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Literatura e Autoritarismo

Literatura: Compreensão Crítica

Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 14 

DA LITERATURA À HISTÓRIA EM IDEÓLOGO, DE FÁBIO LUZ

Maria Aparecida Munhoz de Omena*
Luciane Munhoz de Omena**
Resumo: O presente artigo tem por objetivo fazer algumas considerações críticas sobre o livro Ideólogo, de Fábio Luz, baseado em textos sobre as “possíveis fronteiras” estabelecidas entre a Literatura e a História, bem como em estudos sobre conceitos oriundos do Anarquismo. A ciência contemporânea vive um momento de interação entre disciplinas, fato que possibilita uma nova interpretação do passado e ao mesmo tempo uma nova visão da sociedade presente.
Palavras-chave: Literatura e História – Narrativa Brasileira – Anarquismo – Fábio Luz.
Abstract: The present article has for objective to make some critical considerations from the book Ideólogo by Fábio Luz, based on texts about the “possible borders” established between Literature and History, as well as on studies about the concepts of Anarchism. Contemporary science lives an interaction moment among subjects, fact that makes possible a new interpretation of the past and at the same time a new vision of the present society.
Keywords: Literature and History - Brazilian Narrative – Anarchism – Fábio Luz.

O estudo de um texto que envolve as áreas de Literatura e de História, como acontece em o Ideólogo, de Fábio Luz, requer, logo de partida, a reflexão sobre essas duas ciências, bem como a análise da relação ou das relações que as cercam. As discussões não são recentes, Aristóteles (384-322 a.C.), na obra Arte retórica e arte poética, afirma não competir ao poeta narrar o que aconteceu, mas o que pode ter acontecido, de acordo com a verossimilhança ou a necessidade. Em sua concepção a diferença entre o historiador e o ficcionista está no fato de que o primeiro narra o acontecido e o segundo, o que poderia ter ocorrido. As considerações teóricas sobre esse assunto persistiram ao longo dos séculos.
Os estudos contemporâneos sobre o diálogo entre as duas disciplinas mostram compreensões diferenciadas daquela apresentada por Aristóteles. Sem entrarmos em maiores detalhes, pois demandaria uma extensa discussão e nos afastaríamos do objetivo do artigo, tais diferenciações fundamentar-se-iam nas questões culturais, sociais e políticas da sociedade grega em relação à sociedade atual. Ademais, existe uma heterogeneidade presente em qualquer formação social que abrange experiências em tipos e níveis distintos. Altera-se, então, a maneira com que os agentes sociais se interagem em cada localidade. Se pensarmos no espaço brasileiro acerca de questões geográficas, considerando o tipo de trabalho, como o de carvoeiro ou de seringueiro, ou ainda o tipo de música, de dança, predominantes em determinadas regiões, verificaremos que até os hábitos alimentares conduzem os indivíduos a diferentes práticas no cotidiano, mesmo possuindo a mesma língua e o mesmo sistema político. Há infindáveis brasilidades entre o chimarrão e o tacacá (OMENA, 2007). Daí, ser plausível, considerarmos naturais as divergências de perspectivas analíticas sobre o diálogo entre Literatura e História. Tratemos, então, das interpretações contemporâneas.
White (1994) toma como ponto de partida a Revolução Francesa: antes dela, a historiografia seria convencionalmente considerada uma arte literária. Os pesquisadores do século XVIII analisariam separadamente o estudo da história e da escrita da história, pois a escrita seria um mero exercício literário e, portanto, o produto desse exercício deveria ser avaliado tanto segundo princípios literários como científicos.
Essa forma de raciocínio é alterada e, no início do século XIX, os historiadores passam a identificar a verdade com o fato e a ficção com o oposto da verdade. A partir desse instante, buscou-se obsessivamente a eliminação de qualquer traço fictício nos discursos históricos, estabelecendo-se com isso uma separação entre as duas disciplinas. Estes estudiosos não percebiam que cada tipo de discurso, definido por uma tradição, um público, formas e temas, constitui um modo específico de fusão entre realidade e ficção.
