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Literatura e Autoritarismo
       Rememoração e Reminiscência
Capa | Editorial | Sumário | Apresentação        ISSN 1679-849X Revista nº 16 

METÁFORAS DO TOTALITARISMO EM IONESCO: A PROLIFERAÇÃO DA MATÉRIA EM O NOVO INQUILINO

Maria Gorete Oliveira de Sousa (IFCE)1
Gilson Leandro Queluz (UTFPR)2
Resumo: O objetivo deste artigo é analisar a proliferação material como efeito dos sistemas totalitário-tecnicistas na peça O Novo Inquilino de Ionesco. O autor através de sua linguagem imagética e simbólica , por via do insólito, propõe um debate contínuo sobre as questões decorrentes da modernidade tecnológica, com suas implicações sobre as pessoas. Uma das imagens mais obsessivas desse teatro do absurdo é a da proliferação da matéria. Ionesco, através de diversas alegorias de ordem material, elabora uma crítica ácida, tanto a toda forma de totalitarismo quanto a todo conformismo.
Palavras-chave: totalitarismo, proliferação da matéria, Ionesco , teatro do absurdo.
Abstract: The objective of this article is to analyse the “proliferation of matter” as an effect of the totalitarian-technical system in O Novo Inquilino by Ionesco. The author proposes through an imagetic and symbolic language, an ongoing debate on issues arising from technological modernity and its implications on people. One of the most obsessive images of his theater of the absurd is the proliferation of the matter. Ionesco elaborates through several material allegories, an acid critic to all forms of totatitarism and conformism.
Keywords: totalitarism, proliferation of matter, Ionesco, theater of absurd.

1.Introdução
O trabalho que nos propomos consiste num estudo crítico de texto, com vistas à compreensão das representações de tecnologia no discurso dramático de Eugène Ionesco, na obra O Novo Inquilino(1957) .
Trata-se de investigar as metáforas do totalitarismo em Ionesco e desvendá-las como uma crítica filosófica à alienação da modernidade. Procuraremos demonstrar que as decorrências da modernidade que transformam o mundo da técnica em única dimensão (MARCUSE, 1982), traduzem-se metaforicamente, na obra de Ionesco.
As metáforas nos apontam esse mundo unidimensional - o mundo da técnica - intercedido do sistema econômico com suas políticas de produção e consumo. De um lado, o mundo material, denso e pesado, sufocando o homem; de outro lado, o vazio existencial e espiritual sufocando-o igualmente. Damo-nos conta de que tudo isso nos conduz a uma das principais obsessões de Ionesco que descrevem sua repulsão ao aparato totalitário: a proliferação da matéria. Para o dramaturgo, ela representa a tomada de todos os espaços. O Vazio e o sufoco, suas consequências, são – por assim dizer – as faces dialéticas da falta de liberdade. Sobre esta, detectamos um tom – até certo ponto – irônico na obra de Marcuse: “Uma falta de liberdade confortável, suave, razoável e democrática prevalece na civilização industrial desenvolvida, um testemunho do progresso técnico (MARCUSE, 1982, p. 23). (Grifo nosso). Ionesco expressa a mesma ironia em imagens, material e espiritualmente, invasivas ao mundo humano. Saint Tobi muito bem analisa a presença desse tema em Ionesco . Diz o ensaísta:
A acumulação alucinante de toda sorte de objetos e o sufocamento do homem no meio deles é um outro castigo no inferno ionesquiano.
A proliferação denuncia, de uma parte, o fetichismo dos objetos na sociedade moderna, onde o objeto tende a substituir o homem e, de outra parte, significa paradoxalmente, o vazio (a abstinência de toda presença espiritual), hipóstase da morte (o tudo e o nada provocam o mesmo efeito: o sufocamento) (TOBI, 1973, p. 111).
Percebemos o caráter polarizador da proliferação da matéria, tanto social quanto dramaturgicamente, e assim formulamos a hipótese de que o recurso imagético da proliferação da matéria é – no teatro de Ionesco – um contraponto crítico e cognitivo, a partir do qual o leitor/espectador pode inferir os efeitos dos sistemas totalitário-tecnicistas. A densidade material vai ocupando o espaço, e o homem se vai desumanizando. A matéria que prolifera é, assim, um fetiche da sociedade moderna, e sua produção, a interface de um mundo alienado, reificado, mecanizado, com um homem angustiado, porque vazio e alienado.
