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Literatura e Autoritarismo
       Rememoração e Reminiscência
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 16 

“¿CUÁL ERA LA VERDADERA SALVACIÓN, LA QUE CAMINABA O LA QUE SE VEÍA CAMINAR?” (TAMARO, 2008, p. 68): RELAÇÕES DE PODER COMO DETERMINANTES DA IDENTIDADE E DA ALTERIDADE EM SALVACIÓN, DE SUSANNA TAMARO

Ana Paula Cantarelli
Resumo: A migração é um fenômeno que faz parte do quotidiano mundial. No conto Salvación, de Susanna Tamaro, essa temática é abordada a partir da perspectiva de uma imigrante ilegal (homônima ao conto) que, partindo de um país subdesenvolvido com poucas oportunidades, busca em Roma um emprego que lhe permita sustentar a mãe e os irmãos. Salvación não compartilha da língua, dos costumes e das regras de comportamento do local para o qual migra, assumindo o papel do “outro”. Neste artigo, abordamos as configurações da identidade e da alteridade ao longo do texto de Tamaro, tendo como fio condutor os posicionamentos e as atitudes da protagonista.
Palavras-chave: identidade; alteridade; Salvación.
Abstract: Migration is a phenomenon that is part of the everyday world. In the short story Salvación, written by Susanna Tamaro, this theme is approached from the perspective of an illegal immigrant ( eponymous of the title), that leave an underdeveloped country with few opportunities, seeking a job in Rome to support his mother and siblings . Salvacion not share the language, customs and rules of behavior of the location to which migrates, assuming the role of "other." This paper discusses the configurations of identity and diference in the text of Tamaro, considering the positions and attitudes of the protagonist.
Keywords: identity, alterity, Salvación.

Introdução
Segundo Hall (2009, p. 28), “cada disseminação carrega consigo a promessa do retorno redentor”. O regresso simboliza, para o estrangeiro, um reencontro com a cidade da qual partiu, com sua cultura, sua língua, sua tradição e, na maioria das vezes, com a família que ficou para trás. Todos os dias, em diversos lugares do mundo, a emigração delineia-se como uma realidade com a qual a convivência é inevitável. Milhares de pessoas abandonam zonas pobres e deficitárias em busca de oportunidades de trabalho, de melhores condições de existência, de sustento para os familiares que, comumente, são obrigados a ficar. Entretanto, a nova morada raramente corresponde ao que era almejado antes da partida. O preconceito e a discriminação, mesmo nas regiões desenvolvidas, acompanham muitos imigrantes, obrigando-os a sujeitarem-se a diversos tidos de subjugação.
Esta é a temática presente no texto Salvación, de Susanna Tamaro. A personagem homônima ao conto vê-se imersa em um contexto totalmente distinto daquele do qual proveio. A convivência torna-se difícil, restando a ela adaptar-se ao “jogo”. A identidade da protagonista é confrontada com a da sociedade romana com a qual ela passa a conviver, estabelecendo um conflito no qual Salvación ao mesmo tempo em que luta para manter sua identidade, seus princípios e valores culturais, batalha para integrar-se à sociedade, para aprender a língua e os costumes locais, para satisfazer os anseios dos patrões.
Perceber a relação identidade/diferença como uma concepção estática é uma forma demasiadamente simplista de concebê-la, não sendo capaz de abarcar a complexidade que envolve o pertencimento e a identificação. Seria pressupor que tanto a identidade quanto a diferença são categorias imutáveis que possuem “delimitações” claras. No caso do conto analisado, é possível perceber que, dependendo da forma como observamos, Salvación pode ser vista como parte de uma identidade (quando Salvación está junto com outros estrangeiros), ou como alteridade (quando a distinção entre a protagonista e a sociedade romana torna-se mais evidente). Essa complexa relação exige que tenhamos cuidado ao realizarmos nossos comentários, tentando acompanhar as posições que a protagonista assume ao longo do texto. Assim, tecemos comentários e conjecturas a partir de três aspectos centrais do conto: a falta de domínio da língua, dos costumes e dos códigos de comportamento por parte da protagonista; a relação sexual entre patrão e empregada; e a exploração financeira da qual Salvación é vítima.

