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Literatura e Autoritarismo
Literatura Brasileira: História e Ideologia
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 15 

A FORÇA DO NACIONALISMO NAS LEITURAS CRÍTICAS DA LITERATURA BRASILEIRA DO SÉCULO XIX: o caso de José de Alencar e do Visconde de Taunay

Fábio Luis Silva Neves1
João Luis Pereira Ourique2
Resumo: Com o objetivo de refletir sobre alguns aspectos que envolvem o debate crítico sobre o nacionalismo na literatura brasileira do século XIX, este trabalho abordará os ensaios críticos presentes nas reedições de duas obras do Visconde de Taunay, produzidas por Sérgio Medeiros, Ierecê a Guaná (2000) e Memórias (2005). Nessas obras encontram-se críticas de Antonio Candido, Lúcia Sá, Haroldo de Campos e do próprio Sérgio Medeiros. Em todos os ensaios percebe-se a retomada da discussão do nacionalismo na literatura no período de transição do Romantismo para o Realismo. Nessa perspectiva, os elementos de discussão presentes nas obras de José de Alencar e do Visconde de Taunay foram apresentados a partir das críticas que Taunay fez a Alencar em sua autobiografia Memórias. Num segundo momento, será dado enfoque a outro caso de embate crítico entre escritores do período - Joaquim Nabuco e José de Alencar - com base nos ensaios críticos de Sandra Jatahy Pesavento e Tania Franco Carvalhal.
Palavras-chave: Nacionalismo, debate crítico, Romantismo, Realismo, Visconde de Taunay, José de Alencar.
Abstract: This work aims at considering aspects of the critical debate on Nationalism in 19th-century Brazilian literature by focusing on the critical essays included in new editions by Sérgio Medeiros of two works by the Viscount Taunay, Ierecê a Guaná (2000) and Memórias (2005). These new editions of the Brazilian author feature critical articles by Antonio Candido, Lúcia Sá, Haroldo de Campos, and Sérgio Medeiros himself. It is apparent that every single article of these two editions engages anew with the question of Nationalism in literature in the period of transition from Romanticism to Realism in Brazilian literature. Under such perspective, the presentation of the elements of the discussion which are found in the works of both José de Alencar and the Viscount Taunay has as its starting point the criticism which Taunay levels at Alencar in his autobiography Memórias. This is followed by a discussion which focuses on another contemporary instance of a critical clash between authors, namely, Joaquim Nabuco and José de Alencar. The latter discussion is based on critical essays by Sandra Jatahy Pesavento and Tania Franco Carvalhal.
Keywords: Nationalism, critical debate, Romanticism, Realism, Viscount Taunay, José de Alencar.

“O amor e a pátria, a natureza e a religião, o povo e o passado, que
afloram tantas vezes na poesia romântica, são conteúdos brutos,
espalhados por toda a história das literaturas, e pouco ensinam o
intérprete do texto, a não ser quando postos em situação,
tematizados e lidos como estruturas estéticas
.”
(Bosi, 2006, p. 91)
Alfredo de d’Escragnolle Taunay, o Visconde de Taunay, é consagrado pela crítica como um dos maiores escritores brasileiros do período de transição do Romantismo para o Realismo. Do final do século XIX até a metade do século XX o escritor foi sempre mencionado nas principais obras de história da literatura brasileira, quase sempre, sendo lembrado pelo valor das obras A retirada da Laguna (1871) e Inocência (1872).
A partir da chegada do novo milênio no século XXI surgiram outros olhares para os estudos históricos/literários. Tais estudos levaram o pesquisador Sérgio Medeiros a republicar duas importantes obras do Visconde de Taunay, esquecidas pela crítica. A primeira delas foi o conto Ierecê a Guaná (2000), publicado em 1874 por Taunay na obra Histórias brasileiras, sob pseudônimo de Sílvio Dinarte. Já a segunda foi a autobiografia Memórias (2005), escrita na última década de vida do autor e somente publicada em 1947 a mando do próprio Taunay, que solicitou a publicação desta cinqüenta anos depois de sua morte.