Saint Tobi distingue duas formas de adensamento material em Ionesco: a) pela proliferação: em A Cantora Careca, A Lição, Jacques ou a Submissão (de palavras); em Amédée ou Como Livrar-se Dele (de cogumelos); em O Novo Inquilino (de móveis); em O Futuro Está nos Ovos (de ovos); em O Rinoceronte (de rinocerontes); em A sede e a Fome (de chifres); em Jogos de Massacre (de cadáveres), b) pela acumulação: em O Jarro (de barro); em A Coléra (de cólera) (TOBI, 1973, 111). Esslin acrescentaria algo a essa lista, haja vista o que diz: “Le Salon d'Automobile é baseada numa confusão entre automóveis e seres humanos. O salão de exposição é saturado com os ruídos animais dos veículos” (ESSLIN, 1968, p. 142). E reflete: “A proliferação da matéria expressa ‘a concretização da solidão, a vitória das forças antiespirituais'” (Idem).
Já que aludimos a sistemas totalitários, consideramos importante esclarecer o alcance semântico-filosófico de totalitarismo, com a finalidade de evitar equívocos. Neste trabalho, o termo é concebido pelo que nos orienta Marcuse: “Não apenas uma forma específica de Governo ou direção partidária constitui totalitarismo, mas também um sistema específico de produção e distribuição [...]” (MARCUSE, 1982, p. 25). Nessa acepção, tal sistema torna-se o centro de controle da Administração, uma vez que “opera através da manipulação das necessidades por interesses adquiridos” (Idem). E, se em larga medida, transigem com uma atitude tecnológica racional tais produção e distribuição de mercadorias e serviços socialmente desejáveis, reputam-se totalitários tanto o sistema tecnológico, quanto o sistema econômico. “Pois 'totalitária' não é apenas uma coordenação política terrorista da sociedade, mas também uma coordenação técnico-econômica não-terrorista [...]” (Ibidem). É, portanto, ao caráter totalitário do progresso técnico que se precipitou sobre a sociedade do pós-Segunda Guerra Mundial, da qual somos herdeiros, a que nos referimos.3
A proliferação da matéria pode ser encontrada em diversas obras de Ionesco como O Rinoceronte, As Cadeiras e O Assassino, entre outras. Em todas, o tema acentua uma das mais delicadas questões humanas: o horror da solidão; o mundo fechado em redor das pessoas, e elas fechadas em si. Isso não é uma figuração poética. Ao contrário, é um dos debates mais sérios na temática de Ionesco, visto que das principais decorrências desse fechamento destaca-se a tão discutida falência da linguagem. Desta, são objeto e consequência o seguinte tripé: o isolamento, as circularidades e a degenerescência das relações. Estes constituem algo que tem sido refletido e refratado nas diversas discussões sobre a modernidade: os ilhamentos humanos, sendo considerados de importância capital para se pensar no progresso humano – ou na impossibilidade dele – em contraposição ao progresso material.
No advento da modernidade, com seus avanços científico-tecnológicos, cujo corolário aponta para o progresso material, o homem vai sendo cada vez mais afastado dos aspectos axiológicos da sua condição. É na inversão de valores que se pressupõe esteja o tripé, há pouco, sugerido. Tome-se, por hipótese, esse tripé assim articulado: em meio a tudo que cresceu, inovou e avançou em sua volta, o homem está ilhado porque, sem saída; sem saída, porque incapaz de comunicar sua experiência pessoal; incapaz de se comunicar, porque reificado.
São três noções que levam a três estados de coisas a que se reduz o homem, os quais qualificam três categorias: o círculo (ausência de saídas, de avanços) – Marcuse (1982, p. 50) nos fala mesmo de círculos viciosos –, a incomunicabilidade (as relações humanas suplantadas pelas de interesse material), a reificação (os valores humanos alienados aos valores dos produtos).
Neste trabalho, analisaremos O Novo Inquilino, peça na qual a incidência da proliferação constitui, por excelência, a representação de uma imagem dialética do sufocamento e vacuidade da moderna sociedade tecnológica.

2. Náusea e falta de ar em O Novo Inquilino
Convenhamos: nada pode ser mais real e corriqueiro que uma mudança de domicílio. É exatamente esse o enredo de O Novo Inquilino – se é que podemos chamá-lo enredo, talvez, melhor seja antienredo. Não é uma história com articulações seqüenciais interdependentes, mas apenas um fato. Fato que nada teria de extraordinário, não fosse a habilidade do dramaturgo de trabalhar com a ambivalência para atingir os mais inusitados objetivos.