Além das influências presentes em todo discurso, é preciso lembrar igualmente que os fatos não falam por si mesmos, mas “o historiador fala por eles, fala em nome deles e molda os fragmentos do passado num todo cuja integridade é – na sua representação – puramente discursiva” (WHITE, 1994, p. 141). Weinhardt, outro estudioso de relevância, observa que “todas as formas de resgate do passado são permeadas pela consciência de que a construção verbal não é o fato e não é ingênua” (WEINHARDT, 1994, p. 49). O texto histórico, assim como o literário, é produzido por meio de material discursivo, não estando imune às interpretações de seu autor. Essa nova maneira de perceber o texto histórico pode ser observada também em Lemaire (1998), ao ressaltar que o escritor desse tipo de discurso, mesmo usando de toda a sua eloqüência para provar que o seu texto apresenta o ´dizer verdadeiro’, está apenas representando o momento histórico segundo o seu enfoque, a sua visão, o seu modo de compreender os fatos.
As discussões não esbarram somente no fato de o texto não estar imune às interpretações do autor. Freitas (1989), ao citar alguns pesquisadores preocupados com a relação História/Literatura, observa que, para Roland Barthes, tanto o discurso histórico, quanto o literário têm as mesmas características formais (1); além disso, escritores e poetas possuem uma atração pelos temas da História. Diante desse fato, Freitas conclui que “as grandes mudanças da História provocam, em geral, importantes inovações em Literatura” (FREITAS, 1989, p. 109). O nascimento, por exemplo, do gênero romanesco, na Idade Média, foi resultado da ascensão de uma nova classe social, que teve seus feitos e aventuras narrados nos chamados romances de cavalaria. O surgimento do romance histórico está diretamente ligado à Revolução Francesa, pois esta gerou na classe burguesa a crença de haver em sua origem uma missão histórica. Outro exemplo são as canções de gesta, originalmente destinadas a narrar ´histórias heróicas´. Não há como negar, assim, o desenvolvimento, paralelo e contínuo, que ocorre de uma área sobre a outra. Mesmo quando, na segunda metade do século XIX, a História se deixou invadir pelo cientificismo, a Literatura igualmente se permitiu envolver; como ocorreu, por exemplo, com os escritores naturalistas, comprometidos com as teorias científicas, com o propósito “de descrever ´objetivamente´ a realidade exterior”. “A busca de exatidão e de fidelidade ao real será então uma preocupação comum aos dois domínios, que continuam, portanto, a se relacionar estreitamente” (FREITAS, 1989, p. 112). Torna-se difícil, deste modo, simplesmente ignorar tais dados históricos. A autora estabelece dois meios possíveis de se sistematizar os modos de identificação das relações entre Literatura e História: 1) leitura da obra associando-a ao contexto histórico, e 2) observação da apropriação que a Literatura fez da temática da História. Vale ressaltar, no entanto, que, de acordo com a teórica, a arte
não tem por objetivo representar o universo; ela não pretende fornecer a simples confirmação de um saber que pode ser adquirido por outros meios, tais como uma pesquisa histórica, uma enquête sociológica, ou uma demonstração científica”. [...] A arte é uma modalidade do imaginário, e o imaginário não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, e, mais longe ainda, transfigura-a (FREITAS, 1989, p. 113).
Assim, quando um escritor busca o passado histórico, na realidade, também tem por finalidade expressar “aquilo que ainda não foi dito, aquilo que dele está reprimido ou latente, para assim explorá-lo em todas as suas virtualidades e prolongá-las ” (Idi., Ibid., p. 113). Sobre o assunto, Hutcheon (1993) adverte que o passado não pode ser compreendido apenas como o registro objetivo do fato, pois dependerá, sempre, da forma como foi representado, construído e interpretado. Nessa mesma linha de raciocínio, Freitas observa que “estudar as relações entre Literatura e História não significa pois buscar apenas o reflexo de uma na outra. Mais do que a imagem, a Literatura seria antes o imaginário da História" (FREITAS, 1989, p. 115). Tentar estabelecer a manifestação ou os limites de um discurso no outro torna-se, por isso, infrutífero.