As duas reedições trouxeram novas perspectivas acerca da obra do Visconde de Taunay, assim como outras importantes questões para o debate crítico a respeito do período de transição do Romantismo para o Realismo. Dentre essas questões, daremos enfoque à discussão sobre a permanência de uma visão nacionalista, presente nas críticas das reedições, e que foram levantadas sob a perspectiva de comparações entre a obra de José de Alencar, considerado o maior escritor do período romântico, e do Visconde de Taunay.
A reedição do conto Ierecê a Guaná, de Sérgio Medeiros, trouxe quatro textos críticos de renomados autores brasileiros. O primeiro deles é “A sensibilidade e o bom senso do Visconde de Taunay”, de Antonio Candido, publicado em 1957 na obra Formação da literatura brasileira. A escolha de Medeiros pelo texto de Candido se deu pelo fato de que foi a partir da leitura deste que o editor adquiriu interesse em pesquisar o conto, como o mesmo descreve no artigo de apresentação da reedição. Sobre o conto Candido diz:
[...] um belo conto, o melhor de quantos [Taunay] escreveu [...] O conto relata, com um mínimo de fantasia, a paixão silvestre que termina com a morte da índia abandonada pelo amante. Em todo ele perpassa uma ternura e encantamento que o tornam dos bons trechos de nossa prosa romântica. Nem lhe falta a situação descrita por Chateaubriand em René e nos Natchez, retomada com o mais alto impulso lírico por Alencar, em Iracema, e que simboliza um aspecto importante da literatura americana: o contato espiritual e afetivo do europeu com o primitivo. (Candido, 1997. p. 280).
Da conclusão de Candido de que Ierecê a Guaná é o melhor conto que Taunay escreveu, Sérgio Medeiros parte para a organização da reedição, produzindo um texto crítico intitulado “As vozes do Visconde de Taunay”, segunda crítica presente na obra. No entanto, em seu texto, o editor relaciona passagens do conto com aspectos da biografia do jovem escritor Taunay e também os relaciona as passagens narradas nas Memórias e aos fatos da fase madura do escritor.
A vivência de Taunay é tratada nos quatro textos críticos da reedição como importante fator para a discussão do nacionalismo. Para os críticos a vivência do escritor diferencia características de sua obra em relação às anteriormente produzidas pelos românticos. Embora o próprio Visconde de Taunay tenha separado os fatos de sua vivência de sua obra ficcional, foi por meio do conhecimento que obteve da observação, dos lugares que percorreu, que o escritor procurou compor uma literatura fiel ao universo narrado. Desta concepção de escrita ficcional, buscou contrastar-se ao idealismo dos romances anteriores de José de Alencar, considerados como indianismo romântico. Tanto Taunay quanto outros escritores, do final do século XIX, sertanistas românticos, naturalistas e regionalistas, buscaram tal impressão de veracidade.
A crítica de Lúcia Sá, presente na reedição do conto Ierecê a Guaná, parte da seguinte questão: “O que levaria Taunay à arriscada tentativa de re-escrever, em tão singelo conto, a obra consagrada de Alencar?” (2000, p. 133).
Lúcia Sá, numa espécie de ensaio dialético, desenvolve as comparações entre o conto de Taunay e o consagrado romance de Alencar, Iracema (1865). Primeiro, a crítica, parte da análise dos nomes das heroínas das ficções, ambas homônimas as obras. Enquanto Iracema é um anagrama de América e tenta voltar o olhar para o indígena americano, numa palavra criada para soar como tupi, Ierecê é uma palavra do idioma guaná, o que levou Sá a entender que Taunay conhecia melhor a realidade indígena e seria mais capaz do que Alencar de compor uma literatura fiel à realidade por eles vivida no século XIX.