É uma peça curta. Uma peça em um ato, mas de uma dinâmica alucinante determinada por dois movimentos opostos em relação ao ritmo. Ralentado e enauseante no início, acelerado e fatigante em certo ponto, para retomar, ao final, o ritmo inicial até a inércia.
Essa alternância se associa claramente ao ritmo da vida humana no mundo tecnológico. Este é, nessa peça, o principal alvo do testemunho de Ionesco. A náusea e a falta de ar – como sintetizamos as sensações dela decorrentes – nada mais são do que uma estocada instigante, um alerta, ou uma chamada de atenção para a necessidade de uma reflexão constante sobre os efeitos da aceleração tecnológica sobre as pessoas. A imagem simbólica para isso é a da proliferação da matéria. Esta se confirma em dois níveis de percepção: o da matéria inerte, na mobília do inquilino e o da matéria semiótica, nos longos, desconexos e inquietantes – ao inquilino – solilóquios e diatribes da porteira.
Com relação aos avanços tecnológicos e ao mundo da produção, parece cabível a associação com o mobiliário do inquilino – que, a partir de certo momento, demonstra ganhar vida e autonomia. Mas, ao que diz respeito à matéria semiótica, que relação teria? Se se quiser uma relação direta, talvez não se encontre, mas, na hipótese de pautarem-se as vias das consequências, pode-se fazer a seguinte associação: o mundo das coisas avança sobre o mundo do homem. E este, tomado de matéria e vazio de espírito – como bem o disse Saint Tobi –, fica falando sozinho. E fala sem parar por não ter mais o que dizer, como o casal de A Cantora Careca, primeira obra de Ionesco. Eles falam, falam e nada dizem. Conforme reflexão do próprio Ionesco, citada em Esslin, “não conseguem mais falar porque não conseguem mais pensar; e não conseguem pensar porque nada mais os comove, porque não podem mais sentir paixão” (ESSLIN, 1968, pp. 128, 129). (Grifo do autor). E pior, isto é sua tragédia. “Não podem mais existir; podem 'virar' qualquer pessoa, qualquer coisa, pois ao perderem sua própria identidade assumiram a identidade dos outros... são intercambiáveis” (Idem).
E a porteira de O Novo Inquilino fala sem parar, mas suas frases, em maioria, não nos revelam seus propósitos. Quer-nos parecer que ela fala, apenas, para ter certeza de que ainda lhe restam algumas imagens mentais. É como se nos levasse a refletir que enquanto nos restarem lembranças, podemos reconstituir nosso mundo – se não politicamente, pelo menos, nas projeções mentais. Seria um testemunho do autor, partindo de sua própria experiência: “Há lembrança enquanto a afetividade ainda responde às imagens e às vozes mentais que nos restam. Desse ponto de vista, não creio que eu esteja completamente morto” (IONESCO, 1969, pp.36, 37).
No que concerne ao que diz a porteira, considerou-se proliferação de matéria semiótica porque, por um lado, na realidade, não é uma expressão do pensamento, não é fala propriamente dita. É algo semelhante a um palrear. Visto não fazer muito sentido, é apenas um derramamento de palavras que se convertem no veículo do inefável. Materializam-se em imagens. Por outro lado, não é um discurso sem razão, visto que ambivalente. Mesmo em ela falando sozinha, a fala da porteira é um diálogo social. É um enunciado existente, originado num dado momento, como diria Bakhtin, da história social do indivíduo. Toca, portanto, os milhares de fios dialógicos existentes (BAKHTIN, 1993).
Esses e outros aspectos se articulam no texto e falam além da palavra. Como geralmente acontece, ao começar suas peças, a primeira referência de Ionesco é ao espaço. Cenicamente falando, o que primeiro se apresenta é o cenário. Em O Novo Inquilino, a curiosidade está justamente no detalhe de que o texto se propõe retratar o homem sufocado pela matéria, e começa por introduzir os olhos do público no desolamento do vácuo, na solidão do vazio. Nenhum homem está lá. Adentremos neste espaço: Uma sala nua, sem qualquer móvel (IONESCO, 1963, p. 49).