White acrescenta que o mais importante “é o grau em que o discurso do historiador e o do escritor imaginativo se sobrepõem, se assemelham ou se correspondem mutuamente” (WHITE, 1994, p. 137). Isto porque tanto o escritor, quanto o historiador querem “oferecer uma imagem verbal da ´realidade´”. Na busca por essa `imagem verbal da realidade´, o texto, seja literário ou histórico, precisa submeter-se a padrões de coerência e de correspondência, já que “o discurso tomado na sua totalidade como imagem de alguma realidade comporta uma relação de correspondência com aquilo de que ele constitui uma imagem” (Idi., p. 138).
White não considera o ofício do historiador definido por operações específicas, como, por exemplo, a construção e o tratamento de dados, a produção e as hipóteses, a crítica e a verificação de resultados, a validação da adequação entre o discurso do conhecimento e seu objeto. Entendemos que a compreensão do passado é apreendida indiretamente por haver um obstáculo transponível: os vestígios, informações aleatórias, formadoras de um conjunto de evidências, ou fatos, carentes de ordem, lógica ou conexão. Cabe ao historiador recolher e selecionar dados para transformá-los em fatos a partir de suas próprias teorias, bem como apanhar ou apurar certos modos de se ordenar e pensar o passado, para que se possam propor interpretações ou reconstruções do que aconteceu (GUARINELLO, 2003).
Criamos objetos circunscritos de sentido cronológico, espacial, cultural e social e dentro deles selecionamos os acontecimentos, tornando-os unidades inteligíveis, adaptando-os a um arcabouço teórico. Este é, claramente, essencial. A partir da teoria, transformamos e interpretamos as fontes primárias em reconstruções específicas da História humana (GUARINELLO, 2003). Como acentua Chartier, mesmo que o historiador escreva de forma literária, não faz literatura, em função de sua dupla dependência em relação ao arquivo e ao passado do qual ele é vestígio (CHARTIER, apud DELGADO, 2000, p. 182). Como sugerem Pesavento e Leenhardt: “é nessa dimensão que a História assume um caráter fictício: ao compor um enredo ou decifrar uma intriga, articulando um discurso que se constrói por fora da experiência do vivido, a História torna presente uma hipótese sobre o passado” (PESAVENTO; LEENHARDT, 1998, p. 12).
Diante do exposto acima, a análise do modo como os discursos do historiador e do escritor se fundem abre caminho para a intertextualidade, já que um trabalho escrito está sempre, implícita ou explicitamente, estabelecendo uma relação com textos anteriores, sejam literários, históricos, jornalísticos, etc. Tal fato, adverte Jenny, proporciona uma leitura múltipla do texto, “o que, evidentemente, continua problemático, é a determinação do grau de explicitação da intertextualidade nesta ou naquela obra” (JENNY, s/d, p. 07). O presente estudo não entrará na discussão desta última particulariedade, o que realmente interessa ressaltar é a possibilidade de outras leituras frente ao exercício intertextual. E mais importante, ainda, é verificar que a inter-relação entre a Literatura e a História provoca novos questionamentos, novos ensinamentos. Vindo ao encontro dessa idéia, a intertextualidade pós-moderna deseja reduzir a distância entre o passado e o presente do leitor, bem como “reescrever o passado dentro de um novo contexto” (HUTCHEON, 1991, p. 157).