Mais adiante, Sá compara a descrição, o comportamento e os diálogos das duas índias e conclui que ambas possuem aspectos positivos e aspectos negativos. Enquanto a descrição de Ierecê é mais fiel à realidade guaná, realçada de traços característicos e falas em seu idioma original, a descrição de Iracema possui mais elementos literários, e a índia é apresentada na perspectiva do próprio indígena (Cf. Sá, 2000, p. 134-137). Em Ierecê a perspectiva é a do narrador onisciente de olhar europeizado, ligados às concepções da personagem central do conto Alberto Monteiro, homem e branco.
Do idealismo criado na ficção de Alencar, acerca do indígena e do sertanejo, Visconde de Taunay, em seu livro de Memórias, relata:
Permita a justiça da posteridade que eu consiga a posição de que me acho digno e para a qual trabalhei com todo esforço, vencendo, não raras vezes, desalentos violentos.
Possuía Alencar, não há contestar, enorme talento e grande força de trabalho; tinha pena dúctil e elegante; mas não conhecia absolutamente a natureza brasileira que tanto pretendia reproduzir nem dela estava imbuído.
Não lhe sentia a possança e verdade. Descrevia-a do fundo do seu gabinete, lembrando-se muito mais do que lera do que daquilo que vira com os próprios olhos.
Parecendo muito nacional obedecia mais do que ninguém à influência dos romances franceses.
Nos seus índios deixou Alencar a trilha aberta por Fenimore Cooper para de perto seguir Chateaubriand e reeditar as pieguices de que se constituiu porta-voz este escritor, tornando-as toleráveis a poder da pompa e do brilhantismo da frase.
Tudo porém artificial e cansativo (Taunay, 2005, p. 224).
Nota-se na crítica de Taunay feita a Alencar que o escritor espera ser ainda reconhecido como um escritor a frente do anterior. Embora reconheça que Alencar possui enorme talento e força de trabalho, o Visconde aponta que o escritor não conhecia a realidade brasileira e que, por isso, sua literatura não transmitia verossimilhança. Ainda diz que o conhecimento de Alencar era baseado em leituras de gabinete e cópias da literatura dos franceses, tornando-se artificial e cansativa.
Cabe ressaltar que, embora Taunay diga que os romances de Alencar são cópias dos romances franceses, os seus romances também sofreram influência direta desses. Mesmo buscando a descrição fiel ao comportamento, os costumes e linguagem dos índios, o conteúdo que os romances passam são todos pautados pelos conceitos europeus, sob o olhar do colonizador que observa a cultura do outro, narrando o que há nesta de exótico e pitoresco.
Mais adiante em seu relato memorialístico, Taunay faz ainda um julgamento mais radical da composição indígena de José de Alencar:
Dos índios fez Alencar heróis de verdadeiras fábulas, oriundas dos Natchez, Atala e René, a falar com a linguagem poética e figurada de exuberância e feição oriental.
Conheci-os bem de perto, com eles convivi seis meses a fio e pude observá-los detidamente. E eram aborígenes de procedência e cunho mais elevados, chanés de Mato Grosso que se dividem em quatro numerosos grupos – chooronós ou guanás, quiniquinaus, laianos e terenas.
Decerto tinha fraseologia por vezes pitoresca, mas daí a conversações todas de tropos e elegantes imagens há um mundo (Taunay, 2005, p. 224).
No entanto, é necessário ressaltar que, em literatura, o conhecimento do real e a descrição pautada no real não bastam para considerá-la como superior a uma literatura criada pelo viés da imaginação. O que dizer da literatura fantástica, por exemplo, ela é inferior ao romance histórico? O que dizer de Mário de Andrade, estudioso de gabinete, como se refere Taunay à Alencar, que compôs a partir de seus estudos uma literatura capaz de dialogar e representar todo um imaginário cultural do interior do Brasil?
