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Literatura e Autoritarismo
Literatura Brasileira: História e Ideologia
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 15 

UMA ESTRÉIA NO ROMANCE: A MOCIDADE DE TRAJANO

Norma Wimmer1
Resumo: No artigo intitulado Uma estréia no romance: A mocidade de Trajano pretende-se revisitar a história da escrita do romance publicado em 1871 por Alfredo d'Escragnolle Taunay e por ele mesmo rejeitado depois de alguns anos. Procura-se também verificar as marcas que, segundo a crítica, remetem o texto de Taunay aos de Macedo, no tocante, principalmente, a sua relação com o melodrama (tomado aqui em seu sentido mais amplo). Merecem atenção, em A mocidade de Trajano, o tratamento dispensado pelo autor à paisagem e a valorização da natureza, "cenário ideal", opostos à constatação do desgaste das relações senhor/escravo, nas grandes propriedades rurais, durante a segunda metade do século XIX. Finalmente, ocorrem, no presente artigo, algumas reflexões acerca da filiação ideológica do personagem Trajano a valores europeus, notadamente franceses.
Palavras-chave: Alfredo d'Escragnolle Taunay, A mocidade de Trajano, escravidão, Guerra do Paraguai.
Résumé: L'article Uma estréia no romance: A mocidade de Trajano veut revoir l'histoire de la publication de ce roman de 1871, renié,quelques années plus tard, par Alfredo d'Escragnolle Taunay. On y veut aussi vérifier les marques qui ce remettent à ceux de Macedo, surtout en ce qui concerne sa filiation au mélodrame (le mot pris dans son sens le plus vaste). Le regard de l'auteur sur le paysage, l'importance du rôle attribué par lui à la nature – scène idéale- opposés à la constatation des dégâts dans les rapports seigneur/esclave, surtout dans les grandes propriétés rurales, pendant le XIXe., ont, eux aussi, été objet de réflexions. Finalement, dans cet article on a essayé de remarquer la filiation idéologique du personnage Trajano à des valeurs européennes, notamment françaises.
Mots-Clés: Alfredo d'Escragnolle Taunay, A mocidade de Trajano, Esclavage, Guerre du Paraguay.