Nesse sentido, a obra Ideólogo, de Fábio Luz, permite repensar um período de nossa história marcado por conflitos, aspirações, lutas e questionamentos sobre a sociedade brasileira do final do século XIX e início do século XX. Esta época, como todas as outras, apresenta profundas desigualdades sociais, originadas pelo excesso de poder de uma minoria subjugadora da grande população carente. Tal fato permite que novas idéias surjam como uma luz nas mentes de alguns indivíduos preocupados com o bem-estar e o desenvolvimento da coletividade. Foi assim que surgiram em nosso país homens defensores da sociedade anarquista.
Antes de mais nada, é preciso compreender que o termo anarquismo, mesmo sendo, erroneamente, associado à bagunça/baderna, ainda hoje desperta interesse em muitas pessoas; isto pode ser constatado por meio da vasta bibliografia existente sobre o assunto. Frente à natureza deste trabalho, apresentaremos de forma sucinta alguns dos principais aspectos discutidos pelos pioneiros da filosofia.
Costa (1980) inicia sua obra explicando que existem inúmeras correntes anarquistas, seu texto se concentrará nas mais marcantes para o movimento: o Mutualismo (de Pierre-Joseph Proudhon); o Coletivismo (de Michail Alexandrovich Bakunin); o anarcocomunismo (2) (de P. Kropotkin); o Anarcosindicalismo (criado na França e desenvolvido no restante da Europa e nas Américas) e o Individualismo Anarquista (de Max Stirner, acabou gerando a violência de cunho político). Antes de adentrar na discussão sobre cada uma destas correntes, o autor observa que o termo anarquia sempre foi associado ao caos, à desordem (3). Os franceses, durante a Revolução Francesa, foram os primeiros a usar a palavra pejorativamente. Pierre-Joseph Proudhon, anos depois, recuperou o significado de origem.
De modo geral, há alguns pontos em comum entre as distintas correntes: pensam o indivíduo “sem representantes, sem delegações, [...] concordam que o homem possui, por natureza, todos os atributos necessários para viver em liberdade e concórdia social. Não acreditam que o homem seja bom por natureza, mas estão convencidos de que o seja por natureza social.” (COSTA, 1980, p. 11 e 16). Todos os teóricos e líderes anarquistas têm ódio ao Estado, pois compreendem que o mesmo é responsável por todo o infortúnio vivido pelo homem. Na obra Ideólogo, de Fábio Luz, Anselmo, em determinado momento, relembra a triste história de um povoado, onde havia fraternidade entre os indivíduos, que após a intervenção do Estado tornou-se repleto de ódio, de politicagem e de desordem generalizada. Tal situação pôs fim à “organização de paz e amor” antes presente (LUZ, 1903, p. 40).
Assim, os anarquistas, contrários ao Estado, acreditam que o Homem deve realizar o que for preciso por ele mesmo, mas sempre consciente de que faz parte de uma unidade social. Abominam qualquer forma de governo por acreditarem que o indivíduo deve autogerir-se, ser responsável por sua vida, suas ocupações, sua própria organização dentro de uma comunidade. A liberdade é o único caminho, o cidadão só é livre quando todos os outros o forem.
Sobre o Mutualismo, Costa afirma que Proudhon e seus partidários buscavam a mudança social por meio da proliferação das organizações cooperativas. Bakunin, em defesa de um comunismo baseado no Coletivismo, acreditava que a revolução teria de ser realizada pela ação espontânea e contínua das massas. O teórico propunha o fim das classes sociais e igualdade política, econômica e social tanto para homem, quanto para mulher. No diálogo a seguir, entre Anselmo e Jorge, é possível observarmos o mesmo ideal:
– Trabalharemos em comum no campo e nas oficinas; o produto de nosso labor será para toda a colônia; todos trabalharão e todos gozarão.
– Enriqueceremos!