Sob essa perspectiva, Antonio Candido delimita que as fronteiras entre a invenção e a realidade em literatura são muito tênues:
[...] Neste caso, deveríamos reconhecer que, de maneira geral, só há um tipo eficaz de personagem, a inventada; mas que esta invenção mantém vínculos necessários com uma realidade matriz, seja a realidade individual do romancista, seja a do mundo que o cerca; e que a realidade básica pode aparecer mais ou menos elaborada, transformada, modificada, segundo a concepção do escritor, a sua tendência estética, as suas possibilidades criadoras. Além disso, convém notar que por vezes é ilusória a declaração de um criador a respeito da sua própria criação. Ele pode pensar que copiou quando inventou; que exprimiu a si mesmo, quando se deformou, quando se confessou. Uma das grandes fontes para o estudo da gênese das personagens são as declarações do romancista; no entanto, é preciso considerá-las com precauções devidas a essas circunstâncias (Candido, 1970, Grifo do autor, p. 69).
Para Candido, todas as personagens no final das contas são inventadas. A ilusão do escritor de estar criando algo baseado no real pode levá-lo a criar algo inventado, isso devido a sua ideologia, que o leva, muitas vezes, a julgar e moldar a personagem baseada em uma perspectiva. Por outro lado, o caminho inverso também é possível e, muitas vezes, ao criar, o escritor chega à composição de uma personagem que adentra a realidade de vários leitores. Para o crítico, o que pensa e escreve o autor sobre sua própria composição é, por vezes, enganoso, mas, é preciso levar em consideração tais declarações, utilizando-as como mais uma possibilidade de análise e considerando-as com ressalvas.
Para fechar tal questão, Antonio Candido considera que a estrutura do romance como um todo é que será capaz de resolver se há o funcionamento da personagem, seja esta criada ou recordada:
[...] O que julgamos inverossímil, segundo padrões da vida corrente, é, na verdade, incoerente, em face da estrutura do livro. Se nos capacitarmos disto – graças à análise literária – veremos que, embora o vínculo com a vida, o desejo de representar o real, seja a chave mestra da eficácia dum romance, a condição do seu pleno funcionamento, e portanto do funcionamento das personagens, depende dum critério estético de organização interna. Se esta funciona, aceitaremos inclusive o que é inverossímil em face das concepções correntes (Candido, 1970, Grifos do autor, p. 77).
No momento histórico em que surgiu o sertanismo, o naturalismo e o regionalismo do século XIX, os escritores ainda não haviam chegado a tal concepção de análise e criticaram o indianismo anterior, mais sob esses aspectos formais, do que sob a perspectiva de seu olhar conservador, baseado nos costumes europeus. Acerca desse momento histórico, Sandra Jatahy Pesavento elabora a seguinte análise:
[...] Embora o romantismo se volte para o específico e o singular, que dariam o tom original brasileiro no contexto da civilização ocidental, seu padrão de referência ainda é a Europa. Na falta de um passado clássico ou de uma Idade Média, José de Alencar vai idealizar o substrato nativo, nas trilhas do indianismo romântico que permite criar o “mito das origens” para o Brasil [...] A positividade das virtudes do índio era afirmada como compensação simbólica diante da carência das tradições históricas que a Europa esbanjava. Romantizado o contato com o homem branco [...] O resultado é uma recriação imaginária distante das condições concretas da existência, mas que não invalida a sua força de representação. A leitura do real feita pelo texto literário era dotada de uma alta carga de positividade para a elite branca escravista e se apresentava como plausível e conveniente [...] Por outro lado, a menção a uma América como pano de fundo para performance brasileira, encontrada na prosa e poesia romântica, não constitui um horizonte para a construção da identidade nacional (Pesavento, 1998, p. 25).
Na busca por compor o índio sob aspectos mais ligados a realidade por eles vivida, surgem, na década de 1870, os sertanistas. Esses escritores eram, em sua maioria, viajantes e observadores do sertão brasileiro e baseados nessas observações e estudos, tentaram recriar o índio de uma maneira mais próxima ao seu habitar natural. Sobre esse movimento, Pesavento relata:
Recriando o real, a literatura e história constroem uma identidade para o país onde a legitimação da supremacia luso-brasileira é dada ora pela idealização romântica da dominação, ora pela sua ‘natural’ superioridade, perspectiva que se desdobra na também ‘natural’ submissão dos índios e dos negros [...] Mas índios e negros ‘não fazem história’, são excluídos de um processo narrativo como atores sociais, tal como se depreende dos compêndios da época.
