Grupo de Pesquisa Literatura e Autoritarismo  |  Índice de Revistas  |  Normas para Publicação
Literatura e Autoritarismo
Literatura Brasileira: História e Ideologia
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 15 

O ABISMO DA ANGÚSTIA EM HOTEL ATLÂNTICO, DE JOÃO GILBERTO NOLL

Virna Vieira Leite1
Resumo: O propósito deste trabalho é estabelecer uma reflexão a respeito do abismo ao qual o protagonista de Hotel Atlântico (1989), de João Gilberto Noll se destina, preso num labirinto social.
Palavras-chave: angústia, sociedade contemporânea, crítica social.
Abstract: The purpose of this study is to establish a reflection of the abyss to which the protagonist of Hotel Atlântico (1989), Joao Gilberto Noll intended, caught in a labyrinth social.
Keywords: distress, contemporary society, social criticism.
[...], pois eras bem longívo, Hotel, e no teu
bojo o que era nojo se sorria, em pó, contigo.

Carlos Drummond de Andrade
Far-se-á um breve estudo de Hotel Atlântico (1989), de João Gilberto Noll, nascido em Porto Alegre em 1946, iniciou sua carreira de escritor em 1980, com o livro de contos O cego e dançarina. Recebeu inúmeros prêmios, entre eles, o prêmio Jabuti em cinco ocasiões: 1981, 1994, 1997, 2004 e 2005. Entre seus livros mais vendidos está Hotel Atlântico2 que foi reeditado quatro vezes, em 1989, 1995, 1997 como parte da coletânea Contos e Romances Reunidos, nesse mesmo ano, foi traduzido para o inglês, e publicado na Inglaterra em 2004. Em novembro do ano passado, foi lançado o filme baseado na narrativa Hotel Atlântico elaborado pela diretora e cineasta Suzana Amaral.
Assim como no poema A um Hotel em demolição, de Carlos Drummond de Andrade, existe em Hotel Atlântico, de João Gilberto Noll, um eu desestruturado, tanto física como emocionalmente. Apesar das semelhanças temáticas, as situações são diferentes, pois em A um Hotel em demolição, o eu-lírico despede-se do hotel e das lembranças que esse traz, enquanto em Hotel Atlântico, o hotel demolido é na verdade o próprio narrador-personagem.
A década de oitenta (1980-1989) foi profundamente marcada por uma crise no campo social, político e econômico. Essa conotação está relacionada à situação econômica que os países da América Latina viviam, forte retração da produção industrial e um menor crescimento da economia como um todo. Para a maioria dos países, a década de 80 é sinônimo de crises econômicas, volatilidade de mercados, problemas de solvência externa e baixo crescimento do PIB.
É no final dos anos oitenta (1989), como foi afirmado, que Hotel Atlântico é publicado pela primeira vez. Todo desgosto, sofrimento e descrença da população brasileira dessa época parecem transparecer no protagonista da narrativa, que caminha para um abismo de angústia.
Numa viagem sem rumo, o narrador vivencia diversos tipos de sofrimento. Ex-ator, desempregado, sem nome, sem família, sem bagagem, desprovido de qualquer recurso, exposto a toda e qualquer “sorte”, vivendo da ajuda alheia, vítima de uma doença desconhecida, perde uma perna e posteriormente todos os sentidos.
De acordo com Freud, no Mal-estar da civilização (1930) a culpa é uma variante topográfica da angústia e a angustia é o medo ou terror diante do futuro antecipado de forma apocalíptica.
A angústia - segundo Heidegger - “é, dentre todos os sentimentos e modos da existência humana, aquele que pode reconduzir o homem ao encontro de sua totalidade como ser e juntar os pedaços a que é reduzido pela imersão na monotonia e na indiferenciação da vida cotidiana”. (1996, p. 7)
A partir da apreensão da angústia, o homem perceber-se-ia como um ser-para-morte, devido ao fato de intuir o absurdo da existência. Quando isso ocorre, Heidegger afirma haver duas soluções: ou o homem foge para a vida cotidiana, "ou supera a angústia, manifestando seu poder de transcendência sobre o mundo e sobre si mesmo” (1996, p.8).