Organização do Conto
Salvación, de Susanna Tamaro, está estruturado a partir de um narrador onisciente em terceira pessoa que relata a história da personagem homônima ao conto. Apenas duas personagens possuem nome no texto: a personagem principal e Andrea, um jovem capuchinho que esteve durante vários anos em uma missão nas Filipinas e que, depois, passou a viver em Roma. As demais personagens são identificadas por denominações como “patroa”, “madre”, etc. Salvación é uma jovem de dezenove anos, natural de Jordan Ilo Ilo, um lugar pobre e com poucas oportunidades de trabalho. Possuidora de muita fé, seu desejo é tornar-se freira e ingressar em um convento. Entretanto, quando seu pai falece deixando esposa e filhos pequenos, Salvación é aconselhada pela madre responsável pelo convento no qual deseja ingressar a ir para a Europa em busca de trabalho, a fim de conseguir auxiliar no sustento da família.
O destino de Salvación foi Roma. Nessa cidade, ela conseguiu trabalho na casa de dois catedráticos de uma universidade. Inicialmente, a patroa conviveu diariamente com a nova empregada para garantir que ela aprendesse todo o serviço e as normas de etiqueta para bem servir os convidados que costumava receber. Com o passar do tempo e o acúmulo de compromissos que fazem parte de sua profissão, a patroa distanciou-se da nova empregada para dedicar sua atenção a outras ocupações. O patrão, então, passou a aproximar-se de Salvación e a assediá-la sexualmente. Com investidas discretas ao início, ele perturbou a imigrante, fazendo com que ela se retraísse ainda mais.
Pobre, com pouca escolaridade e sem dominar a língua do lugar onde estava, restava a Salvación procurar identificação com os indivíduos que, como ela, também eram estrangeiros e compartilhavam da mesma língua e de costumes pelo menos semelhantes. Assim, seus domingos de folga eram gastos ou em companhia de uma prima que também trabalhava em Roma e de outras pessoas que, como elas, eram imigrantes, ou em visita a alguma igreja.
Com o passar do tempo, as investidas do patrão tornaram-se mais frequentes, até que o ato sexual fosse consumado. Salvación sentiu-se suja depois de ter sido possuída pelo patrão, mas no momento do ato não encontrou forças para repeli-lo. O fato de ser homem, de ser instruído, de possuir um papel de destaque em uma sociedade na qual Salvación era apenas uma empregada, pobre, imigrante ilegal, com pouco conhecimento da língua, deixou-a sem reação, levando-a a sucumbir ao poder que aquela figura masculina representava. Sem coragem para contar a sua patroa o que havia acontecido, a protagonista mudou sua expressão, tornando-se mais tensa, mais triste e mais preocupada com o passar dos dias.
Ao final de três meses de trabalho, Salvación encorajou-se e solicitou à patroa que acertasse com ela o salário que lhe competia, pois até aquele momento nada havia recebido pelos trabalhos prestados e necessitava enviar dinheiro para seus familiares. A patroa, então, pagou a metade do valor, justificando que os três meses foram um período de experiência. Sem reclamar, a protagonista recebeu o dinheiro e o enviou a sua mãe.
No final de semana, os patrões viajaram para o campo, deixando a empregada sozinha. Sem disposição, ela recusou o convite da prima para passarem o domingo juntas. Seu passeio de domingo, então, restringiu-se à missa das 18horas em uma igreja de Roma. Na segunda-feira, antes do amanhecer e antes que os patrões retornassem, a protagonista saiu de casa; necessitava tranquilizar-se. Salvación dirigiu-se para a praia. Após observar o mar por alguns instantes, ela começou a adentrá-lo. Distraída com seus pensamentos e seus sentimentos, ela não percebeu quando um Jet Sky se aproximava. A máquina chocou-se contra a sua cabeça e, enquanto o oceano a tragava, a protagonista só conseguiu ver a mancha de sangue que se formou na água.
