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Literatura e Autoritarismo
       Rememoração e Reminiscência
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 16 

ESQUECER PARA LEMBRAR: MEMÓRIA E COMPREENSÃO EM INFÂNCIA, DE GRACILIANO RAMOS

Gustavo Silveira Ribeiro1
Resumo: Este trabalho apresenta uma interpretação de Infância, de Graciliano Ramos, tendo como centro o debate ético que atravessa a obra. Considerado pessimista pela crítica, o texto foi lido quase sempre a partir das mesmas questões: violência, medo, ressentimento. Realizando movimento contrário, procurei expor a tese de que predomina no livro uma visão menos negativa do homem e do mundo.
Palavras-chave: Memória. Violência. Ressentimento. Ética. Compreensão.
Abstract: This work presents an interpretation of Graciliano Ramos’s book of childhood memoirs: Infância. It has as its major theme the ethical debate, which is recurrent throughout the whole book. Considered as having a pessimistic and disillusioned outlook by the critics, Infância was read almost exclusively with a focus on the same issues throughout time: fear, violence, resentment. Taking a contrary stance, I tried to show in this paper that a less negative view of men and of the world prevails in this book.
Keywords: Memory. Violence. Resentment. Ethic. Comprehension.

Creio que foi o pensador alemão Friedrich Nietzsche quem disse, em algum lugar de sua extensa obra, que sem o esquecimento não podemos nos tornar humanos. Para o filósofo, e também para Freud, a memória é uma espécie de doença, pois que paralisa o indivíduo no passado e o impede de entregar-se ao fluxo da vida presente, a única possível de ser vivida. A repetição infinita da mesma experiência, especialmente quando se trata de algo traumático, aprisiona e faz sofrer de novo, reproduzindo a dor de forma ampliada, transformando-a em mágoa e em afetos negativos como o ódio e o ressentimento. Ainda segundo o autor de Genealogia da Moral, somente a capacidade de esquecer ou, se se quiser, de “digerir” um determinado agravo sofrido, pode trazer-nos de volta à humanidade, à vida dos “homens ativos.” (NIETZSCHE, 1983, p. 309)
Resgato aqui a oposição nietzschiana entre memória e esquecimento porque, na leitura que este artigo propõe de Infância (1945), narrativa autobiográfica de Graciliano Ramos, também está em jogo essa mesma dualidade, ligeiramente alterada por alguns deslocamentos conceituais. Trata-se aqui de, a partir do texto graciliânico, ampliar um pouco o sentido da proposição do filósofo da Basiléia; se ele afirma que sem esquecer não é possível tornar-se humano (no plano individual), poder-se-ia estender sua reflexão e concluir que, sem o esquecimento, também não é possível humanizar o Outro – difícil tarefa a que se impõe o escritor alagoano no já citado relato.
Esse “esquecimento” que tem lugar no texto de Graciliano – questão central para a interpretação que dele proponho – tem a ver com a necessidade de compreensão e entendimento manifesta em Infância. De fato, será na busca que o escritor empreende por entender o Outro, procurando compreender as circunstâncias psicológicas e sociais, históricas e culturais que contribuíram para determinar as suas atitudes, escolhas e sentimentos é que vai se fazer notar a disposição que ele apresenta a esquecer o passado, o que vai se realizar, paradoxalmente, no momento mesmo em que este é resgatado pelo trabalho de reelaboração escrita da memória.
Para entender essa aparente contradição, é preciso atentar para algumas particularidades do texto de Graciliano Ramos aqui abordado e para umas poucas noções teóricas básicas relativas ao tema. Em Infância, o conteúdo que emerge da atividade mnemônica é formado, em grande parte, por recordações de eventos dolorosos e de indivíduos cuja lembrança traz à tona mágoas, traumas e ressentimentos bastante arraigados. Como se sabe, vivências traumáticas tendem a ser repetidas, e até hiperbolizadas pela memória, uma vez que podem retornar indefinida e monstruosamente à consciência por meio de obsessões, fantasmagorias e queixas incessantes. No caso da escrita literária de memórias, essa insistência da dor em se fazer presente pode ser notada, entre outras coisas, por certa inclinação do “eu-narrador” a um discurso acusatório contra aqueles que o feriram e à utilização de estratégias retóricas que visam tanto despertar a piedade do leitor quanto proporcionar a sensação de autocomplacência com que essa instância textual tende a se satisfazer.