Imbuída das teorias européias de Darwin, Spencer, Comte, Taine, Renan, esta geração buscava o universal de forma explícita, assumindo um cosmopolitismo declarado: o Brasil deveria acertar o passo com a história, ingressando na modernidade de seu tempo. A Europa fornecia o padrão de refinamento civilizatório e de patamar cultural. Dela vinham as idéias, a moda, as novas técnicas, e o Brasil precisava acompanhar o trem da história, nem que fosse no último vagão... A alteridade estava posta de forma inquestionável: ela estava do outro lado do oceano, onde o Brasil buscava os seus padrões de referência e colocava seu horizonte (Pesavento, 1998, p. 26-27).
Na tentativa de recriar o real, após a tentativa dos indianistas, a geração de 1870 procura sair da relação de dominação européia para com o índio e o negro, que nunca tiveram voz para serem os atores sociais do processo de nacionalização do país. Para Pesavento, mesmo essa geração tendo como objetivo a busca por uma linguagem mais fiel a veracidade indígena, ainda tinha como padrão estético e cultural a Europa.
Essa perspectiva também ocorre no conto “Ierecê a Guaná”. Taunay evolui na caracterização do espaço vivido pelo indígena e pelo sertanejo, tanto o local descrito como as características e os costumes das personagens são feitas de acordo com seus aspectos culturais. No entanto, o escritor acaba por fazê-lo diante do padrão de análise europeu, sob julgamentos de valor e conclusões pitorescas do branco sobre o “outro”.
Ainda na tentativa de dar outra sorte ao índio e ao negro brasileiro, surgiu nesse mesmo período Joaquim Nabuco3 e toda a polêmica que envolveu sua obra com a de José de Alencar. Nabuco escreveu várias críticas a obra do escritor cearense e com ele travou um verdadeiro conflito crítico/literário. Desse caso Pesavento discorre:
Outros, como Joaquim Nabuco, reconheciam o problema e admitiam a necessidade de incorporar os egressos da escravidão à sociedade brasileira, como cidadãos, mas propunham para isso soluções ingênuas e incompletas, como a educação.
Usando os óculos do realismo para chegar ao verdadeiro Brasil, proporcionava-se o mal estar da incômoda revelação da realidade nacional, que na passagem do século XIX para o XX, jogava no mercado de trabalho em formação os egressos da senzala, os caboclos nacionais e os imigrantes europeus, numa hierarquia de aceitação que associava o elemento branco estrangeiro como o motor da regeneração nacional (Pesavento, 1998, p. 28).
Segundo Pesavento, Joaquim Nabuco e a geração que o seguiu, reconheciam a necessidade de colocar os negros e índios como agentes da civilização brasileira, mas, para isso, buscavam a regeneração desses pela educação, mais uma vez tendo como referência o homem branco europeu.
Tania Franco Carvalhal, em “O próprio e o alheio no percurso literário brasileiro” analisou a polêmica entre Alencar e Nabuco. A autora apontou as críticas, por vezes ofensivas, de Nabuco, que dizia que Alencar construía uma brasilidade forçada, inexistente, e que era plagiador do romantismo europeu. Em contrapartida, Carvalhal expõe a réplica de Alencar, que acusava Nabuco de compor a literatura e viver nos moldes franceses, causando, assim, um abrasileiramento.
O texto crítico da autora elucida de maneira eficaz e pertinente todo o impasse que envolvia os dois escritores, mostrando os limites da concepção de Alencar que não conseguiu colocar o habitante brasileiro como agente do processo de construção do nacional. E, por outro lado, os limites da concepção de Nabuco que não percebeu que, a voz que dava ao homem brasileiro, era toda pautada na evolução da sociedade imposta pelo colonialismo europeu. No entanto, a autora acaba se rendendo às questões de linguagem, do português falado no Brasil, apresentados na obra de Alencar. A respeito disso, Carvalhal diz:
Assim, ao nacionalismo “máscara” ocasional Alencar contrapõe o sentimento patriótico, nativista, que expressaria, desde a literatura brasileira do período colonial, o apreço à terra, ao país. Associa, pois, nacionalismo e patriotismo, numa complementaridade que une também, no projeto de Alencar, a construção de uma língua nacional – o português falado no Brasil com características próprias e as representações multifacetadas da terra brasileira em suas variantes regionais, sendo estes elementos capazes de formar uma consciência unificada de nacionalidade ou, dito de outro modo, uma unidade aparente na diversidade real (Carvalhal, 2006, p. 141).