Ao longo do conto, há ainda outras personagens. A porteira do prédio onde vivem os patrões de Salvación. Apesar de ser de classe pobre, e de ter aspecto desagradável (“Ahora hablaba demasiado fuerte. Tenia sólo tres dientes en la boca” – TAMARO, 2008, p. 50), a porteira mostra-se preconceituosa com os imigrantes por possuírem língua e costumes diferentes dos dela, por não serem italianos como ela. Também há os convidados que são recepcionados pelos patrões de Salvación. Sem características que os particularizem, eles aparentam compartilhar a mesma conduta de seus anfitriões em relação aos estrangeiros: o menosprezo. Não dirigem a palavra a Salvación e não a olham nos olhos, tratando-a como inferior, como não pertencente àquele ambiente (“- Los comensales se marcharon casi a las dos. Salvación les dio la chaquetas. Las cogieron sin mirarla mientras saludaban a los dueños de la casa” TAMARO, 2008, p. 54). Outras personagens como a madre superiora do convento e uma colega de colégio são apresentadas através de parcas lembranças e pensamentos de Salvación.
Também vale destacar que há uma forte relação entre os estados de ânimo da protagonista e as variações do tempo. Quando Salvación está bem e alegre faz sol. Quando algo acontece para mudar seu humor, o tempo também muda, como na noite em que seu patrão colocou uma página de revista com imagens pornográficas dentro de sua mesinha de cabeceira: “Esa noche el tiempo cambió, la primavera se marcho y volvió el invierno” (TAMARO, 2008, p. 58); ou quando ela adentra o mar, cheia de preocupações: “Una nube pequeña y redonda había cubierto el sol” (TAMARO, 2008, p. 68).

“Siendo dos es más fácil sobrevivir” (TAMARO, 2008, p. 65): encontro e confronto
Salvación saiu de sua terra em busca de sustento para sua família. Ao longo de todo o texto, o narrador deixa claro que o desejo dessa personagem é tornar-se freira, pois sua religiosidade é muito forte. Contudo, esse sonho é deixado de lado até que ela possa garantir que a mãe e os irmãos consigam sobreviver em Jordan Ilo Ilo. O destino da protagonista foi a Europa, cenário esse associado ao desenvolvimento, ao conhecimento, às oportunidades, em oposição ao subdesenvolvimento e às poucas chances oferecidas por sua terra natal. Em Roma, tudo é novo para ela: a língua, os costumes, as normas de etiqueta.
Sem compartilhar dos mesmos códigos, Salvación apresenta-se como o “outro”, como “diferente”, como alguém que não pertence à sociedade na qual está inserida. Essa diferença é marcada ao longo de todo o conto. Neste artigo, ressaltaremos três situações nas quais ela se sobressai. Inicialmente, a falta de domínio da língua, dos costumes e dos códigos de comportamento faz com que a patroa de Salvación fique durante as primeiras semanas ensinando à nova empregada o serviço da casa, a forma como usar os eletrodomésticos e as boas maneiras para servir os convidados. Essa falta de conhecimento faz com que a protagonista seja vítima de preconceito inclusive de indivíduos que estão em classes sociais semelhantes à dela.
Em um passeio de final de semana, quando retornava para o apartamento dos patrões, o alarme da residência disparou. Atordoada com o barulho e sem saber o que fazer, a protagonista ficou estática. A porteira do prédio, com a intenção de zelar pela segurança do local, foi verificar o que estava causando o barulho. Primeiramente, a porteira acreditou que Salvación estivesse tentando assaltar o lugar, depois percebeu que ela era a empregada da casa e, então, manifestou seu preconceito chamando as estrangeiras de porcas (“- Es tu problema – murmuró pasando por delante de ella -, todas uma guarras, estas extranjeras” – TAMARO, 2008, p. 51) e tecendo comentários sobre suas características físicas:
- En esto edificio ya no hay quien entienda nada – gritó -. Un día caras de monos; al outro, rostros amarillos. Esto es la torre de Babel, no uma comunidad de vecinos. ¿Cómo puedo yo entender algo? Y además – añadió, dirigiendose hacia el apartamento -, ¿quién puede distinguir cuál es bueno? Sois todos iguales. (TAMARO, 2008, p. 50)
No processo de marcação da identidade e da diferença, a língua tem sido um elemento central – “a história da imposição das nações modernas coincide, em grande parte, com a história da imposição de uma língua nacional única e comum” (SILVA, 2007, p. 85). Juntamente com a língua, é central a construção de símbolos nacionais: hinos, bandeiras, brasões. Esses elementos que estabelecem uma ligação entre os indivíduos e um determinado lugar não são compartilhados por Salvación enquanto ela está em Roma, pois se distinguem daqueles que vigoram na terra natal da protagonista, com os quais ela possui identificação. Tal distinção aponta para a identidade como relacional, sendo a diferença “estabelecida por uma marcação simbólica relativamente a outras identidades” (Woodward, 2007, p. 14). Essa marcação simbólica não é algo que possa simplesmente ser apreendido pela protagonista, mas é algo que é comum à sociedade romana, que é compartilhado, em uma visão mais ampla, pelos indivíduos de uma mesma identidade nacional: a identidade nacional “nunca foi como as outras identidades. (...) a identidade nacional objetivava o direito monopolista de traçar a fronteira entre ‘nós’ e ‘eles’” (BAUMAN, 2005, p. 28).