Seguindo em direção contrária, a autobiografia de Graciliano procura, como já dito, re-trabalhar suas experiências passadas, especialmente aquelas que carregam maior carga de sofrimento, disposta que está a não se prender aos afetos reativos que o lembrar deflagra. Posto isso, desfaz-se a contradição e se explica de que modo o autor procura esquecer o passado ao mesmo tempo em que se lembra dele: ao não só repetir as sensações experimentadas anteriormente, mas ao oferecer delas uma outra imagem, construída por meio da reflexão e da busca por entendimento, Graciliano aciona a memória como “operação diferenciadora” (DELEUZE, 1988, p. 105) fazendo com que o passado possa ser esquecido, despido de sua carga de trauma e ressentimento, no momento mesmo em que é tornado presente no texto.
Os termos da equação relacionada a esse processo também se ampliam, alargando seu horizonte de significação. Lembrança e esquecimento passam a equivaler, segundo propõe este trabalho, ao binômio ressentimento e compreensão: nos trechos de Infância em que prevalece o primeiro desses termos (a lembrança), o texto tinge-se com as cores do ressentimento, e apresenta de modo excessivamente negativo e carregado os personagens e as situações em foco; majoritariamente, esses trechos são narrados a partir do ponto de vista da criança, protagonista das ações que transcorrem no tempo do enunciado.
Agora, nos trechos em que prevalece o esquecimento – os momentos decisivos do livro – a compreensão do Outro se afirma como postura ética e estratégia narrativa principal, o que faz com que a atitude do memorialista passe a ser a de humanizar os personagens retratados em vez de apenas condená-los, e isso sem que o autor abra mão do olhar crítico que caracteriza sua visão de mundo, dado que a prática do esquecimento, em Infância, não pode ser confundida com inclinação à indulgência ou ao sentimentalismo.
Se a incerteza e a nebulosidade são as características que, é possível afirmar, definem o olhar do personagem-narrador em Infância (aquele que se identifica ao ponto de vista da criança), pode-se dizer, por outro lado, que a busca por clareza e compreensão da experiência vivida é o elemento que melhor caracteriza o ponto de vista do adulto-narrador (aquele se identifica com o memorialista). Para ele, narrar é tentar imprimir sentido ao que ficou para trás, mesmo que o passado se apresente em retalhos soltos, apenas “rasgões num tecido negro” (RAMOS, 2003, p. 11). Os percalços de sua formação como indivíduo, a descoberta das suas aptidões, o contato e o confronto com o Outro, tudo isso só interessa a esse narrador – que se sabe distante no tempo e no espaço dos acontecimentos que relata – como matéria de reflexão. Repetir cenas já vistas, recuperar pessoas apagadas, recompor (ou inventar) diálogos obliterados pelo tempo parece não bastar como atividade fechada sobre si mesma. A simples evocação dá lugar aqui a uma prática distinta: o ato de recordar se une ao de analisar, formando ambos um só gesto, uma ação contínua.
Wander Melo Miranda, em texto sobre as Memórias do Cárcere, ressalta a vocação analítico-reflexiva das obras memorialísticas de Graciliano Ramos ao afirmar que nelas “o passado é eleito como um lugar de reflexão – no sentido simultâneo de retratar e reflexionar” (MIRANDA, 2004, p. 161). Apesar de não se referir especificamente ao objeto de estudo principal deste artigo, acredito que as palavras do ensaísta caracterizam bem o tratamento dado ao passado em Infância. A atitude do narrador-adulto, instância textual que sempre se mantém a uma distância segura dos eventos relatados (por maior que seja o envolvimento emocional existente), o confirma. Sua postura dentro do texto se pauta, entre outras coisas, pela desconfiança em relação à forma e à veracidade daquilo que é lembrado, bem como pelo desejo permanente de confronto com as imagens, sentidos e afetos que afloram em meio ao processo da re-escrita/re-invenção do passado.
Não se trata de enxergar em Infância uma atitude complacente em relação aos insucessos vividos, e nem se poderia supor tal coisa de um escritor sabidamente crítico como Graciliano Ramos; trata-se, antes, de notar a importância que têm no relato as ponderações do narrador, que vai sutilmente imprimindo nos episódios evocados a dúvida e a surpresa. Ao reconhecer a impossibilidade do julgamento preciso, da avaliação imparcial, este narrador identifica seu olhar ao de um relativista. Por inexistirem condições efetivas para delimitar com precisão o que é bom e o que é mau, o que é justo ou não (seja pela distância dos fatos narrados, seja pela visão de mundo assumida que exclui as verdades definitivas), a postura daquele que narra parece ser a do tateio. Em Infância encontra-se um narrador o tempo todo surpreendido, descobrindo a cada passo que seus conceitos e juízos são falíveis e precários.