Pode-se afirmar que a narrativa de João Gilberto Noll é atravessada por uma tendência de se romper com a estética da narrativa tradicional. O texto é narrado em primeira pessoa, o narrador é o protagonista da trama. Os períodos são curtos, não se pode falar em capítulos, pois a narrativa é estruturada em seis blocos, esses blocos não são nomeados, apenas sugeridos em espaços brancos entre uma parte e outra. No primeiro bloco temos três subdivisões, no segundo sete, no terceiro onze, no quarto dez, no quinto bloco dezenove, e no sexto nove subdivisões. Todos circunscritos pelo incerto, insólito e fronteiriço.
Hotel Atlântico, não é, como classificado, um romance, mas uma novela com características do gênero dramático a partir das várias cenas concomitantes, os cortes, a mudança de cenário e a variante de personagens.
- Pois é, para o Oeste de Santa Catarina, eu não conheço ninguém que vá, concluiu de súbito o garoto.
Almocei num restaurante que ficava numa praça bem ampla. Ouvi o garçom arranhar o inglês com um casal de turistas alemães. Ele contava que a igreja que se via numa das margens da praça era a catedral da cidade. (Noll, 2004, p. 35)
Hotel Atlântico pode ser visto como alegoria da representação da abertura política no país. O retrato, a um só tempo, da coragem e desorientação de um personagem sem destino, vivendo à sorte do acaso, assim como muitos brasileiros.
A falta de identidade se apresenta na grande alegoria da viagem, deslocamento no espaço e no tempo – (de um personagem que desfalece aos poucos, vítima de uma doença) referida no território interno do próprio viajante. Observa-se na narrativa a fixação de memórias estilhaçadas e fragmentárias, imagens repetitivas e vozes entrelaçadas, passíveis de sobrepor tempos e espaços diferenciados (passado e presente), procedimentos literários característicos da contemporaneidade.
Ao especular sobre seu próprio destino, o personagem observa a si mesmo, metáfora de um país pós – ditatorial. Sua identidade surge estilhaçada e torna-se um simulacro, em meio à fragmentos e ruínas reais e simbólicas, esse narrador (ex-ator) sofre um processo de desintegração no decorrer da narrativa:
Eu estou velho, pensei. Mal chegado aos quarenta, velho. Andar por aí seria uma loucura. As minhas pernas, fracas. O meu coração batendo desordenado, eu sei. E essa minha postura reumática... (Noll, 2004, p. 18)
[...] Foi quando eu fui escorregando pelo marco da porta, sem que eu pudesse me deter, tudo o que me restava de forças parecia se esborando, um pouco como aqueles prédios sofrendo uma implosão, foi assim que eu fui caindo, e enquanto eu desmoronava a primeira coisa que senti foi que eu ia perdendo a audição – e quando o meu corpo inteiro se espatifou na laje do banheiro eu já estava completamente surdo. (Noll, 2004, p. 109).
O fim de um longo processo ditatorial suscita diferentes movimentos de democratização. O Brasil volta, depois de vinte e um anos do Estado Ditatorial, a “normalidade democrática”, muitos artistas exilados voltam para o país e acabam por se sentirem excêntricos e marginalizados em sua própria pátria, assim como o narrador de Hotel Atlântico sente-se estranho em seu próprio corpo.
Com a abertura política, a sociedade brasileira é denominada como “em transição”. Perkoski observa:
A anistia política de 1979, a censura atenuada, a retomada lenta de reivindicações sociais pelas classes assalariadas, uma abertura “em processo” permitiram aos analistas sociais entrever o quadro da sociedade brasileira dos anos 80 como “em transição”. Embora gradual, “aos trancos” revertendo-se muitas vezes, percebe-se que a pequena distensão estabelecida no quadro político-social apresentou já algumas ressonâncias no universo ficcional de alguns escritores (1994, p. 121).
Os personagens vivem num abismo, distantes de si mesmos e do mundo do qual estão inseridas. Prevalecem as incertezas, os pensamentos, a fantasia, a paranóia alucinatória, que “apaga a linha entre o literal e o figurativo” (Avelar, 2003, p. 254) – uma realidade é concebida na experiência de se recuperar a identidade perdida. Neste aspecto, alucinações, desvarios, loucuras transportam as angústias dos personagens para o mais íntimo deles mesmos:
Em certos instantes, sobretudo quando Sebastião estava longe, eu calculava que tinha chegado o momento exato de eu enlouquecer. Eu refletia: supondo que um psiquiatra percebesse o meu fingimento de loucura, ele me mandaria assim mesmo para o mundo dos loucos, porque fingir-se de louco para ele seria com certeza um sintoma a mais de loucura. (Noll, 2004, p. 86-87)
Um outro aspecto é a morte de Susan Flemming – a moça que sentara ao lado do protagonista no ônibus, suicida-se, uma vez que havia tomado comprimidos de “barbitúricos, antidepressivos, ansiolíticos, e tudo o mais que fizesse cessar qualquer perturbação” (Noll, 2004, p. 30). Faz-se interessante relacionar a dependência das personagens por medicamentos com esse ambiente alucinatório.