Além da diferença de país e de hábitos, há uma diferença de classe social entre patroa e empregada: enquanto Salvación tem poucos recursos financeiros e pertence a uma classe com pouco poder aquisitivo, sua patroa possui dinheiro, status social e é catedrática em uma universidade, ocupando uma posição privilegiada na sociedade na qual está inserida. Essa oposição, de certa forma, reforça a classificação de Salvación como alteridade, como “negação” no contexto no qual ela se encontra, uma vez que “a identidade está vinculada também a condições materiais e simbólicas” (Woodward, 2007, p. 14).
Conforme aponta Silva (2007, p. 75), costumamos considerar a diferença como um produto da identidade: “a identidade é a referência, é o ponto original relativamente ao qual se define a diferença”. Essa perspectiva toma a identidade como norma e o que está fora dela como negação, como ausência. Entretanto, para o próprio autor, apesar dessa visão comumente apresentada, identidade e diferença podem ser vistas como mutuamente determinadas, como interdependentes, pois não há como falar em identidade se não houver referencia à alteridade:
Além de serem interdependentes, identidade e diferença partilham uma importante característica: elas são o resultado de atos de criação linguística. (...) A identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas. Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo transcendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as fabricamos no contexto de relações culturais e sociais. A identidade e a diferença são criações sociais e culturais. (SILVA, 2007, p. 76)
A construção da identidade e da alteridade está permeada pela atuação social. No momento em que um grupo aproxima-se pelo compartilhamento de construções culturais e se intitula como “nós”, pressupomos a existência de um “eles” que não participa dos mesmos códigos, das mesmas construções. Nesse processo de identificação e de exclusão, os grupos confrontam-se com a finalidade de fortalecerem as suas estruturas, as suas certezas através da oposição, da comparação com o outro grupo, com os outros indivíduos. Por essa perspectiva, Salvación é vista como alteridade, porque não compartilha das construções culturais imperantes no contexto no qual está: ela não é romana, não fala italiano, não domina os códigos de comportamento e pertence a uma classe social inferior à dos indivíduos que frequentam o mesmo ambiente que seus patrões. Esses fatores, construídos cultural e socialmente, determinam o lugar do “outro” na sociedade romana à protagonista. Na medida em que sua vinda de Jordan Ilo Ilo a faz ter construções culturais distintas das produzidas em Roma, Salvación é percebida como alguém que não faz parte da coletividade instaurada.
Nos domingos de folga, a protagonista encontra-se com a prima e com outros imigrantes. Esse encontro possibilita o reconhecimento de indivíduos que compartilham dos mesmos códigos, que ocupam o lugar de estrangeiros, de imigrantes dentro da sociedade romana, diminuindo a sensação de deslocamento. Segundo Kristeva (1994, p.19), “livre de qualquer laço com os seus, o estrangeiro sente-se ‘completamente livre’. O absoluto dessa liberdade, no entanto, chama-se solidão. (...) Disponível, liberado de tudo, o estrangeiro nada tem, não é nada”. A solidão decorrente da ausência de laços cria a necessidade do encontro com o semelhante, com aquele que também é estrangeiro, que também está longe de casa, que também está só. Esse encontro minimiza, de certa forma, a sensação de deslocamento, de não pertencimento. No caso do texto analisado, percebe-se que, quando está com as pessoas que vieram de Jordan Ilo Ilo, Salvación deixa de ser a alteridade e se reconhece como parte de uma identidade, apesar do contexto que os cerca não ser o da terra natal. Esse reconhecimento diminui o estranhamento e a sensação de não fazer parte do local no qual se está, além de reforçar os laços com a terra natal e aumentar o desejo do retorno.