A mãe, o pai, os professores, o vigário João Inácio e até o temido Fernando, assassino local e deflorador de moças pobres, todos personagens da obra, serão protagonistas de atitudes contraditórias, dando margem a inúmeras considerações de ordem ética e moral que o narrador vai inscrevendo no corpo do texto. Talvez o capítulo “Fernando” seja o melhor exemplo disso. O personagem homônimo, descrito como “bicho perigoso” (RAMOS, 2003, p. 225), protegido do chefe político local, “dono de corpos e de almas” (RAMOS, 2003, p. 223), é praticante inveterado de injustiças de toda sorte. Fernando é – segundo o ponto de vista infantil que o narrador assume – comparável aos piores criminosos da história; é “uma das recordações mais desagradáveis que ficaram” (RAMOS, 2003, p. 223). Acontece que, para surpresa daquele que rememora, uma atitude daquela singular criatura desestabiliza todo julgamento anteriormente feito: “um dia minha convicção se abalou profundamente” (RAMOS, 2003, p. 227). Numa tarde qualquer, ao ver pregos afiados soltos no chão, Fernando se preocupa com a segurança das crianças, entortando – num gesto inesperado –, os pedaços de metal que poderiam machucar os meninos que por ali andavam descalços. Tendo assistido a isso, comenta o narrador:
“Então Fernando não era mau? Pensei num milagre. Julguei ter sido injusto. Fernando, o monstro, semelhante a Nero, receava que as crianças ferissem os pés” (RAMOS, 2003, p. 227).
À semelhança desta passagem, trechos que se referem aos pais do menino e ao vigário de Buíque, João Inácio, parecem apontar para a mesma direção. Após apresentar o padre como um mandatário local, grosseiro com os paroquianos e dono de aparência assustadora, assevera o narrador: “Em padre João Inácio, homem de ações admiráveis, só percebíamos a dureza” (RAMOS, 2003, p. 71). A distinção entre a percepção no momento da experiência e sua posterior ressignificação dá o tom dos episódios: o narrador, ao olhá-los de novo através das névoas da memória, confere aos personagens e a suas atitudes um sentido novo. Os episódios em que o narrador revê, respectivamente, sua mãe e seu pai são bons exemplo dissos.
Logo de saída, a apresentação da figura materna causa espanto (RAMOS, 2003: 16): “uma senhora enfezada, agressiva, ranzinza, sempre a mexer-se, bossas na cabeça mal protegida (...), boca má, olhos maus que em momentos de cólera se inflamavam com um brilho de loucura.” Conforme a apresentação, as ações dessa personagem também espantam pela aspereza contra o filho. Castigos e surras figuravam na ordem do dia, não importava o motivo ou a idade da criança: “Certa vez minha mãe surrou-me com uma corda nodosa que me pintou as costas de manchas sangrentas.” (RAMOS, 2003: 33) Porém, em meio a recordação desses maus tratos, o narrador – procurando distanciar-se das emoções e (res)sentimentos do menino – lança outro olhar sobre a mãe, procurando compreendê-la:
“Se não existisse aquele pecado, estou certo de que minha mãe teria sido mais humana. De fato meu pai mostrava comportar-se bem. Mas havia aquela evidência de faltas antigas, uma evidência forte, de cabeleira negra, beiços vermelhos, olhos provocadores. Minha mãe não dispunha dessas vantagens. E com certeza se amofinava, coitada, revendo-se em nós, percebendo cá fora, soltos dela, pedaços de sua carne propícia aos furúnculos. Maltratava-se maltratando-nos. Julgo que aguentamos cascudos por não termos a beleza de Mocinha.” (RAMOS, 2003: 26)
Humanizando-a, o narrador refere-se à Mocinha, filha natural de seu pai e lembrança permanente das aventuras sexuais do passado deste. A evocação dessa personagem, inclusive, moça bonita de “olhos provocadores”, traz ao relato dois elementos de interesse. O mais óbvio deles (o desgosto da mãe com sua própria aparência) permite ao narrador realizar breve e revelador desnudamento psicológico da figura materna. Insegura consigo mesma, sentindo despeito e inveja da enteada – que lhe lembra as outras mulheres do marido –, ela tem sua agressividade com os filhos justificada (ou pelo menos ressiginificada) pelos desgostos íntimos que o olhar agudo do narrador foi capaz de detectar, num lance de interpretação cuidadosa.