– Para que riqueza? A felicidade não é um bem inestimável? Não haverá distinção alguma entre nós, a terra será de todos, e quanto ela produzir aproveitará a todos (LUZ, 1903, p. 70, grifo nosso)
O primeiro passo para alcançar tais objetivos seria a abolição da propriedade pessoal recebida em herança (4). Os coletivistas diziam que as organizações operárias seriam guiadas por anarquistas convictos, mas não por um chefe. Cada operário realizaria um trabalho manual “e receberia uma retribuição proporcional a sua contribuição [...] o critério da distribuição basear-se-ia no trabalho e não na necessidade” (COSTA, 1980, p. 22 e 23). Em defesa do comunismo-anárquico, o autor comenta que Kropotkin era contrário ao sistema de salários. De acordo com o teórico, nenhum tipo de poder teria o direito de obrigar um cidadão a trabalhar. Cada pessoa saberia de suas necessidades e tiraria dos armazéns comunitários o suficiente para sua existência confortável, “contribuindo ou não com sua parte no trabalho” (COSTA, 1980, p. 24). O anarquismo individualista, por sua vez, propunha que o indivíduo deveria realizar-se mesmo que em conflito com a coletividade. “Exigiam a libertação total da pessoa humana dos elos da sociedade organizada. Baseavam-se na convicção de que a liberação, antes de ser coletiva e material, tinha de ser individual e mental” (Id., Ibid., p. 25). Já os anarcosindicalistas acreditavam na greve como instrumento revolucionário. Almejavam a destruição do sistema capitalista para que surgisse uma sociedade sem Estado, com uma economia que seria administrada por uma “confederação geral de sindicatos”. Esse anarquismo chegou nas Américas no começo do século XX, por meio da imigração, principalmente dos italianos e espanhóis. Os italianos foram influenciados pelas idéias de Bakunin, que morou durante um tempo na Itália. No Brasil, a greve geral de 1917 foi organizada e comandada por militantes anárquicos radicados no país e por brasileiros como José Oiticica, que acabou preso, por ser considerado um dos responsáveis pelo movimento.
O anarquismo no Brasil recebe, portanto, a herança dos ideais bakuninianos. Deste modo, vale mencionar, como dito anteriormente, que para os seus seguidores o Homem só conseguiria a sua libertação com a liberdade e com a não existência de nenhum tipo de governo, terreno ou divino. Isto, todavia, não significava viver isoladamente, pois como afirma o próprio autor:
O homem isolado não pode ter a consciência de sua liberdade. Ser livre, para o homem significa ser reconhecido, considerado e tratado como tal por outro homem, por todos os homens que o circundam. A liberdade não é, pois, um fato de isolamento, mas de reflexão mútua, não de exclusão, mas de ligação; a liberdade de todo indivíduo é entendida apenas como a reflexão sobre sua humanidade ou sobre seu direito humano na consciência de todos os homens livres, seus irmãos, seus semelhantes (BAKUNIN, 1999, p. 47).
O Estado, contudo, impossibilita a liberdade do Homem. Assim como a Igreja, de uma outra forma, também o faz ao induzir a grande massa de trabalhadores a aceitar a sua condição servil, diante da recompensa do reino do céu. Bakunin observa que “esmagado por seu trabalho quotidiano, privado de lazer, de comércio intelectual, de leitura, enfim, de quase todos os meios e de uma boa parte dos estímulos que desenvolvem a reflexão nos homens,” (BAKUNIN, 1998, p. 15 e 24) o homem humilde aceita sem restrições todas as imposições da Igreja e, conseqüentemente, do Estado, por não sentir-se “capaz de encontrar por si próprio a justiça, a verdade e a vida eterna”. Oiticica sobre o mesmo assunto observa que
a religião é o processo de subjugar o povo fazendo-o crer num ser onipotente, invisível, dono do universo, castigador dos maus, premiador dos bons. Os maus, naturalmente, são os que se desviam das normas ditadas pelos sacerdotes e atribuídas à divindade. Os bons são os que a elas se conformam sem nenhum protesto (OITICICA, 1983, p. 32).