[...] Sabia que dentro de mim eu represava um desespero, porque daqui a pouco eu precisava ir – aparentando calma, muita calma.
Se eu encenasse loucura, quem sabe um transido esquecimento de tudo, o mundo correria para me internar.
E não seria a mesma coisa que viajar? Com a vantagem de eu não despender qualquer esforço, como o de entrar e sair de espeluncas como aquela em que eu estava. Se eu ficasse louco eu permaneceria dopado dia e noite, dormindo à hora em que a minha cabeça caísse de torpor (Noll, 2004, p. 13).
Ao tratar de questões como morte, angústia, perda e outros, a literatura, e em especial, Hotel Atlântico “não corrompe, nem edifica, portanto; mas trazendo livremente em si o que chamamos o bem e o que chamamos o mal, humaniza em sentido profundo, porque faz viver” (Candido, 2002, p.85).
Sendo a morte considerada obscena e embaraçosa nada pode deixar de vestígio. E o imenso dinamismo mortuário já não é da ordem da piedade, é o próprio signo do desamparo, Walter Benjamin observa: “Hoje a morte é cada vez mais expulsa do universo do vivo” (1994, p.207).
Seus dias no hospital, como não poderiam deixar de ser, são tristes e melancólicos. Angustiado, o protagonista escuta uma música, executada por um jovem que estava com câncer e vem a falecer no hospital da sua cidade de origem:
Uma tarde ouvi alguém tocando órgão na capela. Soube depois que era um rapaz que estudara regência na Alemanha, e que sabendo-se com câncer terminal veio morrer em Arraiol, sua terra de origem (Noll, 2004, p. 95).
Ele se vê, dolorosamente, perante a morte, àquela do próximo e a sua própria. Não podendo dela escapar, ele a recusa; não podendo evitá-la, torna-se dela instrumento. Essa sociedade que tanto horror tem da morte, não fazendo mais que desprezar a vida, ainda que proclame o contrário, acarreta sua própria morte.
Devido a uma fuga atormentada num dia chuvoso, o protagonista, depois de ser confundido com um seqüestrador, sofre um acidente e tem sua perna amputada, o que dificulta totalmente sua viagem, devido a esse problema, passa dias em um hospital:
Eu ficava ali, sentado no banco do pátio, ouvindo o órgão, com o cachorro junto do meu pé. Olhava a falta da minha perna, apalpava o toco como se eu ainda tivesse dúvidas, via um doente ou outro caminhando com dificuldades como eu. Achava o mundo bem infeliz (Noll, 2004, p.95).
O protagonista confronta-se constantemente com a morte, e salvo, no momento que está vestido de padre em que dá a extrema-unção a uma moribunda, nunca diretamente. Há sempre um antes e um depois que o faz desencontrar com a morte, como se as fronteiras territoriais apresentadas na narrativa fossem transformadas alegoricamente em fronteiras de vida e morte:
Entrei. Vi uma velha muito enrugada, que chorava. Quando me viu veio a mim com muito esforço, e disse que Deus tinha me mandado. Ela falou que dentro do quarto a irmã dela estava à morte, que Deus tinha me mandado para dar a extrema-unção a Diva, sua irmã. [...]
Senti um instinto de que me faltava um óleo santo, alguma coisa assim, encostei o polegar direito na minha língua, senti ele úmido, e com ele fiz uma cruz na testa, na boca, e no peito da agonizante. E depois falei baixinho:
-Vai, Diva, vai sem medo, vai...
A velha então suspirou, e morreu (Noll, 2004, p.66-67).