O vazio aludido na expressão sala nua é ambivalente porque serve à alternância do tudo e do nada – para retomarmos os termos de Saint Tobi. Ionesco parte de um espaço insólito, vazio como uma memória sem lembranças, vai gradativamente preenchendo-o de objetos até transformá-lo em irrespirável. Bem compatível, se compararmos, com a vida moderna, principalmente, no que diz respeito à acelerada produção do lixo tecnológico decorrente da sede constante de inovação. E – voltando a Saint Tobi – o efeito do tudo é igual ao efeito do nada: o ser humano sufocado.
O primeiro apelo é mesmo sensorial. Visual, imediatamente, auditivo depois, mas quase concomitantemente. A conjunção dos dois nos permite, de pronto, ler algumas possibilidades de quebra do vazio. Por exemplo, há nessa sala nua, uma janela e duas portas. Quer dizer, é facultado o fluxo. As imagens acústicas chegam simultaneamente das mais variadas fontes sonoras. De vozes: vozes indistintas, fragmentos de estribilho, gritos de criança. De ruídos: marteladas, passos na escada, realejo. Início das náuseas: algazarra geral. O que isso significa é que há indício humano nas adjacências, que não tardará a se manifestar.
Pequeno tempo de espera, e a presença humana entra no espaço. É a porteira que chega, abrindo a porta com grande estrondo. Vem cantando e agitando um molho de chaves. Curioso o destaque das chaves. Chave é um símbolo mais que ambivalente, é ambíguo e paradoxal, alegoriza concomitantemente liberdade e prisão.
Em seguida à entrada da porteira, entra o inquilino – denominado O Senhor – logo depois, os entregadores que vêm trazer os móveis. Os móveis, o começo da agonia. Para Martin Esslin, “O Novo Inquilino é um espetáculo de apavorante simplicidade” (ESSLIN, 1968, p. 148). Não podemos discordar dessa imagem. Nada mais simples ou mais característico em mudanças que móveis, também nada mais apavorante que estes se multipliquem como se fossem algo vivo. O pavor aumenta pela fúria com que isso acontece. É um processo de velocidade desmedida.
Em segundos, é como se uma enorme boca tivesse engolido o homem, pois não se lhe mais vê nem os vestígios. A exemplo das imagens presentes em O Rinoceronte, aqui também se pode projetar a imagem do ventre descrita em Bakhtin (1981, 1996). Seus móveis ocupam todos os espaços. Ele foi suprimido, literalmente emparedado, embora saibamos que continua lá, sentado, num pequeno círculo, no interior da pirâmide de móveis que ordenara aos entregadores fizessem ao seu redor e ao alto. A imagem que se vai projetar é a do homem engolido pela pirâmide; imagem que projeta morte – o ventre da morte, a morte grávida – e esta é mais uma imagem que se pode verificar na crítica literária de Bakhtin (Idem), uma morte, não só simbólica, mas ambivalente. É a imagem do morre-nasce ou nasce-renasce, para o qual propomos esta leitura: o homem morre no mundo humano, e nasce no mundo reificado – este conforme Marcuse (1982) –, daí renasce como produto do sistema.
O que acontece é que os móveis, de início, são trazidos, depois chegam sozinhos, e cada vez mais rápido, e impondo às pessoas esse ritmo. Velocidade e quantidade se aliam; os móveis animados extrapolam o espaço do apartamento e ganham as escadas, depois o prédio, depois a rua, a cidade, o rio Sena.
Vejamos este trecho:
Primeiro moço-de-fretes – E não é tudo. Há mais ainda.
Segundo moço-de-fretes – A escada está cheia. Não se pode circular.
O Senhor – O pátio também está cheio. A rua também.
Primeiro moço-de-fretes – Os carros já não circulam, na cidade. Tudo cheio de móveis.
Segundo moço-de-fretes (para o Senhor) – Não se pode queixar, o Senhor ao menos tem um lugar sentado.
Primeiro moço-de-fretes – Talvez o metro funcione.
Segundo moço-de-fretes – Oh, não!
O Senhor (sempre do seu lugar) – Não. Todos os subterrâneos estão bloqueados.
Segundo moço-de-fretes (para o Senhor) – O senhor sempre tem móveis! Atravanca o país todo!
O Senhor – O Sena já não corre. Bloqueado, também. Acabou-se a água (INOESCO, 1963, pp. 94,95).