Livre do poder de tais instituições, o povo seria capaz de se organizar em uma sociedade justa, onde todos trabalhariam e, unidos, conquistariam o suficiente para seus sustentos. O capital, diferentemente do sistema capitalista, seria social, por isso intransmissível e inacumulável. Em uma sociedade anárquica, segundo o autor, como não haveria propriedade particular, também não existiriam roubos, furtos, fraudes, estelionatos, vigarismos, etc. Isto porque o homem, sem sofrer pela falta das necessidades básicas para sua sobrevivência, teria condições de analisar com mais clareza a sua conduta e a sua função no mundo.
Todas as considerações realizadas até o presente momento evidenciam que a obra Ideólogo, de Fábio Luz, vem ao encontro de todo indivíduo perplexo diante de uma sociedade discriminatória, em que o valor do homem concentra-se na propriedade e, em contrapartida, a igualdade, a fraternidade, o respeito mútuo e o amor são elementos relegados a segundo plano.
O diálogo inicial entre Dr. Alcibíades e Anselmo já apresenta as primeiras denúncias dessa sociedade corrompida pela ganância e pelo desejo de poder. Anselmo, como elucidado nos exemplos anteriores, defende ideais mais humanitários, é uma personagem equilibrada, preocupa-se com os menos favorecidos, busca uma sociedade mais justa para todos. Dr. Alcibíades, por sua vez, vive um casamento de aparências com Eulina. A união dos dois simboliza a instituição falida do casamento: o tipo de relacionamento vivido por muitos burgueses que encontram nesse “contrato social” uma maneira de realizar seus desejos econômicos e, ao mesmo tempo, sociais. Os dois casaram-se sem amor, Alcibíades precisava de dinheiro e de status e Eulina, de “reparação”, por ter se envolvido com um homem casado. Para a personagem, a esposa era um negócio, como é possível perceber no trecho a seguir:
Como sabes, não fiz casamento de amor, nem me preocupo com sentimentalidades e cousas do coração, que não sejam orgânicas. Quero gloria, renome, e considero a esposa um acessório indispensável ao médico. Para isso é preciso que seja distinta, elegante, rica e do hig-life. Entendeste? Minha mulher é um rico bibelot, faz parte da série de anúncios e agradecimentos que mando publicar (LUZ, 1903, p. 12).
Eulina, em contrapartida, infeliz no casamento e ciente do negócio realizado, encontra nas reuniões beneficentes e religiosas a desculpa perfeita para as suas orgias extraconjugais. Em sociedade anarquista esse tipo de situação não ocorreria, pois sem o dinheiro, sem as diferenças sociais, sem as exigências impostas pela religião, como a virgindade feminina, nenhum dos dois buscariam uma união sem amor.
Na conversa entre os dois amigos, outra crítica resultante do sistema social é abordada. Alcibíades pergunta a Anselmo o porquê de sua permanência no direito criminal, uma vez que o mesmo não oferece nenhum destaque: “Que diabo! Defendendo esses reles gatunos que nos assaltam os galinheiros, tomando a defesa desses miseráveis que atentam a todos os momentos contra a propriedade, terás nome de orador fogoso e mais nada” (LUZ, 1903, p. 17). Anselmo responde que apenas procura compensá-los das injustiças sociais. “Não são eles os culpados, os culpados somos nós. Nós que os privamos do pão como alimento e do pão espiritual. Somos nós com o nosso egoísmo que os precipitamos no crime” (Id., Ibid., p. 17-8). As passagens citadas retomam as discussões, exaustivamente colocadas pelos anarquistas, em torno do crime como resultado das diferenças sociais presentes em nossa sociedade. De acordo com os libertários, a propriedade e o acúmulo de capital, por exemplo, permitem que grande parte da população não tenha o suficiente nem para suas necessidades básicas; portanto, uma sociedade em que a fome e a miséria fazem parte do cotidiano humano o crime expressa apenas o desespero e a revolta de indivíduos explorados, desdenhados e humilhados por todos os tipos de governo.