Partindo da discussão do próprio (brasileirismo de Alencar) e o alheio (europeísmo de Nabuco) e tentando chegar a uma síntese, expressada pela autora como exemplos nas obras de Mário de Andrade e no Quarup, de Antônio Callado, Carvalhal acaba tomando partido na polêmica a favor de Alencar. A autora se rende ao domínio da linguagem expressos na obra de Alencar e deixa de lado as questões ideológicas presentes na obra do autor, tais como: a posição dominadora do homem branco em relação ao indígena, a submissão da mulher em relação ao homem, o exotismo na criação de personagens típicos do sertão, entre outros.
Essa visão da obra de Alencar é bem próxima à visão que aparece no último texto crítico da reedição de Ierecê a Guaná, “Ierecê e Iracema do verismo etnográfico à magia verbal”, de Haroldo de Campos. O autor aponta a tentativa de Taunay de compor um índio com características mais ligadas a fidelidade do que as feitas por Alencar. No entanto, o crítico considera que “Ierecê a Guaná não resiste à comparação com Iracema em termos de realização estética” e acaba, também, se rendendo as questões estruturais do texto de Alencar, deixando, mais uma vez, as questões ideológicas que aparecem tanto no conto de Taunay quanto na obra de Alencar.
Das polêmicas que surgiram no século XIX envolvendo a obra de Alencar pode-se perceber que o impasse não foi solucionado. Todas as tendências tiveram seus limites, presos aos referenciais estéticos e éticos europeus. Para o Visconde de Taunay, ele próprio havia superado a obra de Alencar devido à construção da linguagem real do índio e a descrição fiel do local em que vivem. Embora realmente exista esse avanço, de tom científico, na obra de Taunay, tanto ele, quanto os outros sertanistas e, também, Joaquim Nabuco, não puderam, devido aos padrões brasileiros da época, perceberem que ainda estavam totalmente presos ao moralismo e a dominação européia sobre o “outro”.
O que se constata é que não há nenhum escritor que esteja realmente a frente do outro na tentativa de dar voz ao homem brasileiro na literatura do período. A posição de Sérgio Medeiros de colocar em sua reedição, e isso não na época em que viveu Taunay, o século XIX, e, sim, no século XXI, o Visconde como um escritor a frente de seu tempo é, no mínimo, duvidosa. Assim como a concepção de Tania Franco Carvalhal e de Haroldo de Campos em colocarem José de Alencar acima dos demais por conta do seu padrão estético de escrita, excluindo todo apagamento étnico/cultural que sua obra guarda, também o é, pois acabam se rendendo as armadilhas do nacionalismo.
Por fim, cabe ressaltar que Lúcia Sá, no texto da reedição de “Ierecê a Guaná”, faz essa mediação, colocando o conto de Taunay e o romance de Alencar, pareados em seu conteúdo e estética:
Entretanto, o realismo de “Ierecê” é amoldado a um enredo que segue de perto vários clichês do indianismo romântico: a paixão sem freios da jovem índia, sua inocência infantil, sua profunda ligação com a natureza, e a morte por amor. Como explicar a combinação de elementos tão distintos? (Sá, 2000, p. 139).
E, mais adiante, a crítica conclui que:
Por tudo isso, pode-se dizer que “Ierecê a Guaná” é um texto exemplar de um período de transição da narrativa brasileira. O realismo do protagonista, destinado a corrigir os excessos de Alencar, nunca chegam a incorporar o intenso amor romântico de Ierecê. A apaixonada índia, por sua vez, embora não ultrapasse o papel de pobre criatura isolada e exótica, detém o título indiscutível de heroína que ainda pretende, ao que tudo indica, arrematar alguns românticos corações. Entre o anti-indianismo romântico exarcebado, o conto estabelece um diálogo sui-generis, cheio de amor e desamor com a obra de Alencar (Sá, 2000, p. 142-143).
