade e complacência que tomam conta do narrador surgem quando este vê refletido na figura da mulher em meio à chuva, algo experimentado ainda há pouco. Há o exame de seus próprios sentimentos visando estabelecer uma relação que justifique a nobreza de seu ato, pois ao contrário disto, poderia simplesmente continuar a observar de sua ‘Arca’ o mundo desfigurar-se. Devemos considerar nesta crônica que, o que está em jogo não é a suposta tempestade sobre a cidade do Rio de Janeiro identificada pela referencia feita ao bairro de Copacabana, mas sim a experiência propiciada por este fenômeno à personagem. E ainda, não podemos esquecer que se trata de uma crônica, subentendendo que esta deve ter sua gênese em um fato cotidiano.
O contato que o narrador teve com a chuva, com a voz inquiridora, com o táxi e principalmente com a senhora do vestido configuram-se, na narrativa, mascaras que cobrem o ato reflexivo. Neste ponto, tornam-se propícias as considerações feitas por Auerbach, mencionadas anteriormente, sobre como devem ser encarados os acontecimentos exteriores em um texto que presa pela introspecção, pois as ocorrências citadas acima serviram para desencadear a digressão do personagem.
[...] Eu era um anjo destinado a proteger premières? a ironia divina me encabulava. Mas a senhora, com toda a força de sua fé prática, e tratava-se de mulher forte, continuava impositivamente a reconhecer o anjo em mim [...]. Tentei sem jeito a leveza de um sarcasmo: “Não me supervalorize, sou apenas um meio de transporte”. Enquanto que a ela nem se quer ocorreu compreender-me, eu a contragosto percebia que o argumento na verdade não me isentava: anjos também são meios de transporte [...]. Devia ser aquela mulher habituada a comprar com dinheiro, e na certa terminaria por agradecer ao anjo com um cheque, também levando em conta que a chuva já devia ter lavado toda minha distinção[...] (LISPECTOR: 1994, p.55).
O que é figurado neste fragmento da crônica pode ser encarado como o involuntário pré-conceito que todos fazem quando em contato com uma pessoa estranha, podendo este ser assertivo ou não. A senhora do vestido rotula sem pudor algum a ‘proprietária’ do táxi, causando a esta certo desconforto. A excessiva empatia demonstrada por ela serve de mola propulsora para uma auto-avaliação do narrador, em que o sentimento primeiro (de complacência) sofre metamorfose e principia pelo perigoso caminho do interesse.
Podemos recuperar esta auto-análise em um fragmento da crônica publicada em 1968, intitulada Ideal burguês, impressa em Cadernos. Nela Clarice indaga justamente sobre esse sentimento desconfortante que toma o sujeito, quando exposto a características que engessam e danificam seus movimentos:
É intolerável o endeusamento afoito que constrange e tira a espontaneidade, e não nos dá direito de ter os defeitos natos e adquiridos nos quais tão ciosamente nos apoiamos – nossos defeitos também servem de muletas, não só as nossas qualidades (NUNES, 2004, p.85)
Sendo assim, temos na figura do anjo a metáfora do endeusamento que nos fala Clarice, pois esta entidade é concebida como um ser dotado de virtuosidade e atitudes nobres, que coloca-a em grau superior aos humanos.
Relacionando estes dois trechos de crônicas apresentados anteriormente, obtemos um panorama do devaneio em que se encontra o narrador, instigado mais uma vez pelo acontecimento exterior. Os atos impositivos descritos por Clarice através do monólogo interior chamam nossa atenção para os resultados destes no sujeito; o exterior novamente se esgarça para que o interior surja murmurante e leve-nos a refletir sobre o estado de subordinação de caráter.
Dentro de um cinismo cada vez melhor, pensei: “Cada um tem o anjo que merece, veja que anjo lhe coube: estou cobiçando por pura curiosidade um vestido que nem sequer vi. Agora quero ver como é que sua alma vai se arrumar com a idéia de um anjo interessado em roupas”. Parece-me que, no meu orgulho, eu não queria ter sido escolhida para servir de anjo à tolice ardente de uma senhora (LISPECTOR: 1994, p.55-6).
Caminhando para o desfecho da crônica podemos de antemão afirmar que, embora haja a prevalência de descrições externas, motivadas pelo caráter do gênero cronístico, Clarice consegue afastar os fios que cobrem o interior do sujeito para dar-nos a possibilidade de sentir e viver de forma representativa a experiência relatada.
Outro fator a ser observado diz respeito a linguagem. No início deste trabalho enfatizamos sobre a apropriação da palavra e a ressignificação desta por Clarice, todavia, a presente crônica apresenta uma linguagem simples e até mesmo referencial. Para tanto a simplicidade não deve ser entendida como sinônimo de clareza e trivialidade narrativa, e sim um método sutil de revelação do interior.
Clarice apropria-se de um fato ocorrido no cotidiano, para que a partir dele possa discorrer sobre a ressonância deste no íntimo do ser humano, por isso a exigência de uma leitura sensitiva e por vezes irracional.