Muitos homens, incapazes de pensar em uma situação de bem-estar coletivo, chegam a realizar, como a própria personagem Alcibíades, a seguinte indagação: “Se houvesse a igualdade dos socialistas ou dos anarquistas para que serviria viver e trabalhar sem o gozo supremo da riqueza e do bem estar?” (LUZ, 1903, p. 20) Esta reflexão surge em quem desconhece a necessidade da ajuda mútua, do desenvolvimento coletivo, da fraternidade e da igualdade entre os homens. Em contrapartida, alguém que possua em sua formação estes valores não consegue abolir de seus pensamentos essa trágica realidade, é o que nos faz crer as palavras de Alsemo: “ – Pode haver bem estar onde há sofrimento? Pode gozar com clama e fazer com sossego uma digestão quem está cercado dos rugidos da dor e da fome?”
A figura desta personagem percorre a narrativa “chamando o homem à luz”, provocando reflexões sobre a sociedade do final do século XIX e início do século XX e conseqüentemente sobre a nossa realidade. A História mostra que o trabalhador brasileiro, nesse período, possuía apenas deveres, os direitos foram sendo conquistados com muita luta, sofrimento e ajuda de alguns homens que, como a personagem Anselmo, sabiam que “todo o capital acumulado quando não está manchado de sangue está humedecido de lágrimas e suor” (LUZ, 1903, p. 27); assim, lutaram pela libertação do trabalhador e pela transformação social por meio de manifestações e greves ocorridas em grandes cidades brasileiras (5).
Infelizmente, mesmo tendo ocorrido alguma conquista do ponto de vista trabalhista, a situação de miséria e de abandono dos indivíduos carentes não mudou, basta lermos o trecho abaixo para verificarmos que o ambiente descrito na ficção de 1903 pode perfeitamente aplicar-se às inúmeras comunidades pobres de nosso país. A passagem refere-se ao momento em que Anselmo vai à casa de Jorge, após ter recebido um pedido de ajuda do amigo:
[...] do lado da rua, entre o mato rasteiro e o capim, corria uma sarjeta, onde lama cheia de detritos se escoava lentamente, exalando um cheiro detestável de matérias orgânicas em decomposição. [...] Ele perguntou pela residência de Jorge.
– É naquele cômodo, disseram.
Anselmo bateu, e uma porta se lhe abriu deixando ver o interior miserável.
[...] Da janela pouca luz penetrava no aposento, substituídos os vidros quase todos por pedaços de taboa ou de papelão no caixilho já desconjuntado. O cômodo muito pouco espaçoso estava dividido em duas partes por sujo biombo de sacos presos a uma corda que ia de uma parede a outra. No fundo do segundo compartimento sobre um catre de ferro tendo perto outro leito estava o doente (LUZ, 1903, p. 155 e 16)
A leitura da narrativa Ideólogo permite, portanto, olharmos essa sociedade desgastada, pervertida pelos abusos de poder, pelo descaso do governo com relação à população carente, que oferece toda a sua energia para a manutenção dos prazeres de uma casta gestada no sofrimento do pobre. Ao mesmo tempo, possibilita outro olhar para o momento histórico do final do século XIX e início do século XX, marcado por grandes mudanças, concebidas em sua maioria pela desigualdade social, que, lamentavelmente, está presente em todos os tipos de governos.

Conclusão:
Terminamos esse artigo acentuando a idéia de que o simples fato de representar o real envolve um momento de criação, uma ficção controlada. A História aspira, nesse sentido, uma representação com o real, um possível alcance à verdade. Se não mais aquela verdade inquestionável, a única e duradoura, um regime de verdade que se apóie num desejável e íntimo nível de aproximação com o real (PESAVENTO, 1999, p. 71). Como sugere Edgar Morin, “a objetividade aparece como incessantemente autoproduzida e reconstruída por um dinamismo específico das condições organizacionais da comunidade científica” (MORIN, 2002, p. 17).