De acordo com Hall (2009, p. 28):
Essencialmente, presume-se que a identidade cultural seja fixada no nascimento, seja parte da natureza, impressa através do parentesco e da linhagem dos genes, seja constitutiva de nosso eu mais interior. É impermeável a algo tão “mundano”, secular e superficial quanto uma mudança temporária de nosso local de residência. A pobreza, o subdesenvolvimento, a falta de oportunidades – os legados do Império em toda parte – podem forçar as pessoas a migrar, o que causa o espalhamento – a dispersão.
São a falta de oportunidades e a necessidade de sustentar a família os fatores que motivaram Salvación e outros tantos indivíduos a deixar Jordan Ilo Ilo em busca de melhores condições de vida. O pertencimento a este local estabeleceu-se no nascimento, mas as necessidades impostas ao longo da vida foram os motivadores para deixar a terra natal, para aceitar outro lugar como sua “casa” enquanto fosse necessário. A identidade nacional e o pertencimento são categorias que podem sofrer certas alterações na medida em que estabelecer e fixar uma identidade não são tarefas fáceis. Não há como deter completamente as movimentações, as assunções e as negações que os indivíduos vivenciarão ao longo de suas existências. Mesmo sendo possível associar os sujeitos aos seus locais de nascimento, essa atitude por si só não é suficiente para determinar a identidade.
No conto, a protagonista ingressou na sociedade romana, tentou aprender a língua e os códigos para ali sobreviver e conseguir dinheiro enquanto fosse necessário. Salvación não deixou de possuir vínculo com sua terra natal, entretanto, durante a estadia em Roma, ela tentou assumir os elementos que a tornariam um pouco mais “romana”. Essa tentativa está pautada no fato de a protagonista não ter autoridade para reforçar sua diferença na sociedade na qual está, por ser vista como um indivíduo com pouco poder de decisão e com pouco respaldo para afirmar suas opiniões.
A busca pela igreja, pelo conforto na fé também diminui a sensação de desgarramento, de não-pertencimento. O desejo de Salvación de tornar-se freira faz com que ela reconheça no ambiente religioso um ponto de identificação, tornando a igreja uma espécie de “lar”, de refúgio em meio ao conturbado cenário no qual ela está. Esse encontro com a igreja também se dá através da personagem Andrea. Andrea é um jovem capuchinho que, por ter estado vários anos em uma missão nas Filipinas, conhecia a língua de Salvación. A protagonista identifica-se com essa personagem, pois consegue comunicar-se em sua língua materna além de Andrea conviver no meio religioso, espaço que Salvación aspira para sua vida.
De acordo com Silva (2007, p. 82), “a afirmação da identidade e a marcação da diferença implicam, sempre, as operações de incluir e de excluir”. Salvación não é incluída pelos patrões no ambiente social que eles frequentam, atuando à margem durante os encontros sociais, ao passo em que ela inclui os outros estrangeiros vindos e Jordan Ilo Ilo e a igreja em seu espaço de atuação e estabelecimento de relações. Essa inclusão promovida pela protagonista só é possível porque ela tem liberdade de atuação com esses elementos, enquanto que, nas relações com os patrões e as pessoas da mesma classe social que eles e até mesmo com a porteira do prédio ela não possui poder de decisão e força de atuação.