A mocidade de Trajano foi o romance de estréia de Alfredo d'Escragnolle Taunay. Redigido, possivelmente em 1869, por ocasião ainda da Guerra do Paraguai, publicado sob pseudônimo (Sylvio Dinarte) em 1871 e, pouco tempo depois, rejeitado pelo autor por "conter ataques contra os padres"2. O texto foi reimpresso, pela primeira vez, apenas em 1984, pela Academia Paulista de Letras, que nele reconheceu um precioso documentário dos costumes, durante segunda metade do século XIX, no interior do Estado. Dedicado a Macedo, por quem Taunay nutria grande admiração, ao autor de A moreninha parecem remeter a temática patriótica sugerida pelo engajado Culto do dever (1866), cujo protagonista parte para a guerra do Paraguai - bem como, na opinião de M. Moisés3, o tom melodramático, a descrição idealista da natureza e o humor meio "gauche", tirado ao caricaturesco. Indica ainda a admiração de Taunay por Macedo, o fato de o protagonista de A mocidade de Trajano ter oferecido um exemplar de O moço loiro à personagem Amélia, pela qual estava apaixonado, comentando tratar-se de "um romance muito bonito de Macedinho, um dos nossos mais populares e justamente admirados romancistas"4.
Com relação ainda a Macedo, Bosi5 observa o fato de, em sua obra, o gosto pelo romanesco ser importado – originário de Scott, Dumas, Sue – e adaptado a usos e costumes da sociedade carioca. Assim, ao seguir o molde literário sugerido por Macedo - em um processo de imitação da imitação – A mocidade de Trajano acaba afastando-se, mais do que os textos do romancista carioca, do modelo inicial, em decorrência, não apenas, do deslocamento da esfera romanesca para o campo, como também pela inclusão de características reveladoras da estrutura econômica rural e denúncia das relações determinadas pela oposição senhor/escravo, mais acentuadas fora dos centros urbanos. Neste sentido, Taunay apresenta em seu texto um painel dos costumes do interior, da politicagem e da ignorância dos fazendeiros sobrepondo-lhe as aventuras e desventuras de Trajano. A ação do romance passa-se na região localizada entre Jundiaí e Campinas; as Memórias sugerem que o material para o romance teria sido colhido durante dois meses de 1865, por ocasião da permanência das forças expedicionárias, às quais estava integrado o romancista, na condição de engenheiro militar, em Campinas.
A mocidade de Trajano deveria constituir um instrumento de divulgação de idéias abolicionistas, anti-religiosas e, mesmo, segundo José Veríssimo6 de livre-pensamento; a abolição da escravidão e a grande imigração e grande naturalização foram defendidas por Taunay durante toda a sua trajetória política. O romance denuncia, portanto, o sistema escravagista e a degradação do escravo bem como a do senhor, vítimas, ambos, do sistema.
Distante do abolicionismo poético e inflamado de Castro Alves, do teatral de Alencar em Mãe ou Demônio familiar ou do artificialismo de A escrava Isaura de Bernardo Guimarães – Taunay sugere, no romance, uma postura bastante idealista no tocante à questão da escravidão, propondo sua substituição pelo trabalho assalariado e pela grande imigração a serem conduzidos segundo os modelos propostos por Fourier. Em uma das cartas enviadas da Europa a seu pai, Trajano tece considerações sobre a excelência do fourierismo: "Agradam-me as teorias de Fourier: se as pudéssemos empregar! Os pais roteando as terras, as mães costurando, os meninos descascando cenouras e ajudando o serviço de um imenso falanstério, em que todos vivessem formando uma só família"7.
Fourier preconizava a divisão da sociedade em falanstérios; nestes, a produção seria associativa, a distribuição dos bens seria feita conforme as necessidades; o trabalho jamais deveria ser considerado uma punição na medida em que as aptidões individuais seriam respeitadas. Nos falanstérios haveria repartição proporcional do produto entre talento, capital e trabalho. O fourierismo não era desconhecido no Brasil. Vauthier, chefe da Missão Técnica Francesa no Recife foi fourierista entusiasmado e divulgou as idéias do filósofo pelo Nordeste. Gilberto Freyre8 comenta o fato de ter sido organizado, durante a primeira metade do século XIX, um falanstério composto por cerca de duzentos europeus, no Saí, município de São Francisco, em Santa Catarina – empresa que, no entanto, não alcançou êxito. Idéias fourieristas são retomadas também no testamento de Trajano:
"Forro todos os meus escravos... meu testamenteiro mande dividir minhas terras em prazos que serão distribuídos a colonos. Não tenho herdeiros forçados. br /> Minha herança pertence à liberdade. Aquela fazenda Da mata Grande há de mudar de nome: chamar-se-á Esperança."9
Em sua História concisa da literatura brasileira, Alfredo Bosi reconhece, em quase todos os romances de Macedo, a presença de recursos narrativos semelhantes e classifica-os em molas romanescas e sentimentais e molas de comicidade, esclarecendo que as primeiras constituem "o namoro difícil ou impossível, o mistério sobre a identidade de uma figura importante na intriga, o reconhecimento final, o conflito entre dever e paixão", enquanto as outras seriam "os cacoetes de uma personagem secundária. Galhofas de estudantes vadios, situações bufas..."10 .
Na esteira de Macedo, Taunay lançou mão de quase todos os expedientes apontados, criando um "enredo complicado com personagens simples"11. Enredo complicado por abrigar, fundamentalmente, duas intrigas, a história de Trajano e a de seu pai, Roberto Sobral – bem como por sugerir, por um lado, técnicas do romance epistolar na troca de correspondência entre pai e filho, e, por outro, por sugerir técnicas do "romance de formação (Trajano forma-se na viagem e na vida, para , no final, morrer na guerra do Paraguai). Constituem, ainda molas romanescas ou sentimentais a partida do protagonista para a Europa em cumprimento de dever de honra assumido com o pai; o envolvimento de Roberto Sobral com a aventureira italiana Ester Dolabelli; a intervenção do frade capuchinho Candido Sparromechi e de seus dois companheiros; o reconhecimento da inocência de Trajano no tocante às intrigas contra ele urdidas pela escrava Berta e por Ester; o reconhecimento , por parte de Trajano de seu dever de filho, de, primeiro, partir para a Europa, depois de seu dever patriótico de partir para a guerra do Paraguai. Enquanto recursos de comicidade, observamos passagens como a do encontro do Sr. Manuel Ventura beleza com seu filho Pirapitanga, em uma pensão em São Paulo durante uma estrepitosa refeição de estudantes; a caracterização glutona e irascível do fazendeiro, vizinho e parente, João Bretas, - ou a representação do médico alemão Dr. Schlossen (muito semelhante, aliás, ao Dr. Meyer, de Inocência).
Uma das preocupações de Taunay relativamente à escrita é a apresentação do cenário. No romance de caráter rural, a experiência do interior e o contato com a natureza e com a paisagem constituíram aspectos diferenciadores de sua produção. Sua visão da natureza, entretanto, sugere o olhar do estrangeiro que capta e interpreta o, para ele, "exótico". Neste sentido, Sílvio Romero já havia observado que "a educação não deixou de apagar certo quê de estrangeiro em Taunay"12 e Antonio Candido constata sua visão da pátria "a maneira de um Ribeyrolles ou de um Ferdinand Denis".13 O próprio Taunay, referindo-se aos militares da expedição à fronteira com o Paraguai declara :
"Com a educação artística que recebera de meu pai (...) era eu o único dentre os companheiros, e portanto de toda a força expedicionária, que ia olhando para os encantos dos grandes quadros naturais e lhes dando o devido apreço."14
A percepção da natureza parece, por um lado, transformar-se, no texto de Taunay, na expressão de perspectivas apresentadas conforme técnicas de pintura; o termo "grandes quadros naturais", por ele empregado, parece comprová-lo. A estas associa-se, muitas vezes, à maneira romântica, a conformidade com o estado de espírito das personagens. É o caso, por exemplo, da descrição da tempestade e da paisagem no capítulo III de A mocidade de Trajano (retomada, aliás, com algumas modificações no início de Inocência e nos Quadros da natureza, em Céus e Terras do Brasil), ou de passagens tomadas ao início do primeiro capítulo: "Oprimido por dor inexprimível, percorria ele como louco as alamedas de um vasto jardim que rodeava sua casa..."15; ou, "A hora solene em que o firmamento não tem astros, em que as estrelas não podem ainda vencer o brilho do sol que já se foi, essa hora tornou-se para Trajano de uma tristeza aterradora"16. Por outro lado, ocorre também a focalização de detalhes das cenas da natureza, sugerindo a técnica do desenho, como ocorre na descrição dos jardins da fazenda da Mata Grande, propriedade de Roberto Sobral, notadamente em:
"Ao derredor de repuxo elegante, os balsâmicos edícios mostravam os cândidos tirsos e nos canteiros, à sombra das magnólias e camélias, mão inteligente plantara as flores das queimadas e dos campos que tão cheirosas, tão bonitas, são. A espirradeira miúda, a saudade silvestre, o para tudo espinhoso partilhavam o terreno com o manacá, que tanto aroma tem quando cultivado e não o possui nas matas, com o lírio variegado, as orquídeas terrestres e muitas outras plantinhas que só pedem alguns cuidados para recompensarem com mil atrativos aquele que para elas olhou um dia."17
Convém acrescentar ainda que Roberto Sobral era homem de "educação pouco vulgar"18, completada por longas viagens à Europa, onde adquirira um modo de vida diverso do habitual... A sede de sua fazenda revelava bom gosto e ficava evidente que ele "não sujeitava a sua vida e os seus teres às idéias rotineiras dos vizinhos"19. Em seu jardim floresciam plantas da Europa; no pomar eram cultivados frutos das regiões temperadas; maças, ameixas, peras morangos, framboesas... Novamente, o "cultivado" é o estrangeiro, o europeu...
Finalmente, em A mocidade de Trajano, Taunay já apresenta algumas das características de sua produção romanesca: a admiração pela natureza vista sob a ótica do estrangeiro, a comparação implícita da realidade brasileira com a européia. Neste caso, se, sob uma perspectiva, a natureza nos favorece, sob outra, ficamos devendo no tocante aos valores cosmopolitas e culturais. Talvez seja esta a razão pela qual o romance urbano de Taunay não logrou o sucesso de seus textos de temática rural.