Surgem a partir daí, questões recorrentes como: a humanidade sem saída; o homem ilhado, porque submisso ao progresso material. O Senhor – o inquilino – risca um círculo, senta-lhe ao meio, numa cadeira, e ordena que os entregadores disponham os móveis em seu redor até o teto. Ou seja: aceita tranqüilamente ser emparedado por seus móveis. Seus móveis são seus bens. Ninguém mais o vê, mas suas posses estão bem visíveis e preservadas em detrimento do ar que ele respira.
Nada mais coerente com a vida moderna. É um testemunho realíssimo. Críticos contemporâneos, a exemplo de Nicolau Sevcenko, tratam de questão idêntica, e o quadro que se nos apresenta é o de que, diz ele:
A aceleração das inovações tecnológicas se dá agora numa escala multiplicativa, uma autêntica reação em cadeia, de modo que em curtos intervalos de tempo o conjunto do aparato tecnológico vigente passa por saltos qualitativos em que a ampliação, a condensação e a miniaturização de seus potenciais reconfiguram completamente o universo de possibilidades e expectativas, tornando-o cada vez mais imprevisível, irresistível e incompreensível (SEVCENKO, 2006, pp. 16, 17).
Isso nos joga mais uma luz sobre a discussão, na obra de Ionesco, do apequenamento do homem face ao agigantamento do mundo tecnológico e toda a sua produção. Qual seja: o esvaziamento espiritual em proporção direta com o preenchimento material, o que bloqueia as saídas e provoca os ilhamentos. Vejamos o momento final da peça, quando os dois moços já cumpriram sua tarefa, e o Senhor – de quem, a essa altura, só se ouve a voz, quer dizer, ele é, naquele momento, só um som de voz – já está devidamente absorvido, emparedado:
Os dois Moços-de-fretes dirigem-se, ao acaso, não se sabe bem para onde, para o fundo do palco, cada um por seu lado, vagamente, em direções invisíveis, problemáticas saídas, pois a janela está tapada, tal como as portas abertas de par em par, deixando ver as tábuas violentamente coloridas, que as obstruem. Num dado momento, o Primeiro Moço-de-fretes pára, num extremo do palco, volta-se, sempre com o chapéu do Senhor na mão, fala para o Senhor.
Primeiro Moço-de-fretes – Não precisa de nada?
Silêncio.
Segundo Moço-de-fretes – Não precisa de nada?
Voz do Senhor, após um silêncio; imobilidade em cena
Apaguem. (Obscuridade completa no palco.)
Obrigado. (IONESCO, 1963, pp. 99, 100). (Grifos no original)
E assim, Ionesco, para chegar ao cúmulo da proliferação, foi pelo vazio, e ao chegar a esse cúmulo de proliferação, demonstrou exatamente o cúmulo do vazio humano. Um vazio de morte. O que nos aparece aqui bem claro é um dos elementos da sua técnica dramatúrgica: a circularidade num movimento vertical, confirmando a quebra da cronologia. O homem, na metáfora da peça, termina como começou: sem ser visto. Mas, agora, submetido à matéria, afogado pela matéria . Nem por isso, porém, menos solitário que quando submetido ao vazio, no início.
Esta materialização do sufocamento, é uma metáfora do processo de despersonalização do ser humano na sociedade unidimensional, temática central para Ionesco:
Nesta tentativa atual de despersonalização, nesta inclinação à coletividade em que se quer afogar o homem na nação, na sociedade, na raça, vejo as conseqüências, os frutos, tanto do totalitarismo comunista como do totalitarismo de alguns nazismos.
Um novo personalismo é possível, sem dúvida. Emmanuel Mounier4 já defendera, justificara [a idéia de estar] a pessoa por cima dos totalitarismos, faz meio século, contra esses totalitarismos. Para a renovação do personalismo de hoje teremos que fazer frente aos neocoletivismos que renascem de suas cinzas com meios novos e, sem dúvida, mais poderosos.
Se a pessoa é ilusória, por que a não-pessoa o iria ser menos? (IONESCO, 1969, p. 163).

3.Conclusão
Através das imagens do teatro insólito de Ionesco com sua linguagem provocativa, humor irreverente e crítica ácida, propôs-se debater como tema: o homem submetido aos avanços do aparato técnico-científico. Isso significa o surgimento de uma nova sociedade. Nessa nova sociedade, o homem novo, visto que recondicionado materialmente, tem que estar continuamente se reaprendendo.