Ao observar mais atentamente o trecho, porém, é possível perceber que a compreensão do Outro que se ensaia aqui toca em questões mais amplas que a simples reflexão sobre o ressentimento materno em relação à enteada. Graciliano Ramos esboça também, nesse e em outros momentos de Infância, o estudo das circunstâncias de um personagem que engloba a crítica de todo um contexto sócio-cultural, num alargamento de perspectiva que Alfredo Bosi chamou de “um cruzamento raro, moderno, de análise psicológica e interpretação cultural” (BOSI, 202, p. 232). No instante em que discorre sobre os sentimentos da mãe sobre Mocinha, o narrador toca sutilmente no problema do regime patriarcal nordestino (porque não dizer brasileiro), demonstrando como esse sistema de valores e práticas sociais arcaicos influenciava a vida cotidiana de pessoas comuns. À maneira de um historiador das pequenas coisas, o escritor inventaria e descreve os efeitos dos costumes sexuais na conformação das famílias, mostrando a precariedade das relações de convivência forçosa a que se submetiam as várias mulheres e os múltiplos filhos (legítimos e naturais) dos proprietários. Humilhação, dependência econômica, ódio e ressentimento parecem ser alguns dos resultados imediatos e das conseqüências nefastas desse estado de coisas comum no Nordeste há décadas atrás, fato que torna a avaliação de um dado comportamento individual uma questão mais que sensível, conforme bem percebeu Graciliano Ramos. Por mais que o comportamento brutal de D. Maria com os filhos não possa ser explicado só por essa situação (como às vezes parece sugerir o narrador), o caso ganha contornos mais largos, revelando a complexidade dos eventos rememorados e a importância delicada de que se reveste o trabalho ético de reavaliação do passado levado a cabo em Infância.
O tratamento dado no livro ao pai do menino, Sebastião Ramos, em muito se parece ao que acabamos de comentar. No retrato desse personagem autoritário e violento, sente-se a mesma tendência à reflexão sobre seus atos a partir do estudo dos elementos por assim dizer externos a sua vontade que poderiam ter contribuído em suas escolhas. Dessa vez, entretanto, ao invés de se deter no escrutínio dos costumes tradicionais do povo interiorano, o memorialista se preocupa em deslindar o funcionamento da máquina emperrada da economia sertaneja, demonstrando que tipo de ilações (segundo esse modo de encarar a articulação existente entre formas de subsistência e práticas sociais de um indivíduo) poderia haver entre essa engrenagem mercantil e as ações particulares dos homens. No capítulo “Verão”, em que se apresenta a seca “que (...) alterou a vida” (RAMOS, 2003, p. 27) da criança, a análise do personagem se confunde, o tempo todo, com a observação e estudo das conseqüências da falta de chuvas na região da Fazenda Pintadinho, pertencente à família de Graciliano. A imagem do pai, antes um sujeito vigoroso e patronal que “era terrivelmente poderoso, e essencialmente poderoso” (RAMOS, 2003, p. 30), vai se tornando desbotada à medida que a seca arruína os seus negócios:
“Sentado junto às armas de fogo e aos instrumentos agrícolas, em desânimo profundo, as mãos inertes, pálido, o homem agreste murmurava uma confissão lamentosa à companheira. As nascentes secavam, o gado se finava no carrapato e na morrinha.”( RAMOS, 2003, p. 31)
Numa aproximação crescente entre os aspectos exteriores (falta d’água, ameaça da pobreza, pressão de parentes) e a constituição interna do personagem, o narrador arma a rede de fatores e motivos com a qual pretende explicar as surras e castigos degradantes que recebia do pai: “O desalento e a tristeza abalaram-me. Explicavam a sisudez, o desgosto habitual, as rugas, as explosões de pragas e de injúrias. Mas a explicação me apareceu anos depois.” (RAMOS, 2003, p. 31) [grifo meu]
Essa explicação consiste, basicamente, numa associação de fatores comportamentais e questões sócio-econômicas. Menos feliz em seus resultados que a anteriormente comentada, a tentativa do narrador em compreender o pai esbarra em resquícios de um pensamento determinista que o autor possivelmente absorveu em seu contato com certa tradição marxista próxima da ortodoxia:
“Hoje acho naturais as violências que o cegavam. Se ele estivesse embaixo, livre de ambições, ou em cima, na prosperidade, eu e o moleque José teríamos vivido em sossego. Mas no meio, receando cair, avançando a custo, perseguido pelo verão, arruinado pela epizootia, indeciso, obediente ao chefe político, à justiça e ao fisco, precisava desabafar, soltar a zanga concentrada. Aperreava o devedor e afligia-se temendo calotes. Venerava o credor e, pontual no pagamento, economizava com avareza. Só não economizava pancadas e repreensões.” (RAMOS, 2003, p. 31)
A afirmação de que o personagem teria sido outra pessoa e teria agido de outra maneira se fosse diferente a sua posição de classe parte de uma falsa premissa, e daí decorre sua controversa conclusão. É evidente que qualquer indivíduo, sendo outra sua posição em face às relações sociais de trabalho, seria um ser diferente. Todos – segundo a ontologia marxista – têm seus mais íntimos desejos e sentimentos atravessados pela situação de classe em que se encontra e pelos lampejos de consciência-de-si que essa condição projeta. O que acontece é que, apesar de esses elementos exercerem grande influência na vida humana, eles não podem ser tomados como ponto de partida e explicação final para o comportamento concreto de um determinado sujeito. Para cada ação ou escolha é tão grande o número de fatores envolvidos – conscientes e inconscientes, sociais e particulares – que sempre parecem fechadas demais escolhas como a de Graciliano Ramos no trecho citado.