O segundo aspecto está relacionado com a relação sexual entre patrão e empregada. À medida que o tempo passa e a protagonista começa a conhecer melhor o funcionamento da casa na qual está trabalhando, sua patroa começa a deixá-la mais tempo sozinha. O espaço ganho pelo afastamento da patroa é prontamente ocupado pelas investidas do patrão. Este se aproxima de Salvación quando ela encontra-se só, fazendo-se presente através da proximidade corporal, das frases de duplo sentido e das gravuras obscenas que coloca no criado mudo da empregada. Essa proximidade desagrada Salvación, despertando nela sentimentos com os quais não estava habituada a lidar.
Na condição de homem, com posição privilegiada na sociedade romana, ocupante de um importante cargo em uma universidade, o patrão percebe Salvación como um indivíduo de menor valor, incapaz de impor resistência aos seus caprichos masculinos. Nessa relação de poder e submissão, Salvación sabe que ocupa o lugar mais frágil, a posição mais instável. Como estrangeira ilegal naquele lugar, mulher, empregada doméstica, com pouco conhecimento da língua e dos costumes, ela é incapaz de impor resistência aos arroubos do patrão. Inábil para esboçar qualquer oposição, a imigrante permite a transposição da relação de dominador-dominado estabelecida no âmbito de seu trabalho para o âmbito sexual.
Salvación não ama seu patrão, nem ao menos sente afeto suficiente para envolver-se afetivamente com ele. O mesmo podemos afirmar a respeito dele, pois o que o move é puramente o instinto, o desejo sexual. Na posição de dominador, os interesses do dominado não lhe são pertinentes, e sequer merecem consideração. Após consumado o ato sexual, o sentimento de repulsa da protagonista fica claro: “Salvación se frotaba el cuerpo com furor, deseaba que el agua, em lugar de lavarla por fuera, la lavase por dentro. Abrió la boca y trago del chorro con la esperanza de que hiciera efecto” (TAMARO, 2008, p. 60).
Salvación é o retrato de tantas outras imigrantes oriundas de países de terceiro mundo, subdesenvolvidos, que acabam se sujeitando a algum tipo de exploração sexual em busca de dinheiro para sustentarem suas famílias, almejando melhores dias, mas cientes de sua condição de subserviência, de exploração. Segundo Silva (2007, p. 81), “a identidade, tal como a diferença, é uma relação social. Isso significa que sua definição – discursiva e lingüística – está sujeita a vetores de força, a relações de poder. Elas não são simplesmente definidas; elas são impostas”. É por estar ciente dessa imposição, que Salvación, ao reconhecer a condição de dominada, de subjugada, não esboça resistência, não se atreve a contrariar, a lutar por respeito. A protagonista silencia sobre o abuso cometido pelo patrão, cala sua voz, talvez por não acreditar em uma mudança significativa, ou por crer que não adiantaria de nada a voz de um dominado frente a um sistema de dominação.
O terceiro aspecto está relacionado à exploração financeira da qual Salvación é vítima. A protagonista foi para Roma em busca de dinheiro para sustentar a mãe e os irmãos que ficaram em Jordan Ilo Ilo. Após três meses de serviços, Salvación ainda não havia recebido nenhum dinheiro de sua patroa, apenas comida e hospedagem, atuando em um regime de exploração de mão-de-obra. Quando solicitou o recebimento do seu salário, a patroa lhe pagou apenas a metade do que ela teria direito de receber, justificando que esse havia sido um tempo de experiência e de adaptação: “- Te doy la mitad – le dijo abriendo el monedero -, porque los primeros três meses estás a prueba” (TAMARO, 2008, p. 66).
A patroa age dessa forma porque sabe que Salvación não pode contestá-la, não pode reclamar para ninguém da atitude de sua empregadora. Na condição de imigrante ilegal, a protagonista não tem voz na sociedade romana, sendo subjugada pelo sistema no qual está imersa. Conforme aponta Bauman (2005, p. 19), “as ‘identidades’ flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender as primeiras em relação às últimas”. O meio no qual Salvación está imersa possui uma constituição identitária inflada que grita aos imigrantes pobres: “- Vocês não são daqui! Vocês são diferentes e não pertencem ao nosso meio!”. Esses gritos fazem questão de ecoar infinitamente, concedendo, pela sua força de repetição e de autoafirmação, um lugar cada vez menos privilegiado aos imigrantes, permitindo que os integrantes dessa identidade possam usufruir incontestavelmente da mão-de-obra dos estrangeiros com o pretexto de que eles são os “outros”, que não pertencem àquele meio.