Para Lúcia Sá, tanto o conto de Taunay, quanto o romance de Alencar são importantes para o Romantismo brasileiro, sendo textos exemplares da criação literária do século XIX. E, finaliza, relatando que entre a tentativa de reconstruir o indianismo sob o viés do sertanismo, o conto do Visconde de Taunay estabelece um diálogo sui-generis, ora aproximando, ora contrastando com a obra de Alencar.
Por fim, conclui-se que as duas obras são clássicos do período e são de fundamental importância para que exista contrapontos para se pensar as características e os limites do que denominou-se nacionalismo na literatura brasileira.

Referências:

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
CAMPOS, Haroldo. Ierecê e Iracema: do verismo etnográfico à magia verbal. In: TAUNAY, Visconde de. Ierecê a Gauná. Org. Sérgio Medeiros. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 145-172.
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, A.; ROSENFELD, A.; ALMEIDA-PRADO, D. de; SALES-GOMES, P. E.; (orgs.) A personagem de ficção. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1970. p. 53-80.
_______. Formação da literatura brasileira. 2. vol. 8. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1997.
CARVALHAL, Tania Franco. O próprio e o alheio: ensaios de literatura comparada. Porto Alegre: Unisinos, 2006.
MEDEIROS, Sérgio. As vozes do Visconde de Taunay. In: TAUNAY, Visconde de. Ierecê a Gauná. Org. Sérgio Medeiros. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 109-131.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. Contribuição da história e da literatura para a construção do cidadão: a abordagem da identidade nacional. In: LEENHARDT, J. e PESAVENTO, S. J. (orgs.). Discurso histórico e narrativa literária. Campinas: UNICAMP, 1998. p. 17-38.
SÁ, Lúcia. Índia Romântica. Brancos Realistas. In: TAUNAY, Visconde de. Ierecê a Gauná. Org. Sérgio Medeiros. São Paulo: Iluminuras, 2000. p. 133-143.
TAUNAY, Visconde de. Memórias. Org. Sérgio Medeiros. São Paulo: Iluminuras, 2005.


1 Mestrando em Letras, Área de Concentração: estudos literários, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, campus de Três Lagoas, bolsista da CAPES. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq ICARO. E-mail: fabioluis_sn@yahoo.com.br
2 Prof. Dr. da UFPel (Universidade Federal de Pelotas) e do Programa de Pós-Graduação da UFMS (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul). Coordenador do Grupo de Pesquisa CNPq ICARO. E-mail: jlourique@yahoo.com.br
3 Joaquim Aurélio Barreto Nabuco de Araújo (Recife, 1849 – Washington, 1910). [...] Nabuco seguiu na política os ideais do pai [...] elegeu-se deputado, destacando-se no decênio de 80 como grande tribuno abolicionista (O Abolicionismo, 1883) [...] A ação de Nabuco fundava-se menos na rotina partidária que na paixão intelectual e ética das reformas: daí a emergência da sua figura humana [...] Como escritor é claro e vivo, lembrando de perto as fontes francesas que bebeu na mocidade [...] Não foi espírito original: há em Minha Formação (1898) não poucos lugares-comuns de cosmopolita e diletante, ainda preso a tipologias feitas como “o espírito inglês”, “a alma francesa”, “a democracia americana”, etc. Mas, sempre que volta à memória de infância, aos primeiros contatos com o negro [...] demonstra o pulso do memorialista capaz de dar à História a altura da “ressurreição do passado” que lhe preconizava Michelet. A proclamação da República não o demoveu dos ideais monarquistas, mas também não o impediu de servir ao país na qualidade de embaixador em Londres e em Washington, onde faleceu em 1910. (Bosi, 2006, p. 164).
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