Essa reaprendizagem pressupõe aprender a criticar, a fim de resignificar o aparato do sistema, bem como as novas necessidades. Estas são, em maioria, supérfluas à vida humana e vitais ao sistema. Nisso vai-se achar o grande perigo da alienação. Uma vez sendo vital ao sistema, este converte tudo em necessidade para a sociedade, e é aí que essa sociedade se submete a esse sistema.
Para Herbert Marcuse, é também aí que se cria o perigo. E o perigoso é que a sociedade se submete sem avaliar riscos, levada que é pelas benesses aparentes da superficialidade. Diz ele: “Nós nos submetemos à produção pacífica dos meios de destruição, à perfeição do desperdício, a ser educados para uma defesa que deforma os defensores e aquilo que estes defendem” (MARCUSE, 1982, p. 13).
A obsessão material da modernidade não parece ser algo em iminência de retrocesso, visto não parecer que essa moderna geração de pessoas esteja intencionada a abrir mão de sua sede de posse. E a razão também não parece ser simples. A modernidade, ao que tudo indica, enfrenta sérias dificuldades para encontrar sua identidade fora do mundo material. E a visão do dramaturgo já captava esse novo formato de vida, a partir do fim da guerra, período em que, justamente, e por acaso, mas levado pelas circunstâncias do pós-guerra, começou sua carreira.
Em seu ensaio, Allan Lewis faz uma interpretação bem significativa dessa visão. Diz: “Desde que acumulação material é uma obsessão da vida contemporânea, acessórios são tão importantes quanto personagens ou linguagem. Coisas proliferam, empreendem sua vingança, dominam as pessoas, atuam com intensidade própria” (LEWIS, 1972, p. 28). (Grifo nosso). Depreende-se, portanto, que, compreendendo os moldes do novo homem, Ionesco, em seu teatro, deu vida aos objetos – e isso era uma realidade – visto que, socialmente, eles já viviam.

Referências

BAKHTIN, M A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateshi Vieira. São Paulo: Hucitec, 1996.
BAKHTIN, M. Questões de literatura e de estética. Tradução de: Aurora Fornoni Bernardini et alii. São Paulo: Unesp/Hucitec, 1993.
BAKHTIN, M. Problemas da poética de Dostoiévski. Tradução de: Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1981.
ESSLIN, M. O teatro do Absurdo. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zanhar Editores, 1968.
FEENBERG, Andrew. A tecnologia pode incorporar valores? A resposta de Marcuse para a questão da época, in: Racionalização Subversiva: Tecnologia, Poder e Democracia. Disponível em: http:/www.rohan.sdsu.edu/faculty/feenberg . Acesso em 12 de Outubro de 2009.
IONESCO, E. O novo inquilino. In______. O mestre, a menina casadoisa, o novo inquilino, o assassino. Tradução de: Luísa Neto Jorge. Lisboa: Presença, 1963. ______. Diario II: Presente pasado; pasado presente. Tradução para o Castelhano: Marcelo Arroita-Jauregui. Madri: Guadarrama, 1969.
LEWIS, A. Ionesco. New York: Twayne Publishers, 1972.
MARCUSE, H. A ideologia da sociedade industrial: o homem unidimensional. Tradução: Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982.
SAHLINS, Marshal. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar,1990.
SEVCENKO, N. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
TOBI, S. Eugène Ionesco: ou, A la recherche du paradis perdu: Anti-essai em 12 épisodes dont la création du monde, em guise de prologue, et l'Apocalypse, em guise d'épilogue. Paris: Gallimard, 1973.


1 Maria Gorete Oliveira de Sousa é professora do Instituto Federal do Ceará(IFCE).Especialista em Arte e Educação pelo Centro Federal de Educação Tecnológica do Ceará; Mestra em Tecnologia pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná; . E-mail: gorete@ifce.edu.br
2 Gilson Leandro Queluz é Professor do Programa de Pós-Graduação em Tecnologia (PPGTE), da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Mestre em História (UFPR), Doutor em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). E-mail: queluz@utfpr.edu.br
3 Para uma reflexão acerca da teoria da tecnologia de Marcuse ver: Andrew Feenberg(2008)
4 Filósofo francês, defensor do personalismo, das liberdades da pessoa humana. Antifascista e antinazista. Faleceu em 1950. Para mais informações sobre o pensamento de Mounier, ver O Outsider: o drama moderno da alienação e da criação, de Colin Wilson, Ed. Martins Fontes.
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