Nesse clima de morte e sofrimento, nota-se a constante do frio, principalmente porque o narrador utiliza durante toda a narrativa uma linguagem seca, é muito econômico em seus adjetivos. Aqui a viagem é tida como a própria metáfora da morte, já que o frio, companheiro personificado na narrativa, o acompanha durante todo o texto (grifos meus) - “[...] O frio aumentava”. (Noll, 2004, p.25), a viagem é triste, desoladora e salvo alguns momentos de calor, ela é fria, ou seja, a própria morte: “Cruzei os braços em sinal de frio, e mencionei mais uma vez o fato de não ter comigo nenhum outro agasalho além daquele casaco” (Noll, 2004, p. 25). Uma gradação de frio para geada: “Ao sair do ônibus, senti na pele o que pelo jeito era uma geada” (Noll, 2004, p. 28).
O frio é metamorfoseado, recebe adjetivos como gelado, feroz ou até mesmo verbos de estado (andar/estar) para tornar-se um empecilho a mais para o narrador durante a sua viagem, um elemento que o impede, muitas vezes, de andar (grifos meus): “Na rua de fato o vento gelado me tirava o ar. Várias vezes parei, me segurava num poste, pensava em voltar para o hotel”. (Noll, 2004, p.38); “[...] E fui para o vento feroz daquela noite” (Noll, 2004, p.39) e “O homem que atendia disse que já era época de ir esquentando, mas que o frio andava teimoso”. (Noll, 2004, p.103)
Em Hotel Atlântico a maioria dos relatos é vivenciada pelos personagens secundários e, contados para o personagem principal. Já o personagem ao ser indagado sobre seu estado, quase sempre inventava algo, o que é evidenciado pelo fato de ser um ex-ator “Preenchi a ficha do hotel, estado civil casado eu menti – e imaginei uma mulher me esperando num ponto qualquer do Brasil [...]” (Noll, 2004, p. 10).
Ao tornar-se ouvinte destes relatos, o narrador-protagonista constrói a narrativa, que apesar de ser em primeira pessoa tem um distanciamento dos fatos. São cinco relatos encontrados na narrativa: o de Susan Flemming – companheira de viagem do protagonista, a história de Nelson, a história da garota de traços orientais, as aventuras de Antônio (padre epilético) com a freira em Roma, e o de Sebastião, enfermeiro e amigo do protagonista.
Em nenhum momento, o narrador faz referências à sua vida passada, salvo algumas reminiscências (o fato de ser ex-ator e desempregado), que nunca estão relacionadas à vida familiar do protagonista. São os relatos dos outros personagens que constituem parte da história do narrador. Tem-se aqui uma nova experiência, que tenta sobreviver adaptando-se a uma nova época, na qual a verdade está em extinção.
Benjamin não vê este fato como algo negativo, como muitos estudiosos contemporâneos o fazem, ele vê isto como um processo histórico que vai resultar no surgimento da incomunicabilidade:
O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa é o surgimento do romance no inicio do período moderno. [...] A origem do romance é o homem isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes e que não recebe conselhos e nem sabe dá-los. [...] o romance anuncia a própria perplexidade de quem vive (1994, p.201).
O narrador em Hotel Atlântico, em meio às tantas mortes, angústias e aventuras tematiza esta perplexidade, “de um mundo destituído de valores, mundo de ideologias abaladas e de utopias em crise” (Barbieri, 1995, p. 7).
A relação de velho e novo é observada na narrativa, usada como um recurso decorativo estes dois antônimos são relacionados ao contexto sócio-histórico da época em que Hotel Atlântico foi publicado (1989). O uso constante do adjetivo velho caracteriza o protagonista (grifos meus): “Eu estou velho, pensei. Mal chegado aos quarenta, velho”. (Noll, 2004, p. 18); o mercado: “Eu caminhava contra o vento que me gelava o nariz. Encontrei o que deveria ser o velho mercado da cidade” (Noll, 2004, p. 34); uma senhora: “Não pude deixar de ver também uma velha com expressão demente ajoelhar-se à minha passagem.”[...] Entrei. Vi uma velha muito enrugada, que chorava.” (Noll, 2004, p.65); a cadeira: “Antônio levantou-se sozinho, sentou-se na velha cadeira.” (Noll, 2004, p. 69), a sensação: “De repente me veio a velha sensação de que alguém estava representando, no caso, aquela garota.”(Noll, 2004, p.76), a posição do ato sexual: “Até que chegamos à velha posição - ela deitada de costas e eu em cima dela -, e tudo parecia pronto para a largada.”(Noll, 2004, p. 90), o dono do boteco: “Ele veio, se debruçou sobre a janela ao meu lado, e disse que ainda era o mesmo velho o dono do boteco...”(Noll, 2004, p. 103).