No último parágrafo da crônica é que encontramos a essência daquilo insinuado no título do texto (Mal-estar de um anjo).
A escritora construiu passo a passo, neste escrito, uma análise minuciosa e subjetiva do interior do sujeito, levando-nos a compreender de forma genérica, a parte pelo todo, como prega a filosofia da hermenêutica. Assim sendo, ela simboliza no esquecimento das ‘asas’, o resultado de todas as indagações e reflexões promovidas pelo ocorrido, onde coube a narradora optar pela aceitação da armadura imposta ou pela recusa desta. Não obstante isso implica numa postura que desnude seu interior, e traga a tona o seu verdadeiro caráter, sem mascaramentos.
Ao sair do táxi, assim como quem não quer nada, tive o cuidado de esquecer no banco as minhas asas dobradas. Saltei com a profunda falta de educação que me tem salvo de abismos angelicais. Livre de asas, com a grande rabanada de uma cauda invisível e com a altivez que só tenho quando pára de chover, atravessei como uma rainha os largos umbrais do Edifício Visconde de Pelotas (LISPECTOR: 1994, p.57).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa buscou a compreensão do processo – por vezes anatômico – pelo qual passa o objeto de trabalho de Clarice Lispector: a palavra. Pois, ao apropriar-se dela, a escritora desenvolve o processo de dissecamento para em seguida recompô-la em uma estrutura fértil de significação. “A palavra é meu domínio sobre o mundo” afirma Clarice, por isso toma-a para si e transforma-a de modo que as experiências sentidas e vividas possam ser sentidas e vividas pelos seus leitores.
Mas é no gênero crônica que Clarice diz colocar suas vivências mais abertamente para o público leitor. Não que isto seja algo almejado por ela, como revela na crônica Fernando Pessoa me ajudando, publicada em 1968 e recuperada em Cadernos por Aparecida Maria Nunes.
Noto uma coisa extremamente desagradável. Estas coisas que ando escrevendo aqui não são, creio, propriamente crônicas, mas agora entendo os nossos melhores cronistas. Parque eles assinam, não conseguem escapar de se revelar. Até certo ponto nós os conhecemos intimamente. E quanto a mim, isto me desagrada. Na literatura de livros permaneço anônima e discreta. Nesta coluna estou de algum modo me dando a conhecer. Perco a minha intimidade secreta? Mas que fazer? É que escrevo ao correr da máquina e quando vejo, revelei certa parte minha [...] (NUNES, 2004, p.65).
Todavia, a partir deste depoimento de Lispector, dentre outros já realizados por ela sobre o desnudamento pessoal propiciado por este gênero, poderíamos, na análise em questão, substituir as terminologias ‘narrador’ e ‘personagem’ aqui utilizados, pelo próprio nome da escritora. Entretanto, por questões de seguridade optamos por deixar esta possibilidade apenas implicitada.
Com isso, cabe perceber neste trabalho que, se por um lado esta ressignificação dada a palavra acrescida do caráter introspectivo/pessoal de seus escritos tornam seus textos densos para alguns, por outro nota-se na crônica analisada um desvio a regra. Não encontramos nesta o hermetismo inerente a narrativa introspectiva que muitas vezes paira sobre as obras de Clarice, o qual ela mesma declara – apesar de não gostar em outros escritores – ser necessário a clareza peculiar do mistério natural. Ou seja, não é possível, para a escritora, transfundir um sentimento sem ser hermético devido a rarefação das palavras. Para tanto, o que ela exige nesta leitura e a desautomatização dos sentidos para que o cotidiano fotografado não venha a ser banalizado pela simplicidade dos fatos.
Uma vez entregando-se a isso, a percepção libertária mediada pelos sentidos faz com que o conteúdo exposto perdure em nós. Finalizando este breve percurso pelos escritos cronístico de Clarice Lispector constatamos que, mesmo neste gênero forjado a partir de acontecimentos externos, a escritora continua a desenvolver um texto intimista, com incursões psicológicas no intuito de refletir sobre a ressonância de tais fatos no interior do indivíduo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1994.
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LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. 5ª ed. São Paulo: Siciliano, 1992.
KONZEN, Paulo C. Ensaio sobre a arte da palavra. Cascavel: Edunioeste, 2002.
NUNES, Aparecida Maria. Clarice por ela mesma. In: Cadernos de Literatura Brasileira: Clarice Lispector. Rio de Janeiro: IMS, 2004.
ROSENFELD, A. Reflexões sobre o Romance Moderno. In: Texto/ Contexto. Ensaios. São Paulo: Perspectiva, 1969.
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.
WATT, Ian. A ascensão do romance. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.


1 Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) Guarapuava-PR Bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET-Letras). Guarapuava-PR
2 Pós-doutora pela UFRJ. Doutora em Letras pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2005), Mestre em Letras pela Universidade Estadual de Londrina . É Professora Adjunta da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO-PR). Professora nos cursos de Letras e Comunicação Social-Jornalismo (análise do discurso e Semiótica) atua nas seguintes linhas de pesquisa: Gênero e Representação ; Literatura e Interfaces. nincia@unicentro.br
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