Referências:

BOSI, A. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1970.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP. 1975.
_______ A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva,1987.
FREYRE, G. Um engenheiro francês no Brasil. Rio de janeiro: José Olympio, 1960.
MACEDO, J.M. O culto do dever. Rio de Janeiro: Editora Aurora, s/d.
MASSAUD, M. História da literatura brasileira. Vol. II. Romantismo. São Paulo: Cultrix/ EDUSP, 1984.
TAUNAY, A. E. A mocidade de Trajano. São Paulo: Biblioteca da Academia Paulista de Letras, 1984.
_______ Céus e terras do Brasil. 8ª. Ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
_______ Inocência. 15ª Ed. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
_______ Memórias. São Paulo: Melhoramentos, s/d.
VERÍSSIMO, J. História da literatura brasileira. Lisboa: Typ. da Ilustração, 1929.
_______ Taunay e Inocência in Estudos de literatura brasileira. Belo Horizonte, Itatiaia, 1977, p. 147- 152.


1 Profª. Drª. do Departamento de Letras Modernas – IBILCE/UNESP, campus de S.J. Rio Preto. E-mail: wimmer@ibilce.unesp.br
2 A mocidade de Trajano. São Paulo: Biblioteca da Academia Paulista de Letras, 1984. p.9. Todas as demais referências a este texto serão apresentadas sob as iniciais M.T.
3 Moisés, 1984. p279.
4 M.T.p.72
5 Bosi, 1970. p.44.
6 Veríssimo, 1929.p.317.
7 M.T. p.118
8 Freyre, 1960.p.369.
9 M.T. p.237.
10 Op. Cit. P. 144
11 Candido, 1987. p.60
12 Outros estudos de literatura contemporânea. Lisboa: Typ. da Editora, 1905. p.191.
13 Candido, 1975. p.308.
14 Candido, s/d. p.131.
15 M.T.p. 19
16 M.T.p. 21
17 M.T.p. 23.
18 Id. ibid.
19 Id. ibid.
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