Em contradição ao adjetivo velho, palavras do mesmo campo de significação do vocábulo novo caracterizam o garoto: “O garoto que atendia era bem louro, com jeito de ser da colônia do interior, da colônia alemã.”, as garotas: “A mulher que nos recebia reapareceu com duas garotas muito novas.” (Noll, 2004, p.45), a criança: “_ A criança era eu, o único filho que ela teve.” (p. 50), o homem: “Era um homem jovem.” (Noll, 2004, p. 57), o nome da cidade: “_ Pra Viçoso, ao pé daquele morro. – ele respondeu” (Noll, 2004, p. 57), o Antônio: “Mas como eu era bem mais jovem lá ia eu, cumpria com o meu em dever em troca de coisas que na época para mim se igualavam às iguarias.” (Noll, 2004, p. 64), a criança novamente: “Como poucos passavam pelas ruas de Viçoso, a criança num momento me notou [...]” (Noll, 2004, p.71), os médicos: “Havia alguns jovens residentes em volta” (Noll, 2004, p. 94).
Ao analisarmos a relação velho/novo com o período em que o livro foi publicado (1989) nota-se a proximidade com o fim da ditadura (1985), entretanto ainda temos resquícios no governo “democrático”, isso fica mais evidente com a citação abaixo:
Quando chegamos no endereço que Sebastião tinha num papel amarelado, vimos que ali não havia mais a casa de madeira azul que ele me descrevia agora, nos mínimos detalhes, na esperança de eu ajudá-lo a procurar.
Agora, ali, tinham erguido um prédio de quatro andares, uma construção visivelmente recente. Perguntei se ele não costumava se comunicar com a avó. Ele contou que não, que desde os 20 anos nunca mais a vira, não se escreviam porque ela era analfabeta.[...]
Sebastião não demorou muito no boteco. Ele veio, se debruçou sobre a janela ao meu lado, e disse que ainda era o mesmo velho o dono do boteco, que ele lhe dera a notícia de que a avó tinha morrido a uns dois anos e pouco, e que o dono da casa tinha vendido o terreno para fazerem aquele edifício (Noll, 2004, p. 102-103).
No uso das palavras velho e novo, podemos deduzir que tanto a casa de Sebastião quanto o edifício são construções para moradia, abrigo, em geral destinada à habitação. Assim também é o nosso país, mudam-se as formas de governo, mas a governabilidade continua a mesma. O protagonista de Hotel Atlântico se vê preso ao velho, mas numa ânsia pelo novo, entretanto para o protagonista, esse “novo” não aparece. Nas observações de Sarlo, essa relação do velho/novo “trata-se, da crise, também moderna, da autoridade do passado sobre o presente” (2007, p. 30).
Assim, podemos pensar que a casa velha que já não existe mais possa ser a representação da ditadura e o prédio novo a representação da democracia instaurada, já que a primeira publicação do livro é de 1989. Porém, nota-se que um não substitui o outro, a democracia realmente é instaurada, mas ainda vemos hoje resquícios de comportamentos ditatoriais em que o interesse individual sobrepõe o coletivo.
Avelar denomina em seu livro Alegorias da Derrota: A ficção pós – ditatorial e o trabalho de luto na América Latina esta passagem da casa da avó de Sebastião como uma “fracassada busca de origens” (2003, p. 226).
A preocupação na escolha de palavras com o prefixo des torna-se evidente em Hotel Atlântico (2004): desabotoando (p.16), desembolsado (p.18), desordenado (p.19), deteriorando (p.17), desocupado (p.16), despudorados (p.21), desempregado (p.27), desespero (p.30), desbragadamente (p.51), descabacei (p.53), descarga (p.61), desmanchar (p.63), desconfiar (p.65), desamarrar (p.76), desenfreadamente (p.80), descansando (p.82), desequilíbrio (p.82), descabaçado (p.89), desvirginasse (p.87), desesperada (p.87), destroem (p.84), descascavam (p.101), desaparece (p.103), desmoronava (p.105).