Considerações Finais
De acordo com Bauman (2005, p. 19):
Estar total ou parcialmente “deslocado” em toda parte, não estar totalmente em lugar algum (ou seja, sem restrições e embargos, sem que alguns aspectos da pessoa “se sobressaiam” e sejam vistos por outras como estranhos), pode ser uma experiência desconfortável, por vezes perturbadora. Sempre há alguma coisa a explicar, desculpar, esconder ou, pelo contrário, corajosamente ostentar, negociar, oferecer e barganhar. Há diferenças a serem atenuadas ou desculpadas ou, pelo contrário, ressaltadas e tornadas mais claras.
Essa afirmação de Bauman pode ser usada para compreendermos a relação que tantos migrantes ao redor do mundo estabelecem com os locais onde estão. Fora de seus países de origem, a assunção de ostentar ou de ocultar a identidade não depende somente do imigrante, mas também de como a sociedade na qual ele está imerso percebe a nacionalidade do estrangeiro e a sua posição social. No caso de Salvación, a protagonista não podia ostentar sua diferença, mas sim, necessitava ocultá-la. Precisando de emprego, de dinheiro, ela deveria aproximar o seu comportamento do adotado pela sociedade romana: conhecer a língua, os códigos culturais e comportamentais para evitar o confronto e conseguir o seu objetivo, ao mesmo tempo em que tentava manter intactas suas convicções e anseios.
Ao final do texto, após a relação sexual com o patrão e as dificuldades de inserção e aceitação encontradas na sociedade romana, Salvación já não era mais a mesma imigrante que, três meses antes, havia ingressado na sociedade romana, chegando ao ponto de questionar-se sobre sua identidade: “Se sentía extraña. ¿Era ella, Salvación, quien caminaba en el agua y se veía a sí misma caminar en el agua? No le había ocurrido nunca.” (TAMARO, 2008, p. 68). As mudanças que a protagonista vivenciou modificaram sua forma de perceber a sociedade na qual estava, contudo não foram drásticas o suficiente para que ela fosse percebida pelos patrões como integrante da sociedade romana, ou para que ela mesma se considerasse “romana”. Em uma posição desfavorável, Salvación luta para conseguir sustentar sua família, mesmo que para isso necessite anular suas particularidades e deixar-se subjugar pela força da sociedade na qual está imersa. Vista como o “outro”, como alguém diferente, Salvación contenta-se com a posição de alteridade que ocupa, mesmo porque sua condição social e formação não lhe instigam a contestar, apenas a aceitar passivamente a dominação, a subjugação.
Quando, ao final do conto, ingressa no mar, a protagonista sem dar-se conta afasta-se da praia: “El agua, antes azul, se volvió del color acero. ¿Tanto se había alejado de la costa?” (TAMARO, 2008, p. 68). Esse distanciamento da costa pode ser percebido como uma metáfora da relação que Salvación mantinha com seus valores, seus costumes e seus ideais. À medida que assume um papel de empregada na sociedade romana, sendo menosprezada pelos patrões e pelas pessoas que freqüentam a casa destes, tendo uma relação sexual não desejada com o patrão, a protagonista distancia-se mais e mais de Jordan Ilo Ilo, de sua casa, e de seus sonhos ao ponto de indagar-se: “¿Cuál era la verdadera Salvación, la que caminaba o la que se veía caminar?” (TAMARO, 2008, p. 68).

Referências bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005.
HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações. Organização Liv Sovik; Tradução de Adelaide La Guardia Resende ... [et al.]. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2009.
KRISTEVA, Júlia. Estrangeiros para nós mesmos. Tradução de Maria Carlota Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
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TAMARO, Susanna. Salvación. In: ______. Fuera. 1ª. Ed. Tradução de Guadalupe Ramírez. Buenos Aires: Seix Barral, 2008. p. 43 - 70.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.); HALL, Stuart; WOODWARD, Kathrin. Identidade e Diferença: A perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2007. p. 07 – 72.

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