Ao associar as “pancadas e repreensões” (RAMOS, 2003, p. 31) que seu pai desferia à instabilidade da classe média rural, com seus avanços e recuos incertos, e sua subserviência impotente ante a praticamente todas as formas de poder constituídas (“o chefe político, a justiça e o fisco”) [RAMOS, 2003, p. 31], o memorialista procurou compreender as motivações do personagem e assimilar os seus atos de uma maneira diversa da experimentada no momento em que se deram os eventos. Ao buscar aclarar as prováveis determinações externas da atitude do pai, mostrando-o não mais “essencialmente poderoso” (RAMOS, 2003, p. 30), mas “fraco e normal” (RAMOS, 2003, p. 31), ele confronta as mágoas guardadas e as lembranças dolorosas do passado com a capacidade que tem agora, no tempo da enunciação, de refletir sobre algumas das variáveis que compõem o panorama traçado em Infância. Apesar de questionáveis, os argumentos de natureza sociológica utilizados no raciocínio exposto confirmam o ethos fundamental do texto e de seu narrador.
Essas passagens e posturas, consideradas aqui comuns ao esquema narrativo de Infância, guardam proximidade – segundo se quer propor – com aquele desejo de compreender os homens, “senti-los, (...) não arriscar julgamentos precipitados” (RAMOS, 1993, p. 35), expresso pelo narrador das Memórias do Cárcere, esta última uma obra muito mais próxima de Infância do que pode supor uma leitura superficial.
Partindo dessas premissas e identificando na extensa fortuna crítica de Infância a ausência de trabalhos que se dedicaram a observar o debate ético que tem lugar na obra, acredito poder afirmar que predomina no primeiro livro de memórias de Graciliano Ramos sentimento muito diverso daquele frio pessimismo comumente atribuído a ele. Ao contrário do que se costuma pensar, a compreensão do Outro (assumida como uma espécie de dever moral pelo autor-narrador-personagem) constitui-se como elemento chave de uma visão de mundo mais aberta e positiva – próxima mesmo do humanismo – que se delineia na obra. Verdadeiro exercício autocrítico, a escrita memorialística de Infância é, a um só tempo, exemplo da exata junção entre ética e estética promovida pela/ na obra de Graciliano Ramos, como também se revela uma reflexão inovadora e radical sobre o gênero autobiográfico, tantas vezes imerso em práticas narcísicas e pobremente reconfortantes para o sujeito da escrita.

BIBLIOGRAFIA

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DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Trad. Luiz Orlandi & Roberto Machado. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 1988.
FREUD, Sigmund. A psicopatologia da vida quotidiana. Trad. Klaus Scheel. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1987.
KEHL, Maria Rita. Ressentimento. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
MIRANDA, Wander Melo. Corpos escritos. São Paulo: Edusp; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1992.
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NAXARA, Márcia & CAPELARI, Regina. Memória e (res)sentimento: indagações sobre uma questão sensível. Campinas: Ed. UNICAMP, 2004.
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NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
RAMOS, Graciliano. Infância. São Paulo: Record, 2003.
RAMOS, Graciliano. Memórias do cárcere. São Paulo: Record, 1993.


1 Doutorando em Estudos Literários na UFMG. Bolsista do CNPq. E-mail: gutosr1@yahoo.com.br
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