Assim, podemos afirmar que a Literatura e a História contribuem para a construção da identidade social e individual, conformando modelos de comportamento. Ambas traduzem possíveis leituras de vida, expressando os jogos das forças sociais e do poder. As duas narrativas têm o efeito de socializar os indivíduos, criando condições simbólicas de coesão social. O que se resgata da Literatura, como fonte documental é a representação do mundo que comporta a forma narrativa. É, portanto, nessa tentativa de reconstruir algumas imagens do passado que queremos ressaltar a relevância, pelo menos do ponto de vista documental, do romance Ideólogo, de Fábio Luz, para compreender as relações e as explorações sociais de setores vistos como subalternos da sociedade brasileira do final do século XIX e início do século XX, que infelizmente persistem no momento atual.

Notas
(1) Hutcheon comenta que a “história e a ficção sempre foram conhecidas como gêneros permeáveis. Em várias ocasiões, as duas incluíram em suas elásticas fronteiras formas como o relato de viagem e diversas versões daquilo que hoje chamamos de sociologia” (HUTCHEON, 1001, p. 143).
(2) Tanto o dicionário Aurélio como o Houaiss apresentam os termos anarcossindicalista e anarcossindicalismo sem hífen, o que permite inferir que, em obediência aos preceitos ortográficos, todos os vocábulos formados com o elemento inicial anarco devam também constituir uma seqüência só, não hifenizada. É essa lição que seguire¬mos ao grafar: anarcossindicalismo, anarcossindicalista, anarcopacifista, anar¬cocomunismo, etc., respeitando, no entanto, nas citações literais, a grafia escolhida pelos es¬critores, mesmo que contrariem o sistema ortográfico vigente.
(3) O vocábulo, no entanto, “vem do grego e significa sem governo, estado de um povo que se rege sem autoridade constituída, sem governo” (MALATESTA, 2001, p. 11).
(4) Oiticica afirma que a propriedade é responsável por causar o sofrimento humano, como, por exemplo, “a escravidão, o militarismo, o banditismo, a miséria, a prostituição, os vícios, etc” (OITICICA, 1983, p. 09). E a instituição legal da herança tornou essa realidade ainda pior, pois o indivíduo, sem merecimento algum, recebe terras em que nunca trabalhou, pelo simples fato de ter sido filho do proprietário anterior. O Direito viabiliza “as teorias e leis defensivas da propriedade” e regulariza a concorrência. “Para ter-se uma idéia de quanto contribui o direito na opressão do proletariado e sustento da burguesia exploradora, basta lembrar que foram os romanos, povo conquistador por excelência, os que propriamente constituíram e desenvolveram o direito” (OITICICA, Ibid., p. 27).
(5) A greve geral de 1917, por exemplo, marcou um momento de crise no Brasil. Obviamente, os libertários aproveitaram a oportunidade para tentar conscientizar os operários sobre a necessidade de mudanças radicais; tentativa esta que já vinha sendo desenvolvida paulatinamente anos antes. Rezende afirma que foram aproximadamente 75 mil trabalhadores (REZENDE, 1994, p. 17), já Hall e Pinheiro observam que “cerca de 45.000 pessoas pararam de trabalhar”, fazendo com que as autoridades civis perdessem o controle de São Paulo, a maior cidade do país, por vários dias (PINHEIRO, 1985, p. 105). De qualquer modo, considerando-se a época em questão o número exato perde relevância quando comparado ao movimento em si.

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* Dra. Maria Aparecida Munhoz de Omena, atua como professora titular, na Faculdade de Educação, Ciências e Artes Dom Bosco de Monte Aprazível.
** Dra. Luciane Munhoz de Omena, professora efetiva em História Antiga pela Universidade Federal de Goiás.
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