O prefixo des tem origem controvertida, surge das preposições latinas de (v. de-) e ex.(v.ex-), ou da romanização do prefixo dis (v. dis-), seu significado pode ser associado à separação, transformação, intensidade, ação contrária, negação, privação.3 Dentre estes significados, o que se enquadra nos vocábulos retirados de Hotel Atlântico é a idéia de negação e privação, confirmando a condição do narrador, privado de uma casa, de uma condição social, familiar, totalmente à margem, principalmente da própria história que narra.
Observa-se, de modo geral, que o pensamento é uma força a qual o narrador não consegue censurar, principalmente depois de perder a perna. O desejo, a solidão, o erotismo e a morte conferem à narrativa uma unidade, circunscrita pela atmosfera angustiante e pela escrita que “se afirma como o teatro privilegiado do inconsciente” (Avelar, 2003, p. 243) impregnada de sofrimento que confirma a falta de qualquer perspectiva futura, claramente expressa nas palavras do narrador: “Para onde eu vou?, pensei” (Noll, 2004, 94).
A resposta que se tem para a pergunta acima é a morte do narrador-protagonista que acontece gradativamente, primeiro ele perde a audição: “e quando meu corpo se espatifou na laje do banheiro, eu já estava completamente surdo.” (Noll, 2004, p. 109). Posteriormente, perde todos os movimentos, e por fim fica cego:
Depois eu fiquei cego, não via mais o mar, nem Sebastião. Só me restava respirar, o mais profundamente.
E me vi pronto para trazer, aos poucos, todo o ar para os pulmões. Nesses segundos em que enchia o pulmão de ar, senti a mão de Sebastião apertar a minha.
Sebastião tem força, eu pensei, e eu fui soltando o ar, devagar, devagarinho, até o fim. (Noll, 2004, p. 110)
O abismo para o qual o protagonista caminha é sua própria morte, apagado da sociedade, “sem lenço, sem documento”, sem passado e sem rumo, sem ninguém para “reclamar” sua falta, vítima das relações humanas breves e sem maiores envolvimentos ocasionadas por uma época tecnológica, na qual "a objetividade nas relações humanas, que acaba com toda ornamentação ideológica entre os homens, tornou-se ela própria uma ideologia para tratar os homens como coisas" (Adorno, 1993, p. 35). Existir para esse personagem é sentir a dor em cada milímetro de seu corpo e alma, é estar/ser um sujeito errante participante do abismo social em todas as suas atitudes.

Referências:

ADORNO, T. W. Mínima moralia. Tradução de Gabriel Cohn. São Paulo: Ática, 1993.
AVELAR, I. Alegorias da derrota: A ficção pós – ditatorial e o trabalho de luto na América Latina. Tradução de Saulo Gouveia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.
BARBIERI, T. apud João Gilberto Noll. Prefácio: Percurso Desbussolado in Hotel Atlântico, Francisco Alves: Rio de Janeiro, 1995.
____________. Ficção Impura – prosa brasileira nos anos 70, 80 e 90. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2003.
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sergio Paulo Rouanet 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras Escolhidas, vol. 1)
CANDIDO, A. “A literatura e a formação do homem”. Textos de Intervenção. Seleções, apresentações e notas de Vinicius Dantas.São Paulo: Duas Cidades, Ed. 34, 2002. (Coleção Espírito Crítico).
DRUMMOND, C. A. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1979.
FREUD, S. “Obras psicológicas completas da ed. Standard Brasileira”. O mal – estar da civilização. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1930.
HEIDEGGER, vida e obra (prefácio da coleção Os Pensadores). São Paulo: Nova Cultural, 1996.
NOLL, J. G. Hotel Atlântico. São Paulo: Francis, 2004
PERKOSKI, N. A transgressão erótica na obra de João Gilberto Noll. Santa Cruz do Sul – RS: Editora da UNISC, 1994.
SARLO, B. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d´Aguiar. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: UFMG, 2007.


1 Mestre em Estudos Literários pela UFMS, campus de Três Lagoas. Membro do Grupo de Pesquisa CNPq ICARO. E-mail: leite.virna@gmail.com
2 Informação retirada da contracapa do livro Hotel Atlântico, 1995, pela editora Francisco Alves.
3 Novo dicionário Aurélio eletrônico.
© 2008 - All rights reserved - Web Developer by Odirlei Vianei Uavniczak